racismo estrutural
Do direito inalienável de derrubar estátuas
Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” de um país composto por uma nata encastelada em condomínios e uma grande massa que ainda hoje é caçada
“Quem controla o passado, controla o futuro”. Essa frase de 1984, de George Orwell, é uma das mais importantes lições a respeito do que é efetivamente uma ação política. Toda ação política real conhece a importância de compreender o passado como um campo de batalhas. Ela compreende que o passado é algo que nunca passa por completo. A definição mais correta seria: o passado não é o que passa. O passado é o que se repete, o que se transfigura de múltiplas formas, o que retorna de maneira reiterada. O passado é o que faz CEOs falarem, em 2021, como senhores de escravos do século XIX, que faz transgêneros atualmente em luta falarem como pessoas escravizadas em luta séculos passados. Nosso tempo é espesso. Nas camadas dessa espessura convivem mortos e vivos, espectros, limiares e carne. Só mesmo uma noção pontilhista e equivocada de instante pode reduzir o presente ao “agora”. O “agora” é apenas uma forma, politicamente interessada, de bloqueio do presente. Pois quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.
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Seria útil lembrar disso no Brasil, ou seja, nesse país que se especializou em procurar não falar de seu passado devido a uma certa crença mágica de que, se não falarmos dele, o passado irá embora e nunca mais voltará. Os apóstolos do esquecimento deveriam lembrar que foi assim que criamos o país da compulsão contínua de repetição. País que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964, no qual uma política catastrófica de anistia permitiu que as Forças Armadas preservassem seus responsáveis por crimes contra a humanidade até que eles voltassem a ameaçar a sociedade. O esquecimento é uma forma de governo. A tentativa de exilar os sujeitos no presente puro é o seu braço armado mais forte. Deveríamos partir daí se quiséssemos efetivamente entender o que é o o Brasil.
Dito isto, não é motivo de espanto ver alguns a criticarem uma das mais importantes ações políticas desse últimos meses, a saber, a queima da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Quem acha que isso é apenas um ato “simbólico” deveria pensar melhor a respeito do que compreende por símbolo e como são eles que, muitas vezes, impulsionam as lutas mais decisivas e as transformações mais impressionantes. Quando caiu, a Bastilha não era mais que um símbolo. Mas foi a queda do símbolo, foi um ato simbólico por excelência, que abriu toda uma época histórica. A modificação na estrutura simbólica é modificação nas condições de possibilidade de toda uma era histórica. Aqueles que fazem profissão de fé de “realismo político”, de “materialismo”, talvez estejam a esconder certo receio de que estruturas simbólicas fundamentais desçam as ruas e sejam queimadas.
Pois uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: “assim foi e assim deveria ter sido”. Um bandeirante com um trabuco na mão e olhar para frente é a celebração do “desbravamento” de “nossas matas”. Desbravamento esse que não é abertura de nada, mas simples apagamento de violências reais e simbólicas que não terminaram até hoje. Pois poderíamos começar por se perguntar: contra quem essa arma está apontada? Contra um “invasor estrangeiro”? Contra um tirano que procurava impor seu jugo ao povo? Ou contra aquelas populações que foram submetidas à escravidão, ao extermínio e ao roubo? Um bandeirante era um caçador de homens e mulheres, ou seja, a encarnação mais brutal de uma forma de poder soberano ligado à proteção de alguns e à predação de muitos. Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” que, necessariamente, realiza-se em um país composto por uma nata de rentistas encastelados em condomínios fechados e uma grande massa que ainda hoje é caçada, que desaparece sem rasto nem traço.
Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia. Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá. Quem faz o papel de carpideira de estátua acaba se tornando cúmplice dessa perpetuação. Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.
Quando a ditadura militar criou o mais vil aparato de crimes contra a humanidade, dispositivo de tortura de Estado e assassinato financiado com dinheiro do empresariado paulista, não por acaso seu nome foi: Operação Bandeirante. Sim, a história é implacável. Como disse no início, o passado é o que não cessa de retornar. Borba Gato estava lá, nas câmaras de tortura do DOI-Codi, encarnado, por exemplo, em Henning Albert Boilesen: empresário dinamarquês presidente da Ultragaz e fundador do CIEE, que se deleitava em inventar máquinas de torturas (a pianola Boilesen) e assistir a torturas e assassinatos. Por isso, quando as estátuas começarem a cair, é porque estamos no caminho certo.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Anistia Internacional: Lentes da pandemia ajudaram a ver racismo
Para Jurema Werneck, morte é um produto constante da discriminação racial no país
Victoria Damasceno, da Folha de S. Paulo
Foto: Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil
Caso alguém não tivesse percebido a tragédia que o racismo estrutural produz na vida de homens e mulheres negras, Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, acredita que as lentes da pandemia a tenham deixado evidente.
Ouvida recentemente na CPI da Covid, que investiga a atuação do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de coronavírus, disse que “o vírus procura oportunidade, mas a injustiça, a desigualdade, as iniquidades fizeram diferença”.
Os negros foram as principais vítimas da Covid-19 e, mesmo diante da pandemia, continuaram a ser principais alvos da violência policial. Para Werneck, esse é o objetivo do Estado: fazer morrer os indesejáveis.
“A morte é um produto constante do racismo”, disse em entrevista à Folha.
Homens negros são o segmento mais atingido, tanto pelas mortes por Covid como pela violência de Estado. Seu desaparecimento nas famílias, porém, tem impacto direto na vida das mulheres negras, explica.
“São homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e, com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.”
A diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil acredita que mulheres negras deveriam estar no centro das decisões do Estado. Mostra, porém, que chegam ao Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, neste 25 de julho, mais vulnerabilizadas do que antes da pandemia.
Para que aspecto da vida da mulher negra brasileira o Estado deve olhar? Deve olhar para a vida da mulher negra. As mulheres negras são o maior segmento populacional do Brasil. Mas também vemos indicadores que dizem que 38% das mulheres negras vivem na pobreza.
Quando olhamos o impacto direto da Covid-19, vemos que a população negra teve taxas de mortes mais altas que o restante da população. É verdade que as maiores taxas estão entre os homens, mas as taxas das mulheres estão altas. E as taxas entre os homens negros também têm um impacto forte na vida das mulheres [negras], porque são homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.
Ou seja, tem que olhar pra vida das mulheres negras. Dizendo de outra forma, tem que botar o direito das mulheres negras no centro de qualquer decisão de gestão.
De acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde de 2019, do IBGE, entre os adultos, pessoas negras são as principais usuárias do SUS. Mulheres negras, porém, estão entre as mais vulneráveis na pandemia de coronavírus. Onde esses dados se encontram? Isso não quer dizer um atendimento adequado e de qualidade. Os números da Covid são um exemplo. Tivemos altas taxas de morte nas unidades pré-hospitalares, nos pronto-socorros e UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], ou seja, as pessoas não tiveram nem chance de entrar [no sistema]. E a maioria das pessoas que morreram lá eram negras. Essa disparidade segue sendo retratada.
Eu não estou dizendo que o SUS é ruim. Eu estou dizendo que ele não é bom. Essa precariedade do SUS está associada a essa negligência em relação à população.
Os 545 mil mortos no Brasil tem cor e endereço. São principalmente negros e pobres. A pandemia de coronavírus evidenciou ou agravou problemas já existentes? Certamente os dois. Ela evidenciou para os distraídos, porque eu acredito que haja distraídos no Brasil que não tenham visto antes a tragédia que o racismo sistêmico produz sobre nós, mulheres e homens negros. Mas se alguém não tinha visto antes, as lentes da pandemia ajudaram a ver.
A pandemia não inventou o efeito que o racismo sistêmico tem na vida da população negra e das mulheres negras, mas ela aprofundou porque antes, eram cerca de 33% das mulheres negras vivendo na pobreza, na pandemia passou a 38%. Isso é um aprofundamento.
As mortes também continuaram nas operações policiais, a despeito da decisão do STF que limitou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Os homens negros são as principais vítimas, embora mulheres negras também sejam atingidas. Na sua avaliação, a violência de Estado atinge os homens e as mulheres negras de forma diferente? É de forma diferente porque a bala, no volume, atinge mais os corpos dos homens negros. Mas quando a bala atinge o corpo de um homem negro, uma mulher negra está sendo atingida também. Há também uma quantidade de mulheres e meninas que são mortas. Todos e todas nós somos atingidas.
Essa reiteração da liberdade com que o racismo participa da produção da morte, da definição de quem vive e quem morre, atinge a todas nós. Atinge mais aos homens, mas junto com aquele homem que morre, existem mulheres em torno, que são atingidas de uma forma ou de outra.
Os dados deste ano do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial bateu recorde em 2020, independentemente da pandemia. Entre as vítimas, 78,9% são negras. Isso mostra o quão perversa é a ação do Estado. Não apenas na expressão da ação da polícia mas no fato das outras instituições diante deste absurdo não ser interrompido.
A polícia continuou produzindo mortes no Rio de Janeiro, por exemplo, mas o comandante não foi responsabilizado. O comando acima do comandante, que é o governador, não foi responsabilizado. O Ministério Público, que tem o dever de fazer a supervisão do trabalho policial e garantir a legalidade da ação policial, permanece em silêncio. O Supremo Tribunal Federal, sendo desobedecido em sua decisão, não faz nada em tempo de salvar vidas.
Se tivessem feito alguma coisa, é possível que Kathlen e seu filho estivessem vivos até hoje. É se fazer morrer e deixar morrer. É isso que se chama de necropolítica e a minha geração chama simplesmente de racismo.
Os negros são os mais afetados pela violência policial e são os que mais morrem na pandemia. Me parece que o luto é uma constante na vida da população negra. Porque a morte é um produto constante do racismo. Para usar o termo mais moderno, do Achille Mbembe, a necropolítica é exatamente isso, fazer morrer os indesejáveis. Sob o racismo, os indesejáveis somos nós, negras, negros, indígenas e ciganos. É pra fazer morrer a gente. A morte é a marca.
Nas organizações, nós temos usado há muito tempo a morte como o principal indicador da perversidade do racismo sistêmico. Não é o único indicador, mas tem sido [o principal]. A gente chama atenção para a morte porque ela é real. Ela acontece em volume.
E o que falta para esse luto constante parar, para que essa produção de mortes cesse? A população não negra se responsabilizar? O Estado? Representatividade legislativa? O racismo sistêmico, ou seja, a regra que estrutura as regras de funcionamento do Brasil como estado e como nação, inclusive seu povo e sua sociedade, está fundada nos alicerces do racismo. Então falta refundar a nação. O que significa refundar a nação? Responsabilizar a todos e todas. Responsabilizar, como dizia a frase do Malcolm X, responsabilizar por todos os meios necessários. Precisamos de outro país. Esse país desse jeito tem que acabar. E não é uma mudança radical, porque dentro desse país que precisa acabar já existe o outro país que precisa existir.
Uma parte substancial da sociedade já age contra o racismo, e a gente precisa que essa ação impacte de forma mais profunda as estruturas a ponto de derrubá-las. É que o outro lado está ancorado num alicerce mais potente, um alicerce de mais de 500 anos. É preciso que os nossos alicerces se fortifiquem, seja na lei, seja na responsabilização individual, seja na responsabilização coletiva.
RAIO-X
Jurema Werneck, 59, é diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil desde 2017. É formada em medicina pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é mestre em engenharia de produção e doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). É também fundadora da ONG Criola, que trabalha em defesa dos direitos das mulheres negras.
FONTE:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/lentes-da-pandemia-ajudaram-a-ver-racismo-diz-diretora-da-anistia-internacional-no-brasil.shtml
Carta Capital: ‘Quartinho de empregada é indicador de que a escravidão continua’, diz Laurentino
Para o autor da trilogia ‘Escravidão’, o Brasil não enfrentou e nem resolveu o legado desse período
Alissom Matos, Carta Capital
Às vésperas do lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão, Laurentino Gomes vê o Brasil distante de ser uma democracia racial. “O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos”, diz. “Nunca chegamos e estamos muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos.”
O livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no País. Gomes classifica o período como o ápice do comércio de seres humanos no continente americano. “Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do País.”
O autor faz paralelos entre esse período e o Brasil contemporâneo. “Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.” No lançamento do primeiro volume, em 2019, ganhava os jornais o caso do garoto chicoteado por seguranças de um supermercado da periferia paulistana. A finalização deste segundo ocorreu em meio à morte da jovem Kathlen Romeu, grávida, durante uma operação policial no Rio.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes.
