projeto liberal
Míriam Leitão: Sobram farrapos da fantasia liberal
Eu conto ou vocês contam ao ministro Paulo Guedes que o projeto dele acabou? Nunca teve viabilidade com o atual presidente, na verdade. Guedes embarcou numa canoa na qual não havia espaço para as ideias liberais. Ele sofre vetos diários às suas propostas e tem engolido em seco. Não privatizou, não reduziu barreiras ao comércio, exceto de armas, não diminuiu o tamanho do Estado.
Seus assessores, ou gestores nomeados por ele, de vez em quando ficam no dilema entre a demissão ou ser humilhado pelo presidente Bolsonaro. Tudo o que conseguir agora será prêmio de consolação. Não interessa mais se o presidente do Banco do Brasil fica ou não. André Brandão já foi informado que não tem qualquer autonomia de gestão, apesar de presidir um banco que tem acionistas privados e que atua num mercado que passa por imensas mudanças e aumento da competição.
A Caixa Econômica Federal, que é inteiramente estatal, virou um braço da propaganda política bolsonarista. Pedro Guimarães, com seus 11 revólveres e seus litros de cloroquina, faz qualquer papel que agrade ao chefe. Virou ajudante de lives e animador de auditório. A última agência que abriu foi por ordem do presidente, e não por ser bom ou não para a Caixa. A intervenção na CEF já ocorreu em outros governos, mas agora virou o quintal da presidência. O presidente do Banco Central tentava ontem à tarde convencer o governo de que era preciso segurar Brandão no cargo. Se ficar, terá perdido qualquer liberdade de ação.
Paulo Guedes dá aos interlocutores sempre a mesma resposta quando é perguntado sobre suas derrotas. “O presidente é que foi eleito, ele é que tem os votos.” O ministro, porém, garantiu que este seria um governo liberal na economia. Para acreditar era preciso ignorar tudo o que Bolsonaro havia dito antes. Bolsonaro disse que o presidente Fernando Henrique merecia ser fuzilado por ter privatizado, só para citar um eloquente sinal. O mercado financeiro comprou a tese de que o ministro dobraria o presidente. Ocorreu o oposto.
A lista da intervenção de Bolsonaro nos assuntos do Ministério da Economia é enorme. Nesses dois anos, Bolsonaro vetou propaganda do Banco do Brasil, revogou um aumento da gasolina, avisou que nem a Ceagesp será privatizada, criou e capitalizou estatais militares, sepultou o projeto de fusão dos programas sociais, demitiu o presidente do BNDES, o secretário da Receita Federal. O secretário da Fazenda teve que sumir para não perder o cargo. A reforma administrativa dormiu na gaveta do presidente até ficar bem aguada, irreconhecível.
Na semana passada, o presidente disse que o Brasil havia quebrado e não podia fazer mais nada. Só isso já deveria ser o suficiente para o ministro, que chegou acusando de incompetentes todos os antecessores, pegar o seu boné. Mas ele, que estava de férias, preferiu sair do seu descanso e, mais uma vez, justificar a declaração do presidente.
O Tesouro terá que rolar mais de R$ 600 bilhões de dívida nos primeiros quatro meses. Se o presidente diz que o país está quebrado, o que os financiadores da dívida podem pensar? O ministro, quando tenta justificar tudo o que o presidente diz, erra. Nesse caso ele disse que Bolsonaro só se referia ao setor público. Piorou a declaração.
No Chile de Pinochet, os Chicago Boys impuseram reformas liberais num projeto ditatorial que deixou milhares de mortos. Liberalismo deveria ser o oposto de autoritarismo, mas muitos que se definem como “liberais” não são necessariamente democratas. O grupo que foi ao poder com Bolsonaro nunca se incomodou com a defesa que ele faz da ditadura e da tortura. Nunca se incomodou que ele disse, quando deputado, que a ditadura deveria ter matado 30 mil. Para eles, o importante é que iriam reduzir o tamanho do Estado, abrir a economia, privatizar, vender imóveis públicos, acabar com os subsídios. No 25º mês da administração, tudo o que têm para mostrar é uma reforma da Previdência que foi feita pelo Congresso e na qual o presidente só entrou para defender vantagens corporativas para a sua clientela.
Paulo Guedes já sabe que não deu. Mas tentará terceirizar a culpa para o Congresso, a oposição, Rodrigo Maia, a imprensa, a social-democracia. Vai fazer vistas grossas para todo o autoritarismo do governo. Inclusive na economia.
Gustavo Franco: O fim do ano, fim da picada
A visita-comício na Ceagesp marcou o rompimento público do projeto liberal de Bolsonaro
Foi o mais longo dos anos recentes, a despeito de ter iniciado tarde, apenas em 11 de março, quando a OMS declarou que o surto de covid-19 era uma pandemia, e terminado cedo, em 15 de dezembro, com o comício da Ceagesp.
Sim, o ano terminou em 15 de dezembro, com a histórica visita do presidente ao “mercadão” de São Paulo, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, Ceagesp S/A, empresa pública federalizada em 1997, para pagar dívidas do Estado, que tentou privatizar a companhia em 1996, mas não houve um lance no preço mínimo de R$ 65 milhões.
A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com a sua própria política econômica declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um “casamento arranjado”.
A Ceagesp foi incluída na privatização pelo decreto presidencial n.º 10.045 de 4/10/19, do próprio Bolsonaro, e foi retirada nesse comício, sem decreto, no peito e na raça.
O rompimento do presidente com o liberalismo já vinha se desenhando há tempos, mas a crise final que explode neste momento teve seus detalhes conhecidos só após de reunidos e consolidados diversos relatos preciosos e picantes de testemunhas que atinaram para a transcendência do momento.
Tudo começou de forma um tanto mágica, e inesperada, quando o presidente, logo ao chegar ao palanque viveu um “momento Philip Roth”, como confirmam várias testemunhas:
– Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair... Não consigo encontrar, é uma coisa pequena, vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais, estavam todas no mesmo chaveiro...
Um dos muitos alter egos de Philip Roth é um ator que perde sua mágica (Simon Axler, de “A humilhação”), assim, de uma hora para a outra, e se torna um canastrão e uma caricatura de si mesmo: “tudo que funcionara para fazer dele quem ele era se tornara agora o que o fazia parecer um louco”.
– É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada pelo chão, vamos procurar, por favor.
Os assessores à sua volta não entendiam, como assim, presidente, perdeu o que, mesmo, será que alguém pegou? E então, o presidente se virou na direção do presidente da Caixa, que se acotovelava entre os circundantes, suado como todos, buscando visibilidade nas fotos, e perguntou diretamente:
– Você viu meu projeto econômico, Pedro...?
Não lembrava do nome completo. Sabia das iniciais, P.G., iguais às do ministro, e das piadas sobre o PG2, mais novinho, ainda mais irrequieto, mas o nome era outro, também com “G”.
Pedro G. percebeu, e todos em volta, mas enquanto vários já sussurravam “Guimarães”, “Guimarães”, Pedro G. cochichou bem alto no ouvido que o presidente lhe estendera:
– Vamos abrir uma agência da Caixa aqui.
O presidente vira-se para o público, microfone em riste, e troveja:
– O nosso Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal vai abrir uma agência aqui, amanhã mesmo.
E a multidão reage com um bafejo de aplausos, como uma fera amorosa rugindo em busca mais carinho. O presidente volta a perguntar de seu projeto, mas foi Pedro G. quem tomou a iniciativa, balançando a cabeça decidido, está perdido mesmo, presidente, vamos em frente, a fila anda, e o presidente olhou desconfiado, virou-se para a multidão e soltou o verbo:
– Quanto à privatização, quero deixar bem claro que enquanto eu for o presidente da República, essa é a casa de vocês. Nenhum rato vai sucatear isso aqui para privatizar para os seus amigos.
Uma das testemunhas, conhecedora de Roth, lembrou de uma fala do escritor: a ficção existe para eviscerar a realidade. Outra comentou, em resposta, é mas no Brasil a realidade possui tripas que a ficção desconhece.
E foi assim que terminou “fase liberal” do governo, sepultada simbolicamente na Ceagesp que, aliás, tenha-se claro, não é mais que uma metáfora – com seus 600 funcionários, faturamento de R$ 117 milhões (2019) e prejuízos de mais de R$ 50 milhões acumulados entre 2016 e 2019 – perto dos R$ 7,6 bilhões que o Tesouro colocou em 2019 em aumento de capital da Emgepron, uma estatal que constrói fragatas para a Marinha.
*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS