queiroz
Bruno Boghossian: Promotores veem rastro da rachadinha em dados das contas de Flávio Bolsonaro
Saques e depósitos sincronizados reforçam suspeitas sobre senador no caso Queiroz
Os promotores que investigam as rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio perguntaram a Flávio Bolsonaro se ele usou dinheiro vivo para comprar dois apartamentos, em 2012. A suspeita surgiu porque, no mesmo dia, o vendedor dos imóveis depositou R$ 638 mil em espécie num banco próximo ao cartório onde foi registrada a transação.
No papel, a compra foi lançada por R$ 310 mil. Em notas de R$ 100, esse valor caberia numa sacola pequena, mas está longe de ser irrisório. Flávio, entretanto, foi incapaz de negar categoricamente o episódio. “Que eu me recorde, não. Se eu não me engano, foi por transferência”, respondeu, segundo o jornal O Globo.
O avanço do caso pode refrescar a memória do senador. A apuração sobre os rolos de Fabrício Queiroz e sobre as movimentações nas contas de Flávio revelaram uma enxurrada de operações em espécie e uma cadeia de acontecimentos que reforça os vínculos entre os dois personagens. Os promotores enxergam indícios claros de lavagem de dinheiro.
Os dados obtidos pelo Ministério Público mostram uma sincronia nas datas de saques efetuados por Queiroz e depósitos realizados em favor de Flávio, de acordo com a revista Crusoé. Em setembro de 2016, o ex-assessor fez cinco retiradas num valor total de R$ 26 mil. Dias depois, a mesma quantia entrou na conta do então deputado, em 14 parcelas.
Há outras operações desse tipo durante o período investigado. Os promotores acreditam que o dinheiro tinha origem ilícita e que o autor dos depósitos era mesmo Queiroz. A defesa de Flávio nega que ele tenha ficado com parte dos recursos operados pelo ex-assessor.
Tudo indica que o Ministério Público tem elementos suficientes para denunciar Flávio e Queiroz. Os promotores ainda aguardam decisões sobre os recursos em que o senador pede foro especial no caso.
Para os investigadores, o uso de dinheiro vivo tinha o objetivo de esconder rastros dessas movimentações e “não decorre de acidente, nem de mera coincidência”. É bom lembrar.
Ricardo Noblat: Desabafo da mulher de Queiroz indica que o casal viveu cativo
Hóspedes forçados do advogado dos Bolsonaro
Os áudios com o desabafo de Márcia de Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, divulgados pela VEJA, deixam claro que ela e o marido sentiam-se como prisioneiros de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro e do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro. Uma história bem diferente da contada pelo advogado quando a polícia prendeu Queiroz em sua casa no município paulista de Atibaia.
Na versão de Wassef, ele se comoveu com a situação de Queiroz a quem nunca vira antes, procurou-o sem que ninguém o orientasse a fazê-lo e ofereceu abrigo para ele, sua mulher e parentes. Só por “razões humanitárias”, como disse. Queiroz tornara-se um dos homens mais procurados do país pela imprensa, e mais tarde, pelo Ministério Público Federal do Rio que queria interrogá-lo.
Por que Queiroz e a mulher aceitariam a oferta de abrigo feita por um desconhecido? Por que passariam a confiar em um homem que emergiu assim do nada, sem que ninguém o recomendasse? Não faria o menor sentido. Elementar: Wassef deve ter sido bancado por alguém com bastante influência sobre o casal Queiroz. E não é tão difícil imaginar quem foi direta ou indiretamente.
Os áudios de Márcia datam de novembro do ano passado quando ela e o marido eram hóspedes de Wassef, mantidos numa espécie de cativeiro e contrariados por serem impedidos de sair de lá. Em conversas com a advogada Ana Flávia Rigamonti, contratada por Wassef para vigiá-los junto com um empregado da casa, Márcia traiu toda a sua insatisfação com a vida que levava.
Contou que, ao longo de um ano, fora obrigada a abrir mão de sua vida particular, privar-se de ir ao médico até para fazer exames de rotina e, em alguns momentos, não podia sequer utilizar o celular. As medidas cautelares foram ditadas pelo “Anjo”, codinome de Wassef, segundo o Ministério Público Federal, empenhado em manter sob segredo o paradeiro de Queiroz.