Em conversa com CartaCapital, Gomes defende que o Brasil passe agora por essa “segunda abolição “. “O famoso quartinho de empregada é um indicador de que a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciária.
A pedido do autor, a entrevista foi feita por e-mail. Confira os destaques a seguir.
Carta Capital: Da herança escravocrata, o que ficou de mais trágico para o Brasil?
LG: A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, por exemplo, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro acusado de furtar uma barra de chocolate tinha sido surrado com chicote nas dependências de um supermercado.
Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista ao longo de mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravo para o trabalho.
Agora, passados dois anos, no lançamento do segundo volume, outro escândalo estava na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, dispara a esmo em um confronto entre a política e o crime organizada na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.
Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista do que uma concessão
O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos.
Estatisticamente, a pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças.
CC: Você disse, certa vez, que a escravidão é uma tragédia ainda em andamento.
LG: A escravidão acabou oficialmente no Brasil com a Lei Áurea, mas os seus efeitos persistem ainda hoje. Portanto, está longe de ser apenas um assunto museu ou livro de história, algo congelado e acabado no passado. É uma realidade presente assustadora no Brasil deste início de século XXI.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.
A segunda abolição preconizada por Nabuco, Rebouças e Gama é um dos desafios a ser enfrentado por esta e pelas próximas gerações de brasileiros. O famoso quartinho de empregada é um indicador de a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que inclui o preconceito racial e regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelham ao das antigas senzalas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias em muito se assemelham hoje aos porões dos navios negreiros de antigamente.
CC: A escravidão ajuda a explicar a desigualdade regional brasileira?
LG: A escravidão explica quase todas as desigualdades brasileiras. A prosperidade das regiões sul e sudeste foi construída, em grande parte, pela chegada de imigrantes estrangeiros, europeus e católicos em sua maioria, a partir da segunda metade do século XIX. Era parte do projeto de branqueamento da população discutido e implementado durante o Segundo Reinado. Na época, se dizia que o sangue africano havia “corrompido” a índole brasileira e que seria necessário oxigenar a demografia nacional pelo estímulo à imigração europeia, branca e católica. O governo subsidiava passagens, alojamentos e outros benefícios para os recém-chegados. Meus bisavós italianos chegaram ao Brasil, em 1895, nessa condição.
Em outras regiões do Brasil, como o Norte e o Nordeste, a imigração foi inexpressiva. Salvador é hoje a maior cidade negra do mundo fora da África. Ali, as desigualdades são assustadoras. Ao olhar o passado, conseguimos ter uma compreensão melhor do presente. Isso inclui, além das desigualdades sociais e regionais, a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influência, o contrabando e a sonegação de impostos, o toma-lá-dá-cá que tanto caracteriza as relações de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Tudo isso era muito forte já na época do Brasil colonial e escravista. Por isso, decidi fazer um capítulo à parte sobre esse tema.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide. Seu funcionamento dependia de suborno, extorsão, malversação dos recursos públicos, contrabando, sonegação de impostos, clientelismo e nepotismo, entre outras contravenções. Como explico na abertura desse capítulo, obviamente havia gente honesta no Brasil colonial. Mas o exemplo que chegava de cima não contribuía para fixar essa imagem. Dois importantes governadores de Minas Gerais na fase inicial da corrida do ouro e dos diamantes voltaram para Lisboa muito mais ricos do que permitiam seus rendimentos. As artimanhas dos traficantes de escravos para burlar o fisco e as leis eram inúmeras e uma mais criativa do que a outra. O desvio de ouro, pedras preciosas e outras riquezas dominavam boa parte do comércio colonial.
CC: O Brasil foi tratado, por muito tempo, como uma “democracia racial “. Nós já estivemos perto disso?
LG: Nunca chegamos e estamos ainda muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos. Incapaz de enfrentar o legado da escravidão, o Brasil sempre procurou disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos. A escravidão é, por natureza, um processo violento, repleto de dor e sofrimento, uma experiência que se perpetua ainda hoje na forma de racismo, pobreza e desigualdade social. A vida no cativeiro no Brasil foi tão cruel e violenta como em qualquer outro território escravista da América. A quebra da identidade e dos direitos dos escravizados era toda baseada na violência. Na África e na chegada às Américas, as pessoas eram capturadas, estocadas, marcadas a ferro quente e leiloadas como se fossem mercadorias.
Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os escravizados não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante
Sua nova existência dependeria por completo do poder do seu dono. O simbolismo dessa nova identidade estaria nos rituais que em geral acompanhavam os processos de escravização, como marcas feitas a ferro quente no corpo do cativo, o uso de colares e pulseiras metálicas indicando quem eram seus donos, o batismo em nova religião, o aprendizado de uma nova língua e de uma nova maneira de se vestir e se comportar e, por fim, a atribuição de um novo nome.
Nas ilhas do Caribe, os ingleses diziam que esse era o momento de “temperar” [ seasoning , em inglês] o cativo, ou seja, mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e senhor do seu destino. Isso envolvia uma série de torturas, físicas e psicológicas, até que o escravo se “colocasse em seu lugar” – ou seja, o mesmo ocupado por animais domésticos e de trabalho. Segundo o padre jesuíta Manuel Ribeiro da Rocha, que foi missionário na Bahia em meados do século 18, durante essa etapa, muitos senhores de engenho do Recôncavo Baiano tinham o hábito deliberado de surrar os cativos. Era a primeira providência que tomavam depois da compra dos africanos.
CC: Há quem atribua essa ideia a obras como “Casa Grande & Senzala “, que contribuiu para a formação intelectual de muitas gerações.
LG: Gilberto Freyre ajudou a forjar a ideia de uma escravidão patriarcal no Brasil, na qual o negro aparece como alguém passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A tão falada democracia racial seria resultado desse sistema peculiar do escravismo brasileiro. Essa visão, felizmente, está superada. Novos estudos apontam os escravos como agentes de seu próprio destino, negociando espaços dentro da sociedade escravista, organizando irmandades religiosas, formando um sistema complexo de apadrinhamento, parentesco e alianças que muitas vezes incluíam participar de milícias ou bandos armados para defender os interesses do senhor contra os de um vizinho ou fazendeiro rival.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide
Pequenas faltas, fugas rápidas, corpo mole no trabalho, malfeito ou inacabado, fingir não dominar a língua ou as ordens, eram todas formas de resistência que não necessariamente incluíam o enfrentamento direto, como observou a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado. Os escravos lutavam por coisas concretas, como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos. O que nem sempre implicava em fugir, se rebelar ou pegar em armas. Ainda assim, eram atos de resistência.
