queiroz

Merval Pereira: Passando do limite

Se havia alguma dúvida de que o presidente Bolsonaro queria ter um sistema de inteligência que o servisse, e à sua família, em termos pessoais, agora não há mais. É devastadora a revelação de Guilherme Amado na revista Época de que a Agência Brasileira de Informação (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema de “rachadinha” montado por ele e outros deputados estaduais na Assembléia Legislativa do Rio.

O diretor-geral da Abin é ninguém menos que o delegado Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro queria ter nomeado para a direção-geral da Polícia Federal, e foi impedido por decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal. A alegação para proibir sua nomeação foi evitar o que aconteceu agora. O delegado tornou-se amigo da família quando passou a fazer a segurança pessoal do então presidente eleito Jair Bolsonaro, e a partir daí sua proximidade com o clã tornava sua nomeação potencialmente uma afronta ao princípio da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, exigências para a nomeação de servidores.

Justamente no momento em que, por não concordar com a nomeação, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, pedia demissão e acusava o presidente Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. Aliás, esse caso da Abin já teve um começo escandaloso, quando foi denunciada pelo próprio Guilherme Amado uma reunião no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Bolsonaro, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, com os advogados do senador Flavio Bolsonaro, para discutirem caminhos para a defesa do filho do presidente das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Na ocasião, o ministro Augusto Heleno admitiu que houve a reunião, mas disse que nada foi feito porque verificou que aquela não era uma tarefa que dissesse respeito à segurança institucional do país. Já era escandalosa a reunião em si, mas a garantia de que nao houve consequências dela pareceu satisfazer. Os documentos obtidos pelo repórter da Época, porém, tiveram a autenticidade e a procedência confirmadas pela defesa do filho do presidente, o que colide com mais uma negativa do General Augusto Heleno, que voltou a afirmar que não partiram da Abin tais informações.

Acreditando-se no depoimento do General, e sabendo-se que os documentos vieram da Abin, por WhattsApp, para a defesa de Flavio, é factível acreditar que funciona na Abin uma inteligência paralela que alimenta a defesa do filho de Bolsonaro sem que o chefe da inteligência brasileira tenha conhecimento, o que aumentaria a gravidade do caso.

O caso do filho 04 do presidente Bolsonaro, Renan Bolsonaro, que teve a festa de inauguração de sua empresa de eventos filmada e fotografada gratuitamente por uma firma que tem contratos com o governo federal, é um trambique mixuruca, medíocre, coisa de republiqueta de banana. Comparável com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que perdeu o posto porque extorquia uns caraminguás do concessionário do restaurante da Casa.

Tem que punir, não se pode aceitar, mas o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais.

Houve uma reunião no Palácio do Planalto, no gabinete do presidente, para usar a agência de segurança nacional, instituição do Estado brasileiro, para resolver problemas de acusação de corrupção da família do presidente.

É um coquetel de mal-feitos. Faz contato com a investigação que está sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela denúncia de interferência na Polícia Federal, dando indícios graves do que estava sendo tramado no entorno do presidente. Quem quiser ligar os pontos, terá uma imagem perfeita do que acontece nesse governo que mistura o público com o privado como nenhum outro.


Guilherme Amado: A Abin e a operação para ‘defender FB’ e enterrar o caso Queiroz

Abin produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.

Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.

O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.

No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de “defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.

 “A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.

O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa recomendação já havia sido feita em 2019.

“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.

A agência traça em seguida outra “alternativa de prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).

“Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto, resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”.

Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.

“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.

Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento, a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança”.

O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.

As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.

“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”, diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.

Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic (sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.

E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do cargo na semana passada.

Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada, a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.

A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem, amigo de seus filhos, para a direção da PF.


Bruno Boghossian: Confissão amplia mapa da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro

Com depoimento de ex-assessora, fica difícil negar festa com dinheiro público na Assembleia

Em agosto de 2011, Fabrício Queiroz não tinha ideia de que Jair Bolsonaro se tornaria presidente da República. Na época, o policial militar aposentado conduzia normalmente os negócios de um dos gabinetes da família. Uma nomeação que ele acertou naquele mês ressurge como um fator de risco para o clã que agora comanda o Planalto.

Uma ex-assessora de Flávio Bolsonaro admitiu a investigadores do caso da rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio que devolveu quase todo o salário para Queiroz por seis anos, como noticiou o jornal O Globo. Luiza Sousa Paes disse que repassava 90% da remuneração, os benefícios do cargo e até a restituição do imposto de renda.

Com a confissão, fica mais difícil esconder a festa com recursos públicos que, segundo os promotores, corria no gabinete do filho do presidente. A ex-assessora apresentou comprovantes dos depósitos para Queiroz e ainda se comprometeu a restituir a pequena parcela do dinheiro que ficou com ela no fim das contas.

As explicações escorregadias dadas por Flávio, que foi denunciado pelo Ministério Público, são sinais do tamanho do problema. Os advogados disseram que “ele desconhece” operações realizadas na Assembleia e que as contratações em seu gabinete seguiam as regras, “até onde o parlamentar tem conhecimento”.

O filho do presidente dobra a aposta ao concentrar a responsabilidade pelo esquema em Queiroz –um sujeito que, meses atrás, estava escondido na casa de um advogado da família. A defesa ainda precisará convencer a Justiça de que não há conexão entre a verba pública que abastecia o ex-assessor e os 63 boletos de Flávio que ele quitou em espécie.

Um novo trecho do mapa do dinheiro ficou mais nítido com o testemunho da ex-assessora. O que deve apavorar a família presidencial são os caminhos que ainda serão desenhados e que se aproximam do Palácio do Planalto. Esses traços podem explicar os R$ 89 mil que Queiroz e sua mulher repassaram para a primeira-dama Michelle Bolsonaro.


Hélio Schwartsman: E os R$ 89 mil?

Será total desmoralização se apurações sobre Flávio não virarem um processo

O Celso Rocha de Barros talvez não concorde, mas acho que dá para afirmar que Bolsonaro foi finalmente moderado. Não o foi pelo cargo, nem pelos militares, nem pela Covid-19, mas pelo duplo temor de sofrer um processo de impeachment e de ver familiares na cadeia por "rachadinhas" e sabe-se lá mais o quê.

Não penso que o presidente tenha se convertido à institucionalidade nem deixado de acalentar a esperança de um autogolpe, mas, independentemente do que se passe no recôndito de sua mente, o fato é que o Bolsonaro de hoje tem pouco a ver com o que assumiu a Presidência em janeiro de 2019 ou com o que, poucos meses atrás, fazia ameaças não tão veladas ao STF. Ele mordeu a língua e sentou gostosamente no colo do centrão.

A questão que se coloca é se ele poderia ter adotado essa atitude desde o início, poupando o país de parte dos dissabores vividos no último ano e meio. Receio que não. O governo Bolsonaro é essencialmente reativo. Para mudar seu comportamento, foi preciso que o presidente sentisse o cheiro de encrencas grossas e visse que sua popularidade não depende só da base de extrema direita --a ajuda emergencial que a administração inicialmente não queria acabou sendo um presente dos céus.

Seja como for, é positivo que o governo esteja se entendendo com o Congresso em vez de demonizá-lo. A política, afinal, é um jogo de negociações e compromissos. Mas, ao contrário do que Bolsonaro e outras altas autoridades parecem desejar, é inadmissível que a Justiça entre em qualquer tipo de acordo, entendimento ou "détente".

O Judiciário só age quando provocado e, uma vez provocado, não pode deixar de agir. Será a desmoralização completa do sistema de Justiça se as apurações sobre Flávio Bolsonaro, que já reuniram uma enormidade de indícios de irregularidades, não virarem um processo e se os investigadores esquecerem os cheques de Queiroz para a primeira-dama.


Bernardo Mello Franco: O deboche de Flávio Bolsonaro

Em outubro de 2015, a juíza Daniela Barbosa Assumpção foi agredida ao vistoriar o Batalhão Especial Prisional, no Rio. A magistrada teve a blusa rasgada e os óculos e sapatos arrancados. Os agressores eram policiais que tentavam manter regalias na cadeia.

Horas depois do incidente, o então deputado Flávio Bolsonaro foi até o local. Em vez de prestar solidariedade à juíza, ele deu apoio aos PMs, que usavam celulares e promoviam churrascos no cárcere. Alegou que os presos estavam sendo “tratados como bandidos” e tinham direito à presunção de inocência.

A exemplo do pai, Flávio tem uma visão particular da Justiça. Quando os criminosos vestem farda, ele se comporta como um defensor das garantias constitucionais. Em outros casos, repete o discurso de que “bandido bom é bandido morto”.
Ontem o senador divulgou foto com uma réplica de CPF atravessada por uma tarja vermelha, onde se lia a inscrição “cancelado”. Na imagem, Flávio sorri e ergue o polegar em sinal de positivo. No dialeto bolsonarista, “cancelar um CPF” equivale a matar um suspeito.

A cena foi um ato de apologia da violência policial. Num país em que a Constituição proíbe a pena de morte, o primeiro-filho celebrou a execução sem julgamento, a barbárie disfarçada de defesa da lei.

Flávio estava no estúdio do “Alerta Nacional”, programa sensacionalista gravado em Manaus e transmitido pela RedeTV!. A atração mistura noticiário policial com números circenses. Seu apresentador, Sikêra Jr., é um histriônico defensor do governo.

Na gravação, o senador dançou com o elenco do programa ao som de uma música que ironizava “maconheiros”. Enquanto ele fazia graça, procuradores o esperavam no Rio para uma acareação com o empresário Paulo Marinho. O Zero Um não apareceu,e seus advogados disseram que ele estava em agenda oficial.

O vídeo da dancinha fala por si: Flávio debochou do Ministério Público Federal, que agora estuda enquadrá-lo por crime de desobediência. Para sorte do Zero Um, procuradores não defendem a morte de bandidos. Só querem investigá-los e denunciá-los à Justiça.


Eliane Cantanhêde: STF, Rio e Bolsonaros

Com Luiz Fux, pode haver situação insólita: presidente do STF abstendo-se de julgar

Enquanto as pessoas se aglomeram irritantemente em praias, bares e festas, a pandemia parece arrefecer, mas ainda é ameaçadora, e o foco está em três frentes que confluem mais e mais na mesma direção: a família Bolsonaro, o Rio (a capital e o Estado) e o Supremo Tribunal Federal. Os três têm um encontro marcado nesta quinta-feira, quando muda o comando do STF.

O presidente Jair Bolsonaro e dois dos seus filhos, o senador Flávio e o vereador Carlos, têm base eleitoral do Rio, estão às voltas com investigações variadas e agora podem comemorar à vontade: estão com a faca e o queijo na mão, junto com o governador interino Cláudio Castro, o prefeito Marcelo Crivella e, consta, toda a estrutura de poder.

E assim vão caindo, um a um, os empecilhos para o domínio dos Bolsonaro no Rio. O Coaf apresentou ao Brasil um cidadão chamado Fabrício Queiroz? Despacham-se o Coaf para o Banco Central e o Queiroz para a casa do advogado da família. O ministro Sérgio Moro se recusava a trocar as cúpulas da PF nacional e no Rio? Que então Moro tivesse, e teve, “a dignidade de se demitir”. A Receita importunava a base evangélica do presidente, muito forte no Rio? Nada que uma boa conversinha não resolvesse.

Sobrou o governador Wilson Witzel, que surfou na onda bolsonarista em 2018 e depois pulou fora, deixando um rastro classificado como “muito grave” pelo Ministério Público e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foi fácil afastá-lo, como foi cooptar o vice Cláudio Castro, que também tem seus probleminhas com o MP e precisa desesperadamente da mãozinha do governo federal para se equilibrar no cargo de Witzel. Com Crivella já andava tudo numa boa. Só faltava uma juíza qualquer censurar a publicação das investigações contra os filhos. Não falta mais.

E o que vai acontecer com o Rio? Ninguém tem ideia, mas fica aquela dolorosa sensação de vaso quebrado que não tem jeito. Todos os ex-governadores estão ou foram presos, o atual está afastado, a cúpula da Assembleia caiu, a do Tribunal de Contas ruiu como castelo de cartas. Resultado: a crise é moral, ética, social, de segurança, política, econômica e financeira. Por onde começar?

Todo esse caldeirão cai necessariamente no Supremo, onde nesta quinta-feira a presidência sai de Dias Toffoli e vai para o carioca Luiz Fux. Toffoli entrou na Corte como o maior petista-lulista e sai da presidência como o principal, talvez único, aliado de Bolsonaro. Fux assume como o maior aliado da Lava Jato, mas com um constrangimento: as naturalmente fortes ligações com o Rio, um Estado conflagrado.

Ministros de tribunais já têm relação especial com seus Estados, onde conhecem todo mundo, são bajulados pelos Poderes e admirados pela sociedade, frequentam solenidades públicas e festas particulares. No caso de Fux, com duas peculiaridades: por temperamento, mas não só, ele tem interlocução e simpatias em toda parte e é juiz de carreira no Rio, como Witzel. O ministro, aliás, foi primeiro de turma.

Logo, não está descartada uma situação bastante insólita: o presidente do Supremo se abster em julgamentos que dizem respeito ao Rio, muitos deles intrincados com os Bolsonaro. Já deve haver quem colecione fotos de almoços, jantares, festas, tentando conexões maldosas. Fotos não dizem nada, em especial para homens públicos, que a toda hora são chamados para um clique, mas Fux não é chegado a falsos heroísmos e preza o velho e bom “à mulher de César, não basta ser honesta, é preciso parecer honesta”. O direito diz que, na dúvida, pró réu. Neste caso, pró abstenção.

FOICE E MARTELO: Por que tanta gente é anticomunista, se nem tem mais comunista?


Miguel Reale Júnior: A mentira

Tem retidão moral quem mente e acusa injustamente terceiros para se livrar…?

É fato notório que o presidente Bolsonaro é pessoa tosca, deseducada, nada afeito a qualquer etiqueta. Ao contrário, orgulha-se de ser um atleta bronco, e não um “bundão” que morre ao contrair a covid-19. Mas além das grosserias proferidas contra jornalistas, tão ou mais graves foram as tentativas de desvirtuar a verdade.

Com efeito, ao chegar à catedral de Brasília no domingo 23/8, jornalista de O Globo indagou: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. E o presidente respondeu: “Vontade de encher a sua boca de porrada”. No mesmo instante, um ambulante falava: “Vamos visitar, presidente, a nossa feirinha da catedral?”. Segundo vídeo falso de site bolsonarista, com foto de Bolsonaro abraçado à filha, o repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”. Ao que, então, o presidente reagiu: “Vontade de encher sua boca de porrada”. Sites bolsonaristas difundirem inverdades para salvar a cara do seu mito já é habitual no mundo das fake news.

O grave está em o presidente, sabedor da falsidade inventada por apoiadores, ter reproduzido em seu canal no YouTube a versão mentirosa, sem legendas, com o título: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”. O filho 02, Carluxo, compartilhou no Twitter essa versão de conteúdo falso.

Não é a primeira vez que o presidente recorre à mentira para atacar jornalista. Vera Magalhães noticiou que Bolsonaro divulgara vídeo convidando pessoas a irem a ato contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março deste ano. Em live do Palácio do Alvorada e em sua página no Facebook, Bolsonaro acusou falsamente a jornalista de ter confundido o vídeo em que convocava para reunião contra o PT em 2015 e o chamamento para o ato de 15 de março de 2020, ambos num domingo.

Disse o presidente: “O vídeo abaixo chegou ao conhecimento da jornalista Vera Magalhães, que, na sede de furo jornalístico, publicou matéria como se eu estivesse convocando ato para as manifestações de 15/março/2020. Ela, certamente por má-fé, não atentou que o vídeo era de 2015, onde houve uma manifestação no dia 15 de março (domingo) daquele ano contra o governo do PT”. E completou o mandatário com esta ofensa: “Não sou da sua laia, esqueceu de ver a data. Trabalho porco precisa ter um pouco mais de vergonha na cara”.

A mentira do presidente era inadvertidamente por ele mesmo denunciada, pois na live disse que o vídeo contava um pouco de sua vida: a facada. Ora, a facada foi em 2018, portanto, o vídeo não poderia dizer respeito a manifestação de 2015. Além do mais, no vídeo mostrava-se a posse de Bolsonaro em 2019. Ainda por cima, o ministro José Eduardo Ramos e o deputado Alberto Fraga confirmaram ter recebido de Bolsonaro o vídeo.

Inverdades e acusações são marcas dos dois acontecimentos. O uso deslavado da mentira como arma de defesa, para tentar esconder seus atos que infringem a dignidade do cargo. se une à deslealdade de fazer recair sobre outros as suas próprias culpas.

A intenção de mentir está em fugir da verdade para tentar se eximir da responsabilidade pelos atos cometidos, induzindo em erro os destinatários da mensagem, sem nenhum pudor (Batistelli. A Mentira, trad. Fernando Miranda, São Paulo, 1945, pág. 81).

Nesses casos, as mentiras têm perna curta, a demonstrar que no afã de ocultar a verdade e culpar terceiro nem se fez a versão passar pelo crivo do raciocínio, parecendo ser fruto de um impulso, indicando, conforme Battistelli, ser a mentira quase patológica.

A simulação da indignação, ao rechear a mentira com ofensas aos terceiros que pretende culpar pelos próprios atos, é um truque grosseiro, um fingimento, a revelar antes pusilanimidade perante possíveis aborrecimentos do que a força que se pretende demonstrar.

A ficção visa a proteger das dificuldades, aderindo à mentira como tábua de salvação, em recurso próprio dos medrosos (Battistelli, cit., pág. 143), pois, ao contrário dos homens de coragem, não assumem os próprios atos. Mentir e acusar o outro é a reação comum dos fracos diante de uma pergunta a que não sabem responder.

Uma das hipóteses de crime de responsabilidade previstas na Lei 1.079, de 1950, está em proceder o presidente “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º, 7).

Aquele que age sem ser conforme a dignidade exigível para o exercício do cargo desmoraliza a “própria imagem do Estado aos olhos do povo”, com perda da respeitabilidade. A retidão moral constitui o cerne da dignidade no exercício do cargo de primeiro mandatário da Nação.

O professor Fábio Comparato, na peça que preparou para o impeachment de Collor, ensina que a lei introduziu na definição do delito a ideia central do decoro, que vem a ser temperança, domínio das paixões, honestidade, decência, pois “o que é honesto é decente e vice-versa”.

E cabe perguntar, então: tem retidão moral aquele que mente e acusa injustamente terceiro para se livrar da assunção dos próprios atos que se revestem, por si só, da ausência do devido decoro?

É mais uma pergunta que não quer calar.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Ruy Castro: Bolsonaro infecta pelo ouvido

Como será dizer 'bundão' e 'encher tua boca' com porrada em libras?

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.

Para mim, quem mais corre perigo com Bolsonaro é aquele pobre intérprete de libras que se vê ao seu lado —também sem máscara— nas declarações oficiais. Não sei o nome, idade ou histórico de atleta do tal senhor, mas espero que ele sobreviva aos perdigotos de Bolsonaro, ao tentar converter em sinais os coices do chefe contra as instituições e a verdade.

Por seu visual sóbrio, parece um homem de família, de sólida formação moral, talvez evangélico. Como será, para ele, dizer “bundão” em libras? E como será quando tiver de traduzir expressões como “porra”, “bosta”, “merda”, “putaria”, “filho da puta” e “puta que pariu”, como as que Bolsonaro ejaculou 28 vezes na reunião ministerial de 22 de abril? E o recente “encher tua boca com porrada”?