“A gente não é foragido. Isso está acabando comigo, amiga, acabando. De boa mesmo. Está acabando”, diz Márcia a Ana Flávia. “Está me destruindo por dentro. Eu estou aqui me desabafando, porque não consigo passar isso para ele [Queiroz]. E a minha preocupação é esse stress, esse emocional dele abalado, piorar a situação dele com essa doença”.
Ana Flávia retruca: “Eu sei que ele não está bem. Ele está tentando se distrair. Mas a gente sabe que não está fácil. (…) Ele mesmo falou para o Anjo: ‘Olha, eu não estou aguentando mais. Quero ir para minha casa’”. E Márcia completa: “Eu estou vendo que todo mundo está vivendo a sua vida. Agora, a gente não. Então, somos foragidos para viver fugindo? Não é possível isso, entendeu?”
Márcia não estava com Queiroz quando ele foi preso em 19 de junho último. Havia uma ordem de prisão contra ela. Márcia fugiu e só reapareceu quando o marido deixou a cadeia no dia 10 de julho para cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Desde então ela está ao lado dele, também com tornozeleira. O Ministério Público Federal aposta que um deles acabará delatando.
A prisão de Queiroz foi responsável pela radical mudança de comportamento do presidente Bolsonaro. Saiu de cena o incendiário, o promotor de crises, o falastrão, o agitador que marcava presença em manifestações de rua hostis à democracia. Entrou em cena o presidente moderado, que loteia cargos do governo com os partidos e chama os parlamentares de “sócios”.
Ricardo Noblat: Aperta o cerco ao senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um
Depósitos suspeitos em dinheiro vivo
O primogênito do presidente Jair Bolsonaro tem mais o que fazer em setembro do que atender à convocação do Ministério Público Federal do Rio para ser acareado com o empresário Paulo Marinho. Foi o que disseram seus advogados, e, como senador, ele tem de fato o direito de escolher dia e hora para depor.
Marinho disse que às vésperas da eleição presidencial de 2018, Flávio foi avisado por um delegado da Polícia Federal que seu assessor Fabrício Queiroz seria em breve um dos alvos de uma operação de combate à corrupção, e que o fato poderia prejudicar a candidatura do seu pai, líder das pesquisas.
Foi o próprio Flávio quem teria revelado isso à Marinho, na casa do empresário. Queiroz foi demitido no dia seguinte, bem como uma de suas filhas, funcionária do gabinete de Bolsonaro, o pai, em Brasília. Flávio admite a reunião com Marinho, mas nega o teor da conversa. Um dos dois, portanto, mente. Daí a acareação.
Não seria difícil descobrir quem fala a verdade. Segundo Marinho, ao saber que o delegado tinha um comunicado importante a lhe fazer, Flávio mandou três emissários ao seu encontro. A quebra do sigilo telefônico dos três indicaria se eles trocaram informações a respeito, mas um juiz proibiu que isso fosse feito.
Mesmo assim avançam as investigações do Ministério Público Federal e aperta o cerco em torno do senador. Extratos bancários da loja de chocolates de Flávio no Rio mostram depósitos em dinheiro vivo sucessivos, com o mesmo valor, entre março de 2015 e dezembro de 2018. O Jornal Nacional cruzou os dados.
Chama atenção a quantidade de depósitos em dinheiro vivo na conta da franquia feitos de maneira fracionada e muitos com valores redondos. Foram 63 depósitos de R$ 1,5 mil em espécie, 63 de R$ 2 mil e 74 de R$ 3 mil. Dos depósitos no valor de R$ 3 mil, 12 foram na boca do caixa e 62 no terminal de autoatendimento.
Ricardo Noblat: Perguntas que Bolsonaro só responde com o silêncio
E quem liga?
Acumulam-se há meses perguntas que o presidente Jair Bolsonaro simplesmente se recusa a responder – seja porque não sabe como, seja para não cair em contradição, seja porque poderia se incriminar ou porque prefere que sejam esquecidas. Não serão esquecidas.
Algumas delas:
- Frederick Wasseff, seu advogado, e também do senador Flávio Bolsonaro, nunca lhe contou que escondia Fabrício Queiroz, finalmente preso em um sítio no interior de São Paulo?
- Por que Rogéria, à época sua mulher e mãe dos seus três filhos mais velhos, pagou em dinheiro vivo pela compra de um apartamento hoje avaliado em R$ 621,5 mil?
- Por que ele, Bolsonaro, e sua segunda mulher, Ana Cristina Valle, compraram 14 imóveis no Rio, hoje avaliados em R$ 5,3 milhões, e pagaram uma parte em dinheiro vivo?
- Por que Queiroz, entre 2011 e 2016, depositou 21 cheques na conta de Michelle, atual primeira-dama, no valor total de R$ 72 mil? E, no mesmo período, Marcia Aguiar, mulher de Queiroz, depositou mais seis cheques no valor total de R$ 17 mil?
Outras perguntas poderiam ser feitas a Bolsonaro, mas delas ele escaparia de responder sob a alegação de que não o envolvem diretamente. Por exemplo: Queiroz, seu amigo há mais de 30 anos, nunca lhe falou sobre o dinheiro que ele e Flávio extorquiam de servidores da Assembleia Legislativa do Rio?
Embora seja um pai com forte presença na vida da família, nunca soube que Queiroz pagava despesas pessoais de Flávio e da mulher dele em dinheiro vivo – até parcelas do plano de saúde do casal e mensalidades escolares dos filhos? E que com dinheiro vivo, certa vez, Flávio comprou 12 salas comerciais no Rio?
O silêncio, até aqui, tem sido a resposta de Bolsonaro a todas essas perguntas, e a outras mais. E a levar-se em conta o crescimento de sua popularidade, grande parcela dos brasileiros não está nem um pouco ligando para isso. Tristes tempos, estes. Segue o baile.
Bernardo Mello Franco: A sorte do Zero Um
Flávio Bolsonaro tem muitos problemas, mas não pode reclamar da sorte. Desde 2018, o Ministério Público acumula provas contra o senador. Os investigadores acreditam que ele montou uma organização criminosa para desviar dinheiro da Assembleia Legislativa do Rio. As suspeitas só aumentam, mas uma sucessão de manobras e percalços impede que o caso vá adiante.
No ano passado, a investigação foi paralisada duas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. No plantão de janeiro, o ministro Luiz Fux trancou o inquérito a pedido da defesa. O Zero Um ainda não havia tomado posse, mas alegava ter direito ao foro privilegiado em Brasília. No mês seguinte, o ministro Marco Aurélio cassou a liminar e mandou o caso de volta à primeira instância.
No plantão de julho, o ministro Dias Toffoli jogou outra boia para o primeiro-filho. Ele aceitou a tese de que um relatório do antigo Coaf teria sido compartilhado sem autorização judicial. O documento mostrava a movimentação milionária nas contas de Fabrício Queiroz, segurança e motorista de Flávio. Também registrava depósitos em espécie para o Zero Um, que costuma pagar contas e comprar imóveis em dinheiro vivo.
Em dezembro, o Supremo concluiu que não havia nada de errado no envio de informações ao MP. O ministro Toffoli retificou o voto e passou a apoiar o compartilhamento de dados. Entre a liminar e o julgamento, o senador ganhou um refresco de quatro meses e meio.
Em junho passado, a polícia prendeu Queiroz e o MP fez saber que Flávio seria acusado de peculato, organização criminosa e improbidade administrativa. Às vésperas da denúncia, os desembargadores Paulo Rangel e Monica Tolledo voltaram a suspender o caso. A dupla entendeu que o Zero Um tinha direito a foro privilegiado no Tribunal de Justiça do Rio. A blindagem protege os deputados estaduais, cargo que ele deixou de ocupar ao virar senador.
Na quinta-feira, o tribunal informou que o MP perdeu o prazo para recorrer contra a regalia. Na sexta, uma reportagem da “Folha de S.Paulo” informou o motivo. A procuradora Soraya Gaya, que já elogiou Jair Bolsonaro nas redes sociais, acessou a intimação sem avisar os colegas. Com isso, a doutora antecipou a contagem do prazo em três dias. Agora ela será alvo de uma sindicância.
