protestos
A política da destruição
Merval Pereira / O Globo
Foto: Isac Nóbrega/PR
Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra a corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído desde a redemocratização do país, transformando-o em uma arena regressiva guiada pela incitação ao ódio.
Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, e a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.
Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já apresentados, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.
O fato é que o governo Bolsonaro vem se mostrando tão profundamente regressivo, tem feito com que o país retroceda tanto em termos civilizacionais, que se mostrou mais danoso do que qualquer outra experiência na democracia brasileira. Nascido da democracia, o bolsonarismo representa a destruição da própria democracia, e a aula inaugural do Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR), com um ensaio sobre a destruição na era bolsonarista, pelo cientista político Renato Lessa, se debruçou sobre esse fenômeno.
No campo da língua, ele cunha o conceito “palavra podre” para definir a linguagem como espaço de intervenção política. O indizível da véspera “passa a ser a dicção regular e quase obrigatória”. Exemplo execrável dessa intervenção destruidora na língua é a definição de uma bolsonarista nas redes sociais: “Nós não conhecemos limites”. Não é uma frase ofensiva, mas destrói uma premissa fundamental que nos conecta na sociedade. A palavra podre, define Lessa, infecta o espaço semântico, e a República passa a usar essa linguagem. A palavra, lembra Lessa, é premissa do ato.
Daí a destruição dos espaços culturais, do arcabouço da educação brasileira. Segundo Hobbes, citado por Renato Lessa, o reconhecimento da centralidade da vida é a justificativa para a existência do Estado, a vida passa a ser uma figura de direito público. “Mortes violentas e precoces são evitáveis”. O que o leva a falar da performance do governo Bolsonaro no combate à pandemia da COVID-19.
A ideia de que o indivíduo tem o direito de não usar máscara, de contaminar os outros, de se contaminar, é uma ressignificação da ideia de liberdade, denotando a impossibilidade de ver a liberdade como um direito público. “Análogo ao direito de desmatar, de expulsar as populações originárias, de tratar homossexuais, mulheres e negros da maneira “como sempre foram tratados”, naturalmente. Seria a “expressão da alma brasileira expontânea”. A mesma lógica, segundo Renato Lessa, se aplica sobre o direito de território, a possibilidade de lidar com a terra fora do direito público, o desmonte dos regramentos legais existentes. Por último, Renato Lessa destaca como um aspecto grave a desfiguração da democracia na desconstituição dos direitos básicos ao trabalho, à educação e à cultura.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/
Protestos resgatam bandeira e camisa da seleção, símbolos bolsonaristas
Em SP, no sábado (24), integrantes do grupo chamado Bloco Democrático foram orientados a usar o verde-amarelo com o intuito de ofuscar a prevalência vermelha, cor ligada à esquerda
Roberto de Oliveira, da Folha de S. Paulo
Antes predominantemente vermelha, a quarta rodada de manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro ganhou novas cores na tarde de sábado (24), na avenida Paulista. Faixas, bandeiras do Brasil e camisas da seleção, espécie de uniforme bolsonarista, foram resgatadas pelos participantes.
Com duas faixas verdes nas laterais e uma amarela no centro, uma bandeira ocupava meio quarteirão da avenida, via que vem concentrando os atos pró-impeachment.
PROTESTOS CONTRA BOLSONARO EM BRASÍLIA
Ela foi estendida logo atrás de um caminhão, estacionado em frente ao Shopping Center 3, que reuniu integrantes de um grupo que se apresenta como Bloco Democrático.
Participam desse grupo representantes de partidos como PSDB, PC do B, Cidadania, PSB, PDT, Rede e Solidariedade, além de organizações estudantis e sindicais assim como movimentos liderados pelo Acredito e pelo Agora!.
Estiveram por lá o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP) e Bruna Brelaz, primeira presidente negra eleita da UNE (União Nacional dos Estudantes), entre outros.
Vice-presidente municipal do PSB, Helvio Moisés, 66, explica que o uso do verde-amarelo foi uma estratégia para contrapor à predominância vermelha nas manifestações.
“Quem subtraiu a bandeira para si foi a direita durante as manifestações pró-impeachment da ex-presidente Dilma [que ocorreram em 2016]. Nós precisamos retomá-la já.”
Vestindo a camisa da seleção, Rodrigo Marques, 40, do diretório municipal do PSDB, afirmou que a camisa é do povo brasileiro. “Nem a bandeira nem a camisa da seleção pertencem ao bolsonarismo. Essa manifestação é prova disso. Todos aqui somos contra Bolsonaro, em defesa da vacinação e da vida”, disse ele.
Tanto manifestantes ligados a partidos de centro quanto de esquerda ostentavam a bandeira brasileira. Vale registrar, todavia, que a presença da camisa da seleção era mais vista entre integrantes do centro no chamado Bloco Democrático.
“A pauta é a mesma”, disse o analista de sistemas Adriano da Silva, 35. “Não importa a bandeira partidária, mas, sim, a do Brasil”, afirmou.
PROTESTO CONTRA BOLSONARO NA AVENIDA PAULISTA (SÃO PAULO)
Filiado ao PT, Silva disse que era a primeira vez que participava de um ato em defesa do impeachment de Bolsonaro. Ele acompanhou o caminhão do Bloco Democrático. “Mesmo porque com ele tem muitos partidos de esquerda.”
Com a bandeira brasileira nas costas, Ana Maria Rodrigues, 74, diretora da CMB (Confederação das Mulheres do Brasil), apostou no uso da peça com o propósito de agregar “uma ampla frente para derrotar Bolsonaro”.
“O uso da bandeira é um resgate dos símbolos nacionais. Precisamos dialogar com todos os setores da sociedade. A bandeira e a camisa podem somar. A luta é uma só: derrubar Bolsonoro e salvar a democracia.”
De camiseta, máscara e bandeira vermelha do CMP (Central de Movimentos Populares), Genilce Gomes, 50, ainda encontrou espaço para encaixar a bandeira brasileira no topo do mastro que carregava.
“A bandeira, a camisa da seleção e o hino são símbolos nacionais que foram sequestrados pela direita radical”, disse.
Simpatizante do PT, Genilce falou que é hora de recuperar esses símbolos, “sequestrados pelo bolsonarismo”, por meio de um gesto democrático “contra a barbárie”.
Mesmo se dizendo “vermelha de corpo e alma”, ela defende a presença da bandeira brasileira em manifestações contra o governo Bolsonaro para “fortalecer outras colorações”.
“Nossa bandeira representa a população. Sua exibição em atos democráticos tem como principal intuito resgatar o país como uma só nação.”
Para Claudia Rodrigues, 49, presidente da UBM (União Brasileira de Mulheres), movimento, segundo ela, apartidário, emancipacionista e não sexista, a esquerda teve papel muito importante nas primeiras manifestações —e segue tendo.
Mas os protestos precisam conquistar “a mente e o coração dos trabalhadores”. Na visão dela, o uso do verde-amarelo pode fortalecer o que ela chama de “alianças táticas.”
FONTE:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/ato-contra-o-presidente-resgata-bandeira-brasileira-e-camisa-da-selecao-simbolos-bolsonaristas.shtml
Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil
Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.
Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.
Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.
Por outro lado, é por esse mesmo Congresso – mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.
O reconhecimento concomitante das virtudes e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados, assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional tem erguido à barbárie.
Essa complexidade exige condução cuidadosa. Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação, digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos inimigos comuns.
Veja-se, por exemplo, a questão do fundo financiador da atividade eleitoral dos partidos. Essa questão é mais complexa e delicada do que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições. Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão, será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada pelo financiamento empresarial. Portanto, é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e deve discutir é seu montante.
Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e, também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma fonte do submundo. O preço a pagar será maior.
Em resumo: democracia não sai grátis, nem barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a, por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto, porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento. O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.
Enquanto os olhares da sociedade são desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional da política.
Os pormenores desse projeto e seus previsíveis efeitos requerem nova coluna. Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário – possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de 2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.
A aprovação dessa matéria, tida como provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017 exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam sendo, simultaneamente, contemplados.
Mas havia uma cobrança de dimensão eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que havia votado o impeachment de Dilma Rousseff. Então, tome pedras, vindas de todos os lados. Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará, exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina. Se passar, será a mais nova cria com digitais e DNA da "nova política" vencedora em 2018.
O sistema político brasileiro - em sua ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/07/paulo-fabio-dantas-neto-vitorias.html
O Estado de S. Paulo: Câmara aprova projeto que flexibiliza regras de licenciamento ambiental
André Borges, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O projeto da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental foi aprovado na madrugada desta quinta-feira, 13, pelo plenário da Câmara dos Deputados. Com maioria na Casa, a bancada ruralista aprovou o texto substitutivo do Projeto de Lei 3.729, de 2004, relatado pelo deputado federal Neri Geller (Progressistas-MT), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
A proposta do texto principal foi aprovada por 300 votos a favor, ante 122 contra. Nesta quinta-feira, 13, devem ser votados os destaques, como são conhecidas as mudanças específicas propostas pelas bancadas partidárias. Depois, o texto ainda precisa passar pelo Senado. Se os senadores fizerem mudanças no texto, o PL volta a ser debatido na Câmara, mas apenas sobre as eventuais alterações. Se não houver alterações e for aprovado no Senado, seguirá para sanção presidencial.
Entre as principais mudanças, está a dispensa de licença para projetos como obras de saneamento básico, manutenção em estradas e portos, distribuição de energia elétrica com baixa tensão, parte das atividades agropecuárias, entre outros. A nova modalidade também repassa a Estados a prerrogativa de analisar os empreendimentos que precisam de aval para liberação, cria uma espécie de licença autodeclatória para alguns casos e permite a unificação de etapas do licenciamento.
A aprovação causou indignação entre organizações ambientais, cientistas e especialistas no setor. O texto final foi encaminhado ao plenário sem ter passado por audiência pública. Não houve espaço para acatar nenhuma recomendação da ala ambiental, que alertou sobre vulnerabilidades no texto final. Especialistas no setor e juristas preveem ações judiciais, com desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF), diante de possíveis inconstitucionalidades e descumprimentos de previsões da legislação ambiental.
Já a Frente Agropecuária defendeu o texto e culpou o modelo atual por obras paradas e excesso de burocracias. Disse ainda, ao longo do dia, que “o excesso de burocracia prejudica o setor produtivo e não garante a proteção ao meio ambiente”. Na Câmara, defensores da proposta como o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) também disseram que modelos semelhantes de licenciamento já são adotados em alguns Estados.
Ambientalistas tentaram tirar texto da pauta
Com 216 deputados e oito senadores, a Frente Parlamentar Ambientalista declarou “profunda indignação”. “É inadmissível que uma proposta como essa seja aprovada pela Câmara dos Deputados diante de tantos desastres ambientais vividos recentemente no país”, afirmou a Frente, em nota.
Os parlamentares ambientalistas afirmam que as tragédias de Mariana e Brumadinho (MG) deveriam ser exemplos da importância de debates aprofundados com a sociedade sobre o aprimoramento da ferramenta. “O meio ambiente e a vida dos povos indígenas e originários encontram-se, mais do que nunca, ameaçados pela política da ‘boiada livre’. Para a Frente, é “mais uma derrota do Brasil não somente em nível nacional, mas também internacional”. Coordenador do grupo, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) afirmou que se trata do fim do licenciamento ambiental no País e da “pior versão” da proposta ao longo de 17 anos de tramitação.
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, afirma que a Câmara votou “a Lei da Não Licença e do Autolicenciamento”. “Somando-se as isenções de licença com o autolicenciamento em que foi transformada à licença por adesão e compromisso, sobra pouca coisa para licenciar. Consagra-se o ‘liberou geral’. Não é o licenciamento ambiental que trava os investimentos no País. É a falta de planejamento, a visão simplista de curto prazo, a busca por lucro fácil, a ignorância, a corrupção”, comenta. “O mundo debatendo a retomada econômica lastreada em uma perspectiva orientada para as questões ambientais e climáticas e a Câmara optando pelo retrocesso”, acrescenta Suely.
Desde a semana passada, quando veio à tona o texto final que seria apresentado pelo relator, centenas de organizações ambientais, especialistas no setor, acadêmicos e parlamentares se mobilizaram para tentar demover o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), da ideia de levar uma proposta ao plenário que não chegou a passar por audiência pública. Não houve negociação. Lira, que já havia assumido o compromisso de pautar o assunto apoiado pela Frente Agropecuária, confirmou que levaria a pauta adiante.
Neri Geller disse, durante a sessão plenária, que apresentou um relatório “equilibrado” e que não traz “uma única vírgula” que afronte o meio ambiente. Afirmou ainda que as regras hoje criam insegurança jurídica e provocam fuga de investimentos do Brasil. A FPA, da qual ele é vice-presidente, aponta excesso de burocracia no modelo atual e divulgou informações para declarar que o licenciamento ambiental é responsável pela paralisação de mais de 5 mil obras em todo o País, entre rodovias, hidrovias e ferrovias.
Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), porém, mostrou que o licenciamento ambiental não respondia por mais do que 1% das obras do País. Foram analisadas mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais. Menos de 200 projetos tinham paralisações associadas a dificuldades de obter licenciamento.
O próprio ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, chegou a afirmar, em entrevista ao Estadão, que o motivo das paralisações não é o licenciamento em si, mas a péssima qualidade dos estudos apresentados pelas empresas e órgãos do governo.
“É preciso fazer um mea-culpa sobre isso e reconhecer que não vínhamos fazendo a nossa parte tão bem quanto o necessário. Estávamos cobrando do órgão ambiental uma velocidade no licenciamento, mas deixávamos de fazer a nossa parte”, disse Freitas ao Estadão, em fevereiro. “Muitas vezes, o licenciamento trava por causa da baixa qualidade desses estudos. A gente estuda mal e, de repente, oferece um produto ruim para o órgão de meio ambiente analisar.”
Texto prevê dispensa de licença para parte das atividades econômicas
Uma das principais mudanças trazidas pelo PL diz respeito à dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Outros 13 tipos de atividades ficam isentas da obrigação de serem licenciadas. São projetos como obras de transmissão de energia elétrica; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; obras de manutenção de infraestrutura em instalações preexistentes, como estradas, além de dragagens (retirada de sedimentos) de rios; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil.
Outra mudança criada pelo projeto de lei prevê o enfraquecimento de regras nacionais que hoje vigoram sobre o setor, repassando a governos estaduais e municípios a atribuição de definir qual tipo de empreendimento precisará de licença ambiental, além do tipo de processo do licenciamento que é aplicado em cada caso.
Entenda mais alguns impactos do projeto de lei:
Nacionalização de Licença por Adesão e Compromisso (LAC)
O texto propõe a adoção de licenças autodeclatarórias para todo o País. Esse instrumento da LAC já existe em alguns Estados, mas é aplicado apenas a determinados empreendimentos, e com conhecimento prévio da área ambiental e um termo de referência do que se pretende. A crítica é que, da forma como está estabelecida, a LAC será convertida em um licenciamento automático, com simples declaração pela internet, sendo submetida apenas a uma análise por amostragem.
Acesso irrestrito a terras indígenas e quilombolas em fase de estudo
O texto exclui da avaliação de impacto e da adoção de medidas preventivas as terras indígenas não homologadas e as terras quilombolas impactadas por empreendimentos. Hoje, a Constituição prevê que terras indígenas e quilombolas que estejam em fase de demarcação, ou seja, que ainda aguardam para serem tituladas, devem ser igualmente consideradas, como aquelas que já tiveram esses processos concluídos, com a homologação e titulação pelo governo.
Restrição a condicionantes sociais
O projeto limita profundamente o alcance de medidas de redução de impactos causados por projetos. Medidas como a instalação de escolas públicas e postos de saúde, que muitas vezes são incluídas em ações de mitigação e compensação, ficam mais restritas, limitando-se a temas especificamente ambientais, apesar de uma série de impactos sociais que é gerada por empreendimentos.
Enfraquecimento do ICMBio
O Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), órgão que hoje tem poder de veto a empreendimentos que venham a impactar as unidades de conservação federal, tem essa atribuição retirada, a partir do projeto de lei. O PL altera regras do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, acabando com o poder de veto do Instituto Chico Mendes, limitando sua atuação a uma posição consultiva. / COLABOROU EDUARDO GAYER
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,camara-aprova-projeto-que-afrouxa-regras-de-licenciamento-ambiental,70003713454
Financial Times: Amazon derrota movimento trabalhista e Biden nos EUA
Funcionários rejeitam sindicalização inédita no país; presidente fez campanha
Dave Lee, Financial Times
Trabalhadores em um centro de distribuição da Amazon em Bessemer, no estado do Alabama, votaram por larga maioria contra a sindicalização, num forte golpe contra o movimento trabalhista nos Estados Unidos e suas esperanças de conquistar uma base na gigante do comércio eletrônico.
A campanha para criar o primeiro sindicato da Amazon nos Estados Unidos atraiu a atenção do mundo todo e o apoio do mais alto cargo político do país, mas por final falhou em causar impacto onde realmente importava: nas urnas.
Cerca de 55% dos quase 6.000 trabalhadores do centro de distribuição votaram, pelo correio devido às restrições da pandemia. Em uma apuração realizada por videoconferência para um público de mais de 200 advogados, observadores e jornalistas, o "não" teve 1.798 votos, contra 738 em apoio à sindicalização.
Apesar da dura derrota, representantes do sindicato mantiveram uma posição firme, dizendo que o voto em si já foi uma conquista histórica, a primeira vez que toda uma instalação na terra natal da Amazon teve essa oportunidade.
O Sindicato de Varejo, Atacado e Lojas de Departamento disse que vai apelar do resultado, citando, segundo a entidade, esforços numerosos e flagrantes da empresa para influenciar a votação de forma ilegal.
"A Amazon sabia muito bem que a menos que fizesse o possível, até mesmo atividade ilegal, seus funcionários continuariam apoiando o sindicato", disse Stuart Appelbaum, presidente da entidade.
Em um comunicado, a Amazon agradeceu a seus empregados. "É fácil prever que o sindicato dirá que a Amazon ganhou esta eleição porque intimidamos os empregados, mas isso não é verdade", afirmou a companhia em um blog na sexta-feira (9).
"Nossos empregados ouviram muito mais mensagens anti-Amazon do sindicato, de políticos e canais de mídia do que ouviram de nós. E a Amazon não venceu —nossos empregados é que decidiram votar contra a entrada num sindicato."
Como quer que a caracterizem, a vitória da companhia dá continuidade a uma série de esforços para evitar a sindicalização nos EUA. O depósito em Bessemer foi a primeira instalação no país a chegar ao ponto de realizar uma votação formal e sancionada, depois de ter indicações de apoio suficientes no final do ano passado.
Apesar da derrota sindical, a batalha poderá se arrastar por muitos meses. A apelação será ouvida primeiro por um escritório local do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB na sigla em inglês) e poderá acabar sendo decidida pelos membros do conselho, indicados politicamente em Washington, disse John Logan, professor de estudos do trabalho e do emprego na Universidade Estadual de San Francisco.
"É concebível que quando chegar ao conselho completo do NLRB poderá ter uma maioria democrata", disse Logan. O mandato de William Emanuel, um nomeado republicano, deverá terminar em agosto.
Em março, o presidente Joe Biden indicou forte apoio aos trabalhadores, pedindo que a Amazon se afastasse para permitir que os trabalhadores fizessem uma "opção livre e justa". Logan descreveu os comentários como "a declaração mais pró-sindicatos já feita por um presidente em exercício".
O governo Biden está apoiando a Lei de Proteção ao Direito de se Organizar, que busca tornar ilegais muitas das táticas adotadas pela Amazon durante a campanha. A Lei PRO, como é conhecida por sua sigla em inglês, foi aprovada na Câmara dos Deputados no início deste ano.
"Os trabalhadores americanos não terão acesso constante a eleições sindicais livres, justas e seguras enquanto não reforçarmos as leis trabalhistas do nosso país", disse o deputado Bobby Scott, da Virgínia, presidente da Comissão de Educação e Trabalho da Câmara, depois da votação na Amazon.
"Não podemos continuar permitindo que os patrões interfiram na decisão dos trabalhadores de formar ou não um sindicato. O Senado precisa aprovar a Lei PRO."
A campanha também obteve o apoio do movimento Black Lives Matter e foi observada atentamente por outras importantes figuras de grupos de direitos civis. A força de trabalho do centro de distribuição de Bessemer é mais de 75% afro-americana.
"Os trabalhadores sentiam que não tinham voz e não sabiam como se manifestar", disse Marc Bayard, diretor da Iniciativa de Trabalhadores Negros no Instituto para Estudos de Políticas em Washington. "Esses trabalhadores mostraram um caminho para o sucesso."
A apelação do sindicato vai se concentrar no fato de que uma caixa de correio foi instalada no estacionamento do centro, à vista de câmeras de segurança, medida que, segundo representantes, se destinou a intimidar os empregados quando depositassem seus envelopes.
E-mails obtidos pelo sindicato pareciam mostrar que a Amazon tinha pressionado o Serviço Postal dos EUA para instalar a caixa antes do início da votação. Depois ela foi retirada.
A Amazon disse anteriormente que foi "uma maneira simples, segura e totalmente opcional de facilitar a votação pelos funcionários, nem mais nem menos".
Outras queixas do sindicato incluem uma campanha de reuniões de "audiência cativa", durante as quais a empresa advertiu os empregados contra a sindicalização, assim como a exibição de cartazes contra o sindicato no centro de distribuição —alguns nas cabines dos banheiros.
No início da campanha, o sindicato chamou a atenção para alterações nos semáforos de trânsito diante do edifício, que deram aos sindicalistas menos tempo para falar com os empregados quando saíam do trabalho. A Amazon disse que a medida visava reduzir o congestionamento.
O sindicato UNI Global, que representa mais de 900 sindicatos setoriais, disse que o esforço em Bessemer criou uma discussão de alto nível sobre as condições de trabalho na Amazon, cuja força de trabalho inchou em mais de 500 mil pessoas desde o início da pandemia, e hoje totaliza 1,3 milhão em todo o mundo.
"O 'efeito Bessemer' está eletrizando o movimento trabalhista, inspirando ações de Mianmar a Munique a Montevidéu", disse Christy Hoffman, secretária-geral do UNI.
"Enquanto a votação acontecia, houve greves na Alemanha e na Itália, e um novo esforço maciço para alcançar trabalhadores da Amazon foi lançado no Reino Unido. Ele continuará dando esperança aos trabalhadores, que exigem ter voz no trabalho e um emprego com dignidade.
"Os empregados no Alabama —e trabalhadores da Amazon em toda parte— devem manter suas cabeças erguidas e os olhos fixos na vitória. Unidos, ela é inevitável."
Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves
Folha de S. Paulo: Julgamento de oficial que matou Floyd pode ser ponto de virada para polícias nos EUA
Americanos precisam ver que sistema funciona, diz ex-policial e professor de direito penal
Fernanda Mena, Folha de S. Paulo
Na avaliação assumidamente otimista de Kirk Bulkhalter, o julgamento de Derek Chauvin, o policial que sufocou George Floyd com o joelho diante de câmeras em maio do ano passado, pode ser o início de um processo de reconstrução da confiança dos norte-americanos em suas polícias.
“Nunca vi um chefe ou comandante de polícia testemunhar contra um de seus policiais num processo criminal. E esse pode ser um começo”, avalia Bulkhalter, que é professor de direito penal da New York Law School (NYLS) depois de 20 anos de experiência no departamento de polícia de Nova York (EUA), para onde foi seguindo os passos do pai.
“Mais do que ver Derek Chauvin punido, as pessoas precisam ver o sistema funcionando, a responsabilização e as mudanças sendo implementadas.”
Bulkhalter dirige o The 21st Century Police Project (projeto polícia do século 21), um programa de reforma policial e de aproximação entre departamentos de polícia e comunidades diversas às quais devem prestar serviço.
Ele participou nesta sexta (9) do webinar “Disparidades Raciais e Reforma Policial nos EUA e no Brasil”, promovido pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP.
O encontro teve abertura do diretor da FGV Direito SP e colunista da Folha, Oscar Vilhena, e da adida cultural do consulado americano em São Paulo, Madelina Young-Smith. O debate, além de Bulkhalter, incluiu a coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o pesquisador do núcleo, Marta Machado e Felipe Freitas. A mediação foi de Thiago Amparo, coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito e colunista da Folha.
Desde 2012, a confiança da população americana nas forças de segurança e nos meios de sua responsabilização por abusos e crimes vem sendo traída. O ano marcou o início de uma triste série de escândalos envolvendo o assassinato de jovens negros por vigilantes e policiais, depois inocentados nos tribunais, e pavimentou o caminho para o surgimento do Black Lives Matter (BLM).
O movimento que denuncia a brutalidade policial contra pessoas negras tomou a dianteira na onda de protestos que eclodiram depois do assassinato de Floyd, apoiando pedidos de redução orçamentária para as corporações, o chamado “defund”.
“Hoje, os departamentos de polícia e o BLM estão mais apartados dos que nunca, e sem perspectiva de aproximação”, afirma Bulkhalten.
Para ele, o principal efeito dessa movimentação antirracista foi “tornar policiais mais paranóicos, achando que cada vez que saírem do carro alguém pode filmá-los e tentar puni-los”, o que teria criado um “efeito de recolhimento dos policiais nas ações em que o uso da força estaria respaldado em imunidade qualificada”.
“Distante das polícias, o BLM teve mais efeito nos processos políticos e em seus representantes, que agora colocam pressão aos departamentos de polícia do país”, aponta.
Desde junho de 2020 o congresso americano tenta aprovar a chamada Lei George Floyd, a maior reforma policial das últimas décadas. A lei, que foi aprovada na Câmara e ainda precisa passar pelo Senado, inclui medidas como a proibição de estrangulamentos durante a ação policial, o fim dos mandados de segurança que permitem que os agentes entrem em lugares sem se anunciarem —como na ação que matou Breonna Taylor— e o fim da “imunidade qualificada”, espécie de excludente de ilicitude aplicado a determinados casos.
Analistas têm evocado reduções orçamentárias e recolhimento das forças policiais como possíveis causas do aumento da criminalidade violenta no ano passado nos EUA. Chicago viu o número de homicídios dobrar em 2020. Em Nova York, os assassinatos cresceram 40%. Em Los Angeles, 30%.
“Sou totalmente a favor de mais transparência sobre os gastos nas corporações, mas a verdade é que talvez não estejamos gastando o suficiente nos itens certos”, afirma Bulkhalter.
“Em qualquer tipo de carreira é necessário aumentar os salários para atrair pessoas mais qualificadas. Então precisamos considerar isso quando falamos de gastos dos departamentos de polícia. O objetivo é ter uma polícia mais eficiente.”
Entusiasta da educação dos policiais, Bulkhalter gosta de ilustrar seu ponto de vista com um dado: “Hoje, um policial em Nova York recebe seis meses de formação e vai para as ruas. Já um barbeiro precisa de um curso de um ano para obter uma licença que permita a ele cortar cabelo”.
“A formação deveria durar dois anos e ser, depois disso, continuada. A polícia tem o poder de tirar a liberdade de uma pessoa e de usar a força contra ela. Misturar isso com a falta de educação e treinamento recebidos é algo tóxico.”
Negro, ele diz ter presenciado poucos episódios explícitos de racismo por parte de colegas policiais. “O que vi foram vieses raciais individuais, como quando um colega quis parar dois homens negros dentro de um Porsche com um rack para equipamento de ski porque tinha convicção de que negros não esquiavam”, lembra ele, rindo.
“Eu mesmo esquio desde pequeno! Fiz uma abordagem educada e tranquila que servisse de lição para o meu colega. E os esquiadores seguiram seu caminho.”
Para o professor e ex-policial, as corporações nos EUA são “clubes de meninos, quase todos brancos” desde sempre, e só depois do assassinato de George Floyd é que se viu “oficiais negros sendo promovidos para posições de chefia e de liderança”.
Ele avalia que o aumento da diversidade em posições de comando das corporações policiais é um passo importante para evitar que novos assassinatos de pessoas negras por policiais aconteçam nos EUA.
“Tudo emana das posições de comando. Alguém nessas posições de liderança tem que se levantar e dizer que determinadas atitudes simplesmente não são razoáveis.”
El País: Primavera Árabe completa uma década com desfecho em aberto
As sociedades do Oriente Médio e do norte da África estão menos livres do que antes do início das revoltas, mas elas acabaram com o medo e mostraram que a mudança é possível
Ángeles Espinosa, El País
No começo de 2011, o mundo árabe viveu uma onda de protestos contra a corrupção e por uma vida mais digna. A mídia internacional prontamente a batizou de Primavera Árabe, expressão que talvez tenha influenciado nas exageradas expectativas que despertou. Dez anos ― e meio milhão de mortos ― depois, a região, com a exceção da Tunísia, está menos livre e em piores condições do que antes. Mesmo assim, a queda de quatro ditadores rompeu o muro do medo e acabou com a ideia de que a democracia era incompatível com a cultura árabe. O status quo já não pode ser considerado inexorável.
“Dez anos não é um marco temporal suficiente para desenvolver mudanças de grande envergadura. As revoltas da dignidade não acabaram. Foram suprimidas, mas voltarão a ocorrer, talvez mais violentas, talvez não. O que está claro é que não há recuo à ordem política anterior a 2011”, resume Kawa Hassan, vice-presidente do programa do Oriente Médio e Norte da África do EastWest Institute, uma organização sem fins lucrativos que promove a resolução de conflitos. É uma ideia compartilhada por numerosos especialistas.
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Soava bem a ideia de uma Primavera Árabe, termo que comentaristas conservadores já haviam criado para se referir aos lampejos democráticos de 2005 no Oriente Médio. O professor Marc Lynch, da Universidade George Washington, recuperou a expressão em um artigo da Foreign Policy sobre os protestos aparentemente desconexos que seis anos depois se estendiam da Tunísia ao Kuwait, passando por Argélia, Egito e Jordânia, e mais tarde alcançariam Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen. Transmitia uma imagem luminosa e positiva. Só que, nos meses seguintes, a contrarrevolução financiada pelas monarquias petroleiras acabaria com os sonhos de mudança.
“Prefiro chamá-las de revoltas da dignidade, porque milhões de pessoas saíram às ruas pedindo uma cidadania digna”, esclarece Hassan por telefone.
Os protestos populares e pacíficos, aos quais os manifestantes se referiam como intifada (rebelião) ou zaura (revolução), conseguiram derrubar aos autocratas da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Apenas na Tunísia se consolidou uma frágil democracia. A eleição de um presidente islâmico no Egito (Mohamed Morsi) foi respondida com um golpe militar que aumentou a repressão. Líbia e Iêmen mergulharam em guerras civis, assim como ocorreu na Síria, onde o ditador Bashar al Assad conseguiu se manter a sangue e fogo. Nesses países, o Estado e a sociedade ficaram destruídos, pelo menos meio milhão de pessoas morreram, e 16 milhões tiveram que deixar seus lares.
“Os manifestantes se encontraram cercados entre Estados autoritários e atores não estatais autoritários. Os poderes contrarrevolucionários agiram inclusive em países nos quais não chegou a haver revoltas”, admite Hassan. Mesmo assim, mostra-se convencido de que “o fator medo desapareceu para sempre, e nenhum poder na região pode mais estar tranquilo”. Este cientista político constata que “as sociedades ainda insistem em desafiar a ordem política, como se viu em 2019 no Iraque, Líbano e inclusive, mais surpreendentemente, na Argélia e até no Sudão, onde [Omar al] Bashir foi derrubado e teve início uma frágil transição democrática”.
Haizam Amirah Fernández, pesquisador do Real Instituto Elcano, de Madri, afirma que esta segunda onda de protestos demarca o mal-estar árabe nos movimentos de descontentamento que sacodem outros países, como o Chile e a Tailândia. “Se o mundo árabe ficou à margem das transições democráticas ocorridas na década de oitenta [do século passado] na América Latina, Extremo Oriente e Leste Europeu, 2011 deixou clara a interconexão entre diferentes zonas do mundo pela situação econômica e social depois da crise financeira”, afirma Fernández ao EL PAÍS, referindo-se à mobilização dos indignados na Espanha e do Occupy Wall Street nos Estados Unidos.
Significativamente, a região do Oriente Médio e norte da África tem a maior desigualdade econômica do mundo. Por enquanto, a repressão foi capaz de suprimir os protestos. Mas Hassan defende que, “apesar da resistência dos regimes autoritários, as exigências de uma cidadania digna não desaparecerão”. De fato, destaca que “as causas que motivaram as revoltas, como a reivindicação de melhores serviços e o Estado de direito, não só continuam aí como se agravaram”.
É o que mostra uma recente pesquisa da empresa YouGov para o jornal britânico The Guardian, segundo a qual os sentimentos de desesperança e privação de direitos que alimentaram as revoltas continuaram aumentando. Uma maioria dos consultados em nove países árabes declara que suas condições de vida se deterioraram desde a autoimolação do jovem vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi, cuja morte ― o estopim dos protestos ― completa 10 anos na próxima segunda-feira.
Como era de se esperar, o descontentamento é maior onde a situação degenerou em guerras civis e intervenções estrangeiras. Nessa pesquisa, 75% dos sírios, 73% dos iemenitas e 60% dos líbios dizem estar pior do que antes da Primavera Árabe. Mas inclusive no Egito, Iraque e Argélia, embora menos da metade declare que sua situação piorou, apenas uma quarta parte diz estar melhor. “As reformas foram só de aparências, e a covid-19 exacerbou os problemas socioeconômicos”, aponta Hassan.
“Está sendo feito um experimento que põe a prova a resistência das sociedades árabes. Apesar das diferenças entre países, respondeu-se às demandas de tipo econômico e político com medidas de segurança, mão dura e repressão”, aponta Amirah Fernández. E não só por parte dos regimes questionados. “Do exterior, continuou-se favorecendo de forma descarada o modelo de estabilidade baseado no autoritarismo e na supressão de liberdades, em vez de experimentar qualquer sistema alternativo”, acrescenta.
As petromonarquias, que conseguiram comprar vontades e paz social com os dividendos dos hidrocarbonetos, apostaram no desenvolvimento econômico como substituto da democracia. Daí seu empenho na diversificação e na abertura social, ao mesmo tempo em que se restringem as liberdades políticas. Naquelas autocracias sem recursos relevantes, só há porrete. Até quando a panela a pressão vai aguentar? “Não está claro para onde vamos. Os atuais regimes são ainda mais repressivos e estão mais dispostos a usar a força. Lutarão até a morte para manter o poder”, manifesta o analista do EastWest Institute.
Fernández, do Real Instituto Elcano, remete à realidade demográfica como “o maior condicionante das sociedades árabes”. Com ligeiras diferenças, dois terços de seus 420 milhões de habitantes têm menos de 30 anos. Muitos eram jovens demais para participar dos protestos de 2011, mas “viram que era possível apesar do caos e as interferências que vieram depois”. De fato, a pesquisa mencionada detecta uma diferença geracional. Os mais jovens entre os adultos pesquisados (18-24 anos) são os que menos lamentam as revoltas, enquanto seus pais se mostram mais pessimistas com o resultado e consideram que as novas gerações confrontam um futuro mais difícil do que o de quem cresceu antes das primaveras.
“É muito cedo para dizer que a Primavera Árabe foi um fracasso. Precisamos deixar os jovens terem seu momento, e seu momento chegará”, dizia Lina Khatib, diretora do programa para o mundo árabe do centro de reflexão britânico Chatham House, durante uma recente conferência online. “Trata-se de um processo longo, com muitas desigualdades, que terá um montão de desencantos. Nenhuma revolução transformadora no mundo terminou em poucos anos e sem reação”, concorda Fernández.
Demétrio Magnoli: Derrubada de estátuas é a imposição do esquecimento
Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente
A Oxford Union, representação dos estudantes da Universidade de Oxford, votou a favor da campanha “Rhodes deve cair”, iniciada numa universidade sul-africana com o objetivo de remover a estátua de Cecil Rhodes da fachada de um dos edifícios da universidade britânica.
No fim, a estátua fica, graças à pressão exercida por grandes doadores de Oxford. O dinheiro dobrou os intelectuais, impedindo-os de agir como vândalos, coisa que gostariam de fazer.
Rhodes é o maior ícone do imperialismo britânico na África. A sua figura personifica a ideia racista da “missão civilizatória do homem branco” que impulsionou o empreendimento colonial do outono do século 19. As sementes do apartheid na África do Sul e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) foram plantadas no solo que ele arou.
Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde.
Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado —ou melhor, sobre incontáveis camadas de passados. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social.
Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado.
Sua derrubada não é um chamado à reflexão sobre os erros, os crimes, a tragédia e a dor, mas a imposição do esquecimento.
A transferência das estátuas malditas para museus ou parques temáticos, retirando-as de seus contextos, tem efeito similar. Num caso, como no outro, trata-se de higienizar os lugares de circulação cotidiana, reservando o exercício da memória a uma elite de especialistas da memória.
Rhodes, o pecador, não está só. De Pedro, o Grande, a Thomas Jefferson, de Marx a Churchill, de Machado de Assis a Monteiro Lobato, ninguém passa no teste contemporâneo dos valores.
A lógica férrea do vandalismo do bem conduz a um programa de terra arrasada. O rastilho de fogueiras purificadoras nada poupará, a não ser as novas estátuas esculpidas pelos próprios vândalos do bem, que virão a ser derrubadas por seus futuros seguidores. O presente perpétuo —eis a perigosa ambição dessa seita de iconoclastas.
Lenin caiu, às centenas, por toda a antiga Alemanha Oriental, nos meses loucos que se seguiram à queda do Muro de Berlim. Aquilo foi uma revolução popular. As estátuas derrubadas eram a representação pública de um poder real, opressivo e totalitário.
“Borba Gato, matador de índios e proprietário de escravos, deve cair.” Os alemães que limpavam as ruas do Lenin onipresente estavam mudando o presente. Os vândalos do bem investem contra sombras do passado. Mascarados de radicais, eles ajudam a desviar os olhares das iniquidades do presente.
Quem tem o direito moral de suprimir os lugares da memória? Se concedermos esse direito aos vândalos do bem, como negá-lo a governos eleitos democraticamente? E, se é assim, como criticar a remoção da estátua de Imre Nagy, líder da revolução democrática húngara de 1956, pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, um nacionalista de direita aliado de Vladimir Putin? Ou como impedir que Jair Bolsonaro ou algum assecla eleito derrube a escultura “Vlado Vitorioso”, homenagem a Vladimir Herzog implantada numa rua do centro de São Paulo?
A Universidade de Oxford tem quase mil anos. Há pouco mais de um século ela cantou as glórias do imperialismo britânico. O registro esculpido na sua fachada será preservado e cercado por texto de contextualização histórica. Os vândalos do bem perderam essa —mas não desistirão de acender fogueiras.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Eliane Brum: Os manifestos estão brancos demais
A classe média progressista precisa compreender que, sem enfrentar o racismo estrutural do Brasil, não há “pacto civilizatório” possível nem há democracia
Há um apagão nos dois principais manifestos que moveram o Brasil nas últimas semanas. Uma ausência que revela: 1) a qualidade da democracia que conseguimos ter após o fim da ditadura militar; 2) a dificuldade das elites (majoritariamente brancas) reconhecerem o racismo estrutural como o principal problema do país; 3) a impossibilidade de enfrentar o autoritarismo representado pelo Governo de Jair Bolsonaro sem colocar no topo da lista o enfrentamento ao racismo. Sem exterminar o racismo não há democracia. Nem há projeto civilizatório possível. Essa não é uma questão para decidir depois. Este é justamente o agora.
Para esclarecer já no início. Não me alinho a Lula (PT), que fez o desserviço de não apoiar os manifestos suprapartidários porque estaria ao lado de pessoas que ou apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff (PT) ou não lamentaram a sua prisão. Assinei o “Estamos Juntos” com pessoas que admiro muito, com quem compartilho sonhos e visões políticas, e outras que considero terem feito muito mal ao país, algumas delas me atacaram pessoalmente não muito tempo atrás. Numa frente ampla, a gente engole os sapos, segura as tripas e fecha com a única parte que todos concordam, a de lutar pela democracia. Como tantos disseram e escreveram, depois, com o processo democrático já garantido, discute-se as diferenças democraticamente. E elas são enormes, posso assegurar.
O problema é que, ao observar os textos do “Estamos Juntos” e do “Basta!”, percebe-se que há algo que não está lá e que não dá para discutir mais tarde. E este algo é o racismo. Textos de manifestos são textos de consenso, e é exercício da melhor política buscar esse consenso. Chegar à formulação divulgada certamente exigiu muito esforço e trabalho dos articuladores. Que a palavra racismo não esteja bem no alto é sinal justamente da deformação da democracia que conseguimos construir após 1985. Se isso não ficar bem compreendido neste momento, seguiremos às voltas com os déspotas da ocasião.
O que deve nos assombrar, e imediatamente nos fazer despertar, é o fato de que o enfrentamento do racismo, a esta altura, ainda não seja um consenso entre aqueles que defendem a democracia. Ainda não esteja dentro do amplo guarda-chuva de uma frente ampla suprapartidária como uma obviedade do mesmo nível de dizer que defendemos a liberdade, por exemplo. Não estou aqui jogando pedras em quem está se movendo, muito pelo contrário. Minha crítica reivindica uma mudança de rota nos movimentos de resistência ao autoritarismo liderados pela classe média progressista, autoritarismo representado por Bolsonaro, pelos generais e pela miliciarização das polícias.
O racismo é o debate inadiável não só no Brasil, mas no mundo, como os protestos nos Estados Unidos têm mostrado. O Brasil, porém, tem uma tarefa maior do que a maioria dos países porque não só foi o último país das Américas a abolir a escravidão como a fez sem nenhuma política pública de inclusão dos negros na sociedade. O racismo estrutural se manteve e, hoje, mais de 130 anos depois, os negros ocupam um lugar subalterno na sociedade em todas as áreas e morrem mais e mais cedo. Que o grito contra o racismo tenha se unido ao grito pela democracia nos protestos de rua, que não tiveram o apoio nem da maioria da classe média nem da maioria dos partidos nem dos articuladores dos principais manifestos, é bastante ilustrativo.
O argumento de evitar aglomerações devido à pandemia é totalmente respeitável ― e deve ser respeitado. Deixar de ir às ruas por temer se contaminar com covid-19 e, contaminando-se, contaminar os mais frágeis, é gesto de responsabilidade e faz todo o sentido. Afinal, até semanas atrás, ocupar as ruas e aglomerar-se numa pandemia era ato exclusivo de Bolsonaro e dos extremistas de direita, os que usam símbolos neonazistas, os amantes de armas, os antidemocratas e os defensores do autoritarismo. Ficar em casa significava, no contexto, não só cumprir as normas sanitárias determinadas pela Organização Mundial da Saúde mas também um gesto político de resistência.
A questão é que a realidade é sempre muito mais desafiadora e complexa. Ficar em casa tornou-se também uma questão política, atravessada pela desigualdade racial. Como são majoritariamente os brancos, de classe média para cima, que tem o privilégio de poder ficar em casa para se proteger do novo coronavírus, e muitos deles obrigam seus empregados a trabalhar em suas casas, não há como desconectar os protestos de rua contra o fascismo representado por Bolsonaro da desigualdade racial que impede uma parte da população, a mais pobre, majoritariamente negra, de permanecer em casa.
Essa foi a fala dos jovens negros, das jovens negras que foram às ruas, e também dos brancos e brancas que participaram da manifestação. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo que aderiu ao protesto do domingo (7/6), ao EL PAÍS. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou Tânia Aquino. Uma das lideranças declarou no carro de som: “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos [...] Agora é hora de a pretitude tomar conta”.
Reproduzo aqui parte do melhor texto que li sobre esse impasse, de autoria do cientista social negro Deivison Mendes Faustino: “Nós, aqueles a quem não foi permitido ficar em casa, seguros/as, esperando a crise passar; Nós, que seguimos em risco: amontoados nos transportes coletivos, entregando o seu delivery ou garantindo as suas futilidades básicas; aqueles que presenciaram os filhos serem mortos pela polícia, em casa ou na casa da patroa, enquanto levávamos o seu pet para passear; Nós, a quem fizeram escolher entre a morte, sem ar, pela covid-19, ou a vida sem fôlego, por medo da fome, da violência e do desamparo; Nós, os que morrem 40% mais por corona, os 70% mais assassinados pela polícia, mas cuja representação política e poder efetivo junto aos ‘70%’ que se pretendem oposição à tragédia atual, é ínfima; Nós, enfermeiras, faxineiras, seguranças, carteiros, diaristas, ubers, entregadores, estudantes, mães e pais de filhos pretos, veados, sapatões, não binários, ou os/as militantes verdadeiros que seguem nas ruas coletando e entregando mantimentos, ajudando o velório de famílias vitimadas pela conjuntura genocida; Nós, aqueles que não podem mais respirar, há 500 anos, mas que sentimos aumentar sob o nosso pescoço o joelho militarizado do poder, cada vez mais, assumidamente genocida; Nós, que assistimos há décadas, a indignação performática, da maior parte da esquerda e de uma parcela da direita, acompanhada da negligência em relação ao racismo de lá ou de cá; Nós, diante da chance real de velar a nossa própria quase-morte, em um protesto vivo, nas ruas, neste domingo… estamos com receio: de um lado, o risco do protesto físico facilitar a exposição à covid-19… do outro lado, a ameaça real de criminalização da luta por justiça… (...) Ainda assim, uma parte de Nós, marchará neste domingo, junto com outros movimentos sociais, não por estarmos dormindo no barulho, mas por entendermos ser essa a Nossa tarefa histórica. Marcharemos por estamos cansados de ficar na arquibancada de um jogo político que nos afeta diretamente. Marcharemos porque não podemos mais respirar!”. (leia o texto inteiro aqui)
Respirar tornou-se um ato político, sua negação um gesto da desigualdade racial. Aos negros lhes falta o ar ― pelos joelhos brancos no seu pescoço, pela covid-19 que os mata mais, pela precarização da vida, pela violência da morte, pelo lugar subalterno reservado à maioria racial do país pela minoria branca. A tensão dentro do campo democrático, entre aqueles que defendiam ir para a rua e aqueles que eram contra ir para a rua, foi ― e é ― atravessada pelo racismo. Porque não se escapa do racismo no Brasil (leia “No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho).
Dizem que o vírus escancarou a brutal desigualdade social do Brasil. Essa afirmação, porém, não faz sentido. A desigualdades sempre foi escancarada. O que aconteceu com o coronavírus é que os negros e os indígenas não têm permitido que ela siga normalizada neste momento. E têm apontado, muito enfaticamente, que a desigualdade no Brasil é racial.
Ao definir o social como preponderante, neste caso há um encobrimento da ferida, na medida que a maioria dos pobres é preta. Ou seja, a pobreza tem cor. Do mesmo modo, vários projetos de expropriação das terras indígenas apontam para a conversão de indígenas em pobres urbanos, o que os lançaria na falsa homogeneidade sem cor e sem história do vasto guarda-chuva dos “pobres”. Pobres, é necessário deixar explícito, é um conceito genérico usado politicamente à esquerda e à direita para promover apagões de memórias e de identidades.
O apagão dos dois principais manifestos contra o autoritarismo é resultado do racismo estrutural que foi mantido pela democracia. O Brasil não julgou os crimes da ditadura, provocando o que, na coluna anterior, eu chamei de “fetiche da farda”: fenômeno que faz o país tremer com a opinião de cada general de pantufa que arrota do seu sofá e faz com que os generais no governo sintam-se à vontade para fazer declarações antidemocráticas e ameaças às instituições. Como seus antecessores lideraram um regime que autorizava o sequestro, a tortura e a execução de opositores políticos e nunca foram responsabilizados pelos seus atos criminosos, tanto Jair Bolsonaro, o militar que planejou colocar bombas nos quartéis nos anos 1980, quanto seu círculo verde-oliva têm a certeza da impunidade. E esta é a impunidade que fez ― e faz ― mais mal à democracia brasileira.
A questão, porém, é que, durante a democracia, uma parte da classe média enfrentou a impunidade dos militares e dos agentes de Estado. Com muita dificuldade, ainda foi possível fazer uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos pelos agentes do regime de exceção. Entidades importantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tentaram e tentam reformar a Lei da Anistia, de 1979. Uma parte das elites lembra, com alguma frequência, que crimes contra a humanidade, casos das violações praticadas por agentes do Estado a serviço da ditadura, são imprescritíveis e não estão sujeitos a anistias.
Mas há um porém. O processo democrático e seus principais agentes, a maioria deles de classe média branca, enfrentaram muito menos os crimes e a desigualdade resultantes do racismo. O racismo seguiu normalizado na construção da Nova República. A sociedade continuou compactuando com as torturas dos que são erroneamente chamados de “presos comuns” nas delegacias de polícia e nas prisões, a maioria deles pretos; com a invasão ilegal das casas do mais pobres pela polícia, a maioria deles pretos; com as condições incompatíveis com qualquer conceito de dignidade das prisões abarrotadas, majoritariamente por pretos; com as leis que lançam pequenos traficantes de drogas nestas prisões, a maioria deles pretos, e absolve os consumidores, a maioria deles brancos; e, finalmente, com o genocídio da juventude negra nas periferias e favelas.
O processo democrático e seus principais agentes não enfrentaram o racismo estrutural com a urgência que essa abominação exige. No pouco que foi feito, como na questão das cotas raciais nas universidades, houve gritaria da classe média branca, que se sentiu insultada ao perder um privilégio que confundia com direito. Para combater uma das primeiras e atrasadas políticas públicas para a inclusão dos negros na sociedade, fortaleceu a vergonhosa tese da meritocracia, como se todos, brancos e negros, partissem de bases semelhantes para disputar espaços em igualdade de condições.
Tudo isso tem consequências, obviamente. E tem consequências para a democracia, que assim jamais se completa, fragilizando-se aos autoritários de tocaia. Uma parte significativa da população têm pouca relação com a democracia porque não consegue perceber que faça grande diferença na sua vida. Não é porque são ignorantes e porque desconhecem a história. Ao contrário, eles vivem a história no cotidiano. A Polícia Militar segue lá, derrubando portas e explodindo as cabeças das suas crianças ou abatendo-as pelas costas. Seus queridos estão em prisões descritas por um ex-ministro da Justiça como “medievais”, muitas vezes sem julgamento ou porque foram pegos com 100 gramas de maconha. E, na pandemia de covid-19, eles nem têm casas que permitem o isolamento nem têm condições de parar de trabalhar nas ruas, caso dos informais, nem seus patrões brancos permitem que façam confinamento, caso da minoria empregada.
Bolsonaro, assumidamente racista em suas declarações, disse para essa população algo que nenhum branco com responsabilidade pública tinha tido a coragem de dizer antes dele: “e daí?”. A vida cotidiana no Brasil lança um grande “e daí?” sobre os negros, cuja existência é marcada por menos tudo o que é da vida e por mais mortes por doença, bala e descaso há pelo menos quatro séculos. Se são os pretos que proporcionalmente morrem mais ao contrair a covid-19 e se são os pretos os mais expostos ao novo coronavírus, porém, o “e daí?” de Bolsonaro formalizou o racismo como política de Estado e lançou a pandemia, já totalmente atravessada pela desigualdade racial, diretamente no coração da disputa política que se dá em torno da democracia.
O movimento de rua iniciado pelas torcidas de futebol, algumas delas, como a Gaviões da Fiel (Corinthians), criadas no combate à ditadura, apontam que a denúncia do racismo é que leva à luta pela democracia com apoio popular, neste momento. E não o contrário. Se a classe média progressista não compreender isso, rapidamente, estará fora da centralidade do momento. E, mais uma vez, defenderá uma democracia que nega a si mesma, ao ignorar os negros, quase 56% da população brasileira, condenados aos porões da sociedade, em todas as áreas, depois de mais de três décadas de democracia formal.
Não por acaso, entre os manifestos lançados que encontraram ressonância, o mais contundente na posição antirracista é o do “Esporte pela democracia”, ao repudiar com veemência o racismo em pelo menos três partes do texto. “A banalização da vida negra soma historicamente milhares e milhares de mortos por violência, discriminação, práticas racistas diárias bem diante dos nossos olhos”, afirma. “Pelo nosso repúdio integral ao racismo, à violência, e nosso desejo de voltar a crer num futuro possível e igualitário, hoje nos colocamos diante de questões políticas importantes. Como representar um país em que práticas autoritárias se tornam cotidianas? Em que a diversidade cultural, uma de nossas maiores riquezas, é frontalmente atacada? Como nos comportar diante do que temos vivido nos últimos tempos, da triste imagem nacional passada para o mundo? Queremos voltar a nos sentir orgulhosos de nosso país, representando em Copas do Mundo, Olimpíadas e outras competições internacionais o legado de nossa cultura, nossa história, nosso povo”.
O crescente autoritarismo do Brasil atual ― no qual Bolsonaro pode ser o ápice mas não é de forma nenhuma a origem ― dificultou mas não conseguiu interromper o movimento de pressão dos negros por protagonismo e espaços de poder. O Brasil estava no início de um debate que previa não apenas enfrentar os crimes da ditadura, mas também enfrentar as violações normalizadas no processo democrático. Ações como a criação da Comissão da Verdade sobre os Crimes da Democracia Mães de Maio, lançada em 2015 por vários movimentos de São Paulo, marcavam essa nova fase da democracia que o conservadorismo tradicional tentou interromper. Tentou interromper e, no processo, foi parte absorvido, parte atropelado pelo bolsonarismo. Marielle Franco encarnava essa irrupção das minorias que são maiorias – e foi silenciada a tiros.
A repressão a essas forças emergentes tem sido brutal, mas até esse momento não foi capaz de interrompê-las. É isso que os movimentos de rua estão mostrando, desde as campanhas de solidariedade e combate à pandemia, na base do “nós por nós”, promovidas pelos movimentos nas comunidades periféricas, até os recentes protestos de rua iniciados pelas torcidas de futebol, com o apoio no último domingo (7/6) de setores populares importantes como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e coletivos da população negra. Talvez o que a classe média progressista branca precise entender neste momento é que precisará seguir ― e não ser seguida.
O racismo estrutural do Brasil é tão explícito que a realidade o desenha com sangue. João Pedro, de 14 anos, estava dentro da casa dos tios, em 18 de maio, quando foi morto pelas costas pela polícia que invadiu a residência em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Seria mais do que suficiente para negros ― e também brancos ― se insurgirem com tanta força quanto a demonstrada pelos afroamericanos após a morte de George Floyd, nos oito minutos e 46 segundos que durou sua asfixia por um joelho branco.
O imperativo de se insurgir contra o racismo é de todos, brancos e pretos, direita e esquerda. O racismo é limite insuperável. Não há como afirmar que o Brasil é uma democracia quando a polícia invade uma casa e mata uma criança. No Brasil, Floyd não seria exceção, João Pedro não é exceção. Essa normalização é o crime além do crime. E deste todos são cúmplices.
E então, Miguel Otávio, de cinco anos, foi assassinado num prédio de luxo no Recife, em 2 de junho. É uma cena de Casa Grande e Senzala no século 21. A mãe preta, Mirtes Renata Souza, é obrigada a trabalhar na casa da patroa branca, em plena pandemia. Leva o filho, porque as escolas estão fechadas por causa da covid-19. A patroa, Sari Corte Real, primeira-dama do município de Tamandaré, manda que ela vá passear com o cachorro. Com o cachorro. Ela então deixa seu menino de cinco anos com a patroa. Mas a criança chora porque está assustada e quer ficar com a mãe, que avista pela janela passeando com o cachorro. Com o cachorro. A patroa está ocupada com a manicure, e o menino a está perturbando. Ela então o despacha sozinho no elevador. No elevador de serviço. Ele não sabe o que fazer nem como chegar até a mãe. Então desce quando a porta abre no nono andar. Escala as grades que protegem os equipamentos de ar condicionado e cai de uma altura de 35 metros. Miguel Otávio alcança a mãe. Morto. A patroa é presa, mas paga 20 mil reais de fiança e volta para casa.
A jornalista Joana Rozowykwiat desenhou em seu Facebook:
“O horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:
A empregada que trabalha durante a pandemia;
A empregada que não tem com quem deixar o filho;
A empregada é negra;
A patroa é loura;
A patroa é casada com um prefeito;
O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;
A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;
A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora; A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;
O menino se chama Miguel, nome de anjo;
O sobrenome da patroa é Corte Real;
A empregada pegou covid com o patrão;
A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;
Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;
Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;
Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;
É muita coisa, muito símbolo”.
É mesmo muita coisa e muito símbolo.
E aí alguém diz, com genuína preocupação e muita razão, que não dá para ir para as ruas protestar numa pandemia. E esta exatamente seria a razão pela qual a mãe de Miguel Otávio não deveria estar trabalhando naquele dia. Só que este é o país da desrazão, este é o país em que uma mulher negra arrisca a sua vida para passear o cachorro da madame branca, este é o país liderado ― e representado ― pelo “e daí?” de Bolsonaro. Este é o Brasil que lidera o número de mortes pela covid-19 porque o antipresidente decidiu que é natural que uma parte da população morra mesmo. Mas os negros e os indígenas sabem que parte da população é esta, a que sempre pôde morrer na visão da parcela do Brasil que Bolsonaro representa.
Se neste momento há consenso entre os progressistas de que Bolsonaro é “uma ameaça à civilização”, é urgente compreender que, caso se trate mesmo de “civilizar” o Brasil, é imperativo exterminar o racismo. No Brasil, a barbárie tem sido a dos brancos contra os negros e contra os indígenas. Bolsonaro a exalta, mas não a inventou. Achar que dá para ter democracia com racismo é um delírio persistente de uma parcela dos brasileiros.
Por enquanto, é a juventude preta periférica politizada que está mais presente nas ruas lutando contra o fascismo/racismo. O que todos os sinais estão apontando é que, desta vez, o racismo não será silenciado na disputa política em torno da democracia. Pode até acontecer um movimento aos moldes das “Diretas Já”, que marcaram o começo do fim da ditadura militar, liderado pelos progressistas brancos de classe média, em que o racismo seja só uma nota de rodapé na luta pela destituição do maníaco do Planalto e pela restituição da democracia hoje em frangalhos. Neste caso, não será então apenas uma oportunidade histórica perdida. Será muito mais. Será uma vergonha histórica.
O novo Diretas Já (e já com outro nome), nascido nas periferias que reivindicam seu legítimo e real lugar de centros, colocado em curso por movimentos sociais e coletivos, e não mais por partidos políticos, ou será com os negros ― ou não será.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).
Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Atos pela democracia elevam tom contra o racismo no Brasil
Protestos contra o Governo Bolsonaro se espalham por dezenas de cidades e ignoram orientação de evitar aglomeração social. “Tenho mais medo do racismo que da pandemia”
Carla Jimenéz, Priscilla Arroyo e Isadora Rupp, do El País
Milhares de pessoas protestaram neste domingo em todo o mundo contra o racismo. No Brasil, não foi diferente. Em plena pandemia do novo coronavírus, que já matou mais de 36.000 pessoas e infectou mais de 690.000 no país, manifestantes saíram às ruas, ignorando a recomendação de que se evite aglomerações, para cobrar o fim da violência racista, levantar bandeiras antifascistas e defender a democracia brasileira, num contraponto aos protestos que ocorrem há semanas ―com a adesão e apoio do presidente Jair Bolsonaro― pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo, uma das dez cidades brasileiras onde houve protestos massivos. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou a designer Tânia Aquino, 26 anos, que também estava no Largo da Batata. Quem não foi às ruas, foi às janelas: houve panelaços em várias capitais. Também ocorreram alguns atos favoráveis a Bolsonaro, embora em proporção menor, nas cidades de São Paulo, Rio e Brasília.
O ato no Largo da Batata, na zona oeste da capital paulista, começou tímido e foi ganhando força durante pouco mais de duas horas. O local ficou cheio por volta das 15h, tomando inclusive um trecho da avenida Faria Lima. A Polícia Militar estima em 3.000 pessoas o total de participantes, o que parece um pouco abaixo do que a reportagem testemunhou. Os organizadores falam em ao menos 10.000 pessoas. Centenas de policiais se dividiram ao redor da praça. As pessoas chegavam um pouco tensas não só pelo receio de encontrar violência policial, mas também pelas precauções para evitar o contágio do novo coronavírus. Munidos de máscaras de proteção e álcool gel ―muitos com escudos faciais―, o público se mostrou diverso. Havia jovens, famílias inteiras e até idosos, que justificaram a ida apesar de pertencerem a um grupo de risco da covid-19 pois acharam importante ter a voz ouvida. Apesar dos pedidos dos organizadores para que as pessoas mantivessem distância umas das outras, não houve muito respeito pelo distanciamento social proposto, de um a dois metros.
Do alto de um carro de som, lideranças negras cobravam o engajamento de brancos para salvar “vidas pretas”. “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos”, provocava um jovem líder, que avisou: “agora é hora da pretitude tomar conta”, completou. Um jogral de coletivos negros gritou os nomes de inocentes assassinados, desde a menina Ágatha Félix, passando por João Pedro, morto em São Gonçalo, até a vereadora Marielle Franco, morta há dois anos e meio. “Marielle perguntou/eu também vou perguntar/quantos mais tem que morrer/pra esta guerra acabar”, dizia uma moça, no centro de uma roda de jovens negros.
Muitos cartazes contra o racismo se juntavam a outras contra o presidente Jair Bolsonaro que se fizeram presente. Faixas contra a volta da ditadura militar também cobravam a manutenção do regime democrático. Gritos de “Fora, Bolsonaro” e “Vidas negras importam”, foram a base do encontro, que durou até umas 16h30, quando os manifestantes decidiram sair em marcha. Havia um clima de esperança, mas também uma sensação de que a luta antirracista tem um longo caminho pela frente. “Estamos nos colocando contra autoridades que oprimem classes desprivilegiadas como nordestinos e negros. Todos temos medo da covid, mas como moro sozinho, não sou um risco para os outros”, explicou Rodrigo Silva, 33 anos se declara punk.
O policiamento ostensivo impressionava e tensionava o ambiente. Com lágrima nos olhos, a técnica de enfermagem Ana Paula Braga, 41, dizia se sentir “oprimida". “Não podemos deixar crescer essa força do mal no país, de autoritarismo. Sou mulher, negra, sinto que estamos perdendo mais liberdade a cada dia. Infelizmente não vejo esperança no futuro próximo. O que estamos fazendo aqui hoje é uma construção”, disse ela, que é funcionária pública e concursada do Ministério da Saúde.
Os embates com a polícia eram o grande temor do governador de São Paulo, João Doria, que atuou para que os manifestantes pró e contra o governo se encontrassem. “Tudo que não precisamos é estabelecer confrontos na rua neste momento no Brasil. Isso só vai atender a quem tem projeto autoritário e deseja justificar a presença do Exército e com medida mais autoritária e mais dura diante de um Estado ou conjunto de Estados”, disse ele em entrevista o EL PAÍS, na semana anterior.
Mas num dia de protestos antifascistas e antirracistas, quatro jovens negras relataram terem sido abordadas pela polícia. “Viemos protestar contra o racismo e sofremos racismo na pele. Fomos enquadradas quatro vezes no caminho de ida e durante o ato. Agora, na volta também”, diz Tainah Andrade, 18 anos, ao apontar para a viatura. “Nos pararam, mas não pararam o grupo de meninas brancas que estavam bem na nossa frente”, contou a manifestante.
Participando de seu primeiro protesto, Lucio Lima de Paula, estudante negro de Itaquaquecetuba, escolheu levar um cartaz contra intolerância. “Somos parados, tomamos enquadro, somos desrespeitados. Isso faz parte da rotina, mas cansei. Sei dos perigos da covid, mas o racismo mata há anos e não podemos ter medo. Se a gente não vier, ninguém vai vir por nós”, disse o jovem. Já o veterano Juarez Correa Barros Junior, 63 anos, se disse “viciado em democracia” e explicou porque optou se arriscado para encarar uma aglomeração em plena pandemia."Me sinto mais inseguro no Brasil com esse presidente do que já me senti em toda a minha vida. Saí de casa hoje para demonstrara minha raiva e indignação.”
Inicialmente, a manifestação ocorreria na avenida Paulista, mas os organizadores mudaram o local do ato após decisão da Justiça de São Paulo, já que no centro ocorreria uma concentração pró-Governo. Por volta das 16h30, a manifestação no Largo da Batata foi encerrada pelos organizadores, que recomendaram às pessoas que fossem embora para suas casas. Um grupo, entretanto, decidiu marchar até a avenida Paulista, mas foi impedido por um bloqueio policial. Negociadores da polícia tentaram demover integrantes para que deixassem as ruas, mas eles insistiram. “Os que ficam ainda aqui são vândalos, os que se manifestaram eram cidadão do bem”, dizia o secretario executivo da Polícia Militar, Coronel Álvaro Camilo, ao vivo em entrevista à CNN Brasil. Ao final, a polícia lançou bombas de gás para dispersar os que ficaram. De acordo com balanço final da PM, 14 pessoas foram detidas.
Na avaliação de Guilherme Boulos, candidato à Presidência em 2018 pelo PSOL e um dos líderes do MTST, um dos organizadores, a manifestação trata-se de o começo de um caminho para barrar o fascismo no Brasil. “Começamos domingo passado e continuamos hoje. Se só os fascistas estão nas ruas, por mais que sejam minoria na sociedade, um ambiente de intimidação acaba sendo criado. É o que queremos evitar”, afirmou.
Policiamento ostensivo
Uma semana após um ato antirracista terminar em repressão policial e tumulto na capital paranaense, um cordão de isolamento com policiais do choque, viaturas e cavalaria cercou a Praça Santos Andrade, local onde foi realizado o ato Vidas Negras Importam - Fora Bolsonaro, em Curitiba. O policiamento ostensivo era desproporcional ao número de manifestantes, revistados um a um antes de entrar no limite da praça. Com as mãos na cabeça, tinham o corpo e as mochilas inspecionadas. Garrafas d’água e o agora onipresente álcool em gel eram abertos e verificados, enquanto um helicóptero da PM sobrevoava a praça e arredores.
Ao ver as abordagens, o engenheiro ambiental Everton Rocha, 31, titubeou. Homem negro, nascido no interior da Bahia, mora há cinco anos em Curitiba, onde concluiu o seu mestrado em Engenharia Química pela Universidade Federal do Paraná. “Por um segundo pensei em não ir e voltar para casa. Mas alguém precisa lutar. Nós estamos morrendo”, lamentou.
A decisão de revistar os participantes, segundo a porta-voz da PM do Paraná, a Tenente Michele Trindade, foi por conta das depredações ocorridas na última segunda-feira, 2 de junho, e para garantir a segurança dos manifestantes. “Os organizadores se mostraram solícitos, e a OAB e Ministério Público também auxiliaram nessa intermediação”, declarou. Segundo a porta-voz, quatro pessoas foram detidas por porte de entorpecentes. Mas na análise da defensora pública e coordenadora do Grupo de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, Rita Cristina de Oliveira, a PM não poderia ter feito a revista. “É uma forma ilícita de impedir o direito de livre manifestação”, avalia a defensora. "Não é leviano dizer que isso não ocorre como padrão adotado nas correntes manifestações pró-Governo ou pró-Lava-jato ou anticorrupção, que são comuns aqui na cidade. Nesse ponto chega a refletir o projeto de branqueamento exitoso que sufoca o grito e a presença dos negros nesta cidade historicamente, e que se reproduz na atuação policial”, completou, indagada pelo EL PAÍS.
Miguel Otávio, Ágatha Félix, George Floyd
“É uma sensação de medo, que o meu direito de falar e de ir e vir está sendo limitado", lamentou Natasha de Miranda Gomes, 21 anos, integrante de um coletivo socialista. Em Curitiba, assim como em outras capitais brasileiras, a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que despencou de um dos edifícios das “Torres Gêmeas” de Recife, foi lembrado com emoção. "E não podemos mais nos conformar com as coisas como estão. Com o Miguel, menino negro, morrer porque a mãe precisou passear com o cachorro da madame em plena quarentena. A gente luta pelo antirracismo e pelo anticapitalismo. O povo negro nunca ganha nesse sistema”, completou a jovem Natasha.
Parte dos manifestantes seguiram para o Palácio Iguaçu, sede do governo estadual, sob os olhares da polícia. No caminho, dos apartamentos, moradores panelaço e engrossavam o coro “Fora, Bolsonaro”. Os manifestantes e policiais permaneceram no local até o começo da noite, e não houve nenhum registro de confronto.
No Rio de Janeiro, os manifestantes se reuniram em frente ao monumento Zumbi dos Palmares, por volta das 15h, e caminharam até a Candelária. Além dos cartazes antirracistas, a repetição dos nomes das vítimas negras da violência policial compôs a trilha deste ato de domingo: “Marielle, presidente!”, “Agatha Félix, presente!”, “João Pedro, presente!”, “George Floyd, presente".
Com a colaboração de Breiller Pires, Heloísa Mendonça, Regiane Oliveira e Marina Novaes, do EL PAÍS em São Paulo.
Elio Gaspari: Do Central Park a Alphaville
Duas cenas, uma em cada um desses lugares, chamaram atenção nos últimos dias
Adiante vão duas cenas dos últimos dias. Uma aconteceu no Central Park, em Nova York. A outra no bairro de Alphaville, em São Paulo (R$ 5.700 por metro quadrado).
25 de maio: Amy Cooper, com MBA pela universidade de Chicago, chefe do setor de seguros de uma firma de investimentos (US$ 70 mil anuais) passeava seu cachorro, solto, pelo parque. Christian Cooper (nenhum parentesco) disse-lhe que devia prender a coleira do bicho. Negro, ele vinha com um binóculo e observava os passarinhos. Ela se descontrolou, sacou o celular e chamou a polícia, dizendo que “um afro-americano está ameaçando minha vida”. Christian diplomou-se por Harvard em Ciencia Política. Também sacou o celular e gravou a cena. (O vídeo seria visto por 40 milhões de pessoas.)
No dia 28 Amy foi demitida. Desculpou-se, mas Christian recusou-se a encontrá-la.
Nesse mesmo dia o cabo Edson, da PM paulista, foi enviado a uma casa de Alphaville, atendendo a uma denúncia de violência doméstica. Enquanto conversava com a mulher, apareceu o marido, o joalheiro Ivan Storel. Em bolsonarês castiço, que repeliu o cabo:
“Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”,
“Eu ganho R$ 300 mil por mês”, “você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil.”
“Tenho uns 50 caras pra enfrentar você.”
Uma policial (que também foi insultada) registrou a cena.
Seis dias depois, Storel gravou um vídeo, reconheceu seu erro, revelou que está em tratamento psiquiátrico e que agiu sob o efeito de álcool e remédios. Disse que se envolveu “numa polêmica” com a polícia e pediu “perdão” a todos os policiais, inclusive aos que ofendeu.
Fica combinado assim. Tanto Amy Cooper como Ivan Storel vocalizaram preconceitos. Ela, de cor. Ele, de classe. Como o vírus, são preconceitos transmissíveis e estão por aí.
Entrevistado no programa de Fátima Bernardes, o cabo Edson mostrou-se surpreso pela viralização do vídeo e revelou que “não quis mostrar para a minha esposa e nem para os meus filhos porque não sabia como ia ser a reação deles”.
Intervenção militar
Num país com os mortos da Covid passando de 30 mil, mais de 12 milhões de desempregados, numa recessão histórica, “lunáticos” (palavras de Gilmar Mendes, falam em intervenção militar.
Tudo bem, mas vale lembrar uma cena ocorrida há alguns anos em Brasília.
Um çábio defendia seu projeto e tirou da manga o que supunha ser um grande argumento:
“Se fizermos isso, o Paraguai fica na nossa mão”.
Respondeu-lhe um sábio:
“E você faz o que com ele?”
Cansaço
Se o ministro da Esducassão reclamar de cansaço e pedir para ir embora, seu motivo será entendido.
Cerco
O governador Wilson Witzel (Harvard Fake ‘15), deve se preocupar com possíveis confissões premiadas de pessoas que trabalharam no seu governo, ou mesmo de gente que bicava no entorno.
Seu nome está na roda desde janeiro, colocado por um atravessador de negócios paraibano.
Profeta armado
O doutor Pedro Guimarães, presidente da Caixa, é um homem valente e tem 15 armas em casa.
O benefício de R$ 600 para os invisíveis foi aprovado no fim de março e só no fim de junho a Caixa se comprometeu a providenciar cadeiras para as pessoas que vão para as filas diante de suas agências.
E levaram três meses para perceber que os bípedes sentam.
As cores de Aras
O procurador-geral Augusto Aras fará história pelas suas falas e pelos seus silêncios, mas já conseguiu animar Brasília pela policromia de suas gravatas.
Com um presidente que usa casaca de gola redonda, a única curiosidade da indumentária dos hierarcas estava nos patacões que carregam nos pulsos. Os ministros Braga Netto e Augusto Heleno têm relógios de astronauta. O embaixador Ernesto Araújo carrega um patacão que parece ter até horóscopo. Chique, só o da ministra Tereza Cristina, de aço, que parece ser um Cartier.
Duas faces
Existem empresários e empresários. O restaurante La Casserole, tradicional casa de pasto do andar de cima, está comemorando seu 66º aniversário com uma campanha para arrecadar recursos, destinandos a fornecer refeições para 6.600 necessitados do Centro de São Paulo. Cada R$ 20 doados servirão para cobrir os custos de uma refeição. A iniciativa ajudará também as famílias de 50 funcionários, parceiros e fornecedores.
Com 192 doadores, já conseguiram R$ 52 mil. Um freguês deu R$ 4 mil.
Na outra ponta fica a Enel, concessionária de energia de São Paulo. Tendo retirado das ruas os funcionários que liam os relógio do consumo, cobrou R$ 7 mil ao Casserole, que está parado. A conta não deveria ter chegado a R$ 100, mas ela se baseou no consumo médio do último ano. Apanhada, ela promete compensar suas vítimas.
Astro rei
Lula recusou-se a assinar os manifestos em defesa da democracia e explicou: “Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.
Gleisi Hoffmann, presidente do PT, deu nome aos bois: Lula não poderia assinar um manifesto junto com Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, que não assinou coisa alguma.
Cada um assina o que quer, mas em 1941, quando a Alemanha invadiu a União Soviética, o primeiro ministro inglês Winston Churchill aliou-se imediatamente a Stalin e disse:
“Se Hitler invadisse o inferno, eu diria uma boa palavra a respeito do Diabo na Câmara dos Comuns.”
Churchill tinha horror aos comunistas e, uma semana depois, proibiu que a BBC tocasse seu hino, a Internacional.
Quem fez o edital?
Depois do vexame da nomeação e da exoneração do presidente do Banco do Nordeste do Brasil, Bolsonaro e sua Nova Política entregou ao Centrão as presidências da Fundação Nacional da Saúde e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Juntos, movimentam R$ 57 bilhões.
Com menos de dois anos de governo, o capitão está no quarto presidente do FNDE e até agora ninguém explicou quem preparou o edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks ao custo de R$ 3 bilhões. Pelo seu desenho, os 255 alunos de uma escola da rede pública mineira receberiam 300.020 laptops.
Outro dia o vice-presidente Hamilton Mourão defendeu as negociações com o Centrão e disse que “compete aos organismos de fiscalização cumprir seu papel e o ministro da área ficar em cima disso aí, para que está aí a Controladoria-Geral da União?”
Bingo. Foi a CGU que sentiu cheiro de queimado no edital e provocou a sua revogação. Continua faltando contar quem e como botou aquele jabuti na forquilha.
El País: Mulheres testam as ruas em protestos por direitos, pelo fim da cultura do feminicídio e contra Bolsonaro
Atos estão marcados em 70 cidades contra retrocessos na pauta feminista, que avança em países vizinhos. Legislação de proteção à mulher avançou no país mas assassinatos subiram
Heloísa Mendonça, do El País
As mulheres no Brasil ainda não conseguiram encher as ruas na mesma proporção que suas pares na Argentina, no Chile, ou nos Estados Unidos e Espanha, quando o assunto é luta por direitos femininos – ou feministas. Mas neste domingo, 8 de março, atos convocados em mais de 70 cidades do país pretendem marcar a posição das brasileiras identificadas com a pauta feminista que se veem ameaçadas pelo retrocesso do atual Governo. As críticas às políticas do presidente Jair Bolsonaro serão um dos motes de vários atos convocados por movimentos, como Mulheres contra Bolsonaro, Marcha Mundial das Mulheres e o coletivo Juntas. O protesto marca também um grito contra o aumento do feminicídio do Brasil, o quinto país que mais mata mulheres no mundo. Apesar da taxa total de homicídios estar em queda, a violência contra as mulheres cresceu no último ano. Dados compilados pela Folha de S. Paulo apontam que o feminicídio avançou 7,2% em 2019. No total, foram 1.310 vítimas de violência doméstica ou por sua condição de gênero. Em 2018, o feminicídio já tinha aumentado 4% , segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país.
Em São Paulo, o ato acontece às 14h na Avenida Paulista. O ataque ostensivo do presidente Bolsonaro a jornalistas mulheres, como Patricia Campos Mello e Vera Magalhães, também entrou na pauta, assim como demandas específicas das mulheres negras, que sofrem de uma situação ainda mais vulnerável no âmbito sócio-econômico. “Não há como negar que há pautas específicas das negras já que no Brasil existe uma desigualdade entre as próprias mulheres. São as negras que mais morrem, as que são mais encarceradas, as com menos acesso à saúde e as que ganham menos”, explica Juliana Gonçalves, uma das organizadoras da marcha das mulheres negras de São Paulo. As mulheres pretas ou pardas continuam na base da desigualdade de renda no país. Em 2018, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração.
Falar das especificidades das mulheres negras foi, por muito tempo, visto como algo que não agregava à luta ou dividia o movimento feminista, segundo Gonçalves. “Mas quando a gente não fala, tornamos invisível as condições mais precárias e de vulnerabilidade que estão mais intensas na vida de uma mulher negra”, afirma. Ela explica, no entanto, que nos últimos anos, esse diálogo vem melhorando. “As mulheres brancas tem aumentado muito a escuta. É um avanço, em 2018, as mulheres indígenas negras vieram para frente do ato”, diz.
A representante do movimento das mulheres negras pondera, entretanto, que ainda há um longo caminho a ser percorrido, já que muitas mulheres brancas que se autodenominam feministas, reproduzem um discurso machista. “No próprio Big Brother está acontecendo uma situação racista contra o Babu. Não há como ser feminista e não ser antiracista”.
Em um momento, que segundo Gonçalves, o líder de uma nação legitima o discurso homofóbico, racista, que sempre esteve na sociedade isso, é hora de ir às ruas. “Participar do 8 de março é uma forma de gritar é o nosso combate. É uma forma de reafirmar os valores democráticos que estão em risco. Nós também marcharemos no dia 25 de julho, dia internacional da mulher negra latina-americana, e no dia 14 de março quando o crime bárbaro de Marielle Franco completa dois anos sem ter sido solucionado”, diz.
Feminicídio
Desde 2015, quando a lei do feminicídio foi criada, o número de assassinato de mulheres apresenta uma trajetória ascendente. Para alguns especialistas, os feminicídios aumentaram de fato, enquanto outros defendem que apenas o número de registros subiram. Para Gabriela Mansur, promotora de justiça e especialista em direito das mulheres, apesar da violência contra a mulher estar aumentado, a alta dos registros de feminicídios acontece porque a polícia está mais familiarizada com a lei e tratando os casos corretamente.
“Mas não podemos fechar os olhos para essa situação. Quanto mais voz e poder as mulheres estão adquirindo, mais violência elas estão sofrendo também. Precisamos transformar toda a sociedade. É necessário mais investimento em educação e investimentos em políticas públicas voltadas para a igualdade”, afirma Mansur, que alerta que o tema deve ser uma pauta prioritária no país e não apenas levantado no dia internacional das mulheres ou quando um caso grave acontece”, diz ela. O assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, por exemplo, é uma das bandeiras que estão puxando protesto – há outro marcado para o dia 16, quando a execução da vereadora da Maré e de Gomes completam três anos.Mansur avalia que o país tem hoje uma legislação avançada de proteção à mulher, com a criminalização do assédio, a criação do feminicídio, lei Maria da Penha (contra a violência doméstica) e uma nova lei que obriga profissionais da saúde a comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra mulheres. “Felizmente, hoje vemos um engajamento maior da sociedade no tema. Em São Paulo, temos o exemplo do programa Tem Saída, que conta com o apoio de empresas privadas que viabilizam vagas para mulheres em situação de violência doméstica para gerar autonomia financeira. Estamos cada vez mais unidas ocupando nossos espaços”, explica.
Luiza Eluf, advogada criminal e autora de livros jurídicos sobre crimes sexuais e passionais, concorda que o país progrediu muito nos últimos anos na proteção das mulheres, mas as lei precisam ser mais respeitadas. “Temos noções muito claras e legislações muito precisas que impõem os direitos das mulheres. Falta obedecer”, diz a procuradora de justiça aposentada. Luiza lamenta que o padrão do comportamento do Governo de Jair Bolsonaro seja de desrespeito à mulher e que ataques, como os promovidos a jornalistas mulheres (Partícia Campos Mello e Vera Magalhães) sejam tão constantes. “O presidente utiliza as mulheres como objeto de uso e não se preocupa em ofendê-las em sua sexualidade”, diz. A advogada vê como um forte retrocesso o tratamento de subordinação atribuído às mulheres pelos integrantes do Governo. “A senhora [ministra da Mulher, da Igualdade e dos Direitos Humanos] Damares Alves, que cuida das políticas públicas das mulheres, ainda não percebeu a necessidade de considerar a mulher um ser humano completo e com direito a sua autodeterminação. Ela tem uma visão da mulher subalterna ao marido ou ao homem que esteja ao seu lado”, diz. Damares tem sido questionada sobre os ataques de Bolsonaro a mulheres, como a jornalista Patricia Campos Mello, mas a ministra acaba sempre justificando o que o presidente faz.
Apesar do esforço em aumentar a presença nas ruas, o movimento feminista no Brasil hoje está mais identificado com pautas abraçadas pela esquerda no país, o que tem afastado mulheres que confundem o protesto por direitos reprodutivos, garantias trabalhistas ou pela mesma democracia como atos de política partidária. Um desafio para as feministas brasileiras, que veem nos movimentos de países vizinhos um modelo. Chilenas e argentinas se tornam cada vez mais protagonistas dos movimentos de rua. Nos últimos meses, protestos multitudinários pelos direitos das mulheres avançaram em vários países da região, focados na igualdade de direito e contra a violência de gênero. No Chile, a performance “Un violador en tu camino”, do coletivo LasTesis, rompeu barreiras e deu a volta ao mundo. No Brasil, a luta feminista também pulsa forte com mudanças por dentro do sistema legal, mas ainda não ganhou uma expressão de porte nas ruas como no exterior. Este domingo será um novo teste.