CC: A solução para o País se tornar, de fato, uma democracia racial passa pelo quê?
LG: A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século XIX, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana.
Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Abandonou também a própria memória da escravidão. Temos de enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo no Brasil. Também por isso eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes.
CC: No primeiro livro, o senhor compara a escravidão no Brasil e nos EUA e diz que aqui se alforriava mais e a expectativa de vida dos escravos era menor. Por quê?
LG: Alguns fenômenos diferenciam o escravismo brasileiro. Um deles diz respeito ao nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste, nas ilhas do Caribe ou no sul dos Estados Unidos.
A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras.
Outro fenômeno característico da escravidão brasileira foram processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. A alta taxa de alforria é um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe.
Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um País com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.
Os documentos revelam que o sistema sempre cobrava um alto preço pela liberdade. Para comprá-la, literalmente a dinheiro, era necessário trabalhar muitas horas para acumular poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas. Às vezes, o valor cobrado pela alforria era muito superior ao que os donos tinham pago pelos cativos. Entre as condições impostas, estava continuar a prestar serviços no cativeiro enquanto o senhor ou a senhora fosse vivo.
CC: No segundo livro, o senhor se concentra entre 1700 e 1800, auge do tráfico negreiro no Atlântico. Por quê?
LG: O século XVIII representa o auge da escravidão e do comércio de seres humanos no continente americano, em particular no Brasil. Num intervalo de apenas cem anos, cerca de seis milhões de homens e mulheres ficaram arrancados de suas raízes africanas, marcados a ferro quente e transportados para o Novo Mundo acorrentados no porão dos navios negreiros. O Brasil sozinho recebeu dois milhões, um terço do total. O motor do escravismo nesse século foi a descoberta de ouro e diamantes no Brasil e a disseminação, em outras regiões da América, das lavouras de monocultura, como a do açúcar, do tabaco, do arroz e do algodão, todos de uso intensivo de mão-de-obra cativa.
Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. A desproporção entre brancos e negros era enorme. Na região do Caribe, ocupada por franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e dinamarqueses, os negros constituíam mais de 90% da população. Naquela época, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante.
Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes.
Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. A procura por mão-de-obra cativa disparou. Nada menos do que 85% das 35.000 viagens de navios negreiros para a América documentadas pelo banco de dados slavegoyages.org aconteceram depois de 1.700.
Na África, o impacto do tráfico negreiro foi enorme. A demanda cada vez maior por cativos e os preços crescentes pagos por eles desorganizou a economia do continente. Antigas atividades produtivas, como tecelagem, metalurgia, agricultura e pecuária, foram deixadas de lado sob a pressão do comércio escravista. Em lugar delas, instaurou-se um aumento crescente nas taxas de violência. Aliada aos traficantes, uma nova elite militar africana surgiu à frente de Estados predatórios que, apoiados com armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios negreiros.
CC: Qual Brasil o leitor encontrará neste segundo volume?
LG: Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Comprar e vender gente era um fato trivial da vida cotidiana, praticado por todos os brasileiros, sem questionamentos. Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo. Uma vez conquistada a liberdade legal, inúmeros ex-escravos se tornaram também donos de escravos. A banalidade da escravidão me levou a fazer a introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois, porcos, galinhos, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz.
Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. Como explico na abertura de um dos capítulos desse volume da trilogia, os traços estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia-a-dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé.
Começaram ou se consolidaram no século XVIII alguns fenômenos que marcariam profundamente a face do escravismo brasileiro. A escravidão urbana, de serviços, diferente daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar na região Nordeste, deu maior mobilidade aos cativos, acelerou os processos de alforria, ofereceu oportunidades às mulheres e gerou uma nova cultura em que hábitos de origem africana se misturaram a outros, de raiz europeia ou indígena. Isso incluiu a disseminação de festas, danças, rituais, irmandades e práticas religiosas que ainda hoje estão presentes no Brasil.
CC: De tudo apurado, o que mais te impactou?
LC: Eu me surpreendi muito ao constatar o quanto as contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro Cultura e Opulência do Brasil pelas suas drogas e minas, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.
O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo. Novos estudos têm demonstrado o oposto disso. Os africanos escravizados não eram apenas commodities , mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas da África que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais.
Outra surpresa durante as pesquisas está relacionada ao papel das mulheres no Brasil colonial. Mulheres negras foram protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam. Ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. O estudo do papel da mulher no Brasil escravista é um dos temas mais fascinantes na disciplina de história. As mulheres desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos.
CC: E o terceiro volume, quando sai?
LG: O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e ao seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva.
O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.
Irapuã Santana: Querida Ana Paula
O texto de hoje e minhas energias e vibrações positivas são para você, que representa, neste caso, todas as mães de meninos negros que sofreram com a violência policial no país.
O documentário “Auto de resistência” é chocante, profundo e muito, muito tocante. Com ele, refleti sobre quanto sou sortudo por ter sobrevivido até o momento, apesar de ter passado boa parte de minha existência na periferia do Rio de Janeiro. Para fugir daquele ambiente tão perigoso, meu pai foi sábio e se mudou conosco para uma cidade menor, na Região Metropolitana, numa área então não afetada pelo narcotráfico.
Infelizmente, milhares de crianças e jovens negros não tiveram o mesmo destino, e famílias foram destroçadas pela falida guerra às drogas, usada como pano de fundo no projeto de extermínio dos negros no Brasil.
Perder um filho deve ser duríssimo, mas, da forma como aconteceu com você, um tiro nas costas de um menino de apenas 19 anos… eu não consigo imaginar, já dá um nó na garganta. Entretanto, ao contrário de todos os vetores que a pressionam na manutenção da situação como ela sempre foi, você se ergueu acima de nós, reles mortais, e começou sua luta. Não por justiça, porque, se ela existisse, Johnatha estaria vivo, mas pelo amor, pela vida.
Na conversa que tivemos recentemente, a luz de seu espírito e sua força foram admiráveis. Creio que apenas uma Mãe, com M maiúsculo, conseguiria reviver esse episódio com o desejo incandescente de que o Estado pare de matar nossa juventude negra e destruir suas famílias.
Como diria O Rappa, “é só regar os lírios do gueto que o Beethoven negro vem para se mostrar”. No entanto a função que seria proteger passa a ser extinguir.
Com seu filho assassinado e o executor à solta, o sistema de Justiça se mostra cúmplice. É o crime perfeito: a administração pública mata, o Judiciário não pune e o Legislativo afrouxa.
Apesar da pandemia, mesmo com a diminuição de circulação de pessoas nas ruas, o Brasil bateu no ano passado o recorde de pessoas mortas por policiais desde 2013, chegando ao absurdo número de 6.416, resultando num aumento de 190% desde o início do acompanhamento do índice.
As mortes registradas em operações policiais, no Rio de Janeiro, aumentaram entre janeiro e fevereiro, chegando à marca de 47, representando um aumento de 161%, na comparação com os meses de novembro e de dezembro de 2020, quando foram registradas 18 mortes, com cinco feridos em confrontos, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Assim, vemos que a guerra de Ana Paula é a nossa guerra. Desde 2014, ela batalha para que o policial, que deveria cumprir sua obrigação de servir à sociedade, responda por seus atos.
Ana Paula diz que, ao gritar por amor à vida, está cuidando de seu Johnatha, porque “é como se ele estivesse vivendo através da minha luta, é onde posso continuar sendo sua mãe”.
Por isso precisamos nos colocar de pé contra esta forma de constituir sociedade que assassina seus frutos, não lhes dando o devido valor. É urgente acolher nossas mães e potencializar suas vozes.
Querida Ana Paula, você não está só.
Fonte:
O Globo
Cristovam Buarque: Lei incompleta
A Lei Áurea é considerada um marco social, pela extinção do regime escravocrata, e marco legal pela simplicidade de apenas um artigo: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. Nada mais do que 12 palavras e acabou a infâmia de tratar pessoas como mercadoria.
Esta simplicidade deixou a lei incompleta e de certa forma inócua para o propósito de ir além da proibição da venda, compra e propriedade de pessoas, e de servir também para a garantia da liberdade, promoção social e progresso dos afrodescendentes no Brasil. Aquele artigo simples foi capaz de acabar com os grilhões, mas não de incorporar a população negra à sociedade brasileira. Manteve-se a desigualdade, a exclusão, a pobreza e, consequentemente, o racismo.
Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse mais um artigo: “Fica estabelecido no Brasil um sistema único, público, de educação para todos”. Mas a lei ficou incompleta. Ao longo dos 134 anos de sua vigência, comemorados na semana que passou, o Brasil sem escravismo manteve a escravidão, porque sem educação as algemas físicas que aprisionavam os escravos se transformaram em algemas mentais que amarram todos os pobres brasileiros. Não apenas os negros, mas sobretudo estes, por formarem a maior parte dos pobres do País.
Ao longo destes 134 anos, desde 1888, o Brasil manteve uma desigualdade abismal entre a educação dos que podem pagar por uma boa educação e aqueles que não podem. Se desde aquela época os descendentes dos escravos e seus senhores estudassem em um mesmo sistema escolar com qualidade para todos brasileiros, ao longo destas três ou quatro gerações, a desigualdade que ainda existisse, além de pequena, seria graças ao talento dos que se dedicam aos estudos. A desigualdade não seria herança financeira, que termina sendo também herança racial. Sem o segundo artigo, a Lei Áurea ficou incompleta.
Além da lei incompleta de 1888, atravessamos toda a história pós-abolição e republicana sem acrescentar o artigo e outras ações que faltam. Por 40 anos depois da Lei, nem ao menos criamos um Ministério da Educação; quando criado já nos anos 1930, serviu para coordenar a educação da minoria dos filhos da população branca e rica, ou quase rica, nas poucas escolas de base que foram criadas ao longo das décadas. A obrigatoriedade de vaga aos seis anos só veio em 1988 com a Constituição; aos 4 anos, em 2013; a obrigatoriedade de vaga até os 17 anos, só em 2016; o Piso Nacional Salarial para o Professor, em 2008.
Até hoje, o Brasil deixa a educação nas mãos dos pobres e desiguais municípios. Foram feitas leis como a Merenda Escolar (1955), Emenda Calmon (1983), Livro Didático (1985), Fundef (1996), PNE-I (2001), Fundeb (2007), Piso Salarial do Professor (2008), PNE-II (2011), BNCC (2020), e o Brasil continua com educação entre as piores do mundo e provavelmente a mais desigual entre todos os países.
Até hoje, o Brasil não decidiu completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de Educação de Base. A sociedade brasileira, seus eleitores e líderes continuam com a mesma visão da Princesa Izabel e do Primeiro-Ministro João Alfredo – basta o primeiro e único artigo da Lei Áurea, a educação de cada criança é assunto da família ou do prefeito, não do país. O resultado é que um século e meio depois da Lei Áurea, temos duas vezes mais adultos analfabetos do que no ano da abolição incompleta, todos eles pobres e quase todos afrodescendentes.
Na verdade, todos os governos seguintes, ditadura ou democracia, de direita ou esquerda, negaram-se a assumir a educação de nossas crianças como uma questão nacional: levar a sério o artigo da Constituição que assegura a educação como um direito de todos os brasileiros e tornar a educação como o vetor do progresso do país.
Nos navios negreiros, havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados pularem no mar, já que a morte deles era uma perda financeira para o proprietário. Hoje, não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos quererem permanecer nelas, e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o País.
Faz 134 anos que demos alforria aos escravos, mas não os libertamos, porque não lhes demos a educação, sem a qual a liberdade é apenas uma ilusão. Por falta de um artigo a mais na Lei Áurea, mantivemos uma última trincheira da escravidão, mantivemos os descendentes dos escravos em um novo tipo de servidão e amarramos o progresso do país.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/05/4925679-lei-incompleta.html
Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O historiador e documentarista Ivan Alves Filho, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História, diz que “o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional”, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de maio (edição 31), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
“A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório”, afirma ele, na publicação. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no portal da FAP.
Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021
De acordo com o documentarista, a passagem ocorreu em um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando, segundo ele, formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos 19 e 20. “Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão”, pondera.
“Mas se a abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital”, analisa o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online.
Segundo Ivan, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já havia advertido para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro.
Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online
“Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão”, analisa
Na avaliação do historiador, se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. “Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar”, acentua.
A íntegra da análise do historiador está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:
Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’
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Fonte:
Combate ao racismo é tema de podcast da FAP; ouça episódio especial
O programa Rádio FAP desta semana entrevista o juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Fábio Esteves, referência nacional no combate ao racismo. Homem preto e de origem pobre, o magistrado destaca que suas conquistas profissionais exigiram esforço, suor e muita superação.
Ouça o podcast!
O podcast conta com a participação do jornalista Sionei Ricardo Leão, membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.
Os 133 anos da Lei Áurea, a abolição inacabada no Brasil e a importância do debate sobre a igualdade racial estão entre os principais assuntos. O episódio conta com áudios da TV Câmara dos Deputados, canal Fora dos Autos (Youtube) e da página do Olodum no Facebook.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
RPD || Ivan Alves Filho: 13 de Maio, um ponto de convergência
Como única revolução social brasileira até o momento, ao consagrar juridicamente uma mudança que já vinha se operando no modo de produção, o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional. A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório. E ocorreu um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos XIX e XX. Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão.
Mas se a Abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital.
Lá atrás, ou seja, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já nos advertira para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro. Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão. Se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar.
Outro ponto que me parece fundamental tem que ver com uma certa incompreensão do caráter das transformações sociais entre nós. Ainda que tivesse combinado diferentes formas de luta, que iam dos embates armados dos quilombolas às manifestações na imprensa e no próprio Parlamento, prevaleceria a saída institucional. A Abolição, nunca é demais lembrar, foi uma luta nacional, de negros e brancos. Nem o Estado tinha força suficiente para barrar as mudanças nem a sociedade civil conseguia alterar tudo de chofre ou colocar o Estado abaixo. Daí a via negociada. Nem revolução nem conciliação: negociação.
Eis o que nos desnorteia um pouco. A isso vem se somar outra particularidade do processo histórico brasileiro: a escravidão teve por aqui um conteúdo étnico, o que já não ocorria na escravidão antiga. Durma-se com um barulho desses.
Por outro lado, talvez caiba recordar a lição dada pelo samba de enredo da Vila Isabel, em 1888: é preciso um certo “jogo de cintura…(para fazer) valer seus ideais”. Dir-se-ia que a Abolição entendeu essa nossa particularidade, logrando convergir todas as lutas para o campo institucional.
*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
Nelson de Sá: New York Times alerta contra capa falsa pró-Bolsonaro
O perfil de relações públicas do New York Times no Twitter publicou uma mensagem, em português, com um aviso sobre a imagem abaixo, de uma capa adulterada do jornal. Diz o NYT:
“Estamos cientes de que uma versão manipulada da primeira página do New York Times circula na internet com matérias falsas e uma imagem de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. O New York Times não publicou essa capa.”
O jornal sugere acompanhar a cobertura de Brasil aqui. A capa já havia sido objeto de serviços de verificação no Brasil, como Lupa.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2021/05/nyt-alerta-para-capa-falsa-pro-bolsonaro.shtml
Irapuã Santana: Uma boneca negra; um sorriso negro
Representatividade e inclusão importam. Esse precisa ser nosso ponto de partida em comum para iniciar um debate que, à primeira vista, parece desimportante, mas é, ao contrário, um planejamento de futuro da maior parcela da população brasileira: a mulher negra. Ela representa algo em torno de 27% de todos os brasileiros, segundo a PNAD do IBGE.
Entretanto o mercado não oferece o mínimo razoável de opções para um nicho das bonecas, que tem gerado bons dividendos para quem nele investe. Em 2018, a linha correspondia a 19,2% do total de faturamento, que chegou em 2019 a mais de R$ 7 bilhões, conforme o último relatório da Abrinq.
Com um cenário tão favorável, a lógica seria haver uma seção específica para bonecas negras, atendendo a esse mercado consumidor. Todavia elas correspondem a somente 6% da totalidade das fabricadas e 9% das comercializadas em lojas on-line, de acordo com a ONG Avante, que elaborou um relatório sobre essa triste realidade das meninas negras brasileiras.
Ao entrar numa loja de brinquedos, a criança, que precisa de um referencial para construir sua autoimagem, não tem acesso ao mínimo. Dentro de uma perspectiva psicológica, a mudança ocorrida a partir do contato com um brinquedo parecido consigo mostra a oportunidade de sonhar mais concretamente, gera uma sensação de pertencimento, que traz efeitos de maior segurança para desenvolver suas potencialidades no futuro.
Infelizmente, o Brasil revela a cruel exclusão do negro, desde o início da vida, com a ausência de opções. Se não somos vistos nos lugares, evidencia-se que esses espaços não são para nós.
Mas, se tem mercado consumidor e demanda, qual a justificativa racional para tamanho desperdício de oportunidade?
Por isso, é importante buscar diversidade na oferta, tendo em vista que nossas crianças querem ser vistas, ouvidas e incluídas na sociedade como um todo. Mas é necessário ir além: não basta colocar qualquer boneca, com qualquer história por trás. O imprescindível é levar boas referências para as meninas negras, com princesas e heroínas, médicas e engenheiras, advogadas e juízas...
Mas, para que isso ocorra, é relevante também estar atento para não impedir o acesso dos mais pobres a esse tipo de bem. Uma rápida pesquisa em sites de lojas de brinquedo apresenta um fenômeno perverso relativamente ao preço das bonecas negras, que acaba sendo elevado significativamente, em comparação com as brancas, pelo fato de serem raridade nas prateleiras.
Felizmente, a própria comunidade negra, ciente de suas necessidades, vem trabalhando no sentido de valorizar a produção e a comercialização do brinquedo voltado para um público tão grande quanto especial. Isso já foi sentido pelas grandes marcas, que também abriram espaço a novas personagens e a novas linhas de atuação.
Portanto, devemos fortalecer tais iniciativas e fazer com que elas possam crescer e florescer, levando o encanto dos sonhos, fazendo nascer sorrisos genuínos nos rostos de nossas lindas meninas negras.
Ludmilla: 'A fama e o poder não me livraram de sofrer com o racismo'
Cantora diz que decisão da Justiça em favor de Val Marchiori, que comparou seu cabelo a Bombril, dá força a racistas
Isabella Menon e Lucas Brêda, Folha de S. Paulo
No show que fez no início deste mês no Big Brother Brasil, Ludmilla disse uma frase simples, mas com mais significados do que aparenta em um primeiro momento: “Respeitem o nosso cabelo”.
Ela falava do processo de injúria racial que, em março, perdeu para Val Marchiori —em 2016, a socialite comparou o cabelo da cantora à palha de aço Bombril. Mas o posicionamento no reality show também serviu como apoio ao participante do programa João Luiz, que ouviu algo semelhante sobre seu black power.
Frequentadora das listas de músicas mais tocadas do streaming, Ludmilla aproveita o sucesso para se posicionar.
“Verdinha”, ode não explícita à maconha, foi cantada por 1 milhão de pessoas no Carnaval de 2020 e rendeu denúncias por apologia de crime. “Numanice”, seu disco de pagode, só foi lançado porque ela diz que, agora, tem total controle sobre sua carreira. Seu show de pagode já custa mais que o de funk —sendo que ele ainda nem pôde ser apresentado por causa da pandemia.
Comportamento que impacta também na política. Em 2018, ela foi criticada por não se posicionar nas eleições —mas ela promete declarar voto no próximo pleito.
Em que ponto você está em relação ao comando da sua carreira?
Antigamente, queria focar na música. Só que a gente vai crescendo e vê que tem muito mais coisa que depende da gente. Só lancei meu pagode [“Numanice”] porque a última palavra é a minha. “Rainha da Favela” também.
Cantores têm sido presos por fazerem shows ilegais, como o Belo. Como tem visto essa questão?
A gente quer que tudo isso passe logo, mas nem todo mundo consegue ficar em casa. As pessoas precisam pagar as contas também.
Mas gostam muito de marginalizar o pagode e o funk. Prenderam o Belo e queriam prender outros funkeiros. Mas ninguém foi atrás de quem montou o evento ou dos patrocinadores. A gente sofre isso desde sempre.
Muitos profissionais da área de entretenimento alegam que precisariam de um auxílio do governo. A gente ainda tem como se manter, mas e nossa equipe? Os roadies, produtores, músicos, as famílias deles. Precisamos de aglomeração para trabalhar. E não dá para aglomerar de jeito nenhum. E tem a demora da vacina. Está na casa dos 60 [anos] ainda. Eu tenho 25. É desesperador.
Aparecem propostas para fazer shows hoje?
Apareceram alguns convites para coisas menores. Só que não dá, né?
Disse que funkeiros ou pagodeiros são os alvos preferenciais. Isso remete a uma discussão sobre a criminalização do funk. O DJ Rennan da Penha e o MC Poze do Rodo foram recentemente presos por associação para o tráfico, por tocarem em áreas comandadas pelo tráfico. Como viu esses casos?
Acho extremamente preconceituoso. O preconceito ativamente trabalhando e ganhando.
O Rennan da Penha foi indiciado porque estava tocando em um lugar dominado pelo tráfico, só que é um lugar carente. Você pega um DJ de rave, de eletrônico, que toca num evento fechado e tem droga até o talo. Ninguém é preso, porque os playboys dão o dinheiro a quem tem que dar.
Agora, com os menos favorecidos, eles chegam já batendo. Não temos culpa do que fazem no evento. Estamos fazendo o nosso, trabalhando, levando o som. Acho muito errado jogar a culpa no artista.
Já teve algum problema desse tipo com a polícia?
Fiz uma música chamada “Verdinha” e veio o Palácio do Planalto todo atrás de mim, dizendo que eu estava fazendo apologia do crime. Tem tanto artista de MPB ou pop que fala diretamente sobre isso.
Tem coisas que eles têm realmente que se preocupar, mas não se preocupam. Não vi nenhum deputado se coçar porque a vacina está atrasada e os hospitais estão lotados.
Você processou o deputado Cabo Junio Amaral (PSL - MG) após ele associar sua imagem ao tráfico por causa de ‘Verdinha’. O STF julgou que não houve calúnia nem difamação.
Não posso falar muito, mas olha a ironia. Ele me acusa de traficante, de associação ao tráfico, me faz perder contratos por conta dessa mentira. Entro contra ele, mostro provas do que esse deputado causou na minha vida, mas eles [STF] recusam.
Qual sua opinião em relação à legalização da maconha?
É um assunto que tem que ser discutido. Discutir é analisar os prós e os contras, mas acho que tem muito mais benefícios do que coisas ruins. Vários países de primeiro mundo já legalizaram. Já vi muitos amigos serem parados em blitz com dois beques e a polícia já querer levar preso —ou, então, você tem que dar o dinheiro. E, na maioria das vezes, os pretos é que são presos.
No desfile pela Salgueiro no Carnaval de 2016, a socialite Val Marchiori disse que seu cabelo parecia Bombril. Ela foi condenada pela Justiça a pagar R$ 30 mil, mas entrou com um recurso e, em março, o juiz a absolveu e considerou o comentário como liberdade de expressão. Como foi receber essa decisão?
Foi muito triste, ainda mais vindo de uma pessoa que deveria estar ali protegendo os brasileiros, preservando e conservando uma luta que vem de anos. E, talvez, fazendo uma reparação que é histórica, porque o racismo estrutural é histórico.
Pessoas perderam empregos e oportunidades porque outras acharam que o nosso cabelo, por ser crespo, é parecido com uma coisa suja, fedida, ruim. Isso não é uma brincadeira, não é liberdade de expressão. Acontecer isso comigo só deixa mais claro que o racismo existe. Porque a fama e o poder não me livraram do racismo. Imagina o que acontece com pessoas que não têm a visibilidade que eu tenho. A decisão do juiz causa dor, raiva e cansaço.
Logo depois, teve o caso do Big Brother, em que você fez um show e disse ‘respeita o nosso cabelo’. Acharam que isso foi uma interferência no reality. Não tenho nenhum pingo de consciência pesada. Claro que só o João Luiz e a Camilla de Lucas se sentiriam representados, porque eles passaram por isso. Do resto, ninguém entendeu nada.
Estava falando da Val Marchiori. O racista não quer entender a dor do outro. Ele tenta reverter para ele, em vez de parar e escutar a nossa dor.
Eu me tornei isso aqui por conta dessas pessoas. Eu era a MC Beyoncé lá trás. Tem alguma propaganda com a MC Beyoncé? Não tem! Porque eu não era padrão. Não era aceita. Nenhuma marca queria ser representada pela MC Beyoncé. Por isso, tive que me mutilar, afinar meu nariz, porque queria ser aceita.
O funk, o pagode, a essência já estavam aqui, mas a capa não agradava. Quero que as pessoas não tenham que alisar o cabelo para agradar ninguém. Essa é a luta.
Em ‘Rainha da Favela’, várias mulheres foram reunidas, como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda, MC Carol, negras que criaram uma tradição de falar abertamente sobre sexo na música, no funk. Qual influência que elas tiveram na sua carreira?
Cresci ouvindo essas mulheres. Achava o máximo elas falarem “eu quero sexo, quero fazer isso, gosto disso, boto ali, boto aqui”. Então, elas foram minhas inspirações. Quis homenagear mesmo as mulheres empoderadas, da comunidade, da favela. Homenagear as que não são também, mas que reconheceram o seu lugar no mundo.
Em 2018, foram várias as cobranças para se posicionar politicamente, mas você não falou sobre seu voto. Hoje faria diferente? O que acha deste governo?
Só gosto de falar de assuntos que eu sei. Queriam que eu me posicionasse, mas eu não estava pronta.
Foi ruim e foi bom termos esse governo, porque ele abriu os olhos de muita gente. Vivemos numa democracia, a galera tem que fazer o que tem vontade. Só que chegou num ponto em que é muito importante conversar sobre o assunto. Olha o que aconteceu.
Somos um dos últimos países a receber a vacina. Estamos parados. Então serviu para eu me interessar sobre o assunto. Não quero mais estar nessa de “não sei”. A gente não pode mais ficar nisso. Tem que ir para cima. O governo atual é péssimo. Estamos numa situação muito precária.
Espero conseguir sobreviver a isso e que sirva de lição, para a gente não dar mais nosso voto de bobeira, porque ele é o nosso futuro. Agora, eu estou aqui inteirada para, nas próximas eleições, falar sobre isso nas minhas redes sociais.
Ludmilla, 25
Cantora de funk, pop e pagode. Segunda mulher mais ouvida do Spotify no Brasil, foi a primeira negra a ganhar o Prêmio Multishow de melhor cantora, em 2019. Foi jurada do programa The Voice + e teve o bloco que reuniu mais público do Carnaval de 2020, com 1 milhão de pessoas
Basília Rodrigues: Se fosse loira e de olhos azuis, você não estaria enchendo o saco dela
Enegreci a TV: agora sou rosto, cabelo, corpo e, principalmente, cor
Basília Rodrigues, Analista de política da CNN Brasil
A imagem de uma mulher preta que analisa política é inusitada, tanto quanto rara, ainda mais quando coroada por seu black power. Por 12 anos cobri política pelo rádio, mas, em uma daquelas mudanças que dividem a vida entre o antes e o depois, decidi fazer televisão. Tudo isso ainda sem saber que faltavam poucos dias para o início do pior momento das nossas vidas: uma pandemia.
Do contato diário pela voz com a notícia, agora sou um rosto, um cabelo, um corpo e, principalmente, uma cor. Enegreci a TV, e a editoria é de política —e não aquela em que negra é a cor padrão da tragédia brasileira.
Agora, prazer, na condição de espectador da notícia, pergunto-lhe: você é racista? Muito provavelmente, após uma rápida reflexão, responderá que não. Obrigada. Não somente eu, mas a sociedade de mais de 200 milhões de pessoas negras e brancas agradece.
Há 132 anos fechamos um capítulo da história em que negros eram vistos como objetos, e tudo o que os define era feio e inadequado em todos os horários da programação. Porém, essa pergunta não estará no cadastro da vaga de emprego que pleiteia, ou na seleção de vestibular, nem na agremiação do seu clube predileto. Ainda mais porque se houvesse um critério tão fácil de seleção sobre quem é racista e quem não é optaríamos, provavelmente, por não nos relacionar com um racista.
A resposta é mais difícil que a pergunta, neste caso. Altamente impossível de ser aferida totalmente certa ou errada; digo isso em ambientes comuns, em que se presume o mínimo de trato social.
Eis a dura realidade, porque esta nunca falha: não sabemos onde os racistas estão, mas estão em todos os lugares. Sendo assim, não é descartável dizer que pessoas certificadas como não racistas também podem reproduzir ações racistas.
Lá vem a sutileza do racismo, que de leve não tem nada. Ele distancia, afunda e invalida oportunidades, ao mesmo tempo em que é capaz de não ser visto. Um vírus sem vacina, apesar dos inúmeros casos.
Ninguém vê, mas olha ele ali contribuindo com mortes, desemprego, pobreza e deterioração do ambiente de trabalho.
Recentemente, o site Alma Preta divulgou que recebeu relatos de funcionários que seriam da CNN Brasil sobre um sentimento muito ruim. O assunto é tratado como prioridade pela empresa, que manifestou apoio e apura a situação. Não há materialidade nem culpados, mas vítimas. Ninguém vê, mas olha ele ali pesando o clima, criando situações ruins e incomodando quem o sente.
Uma hora todo balde cheio transborda. Você pode até fingir que não viu ou pensar que, enquanto existir a cultura do “se fosse loira e de olhos azuis, você não estaria enchendo o saco dela”, sempre haverá dúvidas derramando sobre o ambiente. Essa frase teria sido dita ao sinal de que algo “racista” poderia estar em curso: a redução do espaço de uma negra em sua tela de trabalho.
Não seja racista. Mas também não pareça racista, nem deixe margem do que pode ser apenas uma impressão. Observe-se. Já que não vê o que chamam de racismo, olhe para si. Ficar somente olhando o mal-estar acontecer pode sensivelmente colocar as pessoas em situações constrangedoras. E o mundo, este mesmo doente com uma pandemia, não é mais dos passivos.