A sorte de Flávio é tamanha que chega a transbordar para Queiroz. Em julho, ele saiu da cadeia graças a um habeas corpus do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha. Generoso, o ministro estendeu o benefício à mulher do ex-PM, que estava foragida e não integra o grupo de risco da Covid-19.
Na quinta-feira, uma notícia voltou a preocupar os Bolsonaro. O ministro Felix Fischer cassou a liminar de Noronha e determinou a prisão do casal. Marido e mulher já esperavam o camburão quando foram salvos por um habeas corpus de Gilmar Mendes. O juiz do Supremo teve uma noite e tanto na sexta-feira. Além de salvar Queiroz, ele participou de uma live com dirigentes do MST. Depois de anos de pregação contra os sem-terra, ouviu João Pedro Stédile chamá-lo de “nosso ministro”.
El País: Fabrício Queiroz vai voltar para a cadeia, decide STJ
Ministro Félix Fischer revoga benefício concedido por presidente do Superior Tribunal de Justiça e determina retorno de ex-assessor do clã presidencial à prisão. Ordem também para mulher do ex-PM
A história do policial aposentado Fabrício Queiroz e dos constrangimentos que traz à família Bolsonaro parece cada vez mais longe de acabar. Detido em junho no âmbito das investigações sobre a prática de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Queiroz recebeu o benefício da prisão domiciliar no mês seguinte, quando o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, decidiu em liminar, durante o recesso judiciário, que a pandemia de coronavírus colocava em risco o aposentado. De quebra, estendeu o benefício também à sua mulher, Márcia Aguiar, então foragida. Nesta quinta-feira, contudo, o ex-assessor do clã presidencial ficou sabendo que deverá voltar para a cadeia, por determinação do ministro Félix Fischer ―a decisão também vale para Márcia Aguiar.
O inquérito sobre as suspeitas de que o hoje senador Flávio Bolsonaro recolhia parte do salário de funcionários fantasmas de seu gabinete na Alerj entre 2007 e 2018 corre em sigilo, mas os detalhes da trama protagonizada por Fabrício Queiroz não param de salpicar no noticiário. Na semana passada, a revista Crusoé revelou que uma conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 27 cheques depositados pelo ex-assessor, num total de 89.000 reais. A informação contradiz versão apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro, segundo quem Queiroz havia feito apenas 10 depósitos de 4.000 reais cada para quitar uma dívida.PUBLICIDADE
Queiroz foi assessor do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que aparece como “líder” de suposta organização criminosa no inquérito que leva o policial aposentado de volta para a cadeia. Nesta quinta-feira, o jornal O Globo trouxe mais detalhes sobre depoimento de Flávio ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), no qual o senador disse não se lembrar se fez pagamentos em espécie ao comprar dois apartamentos em Copacabana, em 2012. Para o MP-RJ, o dinheiro usado para as compras teria origem no esquema de rachadinha. O próprio O Globo já tinha revelado que usou 86.700 reais em dinheiro vivo na compra de 12 salas comerciais em 2008 ―quantia que ele diz ter pegado emprestado com seu pai e com um dos irmãos.
Desde a prisão do ex-assessor de seu filho, o presidente da República conteve sua atitude provocadora, que abastecia o noticiário diariamente com ofensas e ultrajes e mantinha o clima político do país em constante tensão. Bolsonaro tem evitado o assunto e, desde a primeira prisão de Queiroz, se limitou a dizer, durante uma de suas lives no Facebook, que a detenção do ex-assessor de seu filho foi “espetaculosa”, que “parecia que estavam prendendo o maior bandido da face da Terra”. O faz-tudo da família Bolsonaro foi detido em junho durante a Operação Anjo em um imóvel de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro, em Atibaia, no interior de São Paulo.
Próximos passos
A defesa de Queiroz disse receber “com surpresa” a decisão de Fischer, “sobretudo diante da desnecessidade da prisão de seus constituintes”. Em nota, os advogados disseram que já têm “adotado todas as medidas legais para a urgente reforma da decisão, mormente diante do risco concreto e real de dano à saúde, por pertencerem ambos [Queiroz e sua mulher] a grupo de risco agravado diante da pandemia.” A defesa do ex-assessor dos Bolsonaro também tem um pedido de habeas corpus pendente no Supremo Tribunal Federal (STF), onde pede a anulação das ordens restritivas. Quem vai julgar o recurso será o ministro Gilmar Mendes.
A determinação de Fischer pressiona a família Queiroz, especialmente porque agora Márcia Aguiar deve ir também para a cadeia. Há semanas se especula que, à diferença do ex-PM, que repete lealdade à família Bolsonaro, a mulher ou a filha, Nathália, também implicada nos repasses, poderiam decidir colaborar com a Justiça ou conceder entrevistas sobre o tema. O caso da rachadinha se arrasta desde 2018. Queiroz ainda não foi denunciado pela promotoria fluminense e há um debate jurídico em curso para decidir quem deve julgar Flávio Bolsonaro, se a primeira instância ou o segunda, já que o senador argumentar ter direito a foro privilegiado.
Ruy Castro: Dinheiro na mão dos Bolsonaros
Eles não acreditam em cartões ou transferências; no máximo, cheques
No começo, você sabe, tudo era dinheiro, desde uma vaca até um saco de sal. Depois vieram as barras de ouro, que, por muito pesadas, foram convertidas em moedas e, estas, em dinheiro de papel. O qual, após longo reinado, converteu-se em cheques, cartões de crédito e, agora, transferências digitais. A história do dinheiro é a da sua progressiva redução a algo simbólico, imaterial.
Não para a família de Jair Bolsonaro. Seus membros são fiéis ao dinheiro de papel. Transações que poderiam se realizar com um clique exigem, para eles, o trânsito de um pesado volume de cédulas, de um bolso ou carteira para outro, além do trabalho de contá-las. Um pagamento de R$ 100 mil constará de mil notas de R$ 100, a serem conferidas umedecendo os dedos numa esponja ou, como eles devem fazer, lambendo-os.
Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, comprou em 2008 várias salas num centro comercial do Rio por R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestado ao pai, a um irmão e a um assessor do pai, enfiou numa sacola e levou ao caixa do banco. Em 2011, sua mulher, Fernanda Bolsonaro, foi agraciada com depósitos de R$ 89 mil igualmente em espécie por seu generoso ex-motorista Fabrício Queiroz, depósitos de que Flávio, marido distraído, disse que nunca ficou sabendo.
Em 1996, Rogéria Bolsonaro, primeira mulher de Bolsonaro, comprou um apartamento em Vila Isabel, à vista e com dinheiro vivo, por R$ 95 mil. Anna Cristina Valle, segunda mulher de Bolsonaro, também comprou 14 imóveis no Rio entre 1998 e 2008, num total de R$ 5,3 milhões, boa parte em dinheiro. Diante disso só se pode elogiar Michelle Bolsonaro, atual mulher do homem —pelo menos os R$ 89 mil que caíram em sua conta entre 2011 e 2016, cortesia idem de Queiroz, foram em cheque.
Notar que esses valores, atualizados, se multiplicariam e exigiriam muito mais cédulas. Sem problema. Os Bolsonaros gostam de pegar em dinheiro.
Merval Pereira: "Um dinheirinho"
Na política, nada se cria, tudo se copia. O mensalão mineiro do PSDB se transformou no mensalão nacional do PT, que gerou o petrolão. Lula juntou os programas sociais que existiam no governo Fernando Henrique e criou o Bolsa-Família, um instrumento social poderoso que se transformou em alavanca eleitoral que aparou sua queda entre a classe média quando os escândalos de corrupção o obrigaram a trocar os eleitores do sul e sudeste pelos do nordeste, que virou um nicho petista por muitos anos.
Agora, Bolsonaro anda atrás de dinheiro para criar o Renda Brasil, um Bolsa-Família alargado, em valor e pessoas. Com o auxílio emergencial de R$ 600,00 durante os primeiros meses de pandemia, Bolsonaro viu sua popularidade crescer, e sentiu o efeito que esse tipo de programa social produz numa massa de eleitores que não votou nele em 2018.
Com o bico calado, mas agindo nos bastidores, Bolsonaro consegue se equilibrar entre seus apoiadores mais radicais, aumentando o poder de investigação da Abin para ter instrumentos de pressão sobre os adversários, e vai entrando no nordeste. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, está mais sintonizado nesse momento com os objetivos do presidente do que seu mentor, o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Originalmente assessor de Guedes na reforma da Previdência, com papel de destaque, Marinho ganhou como prêmio um ministério, e logo se desgarrou de Guedes, juntando a fome com a vontade de comer. Localizou na ânsia do presidente por popularidade no nordeste, e na dos militares por obras de infra-estrutura, um caminho para ganhar poder. Seu comentário na entrevista ao Globo de que nenhuma região é propriedade de um partido tem direção certa.
O equilíbrio fiscal que Paulo Guedes defende a ferro e fogo está claramente ameaçado pela vontade do grupo majoritário no governo que quer que ele arrume “um dinheirinho” - como definiu Flávio Bolsonaro - para obras e ações sociais. Todos bem intencionados, mas é aí que mora o perigo, especialmente quando se antecipou tanto a corrida presidencial de 2022.
O perigo de uma pedalada fiscal foi colocado pelo ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), em recente palestra: “Pedalada fiscal foi a alcunha que se criou para a contabilidade criativa do PT. Ainda estamos por nomear a criatividade a ser usada por este governo para não romper o teto de gastos”.
Ele se referia à pressão do Centrão e dos militares por mais gastos, aproveitando a pandemia e o estado de calamidade para burlar o limite do teto de gastos. O que pode prejudicar a caminhada de Bolsonaro à reeleição são os 21 cheques de Fabrício Queiroz para a primeira-dama Michelle Bolsonaro entre 2011 e 2018, que totalizaram R$ 72 mil.
Além dos problemas do filho Flavio, que não consegue explicar a dança de dinheiro vivo entre suas contas e as de Queiroz, agora a revista digital Crusoé revelou que as investigações do Ministério Público mostram que o montante de dinheiro repassado por Queiroz à primeira-dama vai muito além dos R$ 40 mil que Bolsonaro havia dito que emprestara a seu amigo.
Assim como Flavio Bolsonaro alega que pediu para um amigo PM pagar uma prestação de R$ 16,5 mil de um apartamento porque não queria ir ao banco, também Bolsonaro diz que sua mulher recebia o dinheiro porque ele não tinha tempo para essas coisas.
O presidente não pode ser julgado por um suposto crime que aconteceu anteriormente à sua chegada à presidência da República. Mas pode ser investigado, o que lhe tirará força política e reforçará o poder de barganha do Centrão. Lula usou todos os seus recursos para eleger Dilma em 2010, o país cresceu 7,5% naquele ano, e a economia começou a declinar. Já vimos esse filme antes, e ele não acaba bem.
Bernardo Mello Franco: Histórias da carochinha
A entrevista de Flávio Bolsonaro ao GLOBO encheria um almanaque de histórias da carochinha. O senador nem se esforçou para tentar explicar o inexplicável. Deu versões que fariam corar o ex-deputado Paulo Maluf, aquele que jurava não ter dinheiro no exterior.
O Ministério Público descobriu que o sargento Diego Ambrósio pagou um boleto de R$ 16,5 mil em nome da mulher do primeiro-filho. Por que um PM ajudaria o parlamentar a quitar seu imóvel? Resposta do Zero Um: os dois se encontraram num churrasco, a prestação “estava para vencer” e ele não queria deixar a carne no prato. Sensibilizado, o policial teria se oferecido para abater a dívida. Amigo é para essas coisas.
Os repórteres Paulo Cappelli e Thiago Prado quiseram saber por que o faz-tudo Fabrício Queiroz pagava o plano de saúde e a escola das filhas de Flávio. Mais uma vez, a explicação foi singela. “Eu pego dinheiro meu, dou para ele, ele vai ao banco e paga para mim”, disse Flávio. Tudo normal, salvo a anormalidade de Queiroz ter recebido repasses de ao menos 13 assessores do chefe.
O senador também não se preocupou em justificar o fato de o ex-PM ter sido preso na chácara do seu advogado. Ele jurou que não conhecia o esconderijo e reconheceu que “isso não podia ter acontecido”. No entanto, alegou que não houve “crime nenhum”. Nas palavras do primeiro-filho, a operação para ocultar Queiroz “foi um erro”, mas não teve “nada de errado”. Ah, bom!
O Zero Um ainda abusou da boa-fé dos leitores ao falar da sua fantástica loja de chocolates. Como explicar o volume de pagamentos em espécie que chamou a atenção dos investigadores? “Se a pessoa chega com dinheiro para comprar, eu não vou aceitar?”, desconversou o dublê de senador e comerciante. Pequenas empresas, grandes negócios.
Em outras passagens da entrevista, Flávio escancarou o divórcio da família com a Lava-Jato e defendeu o casamento com o centrão, que seu pai já definiu como “o que há de pior” na política. Ele também elogiou a proposta da nova CPMF. Neste ponto, é possível que tenha sido sincero. O imposto não vai incomodar quem paga as despesas em dinheiro vivo.
Ricardo Noblat: Sem pé nem cabeça o que disse Flávio Bolsonaro ao defender-se
Tal pai, tal filho
Se o presidente Jair Bolsonaro, como demonstrado tantas vezes, é capaz de atravessar a rua só para pisar numa casca de banana, seu filho Flávio, o Zero UM, também é. E foi o que fez ao dizer tudo o que disse em entrevista ao jornal O Globo, a primeira que concedeu fora de sua zona habitual de conforto.
Até então, ele só se dispunha a falar sobre a parceria com o ex-PM Fabrício Queiroz com veículos amigos de sua família, de preferência canais bolsonaristas no Youtuber, e redes de televisão que não lhe criassem problemas. E ainda assim a jornalistas confiáveis. Resultado: pisou na casca de banana e escorregou feio.
Admitiu que Queiroz pagava suas contas pessoais com dinheiro vivo. Mas não dinheiro extorquido de servidores do seu gabinete à época de deputado estadual no Rio. Dinheiro limpo dele, Flávio. Ocorre que o Ministério Público tem provas de que o atual senador poucas vezes meteu a mão no bolso para pagar suas dívidas.
Entre 2013 e 2018, Queiroz, então chefe do gabinete de Flávio, pagou pouco mais de 286 mil reais de contas pessoais de Flávio e da sua mulher, entre elas, parcelas do plano de saúde dos dois e mensalidades escolares dos filhos. E sempre em dinheiro vivo, sabe-se lá por que, se pagamento eletrônico é mais seguro.
Nos 15 meses anteriores a um pagamento de quase 7 mil reais, outra vez em dinheiro vivo, o casal não fez nenhum saque nas suas contas. Uma parcela de 16,5 mil da compra de um imóvel pelo casal foi paga pelo PM Diego Sodré, amigo e correligionário político de Flávio. E o que ele disse a respeito disso? Simples.
Um dia, Flávio e Sodré estavam num churrasco. Então Flávio lembrou que justamente naquele dia vencia mais uma parcela do pagamento do imóvel. Teria de abandonar o churrasco porque não tinha no celular o aplicativo que lhe permitiria pagar. Sodré pagou. E, depois, foi reembolsado por Flávio – em dinheiro vivo. Quer mais ou basta?
‘Fabrício Queiroz virou fantasma que assombra Bolsonaros’, afirma Andrei Meireles
Jornalista avalia repercussão da prisão domiciliar e do histórico de Queiroz na vida do presidente e de seus filhos, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Fabrício Queiroz virou fantasma que assombra os Bolsonaros”, a afirmação é do jornalista Andrei Meireles, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de julho. “Ele sempre foi uma espécie de faz tudo para a família presidencial, cuidava desde a arrecadação à segurança do clã”, diz, em um trecho.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de julho!
Queiroz montou e operou o esquema das rachadinhas, devolução de parte dos salários por funcionários remunerados com dinheiro público, nos gabinetes parlamentares dos Bolsonaros. “O de maior escala foi no gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro em seus mandatos como deputado estadual, no Rio de Janeiro”, lembra Meireles. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todas as edições, gratuitamente, em seu site.
A preocupação no entorno dos Bolsonaros, após a decisão do ministro Noronha, é o advogado Frederick Wassef. “Ele se sente credor da família e recusa todos os conselhos para submergir. Vaidoso, adora holofotes. Em suas seguidas entrevistas, vem apresentando teses delirantes sobre a morte do capitão miliciano Adriano Nóbrega e as ameaças a Fabrício Queiroz ‘por forças ocultas’”, escreve Meireles.
O que mais incomoda o governo, de acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, é sua dificuldade em dar uma versão crível sobre a sua atuação, em seu papel de “anjo” para os Bolsonaros. “Ele não consegue explicar, por exemplo, quem lhe autorizou a comandar a operação clandestina para esconder Queiroz em suas casas em São Paulo”, afirma.
Outra sombra do passado que acua Bolsonaro, segundo Meireles, é o avanço em diversas frentes sobre o exército de robôs que ajudou a elegê-lo e faz guerra permanente contra todos os seus adversários. “Nos inquéritos e na CPI sobre fake news em Brasília, e nas medidas profiláticas tomadas pelas redes sociais Facebook e Instagram, a tropa montada pelo filho Carlos Bolsonaro, o 02, está sob intenso tiroteio”, observa o autor.
Leia mais:
Mudez de Bolsonaro é recuo tático para conter impeachment, diz Paulo Baía
Brasileiros estão mais vulneráveis à depressão e ansiedade na pandemia
Intolerância e autoritarismo levam o país para trás, afirma Marco Aurélio Nogueira
Falta de liderança é um dos ‘fatores muito graves’ para combate à Covid-19, diz Luiz Antonio Santini
‘Educação muda vida das pessoas e transforma sociedade’, diz Sérgio C. Buarque
Pesquisas apontam cansaço da opinião pública com Trump, diz José Vicente Pimentel
Política Democrática Online: No Silêncio, Bolsonaro costura sua base parlamentar
Falta de liderança na pandemia e depressão são destaques da Política Democrática Online
Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online
Ricardo Noblat: Se Queiroz foi solto pra evitar o vírus, outros presos também deveriam ser
Salvo engano, a lei é para todos
Sabe, a Justiça tem lá suas esquisitices. E os juízes, um elenco sempre renovado de motivos para, com base em leis existentes e levando-se em conta as circunstâncias, justificarem suas decisões por mais contraditórias que possam soar aos ouvidos dos cidadãos. Esses, no mais das vezes, a tudo assistem petrificados.
Antes de conceder habeas corpus a Fabrício Queiroz, parceiro de Flávio Bolsonaro em desvio de dinheiro público, porque na prisão ele correria o risco de contrair o coronavírus, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, pelo mesmo motivo, negou 7 outros pedidos de habeas corpus.
Um deles beneficiaria presos do Ceará que estão no grupo de risco da pandemia. Outro, um homem em São Paulo que teria apontado um canivete a um funcionário de uma padaria e saído do local com um energético que custava R$ 5,25. A polícia não encontrou o canivete. O tal homem não tem antecedentes criminais.
Noronha negou-se também a livrar da cadeia um homem acusado de roubo, outro acusado de receptação, um suspeito de tráfico de drogas, um homem acusado de traficar drogas e outro acusado de estupro. Ora, se Estado tem condições de promover o isolamento de presos do grupo de risco, faltou razão para libertar Queiroz.
A concessão do benefício a Queiroz se deu por meio de uma sentença considerada sigilosa, o que é raro. E o mais bizarro: o benefício alcançou Márcia Aguiar, a mulher de Queiroz, que para escapar da prisão fugiu com a ajuda de milicianos do Rio. Noronha aguarda que ela apareça para cuidar do marido.
Um pedido de habeas corpus coletivo foi impetrado, ontem, no STJ em favor de todas as pessoas que apresentam um risco maior de contrair coronavírus e estejam em prisão preventiva. É assinado por 14 advogados do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos. E diz assim a certa altura:
– Os fundamentos da concessão da ordem [que beneficiou Queiroz] assentam quase que exclusivamente na questão humanitária: o pertencimento a grupo de risco na pandemia de covid-19. […] Negar a presos em idêntica situação a mesma ordem é violar o direito à igualdade.
Como Noronha é o plantonista do STJ porque os demais ministros estão de férias, caberá a ele julgar o pedido. Se preferir, poderá esperar a volta dos seus pares e livrar-se de descascar sozinho o abacaxi. Afinal, sua missão foi cumprida e deixou feliz o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos.