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Demétrio Magnoli: Moro, o ‘nada jurídico’

Rosangela Moro, advogada do marido, acionou o STF pedindo a Fachin a revogação da liminar de Lewandowski que dá à defesa de Lula acesso às mensagens trocadas entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba. A reclamação ilumina o desprezo do Partido da Lava-Jato pela verdade factual e, ainda, pela verdade jurídica.

A peça da advogada repete as duas alegações básicas do ex-juiz e dos procuradores: 1) “Não há prova da autenticidade das mensagens”; 2) As mensagens “não provam fraude na condenação ou suspeição do juiz”.

A primeira afirmação é uma tentativa de circundar, por um artifício jurídico, a questão da verdade factual. Temendo cometer perjúrio, os acusados não declaram que as mensagens são falsas — mas referem-se a elas como se fossem diálogos entre terceiros desconhecidos sobre os quais nada sabem.

A segunda afirmação, se verdadeira, tornaria a primeira desnecessária. Afinal, se os diálogos não contêm ilegalidades, por que não admitir sua autenticidade? Contudo, como as trocas de mensagens evidenciam graves violações da lei, a advogada tira da cartola um terceiro coelho manco e solicita a eliminação processual delas: seriam um “nada jurídico”, devido aos meios ilegais utilizados na sua obtenção.

Nos diálogos, Moro oferece orientações aos procuradores sobre fontes, os instrui sobre possíveis provas e combina com eles a sequência de operações policiais. São evidências abundantes de conluio entre o Estado-julgador e o Estado-acusador. A gangue de Curitiba suprimiu do processo legal o juiz imparcial.

A verdade jurídica não é idêntica à verdade factual, pois a segunda só se torna a primeira quando percorre a estrada do devido processo. Sorte de Moro e de seus comparsas: a verdade factual expressa nas trocas de mensagens seria suficiente para condená-los por subversão do processo legal, se não tivesse vindo à luz pelo túnel da ilegalidade. Tal circunstância não implica, porém, a completa invalidação jurídica dos diálogos criminosos.

A jurisprudência não admite o uso de provas obtidas ilegalmente para condenar alguém, mas permite utilizá-las para sustentar a presunção de inocência. Lula pode até ser factualmente culpado — mas, na vigência do estado de direito, não é possível condená-lo ao arrepio do devido processo. É dever do STF anular as sentenças condenatórias do líder petista tingidas pela mão de gato de Moro.

Moro enxerga a lei como fonte de privilégios e discriminações. No pacote anticrime que formulou quando ministro de Bolsonaro, introduziu o “excludente de ilicitude”, mecanismo destinado a impedir a punição de crimes cometidos por policiais. Na reclamação ao STF, sua advogada alega que as trocas de mensagens “não provam inocência” de Lula, como se cidadãos acusados tivessem o ônus de provar ausência de culpa.

“Nada jurídico” — o qualificativo não serve para invalidar os diálogos que repousam no STF, mas define à perfeição os processos conduzidos pelo Partido da Lava-Jato. As mensagens expõem acertos entre o juiz e os procuradores para plantar notícias na imprensa e financiar a divulgação de propostas legislativas, além da ambição de reformar o sistema político-partidário. Nada jurídico, tudo político: a gangue manipulava suas prerrogativas de agentes da lei para deflagrar um projeto de poder centrado na figura de Moro.

A demanda da advogada ao STF pretende soterrar tanto a verdade factual quanto a jurídica. A guerra contra a verdade tem a dupla finalidade de evitar a desmoralização jurídica da gangue e de conservar os resíduos de um projeto político envenenado pela associação de Moro com Bolsonaro.

Na hora da morte da força-tarefa, o Partido da Lava-Jato conta com três fiéis militantes no STF. Mesmo assim, diante do grito das evidências, a manutenção integral das condenações tornou-se um sonho improvável. Circula, por isso, a ideia criativa de preservar, ao menos, o legado da interdição de candidatura de Lula. “In Fux We Trust”: o compromisso imoral concluiria, melancolicamente, a trajetória de juízes que confundem a lei com suas próprias convicções políticas.


Maria Hermínia Tavares: Ligações perigosas

Conversas inadequadas entre juiz e promotores, intimidade entre políticos e empresas são tão comuns quanto reprováveis

Graças ao ministro Ricardo Lewandowski, do STF, tem-se agora acesso ao registro das conversas privadas —e tóxicas— do então juiz Sergio Moro com procuradores da Operação Lava Jato quando se instruía a denúncia contra o ex-presidente Lula. As 50 páginas de transcrições desvendam uma relação mais do que imprópria entre um magistrado, que deveria primar pela isenção, e os membros do Ministério Público responsáveis pelas alegações que justificassem transformar o líder do PT em réu no célebre caso do tríplex do Guarujá.

Advogados relatam que conversas inadequadas entre juiz e promotores durante o processo de instrução são tão comuns quanto reprováveis, pois se dão sempre em prejuízo do acusado. Mas, além de inaceitável do ponto de vista ético, o escambo entre Moro e os acusadores de Curitiba produziu um resultado politicamente letal: excluiu do jogo, na marra, o candidato que, goste-se disso ou não, detinha àquela altura a preferência dos eleitores, constatada nas pesquisas.

Aos que se debruçarem sobre o texto agora liberado --ou o seu resumo na imprensa-- recomenda-se fortemente a leitura de "A Organização", da competente jornalista Malu Gaspar.