É o que me faz temer pela saúde do intérprete de libras. Afinal, certas infecções penetram também pelo ouvido.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Zeunir Ventura: A pergunta que não cala

Por que mesmo, presidente, Michelle recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?

Nestes últimos dias, incluindo o fim de semana, Bolsonaro voltou a soltar a língua, principalmente contra a imprensa. A um repórter que fez o que ganha para fazer, pergunta, ele respondeu com um “seu safado” e a confissão de que estava com vontade de encher-lhe “a boca na porrada”. A questão tabu, que causou tanta irritação, devia esconder algo de grave: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?” (Fabrício Queiroz, como se sabe, é aquele policial ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, que é investigado pela prática de “rachadinha”, o esquema que consiste em repassar parte do salário ao parlamentar.)

Assim que souberam da reação agressiva do presidente, entidades, associações de classe, personalidades, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a imprensa internacional criticaram o gesto, além de mais de um milhão de internautas, que compartilharam a pergunta sobre Michelle, ou melhor, Micheque, nas redes sociais.

Noutra ocasião, falando de como se livrou da Covid-19, ele tripudiou dos meus colegas: “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é muito menor. Só sabe fazer maldade, usar a caneta com maldade”. (Alguém precisa lhe dizer que repórter não usa mais caneta, só celular.)

Mas não é só como atleta que o capitão é fogo. “Na política, sou imbrochável (ele acha que é pra sempre). Aliás, não é só na política não, porque eu tenho uma filha de 9 anos de idade que foi feita sem aditivo.” (Pelo jeito, fazer filho sem aditivo é proeza rara.)

Pena que não houve tempo de contar o episódio de 1995, quando dois jovens de classe média o assaltaram, levando a motocicleta e a pistola Glock calibre 380 que carregava debaixo da jaqueta. “Mesmo armado, me senti indefeso”, ele admitiu. Naquela famosa reunião do dia 22 de abril, quando disse que queria armar todo mundo, achei que alguém iria lembrar o roubo: “O que adianta, se eles levam a arma?”.

Ah, sim, ia me esquecendo: Por que mesmo, presidente, Michelle recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?


Elio Gaspari: Por que Queiroz depositou R$ 89 mil?

O MP não tem pressa, só perguntas

Em 2018 Jair Bolsonaro era o presidente eleito quando teve que explicar um depósito de R$ 24 mil feito pelo faz-tudo Fabrício Queiroz na conta de sua mulher. À época ele disse que esse dinheiro se relacionava com uma dívida de R$ 40 mil que o ex-PM tinha com ele.

O senador Flávio Bolsonaro conversou com Queiroz e deu-se por satisfeito: “Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade”.

O vice-presidente eleito Hamilton Mourão acrescentou o essencial elemento de dúvida: “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro.(…) Algo tem, aí precisa explicar a transação.”

Passaram-se dois anos, e nada aconteceu de bom para os Bolsonaros. O depósito de R$ 24 mil podia até ser parte da quitação de uma dívida de R$ 40 mil. Mas o ervanário depositado pelos Queiroz foi de R$ 89 mil. Bolsonaro não gosta de ouvir essa pergunta, mas precisa se habituar a conviver com ela. A ideia de “meter a porrada” em quem a faz é inútil, porque ela virá muitas vezes do Ministério Público. Os procuradores não têm pressa, só perguntas, e até hoje os Bolsonaros não contribuíram para o esclarecimento do que seriam seus rolos com Queiroz.

O que, em 2018, eram movimentações financeiras estranhas de um faz-tudo virou coisa mais pesada. Onze servidores alocados nos gabinetes dos Bolsonaros faziam depósitos nas contas de Queiroz. Entre eles estavam a ex-mulher e a mãe do ex-PM Adriano da Nóbrega, um miliciano foragido, que foi morto numa operação policial no interior da Bahia. Queiroz nunca deu uma explicação convincente para seus rolos. Sumiu e apareceu na casa de Atibaia do advogado Frederick Wassef. O doutor defendia os interesses de Flávio Bolsonaro. Todas as conexões de Queiroz tinham o aspecto comum às malfeitorias da pequena política do Rio de Janeiro, até que os repórteres Luiz Vassalo, Rodrigo Rangel e Fabio Leite revelaram que o doutor Wassef recebeu R$ 9 milhões para defender os interesses da JBS junto à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais de Brasília. Em outubro passado, meses antes da manhã em que Fabrício Queiroz foi preso em sua casa, Wassef estava a serviço da empresa. Atravessaram a rua para entrar no Caso Queiroz.

A JBS é hoje a maior empresa do país em receita, superando a Petrobras. Produzindo alimentos, ela foi uma das “campeãs nacionais” durante o consulado petista e tornou-se uma vaca leiteira para as criaturas que habitam aquilo que o doutor Paulo Guedes chamou de “pântano político, (com) piratas privados e burocratas corruptos”. Em 2017 Joesley Batista, um de seus controladores, quase derrubou o governo de Michel Temer gravando uma conversa escalafobética que teve com ele para azeitar o acordo de colaboração que fecharia com o procurador-geral Rodrigo Janot.

Em 2018, quando o Coaf desconfiou das contas de Queiroz, puxando os fios chegava-se aos Bolsonaros e às pizzarias de Dona Raimunda, mãe do miliciano Adriano da Nóbrega. Passaram-se dois anos, nenhuma pergunta foi respondida e, puxando o fio do ex-PM faz-tudo dos Bolsonaros, bateu-se em Wassef, que teve como cliente a JBS, uma das maiores empresas de alimentos do mundo.


Cristina Serra: O tumor Bolsonaro

As instituições, até a imprensa, absorveram Bolsonaro como corpo doente se acostuma a hospedar tumor, que um dia mata o hospedeiro

Não sou ombudsman, mas me permito usar este espaço para algumas reflexões. No sábado, o editorial desta Folha trouxe o título “Jair Rousseff”. O texto se refere ao desequilíbrio das contas públicas no governo da ex-presidente e à tentação do atual fazer o mesmo.

A fusão dos dois nomes é um ultraje à ex-presidente. O título chamativo não poderia ter prevalecido sobre o simples bom senso ou o respeito à história de Dilma Rousseff. Na aprovação do impeachment na Câmara, Bolsonaro votou em homenagem ao torturador Brilhante Ustra, algoz da ex-presidente quando de sua militância contra a ditadura. “O pavor de Dilma Rousseff”, tripudiou o então deputado.

Bolsonaro deveria ter saído preso da Câmara naquele dia por apologia à tortura, crime de lesa-humanidade. E, no entanto, aquele foi o ato inaugural de sua ascensão ao poder. Que fizeram as instituições? Câmara? Supremo? Ministério Público? Funcionaram “normalmente”.

Mas a assimilação de Bolsonaro como algo natural pelas instituições começou muito antes. No fim dos anos 1980, o Superior Tribunal Militar ignorou as provas de que o então capitão participara de um plano para explodir bombas em quarteis e o absolveu.

Foi a deixa para Bolsonaro iniciar carreira parlamentar tão longeva quanto medíocre, marcada por ofensas a mulheres, negros e homossexuais e pela defesa da tortura e da execução de uns “30 mil”.Sua atuação parlamentar foi tratada como rebotalho caricato e extemporâneo da ditadura. Conselho de Ética? Corregedoria? Ah, sim, as instituições funcionaram “normalmente”.

E assim chegamos ao ponto em que milhões de eleitores identificaram nele o comando e a síntese do autoritarismo brasileiro. As instituições, inclusive a imprensa, absorveram Bolsonaro como um corpo doente se acostuma a hospedar um tumor. Um dia, o tumor explode e mata o hospedeiro. A propósito: “Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”.


Merval Pereira: Reforma necessária

Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.

Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.

O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.

A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.

Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.

Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.

A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.

O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.

O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.

Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.