Melhor livro brasileiro de análise política publicado no ano passado, ali está a narrativa da irresistível ascensão da Odebrecht no negócio da construção pesada, à sombra de todos os governos democráticos desde meados de 1980.

As relações de intimidade da empresa com os líderes do PT e de outros partidos que compartilhavam o poder, descritas em sua crueza, são o centro do exemplo notável do que a literatura especializada chama de "rent seeking", a busca de ganhos privilegiados, em tradução livre. Ou seja, a obtenção por empresas privadas de lucros à margem da competição no mercado --graças a ligações espúrias com líderes políticos e agentes públicos de alto escalão.

A amizade entre dois presidentes —o da Odebrecht e o da República— e um sofisticado esquema de financiamento arquitetado pela empresa sob o elegante codinome "Departamento de Operações Estruturadas" tornaram possíveis tanto a expansão dos contratos públicos da construtora quanto o financiamento, via caixa dois, de expoentes de partidos governistas.

Revelada pela Lava Jato, a trama de relações perigosas em torno da Petrobras desnudou o mecanismo do "rent seeking", tão corriqueiro como venenoso para a democracia.

Talvez a prática não possa ser de todo eliminada. Resta, por isso mesmo, encontrar formas de reduzir a sua radioatividade política, sem atropelar as boas condutas jurídicas. Eis o desafio permanente para os democratas.


Carla Jiménez: Decrépito torturador de almas, Bolsonaro não cabe no cargo que ocupa, nem cabe no Brasil

Presidente tem a sorte de se deparar com gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção

A esta altura de 2020, qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário sabe que não há o que se surpreender com as atrocidades perversas que saem da boca do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Ao zombar da tortura da ex-presidenta Dilma Rousseff ele só mostra sua verve de torturador que sempre soubemos que ele tinha. Não há diferença entre a frase dita nesta segunda, 28, ―Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo”― e o “Quem procura osso é cachorro”, dita em maio de 2009, quando ele humilhava parentes de desaparecidos na ditadura ―assassinados por militares que pensam como Bolsonaro― que faziam pressão por localizar os restos mortais de seus familiares.

Bater covardemente em alguém, ainda mais uma mulher, ex-presidenta, só é típico dos bárbaros, dos mesquinhos, dos pequenos que têm inveja, dos futriqueiros venenosos, dos picaretas. Debater o porquê dele ter sido eleito e o que isso diz dos seus eleitores é algo que já se estendeu até demais nestes últimos dois anos. Já sabemos que Bolsonaro não é o mal puro, mas a síntese da maldade coletiva de um Brasil perverso, deformado. Não se trata somente da deformação dos que identificam e celebram sua crueldade, mas a distorção dos que não tiveram a chance de aprender e alcançar o que uma frase tão delinquente quanto a que ele pronunciou sobre Dilma faz mal à saúde do Brasil e à nossa democracia. A frase não é só sobre o passado. Ela tem uma correia de transmissão com a tortura que acontece nas delegacias e nas periferias do país todos os dias.

Custa chamar Bolsonaro de presidente da República. Ele não cabe nesse posto. Não representa o povo brasileiro, nem uma aspiração coletiva, nem um exemplo a ser seguido. Seus dois anos já demonstram que ele seria incapaz de fazer história com grandes realizações e contribuições para o Brasil. Não tem bondade, não tem empatia, não tem honra, nem respeito. Tem atitudes de um covarde, um sabotador nacional, com auxílio de muitos que o ajudaram a chegar lá e agora se descolam, como o ex-ministro Sergio Moro. O ex-juiz sabia exatamente o tamanho da própria credibilidade naquele momento e recebeu todos os alertas de quem era e agora vira e mexe o critica. Mas a última vez que Moro o criticou, no último dia 28, foi em função do atraso na campanha da vacinação. Não para condená-lo por Bolsonaro ter exortado a tortura a que foi submetida a ex-presidenta Dilma.

Bolsonaro sobrevive e, sim, uma tempestade perfeita pode reconduzi-lo ao poder em 2022. Ele tem a sorte de se deparar com uma época de lideranças fracas no Brasil, de gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção. É o constrangimento de ver o Supremo Tribunal Federal e procuradores de São Paulo envolvidos em pedido de prioridade na vacinação. É o marketing de gestor do governador João Doria cortando verbas de Ciência em São Paulo ―afora uma viagem desastrada quando os números da covid-19 estavam subindo. É deputado se gabando de ter ganhado fuzil de presente. Justiça seja feita, Bolsonaro tem um papel fundamental para a história brasileira ao mostrar aos que defendem a democracia o tamanho da nossa arrogância e ignorância sobre o Brasil real. Nos contentamos com pouco achando que o pouco era muito porque era somente para nós.

Pois bem. Os anestesiados pelo pavor da miséria no poder com a ultradireita estão ganhando anticorpos e, se o presidente ainda goza de prestígio num grupo de eleitores, esse mesmo grupo vai cobrar a fatura quando os erros de Bolsonaro trouxerem a colheita. Ele, que apontava o confinamento vertical no início da pandemia como um antídoto para proteger a economia ―e não ficar para trás num mundo competitivo―, teve a incompetência de deixar o Brasil a esmo para montar uma campanha de vacinação nacional e isso cobrará seu preço no tempo da nossa recuperação. Mais valeram as picuinhas e as artimanhas grotescas do que focar num plano que finalmente o poderia colocar à altura de um estadista.

Bolsonaro não cabe no cargo de presidente e sua monstruosidade se destaca a cada dia no mundo em que vivemos. No momento em que a Argentina avança no debate sobre aborto, jovens vão às ruas no Peru, chilenos reescrevem sua Constituição, mexicanos e costa-riquenhos lideram a vacinação na América Latina, o presidente brasileiro vai se tornando um corpo estranho. É o presidente que mente ao mundo culpando indígenas pelos incêndios no Pantanal, o machista arcaico num mundo cada vez mais feminista, o torturador de Dilma no dia do seu impeachment.

Pode ser que faltem dois ou até seis anos para que o peso de suas palavras o derrubem por si só. Para que seja o pária nacional, o antiexemplo, a dor na alma, a vergonha do Brasil. Tal qual quando na ditadura havia uma vergonha popular de dizer que se apoiou os crimes covardes do governo militar. Bolsonaro é o representante dos militares que iam botar bomba no atentado do Riocentro, dos militares que esconderam o rosto da fotografia enquanto Dilma era interrogada então com 22 anos. Dilma pode não ter sido tão popular enquanto presidente e isso é uma verdade que não se pode apagar. Mas seu tamanho e sua trajetória estarão altivas nos livros de história. Os de Bolsonaro, não.


O Estado de S. Paulo: PT quer Aguinaldo Ribeiro como candidato de Maia

Presidente da Câmara promete anunciar hoje nome do deputado que terá o seu apoio; Baleia Rossi está no páreo

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A bancada do PT apoia o deputado Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB) para ser o candidato do bloco parlamentar à sucessão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A posição do partido será tomada em reunião marcada para hoje e pode mudar o quadro até então desenhado, tornando-se decisiva para a escolha de Maia, já que a bancada é a maior do bloco, com 54 deputados.

A definição do candidato que vai concorrer à eleição para o comando da Câmara com o apoio de Maia, em fevereiro de 2021, se arrasta há quase 20 dias e não são poucos os que reclamam da demora para o anúncio do nome que vai enfrentar Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão. Lira tem o aval do presidente Jair Bolsonaro.

Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a possibilidade de reeleição de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no último dia 6, há um sobe e desce de cotados e favoritos para a disputa que vai renovar a cúpula do Congresso. Além de Aguinaldo, que foi ministro do governo Dilma Rousseff e votou pelo impeachment em 2016, o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB, também está no páreo.

O anúncio do candidato deve ser feito hoje. Na segunda-feira, o PT, PDT, PSB e PC do B – todos integrantes do bloco de Maia – lançaram um manifesto no qual afirmam ser preciso derrotar Bolsonaro, chamado de “presidente criminoso”.

“Queremos derrotar Bolsonaro e sua pretensão de controlar o Congresso, um presidente criminoso, cujo afastamento é imperioso para que o Brasil possa recuperar-se da devastação em curso, e também queremos, neste momento, expressar nossa posição e defesa de temas relevantes que merecem a atenção e responsabilidade do Congresso Nacional”, diz o texto.

O documento defende posição contrária à privatização de estatais e à autonomia do Banco Central. Maia observou, porém, não haver acordo em torno da agenda econômica dentro do bloco, que também é composto por DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, Rede e PV.

“O perfil do candidato vencedor é ser (homem de) diálogo, que não afaste os parlamentares do gabinete ou da residência do presidente da Câmara e que mantenha independência como ponto principal de uma gestão para os próximos dois anos”, disse Maia. No último dia 18, ao anunciar a formação do bloco com 11 partidos, ele leu um documento, assinado por representantes de todas as legendas, contendo fortes críticas ao governo.

“Esta não é uma eleição entre o candidato A ou o candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente. Ser fiel à democracia ou ser aliado do autoritarismo. Ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo. Ser fiel aos fatos ou ser devoto das fake news”, sustentava um dos trechos.

Se o escolhido for Aguinaldo, o racha no Progressistas ficará escancarado, vez que Lira é o candidato do partido. Para ser eleito, o candidato precisa do apoio de 257 dos 513 deputados.


Ricardo Noblat: Baleia Rossi será o candidato de Maia a presidente da Câmara

Falta o PT decidir se o apoiará desde já ou só mais adiante

Luiz Felipe Baleia Tenuto Rossi, ou apenas Baleia Rossi como prefere que o chamem, 48 anos de idade, deputado federal no seu segundo mandato, ex-deputado estadual e ex-vereador de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, atual presidente nacional do MDB, será anunciado amanhã como o candidato do grupo montado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) para disputar a presidência da Câmara.

O grupo é formado por 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos de um total de 513. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO (8 deputados) e o PSOL (10 deputados). A disputa será contra o candidato de Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL)

Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia, o atual presidente da Câmara. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira. A eleição será realizada em 1º de fevereiro e, como o voto é secreto, haverá traições nos dois lados.

O PT decidirá hoje se apresentará um pré-candidato à presidência da Câmara só para marcar posição ou se declarará desde já apoio a Rossi. Já foi maior a resistência ao nome de Rossi dentro do PT. Em carta enviada, ontem, aos seus colegas de bancada, o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) defendeu o apoio do partido ao candidato de oposição ao governo Bolsonaro.

No último sábado, por mais de duas horas, Maia e Rossi conversaram em São Paulo sobre a sucessão na Câmara com o ex-presidente Michel Temer (MDB). Até aquele momento, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) ainda era uma opção ao nome de Rossi. Deixou de ser porque seu partido, por larga maioria de votos, apoiará Lira. A conversa de Maia com Temer sacramentou a escolha de Rossi.

Levou-se em conta também a pretensão do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) de ser candidato à presidência da Câmara. Ramalho já foi vice-presidente, é famoso pelos magníficos almoços e jantares que oferece no seu apartamento em Brasília, e calcula-se que possa atrair de 50 a 60 votos caso concorra. Mas dificilmente concorrerá contra o presidente do seu próprio partido.

A candidatura de Rossi reduzirá as chances de que seja lançado um nome do MDB para presidente do Senado. Dois nomes despontavam até então: Fernando Bezerra Coelho (PE), líder do governo no Senado, o que agradaria Bolsonaro, e Eduardo Braga (AM). Rara é a vez, como acontece agora no caso do DEM, de um partido presidir ao mesmo tempo a Câmara e o Senado.


Dora Kramer: Cai uma estrela

O PT reluta em aceitar que não é mais o dono da bola na esquerda

Das cinco fases do luto, a primeira é a negação, a segunda é a raiva e, reza a psicologia, antes da aceitação há que passar pelos estágios da negociação e da depressão.

A julgar pela reação de petistas ao desempenho ruim do partido nas eleições municipais, ainda prevalece entre eles a negação. Embora existam manifestações de raiva, tentativas de negociar com a situação adversa e os deprimidos (se houver) não mostrem a sua face, no conjunto o PT dá sinais de quanto é difícil aceitar que o partido perdeu relevância e já não é o dono da bola no campo de esquerda.

Ninguém, partido, político ou indivíduo, gosta de admitir derrotas, não obstante seja esse o ponto de partida para o início de qualquer recuperação. No terreno das autocríticas francas é que são semeadas as soluções. O PT vem se recusando a enfrentar seus fantasmas desde que se sentou no banco dos réus dos escândalos de corrupção, perdeu o comando do poder central e entrou em estado de desprestígio junto à sociedade.

De lá para cá recebeu inúmeros recados da população, sendo o mais recente — não necessariamente o último, se persistir no vacilo — das urnas municipais deste ano: ficou sem prefeitos nas capitais e reduzido a estar à frente de cidades correspondentes a 3% do eleitorado nacional. Essa proporção já foi de 19%, mais do que os cerca de 16% obtidos agora pelo PSDB, primeiro colocado nesse quesito entre os partidos.

“Nada, a não ser o autoengano, impede o partido de voltar a ter a importância que já teve na política”

E como reagiu o PT? Seu líder maior, Luiz Inácio da Silva, não deu uma palavra ao público. Relativamente recolhido esteve durante a campanha, completamente recolhido ficou ao menos até quatro dias após a divulgação dos resultados, quando escrevo. Lula não avalizou as manifestações dos defensores da autocrítica (os mesmos, habitualmente ignorados), tampouco disse qual a avaliação dele ou indicou o rumo a tomar.

Não houve tempo ainda para uma análise mais precisa? O argumento valeria caso a trajetória descendente não tivesse sido sinalizada há uns quinze anos e se aprofundado há pelo menos quatro, a partir do impeachment de Dilma Rousseff. A ida ao segundo turno em 2018 deve-se a uma situação anômala, a um pico de polarização que parece ter cansado o eleitor. A corda não cedeu, mas afrouxou-se. Voltará a ficar esticada quando o próximo processo eleitoral pegar velocidade, mas o PT não será mais o centro de gravidade.

Não ajudam a insistência no culto à personalidade de Lula, o discurso persecutório como forma de fugir às próprias responsabilidades e o aguardo de que o circo pegue fogo na esperança de, assim, voltar a brilhar num ambiente de conflito permanente sem precisar prestar contas internas e externas das mazelas que produziu para si.

Nada, a não ser a reverência ao autoengano, impede que o PT volte a ter o protagonismo de antes. Afinal, é como se diz: na política o fundo do poço tem mola. Mas ela só funciona mediante a rendição seguida de impulso e esforço.

Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716


Bernardo Mello Franco: O PT diante da derrota

Foi um tombo histórico. Pela primeira vez, o PT não conquistou a prefeitura de nenhuma capital. Um desempenho ainda pior que o de quatro anos atrás, quando só venceu em Rio Branco.

Em 2016, o desastre era inevitável. O partido havia acabado de enfrentar o impeachment de Dilma Rousseff e as prisões espetaculares da Lava-Jato. Agora não há como culpar os outros. O petismo sucumbiu aos próprios erros — e parte da sua cúpula ainda está em negação.

A presidente Gleisi Hoffmann tentou dourar a pílula. Exaltou a vitória em quatro cidades no segundo turno, embora a sigla tenha perdido em nove. Ela classificou o fiasco como uma prova de que a esquerda “sabe lutar”.

“Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota”, reagiu Alberto Cantalice, do diretório nacional do PT. Ele disse em público o que outros dirigentes repetem em privado: sem uma renovação radical, o partido arrisca perder de vez a ligação com o eleitor.

“O antipetismo ficou maior do que o petismo”, desabafa um ex-ministro. Ele considera que houve um “erro grave de leitura” em 2020. O PT apostou tudo na imagem desgastada de Lula, subestimando sua rejeição nos grandes centros. Além disso, recusou-se a apoiar outras siglas para lançar candidatos pouco competitivos.

Em São Paulo, a tática deu errado. Jilmar Tatto ficou em sexto lugar, com menos de metade dos votos do PSOL. Em Belo Horizonte, Nilmário Miranda também acabou em sexto, com 1% dos votos. No Rio, Benedita da Silva amargou a quarta colocação.

“Nós envelhecemos”, admite outro ex-ministro que participou da fundação do PT. Ele ressalta que as novas caras da esquerda emergiram fora da legenda: Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB. A exceção foi Marília Arraes, derrotada no Recife.

O veterano diz que o PT precisa se reciclar e entender as mudanças da sociedade. As fábricas se esvaziaram, os sindicatos perderam força e os trabalhadores foram empurrados para a informalidade. Um dos públicos a conquistar agora seriam os entregadores de aplicativos. “Nosso drama não é só eleitoral. Para sair do fundo do poço, temos que nos reconectar com o povo”, resume. 


El País: PT não conquista nenhuma capital pela primeira vez desde 1985 e volta ao tamanho ‘pré-Lula’

Com estratégia focada em chapas próprias e enfrentando a força do antipetismo, partido segue o encolhimento que já protagonizava desde 2016 e deverá enfrentar debate sobre futuro da sigla

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País

Partido dos Trabalhadores (PT) não elegeu nenhum candidato próprio nas capitais brasileiras nestas eleições até agora ― está ainda na disputa em Macapá, onde as eleições foram adiadas. É a primeira vez que isso acontece desde a redemocratização do país, em 1985. Em todo o Brasil, o partido conquistou apenas 183 prefeituras, enquanto outras siglas tiveram resultados muito superiores, como MDB e PP, que superaram as 600 prefeituras cada uma. Seguiu o encolhimento que já protagonizava desde 2016, quando fez 254 prefeitos e voltou, neste ano, a um tamanho semelhante ao que tinha antes dos Governos de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciados em 2003 - cerca de 200 cidades com comando do partido.

Por um lado, é uma amostra que o antipetismo segue como uma força política significativa. De outro, trata-se do resultado de uma estratégia que optou por, quase sempre, lançar chapas próprias em detrimento de alianças com outras siglas de esquerda. É o caso de São Paulo, onde o candidato Jilmar Tatto amargou menos de 10% dos votos no primeiro turno, assistindo à ida de Guilherme Boulos, do PSOL, à segunda rodada eleitoral. O resultado foi a fragmentação dos votos e a consolidação de partidos como o PDT e o próprio PSOL como novas opções ao eleitorado de esquerda.

Apesar do resultado das urnas, analistas políticos afirmam, no entanto, que é prematuro falar em uma derrocada política completa. O PT ainda demonstra alguma força. Foi novamente às urnas em 20 das 57 cidades que tiveram segundo turno ― todas elas com colégios eleitorais significativos. E venceu em quatro delas: Contagem, Juiz de Fora, Diadema e Mauá.

Na maioria das cidades, o PT apostou em candidaturas de ex-prefeitos que contavam com a marca da experiência. O objetivo do partido era retomar espaço dentre os 96 maiores colégios eleitorais brasileiros, grupo que inclui as 26 capitais de estados e 70 cidades de interior com mais de 200 mil eleitores, um contingente em que, há quatro anos, o partido venceu apenas em Rio Branco (AC). A maior cidade que será governada por um petista a partir do ano que vem é Contagem, a terceira maior de Minas Gerais, onde a ex-prefeita Marília Campos venceu o advogado Felipe Saliba (DEM) por margem estreita (51,35% dos votos).

“Não posso cravar uma derrocada do PT, mesmo porque esteve em 15 das 57 grandes cidades que tiveram segundo turno. Não é porque perdeu em 11 que vou desconsiderar esta força e dizer que vão esquecer o partido”, declara o cientista político Rudá Ricci. Feita esta ponderação, Ricci avalia que o partido sai diferente destas eleições e prevê que deverá enfrentar um embate interno pela mudança de perfil de seus filiados com mandato. Isso porque candidaturas que tiveram êxito nas urnas, como por exemplo em Contagem e Juiz de Fora, não representam a ala majoritária do PT, ligada ao ex-presidente Lula. “Acho que vai ter um embate interno muito importante porque a corrente majoritária saiu derrotada. Mudou a conjuntura política de quem tem mandato no PT. E não dá pra fazer mais a narrativa que coloca a culpa nos outros”, analisa Ricci.

Já Wilson Gomes, filósofo, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diz que “o PT estancou a sangria de 2016, mas teve uma grande perda nos dez maiores colégios eleitorais do país [São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Manaus, Recife, Porto Alegre e Belém]”, explica

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, tentou defender os resultados alcançados. Destacou que o PT venceu em quatro das 15 cidades que disputava neste domingo e que teve mais de 40% dos votos em nove delas. “Vencemos com o PSOL em Belém, lutamos ao lado de Boulos e Manuela. E o Brasil viu o q fizeram p/ barrar Marília em Recife. O PT segue junto com o povo”, acrescentou. E arrematou dizendo que o “segundo turno mostrou que a esquerda sabe lutar”.

Mudança de perfil

Neste ano, o eleitor que votou nas candidaturas de centro-esquerda não mais associou este campo diretamente ao PT, pontua Ricci. Este eleitorado votou de forma mais plural, em candidatos do PSOL e do PDT, por exemplo. “O PT vinha crescendo desde os anos 1980 e fez quatro vezes a presidência, então ofuscava estes partidos, que agora cresceram”, avalia. O cientista político vê uma transição se formando no campo de centro-esquerda brasileiro, cujas inovações estariam sendo protagonizadas especialmente por mulheres e suas candidaturas coletivas às câmaras municipais. O campo começa, ainda, a apresentar uma pluralidade de lideranças. Ele cita como exemplo nomes como Manuela D’Ávila (PCdoB)Guilherme Boulos (PSOL) e Marília Arraes (PT). Embora nenhum deles tenha vencido no segundo turno, ganharam destaque e foram competitivos. Seria, portanto, uma pluralidade de lideranças que o cientista político não vê no campo de centro-direita.

O Partido dos Trabalhadores começou a crescer nos anos 1980, mas a partir do final dos anos 1990 afastou-se do “modo petista de governar” no âmbito local, representado, por exemplo, pela ideia de um orçamento participativo, conselhos e inversão de prioridades. Com a chegada de Lula ao poder, em 2002, o partido montou um modelo de coalizão ampla que o aproximou do modelo de centro-direita que tradicionalmente domina as prefeituras brasileiras. Nunca chegou a ser um partido majoritário nas municipais, mas ganhou fôlego. Em 2008, fez 557 prefeitos e se tornou a terceira força política do país. Em 2012, chegou a 632 prefeituras. No âmbito nacional, se afastou das bases e dos movimentos sociais e foi se parlamentarizando, com deputados em postos de liderança interna. A partir de 2016, voltou a encolher nos municípios. “Lula não mudou essa lógica do centro-direita da política brasileira. Ele a reforçou. É como se tivéssemos uma cabeça de esquerda e o corpo todo de centro-direita”, compara Ricci. Esta trajetória, para o cientista político, soma uma sucessão de erros estratégicos.

Para Wilson Gomes, um dos maiores equívocos é a resistência a olhar o espelho. “O PT está muito envelhecido, sua cúpula está envelhecida, mas o partido não faz nenhuma mudança em sua autoimagem, nenhuma autocrítica, nada”, diz.

“O PT se tornou um partido com a lógica tradicional, mas que tinha relações com a base marginalizada. É um partido funcional do sistema, mas a base não romperia com este sistema porque tinha o PT e as instituições como canal. Chegou um momento que este canal ficou interditado”, aponta Ricci.Gomes, que considera que o “antipetismo foi o maior eleitor em 2016 e em 2018″, avalia que esse sentimento demonstrou ter ainda grande poder eleitoral em 2020.“Vimos, por exemplo, até um vídeo de Silas Malafaia apoiando João Campos, um candidato supostamente progressista, só para fazer oposição ao PT de Marília Arraes, mesmo em um estado em que ele não tem interesses diretos”.

Mas os resultados deste ano pouco apontam para a discuta de 2022, considera Ricci. “O eleitor está procurando outros caminhos”, analisa. Após uma decepção com o bolsonarismo, o eleitor médio voltou à moderação e ao conhecido e fez dos partidos de centro-direita os grandes vitoriosos desta eleição. “Ele está em transição, abandonando a extrema direita e o totalmente novo de 2016 e de 2018. Ao mesmo tempo, o campo do centro-esquerda também está tendo uma transição importante”, diz.

O antibolsonarismo cresceu e tornou-se uma força política. Prova disso é que 11 dos 13 candidatos apoiados pelo presidente da República não foram eleitos. “Mas isso não significa que o antipetismo diminuiu”, pondera Gomes. “A questão é que o que demorou 13 anos para chegar para o PT chegou em apenas dois para Bolsonaro. Não sei se o que mais prejudicou ele foram as eleições nos Estados Unidos ou as municipais brasileiras”, acrescenta.


Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"

Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”

Aiuri Rebello, El País

Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.

Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?

Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.

Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.

P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.

R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.

Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.

P. O bolsonarismo está morrendo?

R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.

P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?

R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.

Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.

P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?

R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.

P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?

R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.

O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.

P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?

R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.

P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?

R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.

P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?

R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.

P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?

R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.

P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?

R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.


Vera Magalhães: Eleitor rejeita 2º turno de 2018

Bolsonarismo e lulopetismo são as forças mais derrotadas nas eleições municipais

Dois anos depois, o eleitor do Brasil mostra ter virado a página da polarização que levou ao segundo turno entre Jair Bolsonaro e o PT, em 2018. O mapa que sai das urnas não tem, no comando das capitais, nenhum bolsonarista-raiz e nenhum petista, e isso não é pouca coisa, nem é incidental. Tanto o presidente quanto Lula e o PT acharam que bastava manter o script de dois anos atrás que os resultados se repetiriam. O presidente montou seu circo nas redes sociais, liberou a tropa para plantar fake news, fez pouco caso da necessidade de um partido organizado e escolheu a esmo candidatos para chamar de seus em todo o País, com base quase sempre numa identificação ideológica rasa. Usou e abusou de recursos públicos para bombá-los. Foi fragorosamente derrotado.

Lula e o PT acharam que 2020 seria a forra de 2016 e 2018. Finalmente o eleitorado reconheceria que a Lava Jato foi uma farsa, o impeachment de Dilma Rousseff, um golpe, e a condenação e prisão de Lula uma jogada para dar vitória a Bolsonaro, com a cumplicidade da imprensa. Ficou falando sozinho e foi superado por outras legendas de esquerda, que já saem das urnas avisando: não vai dar para querer cantar de galo hegemônico para 2022.

E se esses foram os grandes derrotados, quem vence? Os grandes partidos de centro e centro-direita, aquele mainstream humilhado nas urnas em 2018, curiosamente. DEM, PSDB e PSD tiveram importantes vitórias nas capitais mais relevantes, e o MDB deu uma boa desidratada, mas manteve sua capilaridade nacional e agora vê o Progressistas lhe fazer sombra nas cidades pequenas e médias.

Na direita, a implosão do PSL e o envelhecimento precoce do Novo deram espaço a siglas como o Patriota, que será disputado entre bolsonaristas e MBL. E a esquerda pós-Lula? Viverá discreta corrida entre Ciro Gomes e Guilherme Boulos pelo protagonismo. O primeiro construiu boas alianças com PSB e até o DEM e fincou bandeira no Nordeste. O segundo é a ave mais vistosa da esquerda, case de sucesso em renovação de discurso e identificação com os jovens, tendo mostrado caminho exitoso nas pautas sociais sem precisar passar pano na corrupção petista nem pagar tributo a Lula.


Luiz Carlos Azedo: Com derrota do PT e aliados de Bolsonaro, eleição aponta despolarização

Resultado das urnas mostra a resiliência do sistema democrático, apesar das ameaças de retrocesso autoritário. Pleito impõe derrota ao PT, que não obteve prefeitura de nenhuma capital, e dificulta reeleição de Bolsonaro. MDB sai fortalecido

Um balanço do segundo turno das eleições municipais não altera as tendências apontadas pelo primeiro: houve uma despolarização política, que mostra a resiliência do sistema democrático brasileiro, apesar das ameaças de retrocesso autoritário observadas em alguns momentos recentes da vida nacional. Destaque para o fato de que a apuração dos pleitos não teve os atrasos do primeiro turno, o que enfraquece as críticas ao sistema de urnas eletrônicas, protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro. Os partidos de centro-esquerda e centro-direita saíram fortalecidos: MDB, PSDB, DEM e PP, principalmente, somando novas capitais ao bom resultado obtido no primeiro turno.

Grande derrotado no primeiro turno, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu se recuperar no segundo, apesar da vitória de alguns poucos aliados, como Delegado Pazolini (Republicanos), em Vitória. Seus aliados mais importantes, Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro, e Capitão Wagner (Pros), em Fortaleza, perderam. Engana-se, porém, quem imagina que o chefe do Executivo virou um pato manco. Tendo o governo federal sob seu controle, ele pode mitigar essas derrotas. E continuar sendo o mais forte candidato a uma vaga no segundo turno das eleições de 2022.

Ilustração
Ilustração(foto: Editoria de ilustração)

A reeleição líquida e certa de Bolsonaro, porém, foi o sonho de uma noite de verão. Teria de fazer tudo certo e contar com muita sorte até lá, o que não é muito provável, por causa do histórico de trapalhadas na Presidência e porque as circunstâncias (crise sanitária, volta da inflação, desemprego em massa) ainda são muito desfavoráveis para o seu governo. De qualquer forma, são potenciais aliados de Bolsonaro os prefeitos eleitos em Rio Branco, Tião Bocalom (PP); Manaus, David Almeida (Avante); João Pessoa, Cícero Lucena (PP); Belo Horizonte, Alexandre Kali (PSD); e Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD). Sem partido, Bolsonaro é assediado pela cúpula do PP para que dispute a reeleição pela legenda; já o PSD pode derivar em direção à oposição.

A esquerda

No outro extremo do espectro político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sai enfraquecido do segundo turno, que não confirmou a tendência de recuperação apontada no primeiro. As derrotas de Marília Arraes, no Recife, e de João Coser, em Vitória, deixaram o partido sem nenhuma prefeitura de capital. Além disso, a emergência da liderança de Guilherme Boulos, na disputa de segundo turno em São Paulo, e a vitória de Edmilson Rodrigues, em Belém — ambos do PSol —, quebram o hegemonismo do PT no campo da esquerda.

O triunfo de João Campos (PSB), no Recife, em eleição disputadíssima, na qual a hegemonia do clã Arraes esteve ameaçada, deixará sequelas para o relacionamento do PSB com o PT. O maior ponto de contato entre os dois partidos foi o apoio do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, ao candidato do PT em Vitória, mas a derrota do petista João Coser inviabiliza esse eixo de aliança. Sem um nome próprio para disputar a Presidência, o PSB deriva na direção de Ciro Gomes, o pré-candidato do PDT, um dos grandes vitoriosos do segundo turno no campo da esquerda. Venceu em Fortaleza, com Sarto Nogueira, e em Aracaju, com Edvaldo Nogueira. Em ambas as capitais, sinaliza o sistema de alianças que pretende construir para sua candidatura, mais amplo do que o do PT, que está perdendo espaço, também, para o PSol.

O centro

Já o MDB obteve um resultado espetacular no segundo turno, elegendo Arthur Henrique, em Boa Vista; Emanuel Pinheiro, Cuiabá; Maguito Vilela, Goiânia; Sebastião Melo, Porto Alegre e Dr. Pessoa, Teresina. Com isso, em número de prefeituras, ultrapassa o DEM e o PSDB, que elegeram quatro prefeitos de capital, cada uma. O MDB ainda é o fiel da balança no Congresso, mas não tem um projeto próprio para a Presidência. Em contrapartida, pela projeção estratégica, as vitórias de Bruno Covas, em São Paulo, e Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, desequilibram o jogo a favor do PSDB e do DEM, respectivamente.

O PSDB venceu, também, em Natal, com Álvaro Dias; em Palmas, com Cinthia Ribeiro; e Porto Velho, com Hilton Chaves. A manutenção da Prefeitura de São Paulo, porém, por causa de sua importância, fortalece a candidatura do governador tucano João Doria à Presidência. Já a vitória de Eduardo Paes, na Prefeitura do Rio de Janeiro, coroa um desempenho excepcional do DEM que, no primeiro turno das eleições, conquistou as prefeituras de Florianópolis, com Gean Loureiro; Curitiba, Rafael Greca; e Salvador, Bruno Reis. A cúpula da legenda namora a candidatura à Presidência do apresentador Luciano Huck, cuja filiação à legenda disputa com o Cidadania.

Eleitos no 1º turno

Belo Horizonte
Alexandre Kalil (PSD) 63,36%

Salvador
Bruno Reis (DEM) 64,20%

Natal
Álvaro Dias (PSDB) 56,58%

Campo Grande
Marquinhos Trad (PSD) 52,58%

Florianópolis
Gean Loureiro (DEM) 53,46%

Curitiba
Rafael Greca (DEM) 59,74%

Palmas
Cinthia Ribeiro (PSDB) 36,24%


Ascânio Seleme: A hora de Boulos

O perigo para ele é ser tutelado pelo PT

Uma grande novidade pode ocupar o cenário político nacional no próximo domingo. Guilherme Boulos, que há dois meses era apenas um dos diversos postulantes ao principal cargo em disputa nas eleições municipais deste ano, transformou-se na sensação da campanha e, em três dias, pode perfeitamente ser eleito prefeito de São Paulo. Votos para isso ele parece ter reunido, de acordo com as pesquisas. O importante a discutir agora é se esta é a melhor hora para Boulos.

A simples presença do candidato do PSOL nesta altura da campanha já areja o ambiente bastante intoxicado desde a eleição do presidente de extrema-direita. Embora o centro e a centro-direita tenham saído dominantes do primeiro turno, diminuindo o tamanho e o espaço de Jair Bolsonaro, a principal joia da coroa está em disputa entre um candidato de centro-esquerda e um de esquerda. Não há como negar, a prefeitura de São Paulo é a mais importante do país e tem orçamento e receita maiores que pelo menos uma dúzia de estados brasileiros.

Politicamente, o prefeito de São Paulo é mais visível e mais preponderante do que qualquer governador, mesmo os de Rio e Minas. Ou alguém acha que Cláudio Castro e Romeu Zema têm um futuro tão amplo quanto Bruno Covas? Tomem a trajetória de João Doria como exemplo. Por isso, o caminho que se abre para Boulos é enorme. Se vencer a eleição, ganha uma projeção que nem os maiores líderes de seu partido jamais conseguiram alcançar.

O problema é como administrar a vitória. Como governar a maior cidade do país mantendo relevância e sem queimar capital político. A primeira questão para Guilherme Boulos, no caso de ser eleito, é a montagem do governo. Quem ele trará para a administração municipal para encaminhar as propostas que apresentou ao eleitor durante a campanha. Como seu partido é pequeno, terá de buscar quadros fora do PSOL, principalmente no PT. E essa pode ser a primeira armadilha que vai enfrentar.

O perigo para Boulos é ser tutelado pelo PT, ou pelo menos ser visto de fora dessa maneira. O risco de ser considerado um braço político do partido de Lula e do próprio ex-presidente é enorme. Não há como governar sozinho, claro, não se toca uma cidade como São Paulo sem um imenso anteparo político. E daí pode nascer a percepção de que Boulos é apenas um novo líder do PT, desidratando o PSOL, que nasceu justamente porque um grupo de petistas discordou dos métodos do partido e se afastou da onda de escândalos daquela era.

A crise econômica que o mundo atravessa em razão do coronavírus é outro problema que pode fazer fracassar um hipotético governo Boulos. Se o programa de governo do candidato exige gastos muito acima do que o município pode arcar em tempos normais, imagine nesta época de vacas magras. E aí cresce a possibilidade de o novo prefeito acabar traindo, mesmo que involuntariamente, seus compromissos de campanha, suas promessas eleitorais, decepcionando os eleitores e enfraquecendo seu partido.

Talvez, e você pode discordar inteiramente, seja melhor para Boulos perder esta eleição. Da mesma forma que foi bom para Lula ter perdido para Fernando Collor em 1989, ele próprio já reconheceu isso. Se sair da eleição com 45% dos votos válidos, como mostrou a última pesquisa Datafolha, se cacifará para se tornar um grande nome em 2022. Como sua curva é ascendente, pode encostar ainda mais em Covas, fortalecendo e amadurecendo a si próprio e ao PSOL, como Lula e o PT também amadureceram.

Mas a alternativa da derrota também guarda um problema. Será que Lula vai permitir que uma luz brilhe mais forte que a sua ou do seu partido? Com todo o poder que tem sobre o PT, Lula não evitou a candidatura de Jilmar Tatto, mesmo quando Boulos já era a alternativa viável. Por quê? Porque não quis. Alegar democracia interna é bobagem. Em 2018, rifou Marília Arraes em Pernambuco, atropelando o diretório regional. Como não dá para confiar em Lula, quem sabe seja esta mesmo a melhor hora para Guilherme Boulos, apesar de todos os riscos.