prisão
João Gabriel de Lima: Lula irá polarizar um país despolarizado?
A comoção em torno da ordem de prisão contra Lula pode gerar um efeito colateral importante. O de polarizar um cenário que, ao contrário do que diz o senso comum, estava despolarizado. O que existe no Brasil de hoje é um esgarçamento da cultura democrática, que torna difícil o diálogo essencial ao debate público. É a isso que as pessoas costumam se referir quando usam o termo “polarização”. Mas está errado.
A palavra “polarização” se transformou num clichê e numa mistificação. Como todo clichê, simplifica uma realidade complexa. Trata-se de mistificação porque, ao se comparar os cenários das eleições presidenciais de 1994 para cá, deduz-se que o Brasil ficou menos polarizado, e não mais.
A hora da política
Como o nome sugere, ocorre polarização quando dois partidos políticos atraem, a exemplo do norte e do sul magnéticos, eleitores de diversas tendências ideológicas. Dois, não mais que dois – da mesma maneira que a terra tem apenas duas calotas polares. O Brasil esteve polarizado entre PT e PSDB em seis eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Uma polarização curiosa, entre dois partidos que, a rigor, surgiram do mesmo grupo de intelectuais paulistas. Os que se reuniram para ler “O Capital”, de Karl Marx, nos anos 1950, e posteriormente fundaram o “think tank” Cebrap, nos anos 1970, ocasião em que se aproximaram de sindicalistas como Lula. Na quadra democrática, o PSDB ziguezagueou entre esquerda e direita, e o PT entre ideias econômicas liberais e intervencionistas. PT e PSDB alternaram fase e defasagem até medirem forças pela primeira vez, em 1994. Tiveram um momento de grande consonância de ideias (embora fingissem que não) na passagem de bastão de Fernando Henrique a Lula, entre 1998 e 2006. Depois, se afastaram de vez.
A eleição atual, com múltiplas candidaturas e alto grau de imprevisibilidade, pode representar o fim desta polarização. Ela já foi comparada várias vezes à de 1989 – época em que o Brasil, como hoje, estava despolarizado. No primeiro pleito após a redemocratização, o campo da esquerda se dividia entre Lula, Mario Covas e Leonel Brizola. A direita tinha Fernando Collor, Paulo Maluf e Guilherme Afif Domingos (curiosamente, todos esses nomes, em diferentes ocasiões e intensidades, tiveram algum tipo de relacionamento com o PT). O lendário deputado Ulysses Guimarães, o “senhor Constituinte”, candidato que representava a situação – o PMDB do presidente José Sarney – era considerado “de centro”.
Cabe aqui uma pequena digressão sobre os significados dos termos “esquerda” e “direita” no mundo moderno. A principal referência neste campo é o filósofo italiano Norberto Bobbio, que em 1994 atualizou os dois conceitos para o cenário pós-Muro de Berlim. Resumindo o pensamento de Bobbio, esquerda e direita representam duas maneiras diferentes de promover inclusão social. A esquerda se preocupa com a igualdade – obtida através de políticas públicas, que são financiadas com aumento de impostos. Já a proposta de valor da direita é a da prosperidade – menos impostos, mais crescimento econômico, mais oportunidades. Por este critério, note-se, os governos de Lula e de Fernando Henrique são igualmente de esquerda. Ambos aumentaram impostos e financiaram programas sociais.
É simplista, no entanto, falar apenas em “esquerda” e “direita” hoje. O cenário é bem mais variado e interessante. Há várias esquerdas e várias direitas. No mesmo ano de 1994, o sociólogo inglês Anthony Giddens notou que esquerda e direita poderiam se dividir também no campo da economia (mais ou menos nacionalistas, mais ou menos afinadas com o mainstream da globalização) e da cultura (mais ou menos abertos no capítulo das liberdades individuais, em temas como drogas, aborto ou casamento gay). Bobbio e Giddens são as duas principais referências para pensar direita e esquerda nos dias de hoje.
Cruzando os dois critérios e adaptando-os à realidade brasileira, surgem pelo menos três direitas e quatro esquerdas em nosso cenário. Uma direita liberal, globalista na economia e sem opiniões fortes na área cultural. Uma direita conservadora, globalista na economia e restritiva em termos de liberdades individuais. Uma direita nacionalista, defensora de maior intervenção do Estado na economia. À esquerda, teríamos os social-democratas, liberais na economia e defensores de políticas de inclusão fortes. Os nacionalistas, que defendem gastos do Estado não apenas na área social, mas também políticas setoriais de incentivo à economia. Essas duas vertentes pregam a convivência com o “capitalismo” – ao contrário da esquerda tradicional, que se define como “anticapitalista” e crê que “um outro mundo é possível”. Por fim, existe uma esquerda cultural, focada no tema das liberdades individuais (leia quadro). Ambas – esquerda e direita – abrigam também minorias autoritárias, o que subiria o número de posições de sete para nove.
Tal variedade, presente em 1989, pode ser notada hoje também. Uma direita nacionalista, herdeira do estatismo do regime militar, era representada por Paulo Maluf (hoje seria Bolsonaro, apesar de ter escolhido um economista liberal para coordenar seu programa; o saudosismo da ditadura militar faz parte da receita do candidato). Guilherme Afif Domingos, que defendia um vasto programa de privatizações, era a direita liberal em 1989 -- hoje seria João Amoedo. Fernando Collor representava uma terceira vertente, que não se confundia com nenhuma das duas, e derivava de um slogan publicitário – “o caçador de Marajás”. Para as próximas eleições, o governador paulista Geraldo Alckmin tenta se equilibrar na corda-bamba do centro, outrora ocupado por Ulysses Guimarães.
À esquerda, Lula representava os tradicionais, campo para o qual seu partido parece ter voltado hoje – e que já há algum tempo é ocupado por Guilherme Boulos e pelo PSOL, principalmente o do Rio de Janeiro. Próxima a este campo está Manuela D’Ávila, cujas intervenções nas redes sociais remetem aos temas da esquerda cultural. Nas eleições de 2014 Marina Silva ocupou posição tipicamente social-democrata – liberal na economia e com agenda social forte – e se espera que faça o mesmo no próximo pleito. Em 1994, quem ocupava esse posto era Mario Covas com seu “choque de capitalismo”. Ciro Gomes, que se aproximou do grupo desenvolvimentista liderado pelo ex-ministro tucano Luiz Carlos Bresser-Pereira, seria o representante da esquerda nacionalista – campo que, em 1989, era ocupado por Leonel Brizola, a reivindicar a herança de Getúlio Vargas.
O que há de positivo nesse cenário fragmentado é que, no mundo ideal, o debate eleitoral poderia ser bastante rico. O Brasil tem vários problemas concretos a resolver: inclusão social, crescimento econômico, segurança pública e combate à corrupção, para ficar nos itens de agenda que mais aparecem nas pesquisas. Seria interessante se cada uma das várias correntes acima apresentasse suas ideias para atacar tais questões – a rigor, os candidatos e seus times já estão fazendo isso em entrevistas à imprensa. Esse debate essencial, como em 2014, pode ficar em segundo plano se a temperatura emocional subir muito – e se ocorrer, aí sim, algum tipo de polarização, com os “haters” de Lula de um lado e os “lovers” de outro.
Talvez as próximas semanas mostrem, no entanto, que o país não se divide apenas entre “lovers” e “haters” de Lula. Há também posições intermediárias. Os que gostam dele, mas acham que sua prisão se justifica do ponto de vista jurídico. Os que não gostam, mas não veem culpabilidade clara no caso do tríplex. E há ainda – quem sabe a maioria – os que, à esquerda e à direita, gostando ou não gostando de Lula, querem mesmo é que o combate à corrupção não pare por aí, e se estenda aos que escaparam da cadeia por causa do foro privilegiado (caberá ao eleitor decidir, em outubro, se dá ou não uma nova chance a tais políticos). Existem vários tons de cinza entre “lovers” e “haters”, da mesma maneira que existem múltiplas esquerdas e direitas. A realidade costuma ser mais complexa que os clichês e as mistificações.
Talvez, no entanto, as emoções se acirrem. Se isso ocorrer, corremos o risco de perder, mais uma vez, a oportunidade de conversar seriamente sobre o país que queremos ser.
*João Gabriel de Lima é jornalista, ex-diretor de Redação de Época e prepara livro sobre a polarização PT/PSDB
Lúcio Flávio Pinto: Lula e o tempo perdido
Ao se homiziar, desde ontem à noite e até agora, no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, na Grande São Paulo, Lula não apenas buscou um bunker para resistir à ordem de prisão expedida contra ele pelo juiz Sérgio Moro, levando a tensão ao máximo para dela tirar proveito político e lançar sementes para uma nova colheita, sem apreço pelo interesse público e o bem coletivo. É Lula, o supremo.
Parece também ter feito um astuto movimento simbólico, de volta às origens, para se banhar na água pura que já correu pela sua biografia. Para se lavar das nódoas da sujeira, materializada na sentença condenatória por crime de corrupção que o persegue.
Lulistas em geral, sejam petistas ou não, continuarão a bater na mesma tecla; de que o guia dos povos é vítima de uma conspiração das sórdidas elites. As que se tornaram conhecidas por seu novo prontuário criminal, que ele beneficiou em muito maior dosagem do que o povo humilde e trabalhador.
Povo que continua a lhe delegar poderes e credibilidade pelos benefícios realmente recebidos (que lhe foram sonegados pelas mesmas elites, sobretudo os tucanos emplumados e perfumados), mesmo sendo gorjeta em relação às centenas de bilhões de reais que foram parar nos bolsos polpudos dos condutores das "multinacionais brasileiras" gestadas pelos dois governos do PT (e que se liquefizeram sem o aditivo estatal).
A volta à origem é uma busca do tempo perdido e das oportunidades oferecidas pela história, antecipadamente condenada ao insucesso por sua irrealidade. A remissão dos oito anos de Lula, em conjunto com os seis anos de Dilma, perverteram a imagem do líder carismático, dos maiores políticos da república.
Os autos dos processos contra Lula estão recheados de provas contra a sua condução dos negócios do Estado. Quem vier a escrever uma biografia competente dele passará por esse lodaçal, no qual não há inocentes nem heróis.
Beneficiado por uma democracia dotada de todas as formalidades requeridas por esse sistema político, Lula percorreu cada uma das etapas do processo judicial, intervindo na produção de provas através de advogados famosos e competentes. Ao final do primeiro capítulo, foi condenado pelo juiz singular.
Recorreu tantas vezes quantas lhes ofereceu a lei processual, Perdeu de goleada, de 5 a 0 no STJ, depois de 3 a 0 no TRF da 4ª região. Seria tão perfeita a conspiração das elites que ele só conseguiu placar apertado no leniente STF?
Derrotado em três instâncias e ainda contando com a possibilidade de novos recursos, sacados com desprezo pela razão de recorrer, agora Lula não aceita mais as regras objetivas da justiça e adota suas próprias leis, promulgadas no seu bunker sindical. Ainda parece acreditar na possibilidade de recuperar a pureza inicial, fazendo parar o curso da história e a reescrevendo conforme seu desejo soberano.
Lula, que quase nada leu ao longo da vida, não decorou a lição de Marx aplicada à sua biografia. Já foi tragédia e drama. Agora, é farsa.
Folha de S. Paulo: STF errou ao julgar habeas corpus de Lula e não princípio, diz especialista em Supremo
Nabor Bulhões afirma que julgamento sob comoção produz precedentes jurídicos péssimos
Por Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo
O Supremo errou ao colocar em julgamento, e negar, o habeas corpus do ex-presidente Lula. Em vez de tratar de um caso concreto, que divide o país, seria mais produtivo decidir sobre o princípio genérico da prisão após decisão em segunda instância.
A opinião é de um dos maiores especialistas em Supremo, o advogado Nabor Bulhões, 67, que atua na mais alta corte do país há 35 anos. Já obteve vitórias para o ex-presidente Fernando Collor e perdeu no caso do ex-ativista de esquerda Cesare Battisti, quando defendeu que ele fosse extraditado para a Itália.
Em entrevista à Folha, Bulhões, que defende o empresário Marcelo Odebrecht na Lava Jato, criticou a decisão do Supremo de prender a partir da segunda instância e classificou a ordem de prisão a Lula de "prematura" e "desprovida de legitimidade constitucional".
Folha - Ao negar o habeas corpus do ex-presidente Lula, o Supremo manteve a sua jurisprudência de que a execução antecipada da pena não viola o princípio da presunção de inocência?
Nabor Bulhões - Manteve em termos. Embora o tema de fundo fosse a questão da execução antecipada da pena em face da garantia constitucional da presunção de inocência, o entendimento prevalecente foi o de que, como a decisão a ser proferida teria eficácia só para o ex-presidente Lula, a decisão com que o Superior Tribunal de Justiça negara a impetração lá interposta não consubstanciava constrangimento ilegal à liberdade do paciente porque se fundara na jurisprudência ainda vigente da suprema corte. A jurisprudência diz que a execução antecipada da pena não afrontaria a garantia da presunção de inocência.
Qual foi o peso do voto da ministra Rosa Weber?
Foi decisivo. Ressalvando o seu entendimento pessoal quanto à incompatibilidade entre a execução antecipada da condenação e a garantia da presunção de inocência, declarou que não poderia fazer prevalecer o seu entendimento pessoal neste caso porque não se tratava de um processo de natureza objetiva, como uma ação declaratória de constitucionalidade, mas se tratava de um habeas corpus, um feito de natureza subjetiva, cuja decisão não teria eficácia para todos. Por isso declarou que, tendo o STJ se fundado na jurisprudência ainda vigente do STF sobre a matéria, não poderia estimar que tal decisão fosse ilegal e abusiva para efeito de concessão de habeas corpus. Por que ministros como Celso de Mello e Gilmar Mendes tiveram compreensão diferente de Rosa? Para eles, a natureza subjetiva do HC não impede a análise da questão de fundo. Esses ministros concederam o HC dizendo que, embora o processo tivesse caráter subjetivo, seria possível ao plenário do tribunal rever a tese jurídica da jurisprudência vigente para emprestar-lhe eficácia para todos e efeito vinculante, mesmo se tratando, como se tratou, de declaração incidental de inconstitucionalidade da execução antecipada da pena por incompatibilidade com a garantia constitucional da presunção de inocência. Ao meu ver, agiram corretamente porque há expressivo precedente do plenário nesse sentido. Nada impedia que a ministra Rosa Weber pudesse apreciar a matéria de fundo no julgamento do HC, não tendo que esperar o julgamento de duas ações declaratórias de constitucionalidade.
O sr. acha que foi um erro colocar o HC do Lula em julgamento antes dessas ações?
No meu entendimento pessoal, que é coincidente com o de vários ministros do Supremo, essas ações objetivas deveriam ter sido submetidas a julgamento antes do habeas corpus do ex-presidente Lula. Tenho para mim que o julgamento da relevante questão, no plano abstrato, não atrairia o substrato político do caso Lula que gerou divisões e controvérsias nos meios jurídicos, na opinião pública e na imprensa. Em momentos como esses sempre lembro da advertência do grande advogado americano e professor de Harvard Alan Dershowitz, que dizia que até nos grandes tribunais casos difíceis podem gerar maus precedentes e que casos emocionais podem gerar precedentes ainda piores.
O ministro Luís Roberto Barroso defendeu que a corte deveria ouvir o "sentimento social". O ministro está certo?
O nosso sistema jurídico de matriz romano-germânica exige do juiz um julgamento isento e imparcial, sempre tendo em conta a lei e a Constituição. No caso concreto, em que por opção do legislador constituinte e do legislador ordinário se estabeleceu de forma clara e objetiva a garantia da presunção de inocência, sendo a liberdade a regra e a prisão a exceção, não se pode conceber que, em nome do sentimento social, se possa mudar a compreensão de matéria que se encontra resolvida no texto constitucional e no texto da lei processual penal. A substituição do princípio da legalidade pelo sentimento da nação já levou a tragédias históricas, como se viu no parágrafo 2º do Código Penal alemão do nazismo: "Delito é tudo o que fere o são sentimento da nação ariana". Os defensores da prisão após decisão de segunda instância dizem que a medida é essencial para combater a corrupção. Não se pode combater a corrupção violando-se direitos e garantias constitucionais. Da mesma forma que não se pode conceber que juízes possam decidir matérias relacionadas a esses temas sensíveis alinhando-se a movimentos de combate à corrupção e à impunidade. O juiz tem que ser isento e imparcial para absolver ou condenar, tendo sempre como norte a incontornável garantia do devido processo legal.
Os defensores da prisão após a segunda instância dizem que essa medida vale em países de tradição democrática como EUA e França. Isso faz sentido?
Não, não faz sentido. Esse tipo de colocação procura mascarar uma solução que, no sistema jurídico-constitucional brasileiro, representa clara violação de garantia fundamental estabelecida em nossa Carta Magna e na legislação infraconstitucional. Quem se dispuser a fazer uma análise histórica do estabelecimento da garantia da presunção de inocência na Constituição de 1988 verificará que o constituinte fez clara opção pela adoção de um modelo de garantia que não permite execução de condenação sem o seu trânsito em julgado. Mas o legislador constituinte não afastou a possibilidade da prisão em qualquer fase do processo, inclusive após a condenação, ao estabelecer no artigo 5º da Constituição que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente". Mais claro do que isso o sistema não poderia ser.
O Supremo será incongruente se mantiver no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade a execução antecipada da pena?
Penso que sim. Não faz muito tempo, o plenário do Supremo declarou o estado de inconstitucionalidade do nosso sistema carcerário por sua incapacidade de garantir os direitos humanos. Ora, não parece congruente que o Supremo Tribunal Federal autorize que milhares de pessoas sejam encarceradas em sistema reconhecidamente violador do princípio da dignidade da pessoa humana.
O que o sr. achou da decisão de prender Lula?
A prisão do ex-presidente Lula traz a marca da incongruência a que já me referi: trata-se de uma prisão prematura desprovida de legitimidade constitucional, pois decorre única e exclusivamente de condenação criminal não transitada em julgado. Viola assim o artigo 5° da Constituição e o artigo 283 do Código de Processo Penal.
Alon Feuerwerker: O primeiro tempo da final realista e fantástica acabou. Está 1 a 1. E vai ser jogo duro até o fim
O juiz apitou o fim da primeira etapa e a partida vai empatada em 1 a 1. Lula está preso e a tentativa insistente de fazê-lo concorrer nas eleições será apenas um esticar de corda. Mas Lula também conseguiu sair das ruas querido pelos dele, em vez de apenas apedrejado, cuspido e xingado pelos adversários. O jogo que era para estar decidido continua aberto.
É improvável que a prisão tenha corroído decisivamente o capital político de Lula, do PT e do bloco de esquerda. No outro lado, a narrativa que consolida é a de Bolsonaro, dificultando descontruí-lo, e portanto tornando mais complexa a missão do autonomeado centro. O centrismo e o bolsonarismo ainda não são indistinguíveis, mas andam cada vez mais parecidos.
Já o juiz da partida parece ter suas próprias circunstâncias. Apita sem se sentir obrigado a seguir a International Board. E é sensível à pressão para dar um jeito de os dois times perderem. O que poderia eventualmente produzir a situação inédita de alguém da arbitragem levantar a taça. Pois nada deve ser descartado neste torneio de realismo fantástico.
E as coisas estranhas de um jogo estranho não param aí. O chefe do policiamento deu de opinar sobre como prefere que o juiz apite. E na tribuna de imprensa, em vez do barulho do teclado das máquinas (coisa antiga, sei), só se ouve o alarido da torcida para o juiz expulsar o máximo de jogadores possíveis de cada lado, mesmo que isso leve a decisão para o STJD.
Não é impossível os 90 minutos (ou a prorrogação, ou os pênaltis) conseguirem chegar ao final e alguém sobreviver para erguer o troféu. A inércia é poderosa. Mas engana-se quem acha que a coisa acaba aí. O perdedor vai ao tribunal. E a possibilidade de uma solução boa é mais ou menos a mesma de Flamengo e Sport conseguirem acordo sobre quem foi campeão em 1987.
Haja metáforas. Vamos à vaca fria. Com Lula fora, a esquerda precisará deixar de lado o faz-de-conta e decidir o que quer da eleição. Se é só "marcar posição” ou usá-la para preservar força política institucional. E a direita precisará começar a depurar seu amplo leque de opções, para tentar reduzir o risco de não comer o bolo depois de comandar toda a festa.
Os problemas de cada lado são visíveis. O único terreno em que a esquerda consegue unidade de ação é na luta para ver Lula livre. Conforme o processo eleitoral caminhar, precisará dar um jeito de apresentar ao distinto público uma alternativa de poder. Quem gosta de voto de protesto é intelectual, diria Joãosinho Trinta. Povo gosta mesmo é de governo que resolva.
Na direita, continua o desafio de vencer a eleição dizendo o que vai fazer se ganhar. Seu programa não é em si popular. No governo, a direita brasileira só faturou eleições quando a economia ia bem. E se a recessão parece mesmo ter acabado, nada indica que a recuperação virá com forte redução do desemprego e aumento de renda, a tempo de influir na urna.
Sem contar, e ainda tem isso, a permanente ressureição do “novo”. Marina relançou-se, mas o nome da vez é Joaquim Barbosa. Ele terá uma posição privilegiada no segundo turno, se chegar lá. É razoavelmente votável pela esquerda contra a direita, e também pela direita contra a esquerda. Por isso, ambas certamente farão tudo para acabar com ele no primeiro.
Há hoje cinco nomes com chance real de ir ao segundo turno. O candidato de Lula, Bolsonaro, Marina, um nome “de centro” e Barbosa. Ciro entra no grupo se atrair o apoio da esquerda. Se esta operar bem, tem vantagem para ocupar uma das vagas. O que faz crer numa guerra do outro lado. Com Bolsonaro e Marina, principalmente, trabalhando para lipoaspirar o PSDB.
E sempre tem o governo. Pego emprestada a frase: governo no Brasil é que nem cobra, até morta pode matar. Sarney, no chão, quase embaralhou a eleição de 1989 com a candidatura de Silvio Santos. Em meio à confusão, aliás, uma estrutura razoavelmente operacional continua sendo a administração Temer. Não tem prestígio, mas sobra-lhe munição.
Em meio ao caos, uma força organizada leva vantagem. Está aí a chave da conjuntura e do processo eleitoral. Quem conseguir se arrumar antes para apresentar-se ao eleitor como um produto viável para enfrentar os grandes desafios nacionais pode conseguir boa vantagem na largada. E se o circuito revelar-se de ultrapassagens difíceis, isso pode ser decisivo.
Haja metáforas. Talvez o número delas seja proporcional à confusão.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Sérgio Besserman Vianna: Desigualdade
Contraditória a posição da ‘esquerda’ contra a prisão em segunda instância, privilegiando salvar o Lula
Retornando do exílio imposto pela ditadura militar, o professor Darcy Ribeiro caminhava pela Avenida Atlântica com uma amiga norueguesa. Sua amiga, no caminhar, observa: “Olha que homem bonito.” E o professor Darcy: “Onde?” Ela: “Ali.” Ele: “Cadê?” Ela: “Ali, bem na esquina”. Ele: “Não estou vendo...”
E então caiu a ficha: era o sorveteiro da Kibon. Corajosamente, ao contar essa história, Darcy Ribeiro retirava a verdade de debaixo das cobertas. Para um brasileiro da elite, mesmo sendo de esquerda, o sorveteiro não aparecia naturalmente na mente como um candidato a “homem bonito”.
Vivi uma história parecida que marcou para sempre, a ferro quente de afeto, minha alma. Era o réveillon da anistia, 1979. Meus pais resolveram receber muitos que retornavam do exílio e promover o “réveillon da anistia”.
Festa e muita alegria. Papai era um dedicado anfitrião e ficava de lá para cá conversando, contando piadas (bom nisso) e servindo. Basicamente uísque.
No dia seguinte, primeiro do ano, logo antes do almoço, meu pai me chama, sozinho, e me diz: “Senta aí que eu tenho algo sério e importante para te contar”. Segue a história, análoga à do professor Darcy Ribeiro.
A trabalhadora doméstica que estava ajudando era a Luísa, maranhense e já uma amiga. Faltando alguns minutos para a meia-noite, papai vai correndo à cozinha pegar gelo para os muitos scotches sendo bravamente consumidos. Luísa então o encontra e diz:
“Doutor Luis...”
E meu pai me conta de forma que lembro como se fosse ontem: “Eu então perguntei:
‘Que é Luísa, tá faltando alguma coisa?’ E os olhos dela encontraram os meus, um frio percorreu minha espinha e gelei. Entendi e me condenei. Abracei forte a Luisa e disse: ‘Feliz ano novo, muitas alegrias e muito obrigado por tudo’. Assim somos no Brasil. Meu filho, é preciso estar sempre atento para não sucumbir ao que nós somos e termos chance de mudar isso.”
Analogamente, é absurdamente contraditório o posicionamento da “esquerda” contra a prisão em segunda instância, privilegiando salvar o Lula (sem entrar no mérito de outros argumentos), frente a uma questão central para a luta contra a desigualdade no Brasil.
Não estou argumentando juridicamente sobre qual a interpretação mais correta da Constituição a respeito. Se há um contraditório, mais ainda de metade contra metade no STF, é claro que há margem para interpretação.
Alguém gostaria de apostar dinheiro que a chance de fazer uso de todos os recursos em todas as instâncias judiciais está restrito, por carência de renda para pagar a advogados, a cerca de 2% da população brasileira? Pago 10 x 1.
De braços unidos marcham as piores oligarquias e a “esquerda” nessa questão. Contra o usual em praticamente todo o mundo democrático (as exceções compensam com grande celeridade nos processos). Vergonha.
* Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Luiz Carlos Azedo: Prisão e isolamento
As atitudes de Lula foram estudadas para ter um simbolismo político robinwoodiano, inspirado no famoso “bandido social” que tirava dos ricos para dar aos pobres
Foi nostálgico e indignado o discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ontem, sobre o caminhão de som do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, antes de se entregar à Polícia Federal e acatar a ordem para se apresentar voluntariamente e iniciar o cumprimento da pena de 12 anos e um mês de prisão em regime fechado, à qual foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Uma missa em frente ao sindicato, em memória de Marisa Letícia, sua falecida esposa, serviu para criar o ambiente emocional do ato político no qual Lula reiterou a narrativa de que está sendo “injustiçado” e sofre uma suposta implacável perseguição política dos adversários, entre os quais, a Justiça e a mídia.
Como quem pretende resgatar sua antiga militância, Lula relembrou fatos de sua atuação à frente do sindicato no qual se projetou como líder sindical e alicerçou a construção do PT. Na linha do famoso discurso de Martin Luther King Jr. na marcha em defesa dos direitos civis em Washington, falou dos sonhos dos seus eleitores. Invocou sua atuação como líder de esquerda e na Presidência da República para questionar os processos criminais a que responde. Negou ter cometido atos de corrupção e reafirmou sua intenção de prosseguir lutando pelos mais pobres. “Se foi esse o crime que cometi, eu vou continuar sendo um criminoso”, disse.
Apesar da retórica messiânica e da presença de dirigentes e parlamentares do PT, do PC do B e do Psol, Lula revelou certa desolação e isolamento político. “Os gravatinhas sumiram, estão aqui os verdadeiros companheiros”, disse. Nos dois dias abrigado no Sindicato dos Metalúrgicos, as tentativas de reverter a execução imediata da pena fracassaram. O segundo pedido de habeas corpus apresentado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi rejeitado pelo ministro Félix Fischer, já na sexta-feira. O recurso que apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) foi indeferido ontem pelo ministro-relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin.
Em seu discurso, Lula voltou a atacar o juiz federal Sérgio Moro, os procuradores federais, delegados da PF e até o Supremo. Na vigília na sede do Sindicato, havia demonstrado grande revolta em relação a cinco ministros nomeados por indicação do PT que votaram contra o habeas corpus, rejeitado no Supremo por 6 a 5. Entretanto, comportou-se como aquele sujeito que, para evitar uma briga, procura dar a impressão de que não está com medo, mas também não desafia o adversário. Disse que está sendo preso porque não querem que volte à Presidência, mas anunciou que cumpriria a decisão de Moro e se apresentaria à Polícia Federal.
O ex-presidente da República politiza os processos a que responde na Justiça, na esperança de que isso mantenha agrupada em torno do PT a sua base eleitoral. Novamente, se colocou como um mito político acima do bem e do mal, da lei e das instituições. “Quero saber quantos dias eles vão pensar que estão me prendendo, quanto mais dias eles me deixarem lá mais Lulas surgirão no país”, bradou. Entretanto, revelou certo desespero com a situação, ao reconhecer que existe um ambiente adverso do ponto de vista judicial.
Reinvenção
As atitudes de Lula foram estudadas para ter um simbolismo político robinwoodiano, inspirado no famoso “bandido social” que tirava dos ricos para dar aos pobres. A estratégia de politização dos processos a que responde na Operação Lava-Jato, porém, até agora, foi um tiro no pé. Há que se considerar outros processos, como o caso do sítio de Atibaia (SP), que também está nas mãos do juiz federal Sérgio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba. A decisão de se entregar sem resistência, apesar dos protestos, estava diretamente associada aos riscos de ter uma prisão cautelar ou preventiva decretada por causa dos demais processos, se afrontasse a Justiça para além do chamado “jus esperneandi”. Lula está sob cerco judicial. Sua retórica explora o clima emocional dos militantes, mas também estimula o ódio e a violência. É um bumerangue político e judicial.
Lula já escolheu o seu substituto nas eleições, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, somente falta a unção oficial. No carro de som, em São Bernardo, desfilaram todos os candidatos majoritários do PT, menos os governadores da Bahia, Rui Costa, e de Minas Gerais, Fernando Pimentel, que pleiteiam a reeleição. Também estava lá a ex-presidente Dilma Rousseff, que transferiu o título de eleitor de Porto Alegre para Belo Horizonte. Deve concorrer ao Senado por Minas, embora eleitoralmente seja o nome mais forte para a Presidência entre os petistas, depois de Lula. Os líderes petistas enrolados na Lava-Jato não querem ficar sem mandato, para não perder o foro especial. Dilma também é investigada por causa dos escândalos da Petrobras e do caixa dois eleitoral. O PT precisará se reinventar, sobretudo se Lula não conseguir reverter sua prisão no Supremo.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-prisao-e-isolamento/
Cacá Diegues: Um herói do povo
Apesar de, para mim, ter perdido aquela aura de ‘herói do povo’, não considero e nunca considerei Luiz Inácio Lula da Silva um bandido
Tendo que escrever meu artigo na sextafeira, dia 6 de abril, ignoro se a Federal foi buscar Lula no sindicato dos metalúrgicos, em São Bernardo, ou se ele se entregou em Curitiba. De repente, a história se torna veloz demais, não espera pelo artigo de ninguém, as eras se sucedem em horas. Talvez minutos. Nesse caso, é também difícil dizer alguma coisa que já não tenha sido dita sobre Lula e sua eventual prisão.
Lula foi um sonho que todo brasileiro acalentou um dia. Não quero dizer sonho como quem diz o inalcançável ou o irrealizável. Sonho, aqui, é como quem diz esperança. Uma esperança que começa com um cara muito pobre, vindo do Nordeste faminto, um rapaz retirante, sem eira nem beira, que acaba por nos encantar porque é um gênio político e tem um projeto lindo.
Depois de alguns anos de atividade sindical e campanhas eleitorais meio ingênuas, Luiz Inácio Lula da Silva se reconstruiu para o eleitor, graças sobretudo a uma carta milagrosa destinada ao povo brasileiro, que a leu e gostou, em 2002. Nela, entre sinceras juras de fidelidade e promessas de justiça e progresso para todos, Lula prometia tudo o que mais queríamos naquele momento de raro equilíbrio no país, o momento posterior aos dois mandatos bem-sucedidos de FHC. Paz e amor.
Lula haveria de cumprir o que prometera. Apesar do interregno surpreendente e sórdido do mensalão, em que mal podíamos acreditar na lama que alguns faziam correr por baixo dos avanços do governo, o presidente se impunha e a seu partido, o PT, como responsável pela manutenção da inflação baixa, o significativo crescimento econômico, a dívida externa em dia, o consumo popular generoso, a mobilidade social de boa parte da população. Éramos o centro das atenções do resto do mundo, convencido de que o Brasil encontrara finalmente o seu futuro. E isso o país devia a Lula, the guy (o cara), como o nomeara com admiração Barack Obama, em encontro internacional de cúpula.
No fim desses gloriosos oito anos de sucesso, com 85% de aprovação dos brasileiros, o presidente impôs, graças a seu justo e inabalável prestígio, sua sucessora. Foi no rastro dos desacertos econômicos e sociais do governo Dilma Rousseff — com a volta da inflação, a perda do poder aquisitivo da população, o crescimento desmesurado do desemprego, o PIB em queda, a violência urbana desenfreada, o recuo em avanços obtidos pelo governo anterior, da crise na Petrobras à campanha do impeachment — que floresceram as acusações que alimentaram os inimigos de Lula. Inimigos que se multiplicaram a partir daí.
Lula colaborou com a construção dessa nova imagem de arrivista e corrupto. Minha primeira grande decepção com ele — meu herói na luta contra a ditadura, na organização dos operários em São Paulo, na criação de um novo partido popular, reformista e ético — foi quando li sua declaração, feita com certa comicidade, de que agora ele preferia usar terno e gravata, em vez do macacão operário, do qual graças a Deus se livrara. Isso dito por um homem que caíra nos braços do que havia de mais conservador na política nacional, do velho PMDB aos ruralistas de Kátia Abreu.
A gente ia perdoando tudo, em nome do que Lula já dissera e fora, quando esbarramos com a descoberta do sítio de Atibaia e com o tríplex no Guarujá. Mesmo que nenhuma das duas propriedades lhe pertencessem, um líder popular como aquele não podia estar envolvido com tais vantagens classistas, não tinha o direito de nos desiludir desejando aquilo que seu povo não podia possuir.
Não consigo imaginar Martin Luther King levando um tiro na sacada de um hotel de luxo. Ou Nelson Mandela passeando nos jardins da mansão que o governo da África do Sul lhe havia oferecido e ele recusara. Isso para não falar no mais radical Mahatma Gandhi. Na cabeça de seus eleitores e seguidores, Lula era um desses heróis. Agora, a impressão que ele podia nos dar, era a de que desistira de seu papel original e se tornara um político burguês, progredindo na vida como outro qualquer.
Apesar de, para mim, ter perdido aquela aura de “herói do povo”, não considero e nunca considerei Luiz Inácio Lula da Silva um bandido. Como escrevi no início deste artigo, não sei como se completou o drama de sua prisão. Mas, por tudo o que representou e fez pelo país, tanto no plano político e de governo, quanto no plano simbólico, ele não merece ser preso.
Ouço dizer que Lula tem que ser preso porque a lei tem que ser igual para todos. Mas será que ele é mesmo igual a Sérgio Cabral, a Eduardo Cunha ou Geddel Vieira Lima, aos funcionários da Petrobras ou da Odebrecht que estão em cana, tantos outros mais dessa estirpe? Sinceramente, não acredito nisso.
*Cacá Diegues é cineasta
Ricardo Noblat: Triste fim
Lugar de ladrão é na cadeia
“É simples, doutor”, me ensinou o motorista do UBER, eleitor de Lula e, mais que isso, seu admirador. “Lula foi um bom presidente. Eu mesmo devo a ele as condições que me permitiram comprar este carro”, aduziu.
Para em seguida arrematar como se desferisse uma série de socos potentes, rápidos e certeiros: “Mas ele roubou, não foi? Quem rouba é ladrão. E lugar de ladrão é na cadeia”. Calou-se pelo resto da viagem.
Sim, é simples. Muito simples. O resto é invenção de gente palavrosa que professa ideologia e gosta de ter razão. Lula não foi o melhor presidente que este país já teve. Mas não se saiu mal.
Foi um prestidigitador. Mas foi também o governante que incluiu os mais pobres na agenda dos problemas nacionais. Fez menos por eles do que pareceu. Nem por isso os próximos presidentes poderão ignorá-los.
Corrompeu-se para ficar rico. Corrompeu para governar. Imaginou-se imune a qualquer suspeita. Acreditou no que diziam dele. Apostou na sua impressionante capacidade de sobreviver. Ao acordar, já era tarde.
Difícil que a essa altura da vida, mesmo recolhido a uma cela de 15 metros quadrados onde nada terá a fazer a não ser pensar, venha a revelar-se capaz de um dia sair de lá muito diferente do que entrou.
Em defesa de sua própria sanidade mental, o provável é que saia com a mesma crença na persona que criou para si. Não terá outra razão para viver que não seja essa. Triste fim.
Fernando Canzian: Na despedida, pragmatismo de Lula abre espaço para o atraso
Não é ruim um símbolo popular cair por corrupção, mas rigor precisa chegar aos demais
O ex-presidente Lula saiu de cena em sua despedida histórica em São Bernardo acompanhado de pessoas de um país ultrapassado pelos fatos. Havia um clima de nostalgia e bolor naquela cena.
Lula vendeu como o novo dois presidenciáveis de perfil socialista (Guilherme Boulos, do Psol; e Manuela D’Ávila, do PCdoB) e foi escoltado por uma senadora que defende a ditadura na Venezuela (Gleisi Hoffmann), a presidente que afundou o Brasil com intervenções e opacidade no trato do dinheiro público (Dilma Rousseff) e o líder de um movimento que vandaliza imóvel de juiz do STF (João Pedro Stedile, do MST).
No palco, Lula talvez ainda fosse o mais moderno e pragmático. No livro-entrevista “A Verdade Vencerá”, recém-lançado, diz: “O problema do sistema capitalista é que, se você não ganhar dinheiro, você não sobrevive… Às vezes, as pessoas de esquerda têm um comportamento ideológico, e esse comportamento ideológico não se coaduna com a realidade.”
O pragmatismo de Lula o levou a terminar seu mandato em 2010 como o mais popular do Brasil e com a economia crescendo 7,5%. Acima de tudo, as contas públicas ainda estavam relativamente em ordem.
Foi isso o que permitiu a confiança de empresários a investir e gerar empregos, fazendo com que o trabalho e o aumento da renda transformassem o Brasil e incluíssem os muitos pobres no mercado consumidor.
Foi um círculo virtuoso, que levou ao aumento da arrecadação e à proliferação de programas sociais: 13 milhões de beneficiários no Bolsa Família, 3,5 milhões de moradias no Minha Casa, Minha Vida, 2,5 milhões de bolsas no ProUni e 15,5 milhões de novas eletrificações no Luz para Todos, entre outros.
Seu grande quinhão no atraso foi se imiscuir com o comportamento corrupto de partidos conservadores que dominam o presidencialismo de coalizão, como o MDB e o DEM (ex-PFL).
Com mais crescimento e demanda por infraestrutura, o pré-sal da Petrobras e as obras faraônicas de Copa e Olimpíadas, a escala da corrupção se tornou gigantesca, sugando o ex-presidente cada vez mais para dentro do esquema. Que ele manteve, já fora do governo, como embaixador de empreiteiras operando com financiamentos obscuros do BNDES.
O aflitivo é que, na campanha eleitoral que se aproxima, a esquerda que se diz sensibilizada com o social ainda não entendeu que programas como os de Lula custam dinheiro, e que esse dinheiro vem de impostos de empresas que precisam de estabilidade para crescer.
Quem conhece as favelas e a pobreza brasileiras sabe do potencial que existe ali, de geladeiras e fogões para serem vendidos a pessoas que dariam tudo para ter mais oportunidades de subir na vida pelo próprio esforço, via trabalho.
Lula entendeu isso, mas fracassou patrocinando os velhos esquemas, algo difícil de mudar. Os casos de corrupção estão ai: no MDB de Temer, no PSDB de São Paulo e Minas e na miríade de prefeituras do país.
Pode-se dizer que Lula colheu o que plantou em um país onde as pessoas agora conhecem pelo nome juízes do STF e parecem cansadas de viver em um atoleiro atrasado de altos e baixos.
Não é ruim que um símbolo da política popular tenha caído em desgraça por conta disso. Mas será extremamente perverso se o mesmo rigor, daqui para frente, não for estendido aos demais.
Míriam Leitão: À moda Lula
A multidão gritava “não se entregue”, e o ex-presidente Lula diria logo depois que se entregaria. Mas apresentou o ato como se fosse um desafio. “Eu vou enfrentá-los olho no olho.” No discurso, ele radicalizou o tom, costurou a união da esquerda, garantiu inocência, e produziu uma coleção de frases que podem ser usadas na campanha. Lula fez parecer vitória a sua maior derrota.
Nos últimos dias, usou seu velho método de dar a impressão de que endurece, enquanto negocia; de que vence, quando está cedendo. Essa estratégia foi usada em todas as greves que comandou. Ontem, ele voltou ao discurso radical que abandonou ao governar para parecer com o Lula inicial.
O chão do Sindicato dos Metalúrgicos começou a tremer. Era o começo dos anos 1980 e os trabalhadores vibravam pela chegada de Lula. Ele já iniciara a ida para a política, mas estava ali, local do seu pertencimento, para dar apoio a uma greve liderada por Jair Meneguelli. Eu cobria o evento e tive noção, na força da sua chegada, de que aquele líder iria até onde quisesse.
Era fácil prever que ele poderia chegar ao Planalto. Difícil imaginá-lo no caminho para uma cela de Curitiba. Ele explorou politicamente cada minuto da exposição que teve. O tempo dado pelo juiz Sérgio Moro, como sinal de respeito ao cargo que ocupou, foi usado para criar um intenso ato político. Ao se entrincheirar, quis montar uma armadilha para os que o prenderiam. Se a Polícia Federal tivesse sido mais dura, geraria cenas fortes. Tudo serviria ao propósito de outro papel que ele sempre soube fazer: o de vítima.
O que há de fato contra Lula? Essa é a pergunta dos fiéis que o seguem e acreditam na inocência dele contra todas as evidências. As provas são contundentes. No seu governo foi montado um esquema de tirar dinheiro de estatais para as campanhas políticas e isso foi flagrado no Mensalão. A Ação Penal 470, julgada no Supremo Tribunal Federal, teve relatoria de um ministro que havia sido nomeado por ele. Ficaram evidentes as conexões entre marqueteiros, dirigentes do PT, partidos da base, banqueiros e fornecedores públicos. Foram expostos os métodos de entrega de dinheiro em quartos de hotel, em malas, em depósitos camuflados. Houve até o bizarro carregamento em cuecas. Muito se soube, mas ele deu respostas mutantes. Não sabia. Fora traído. Era uma armação das elites. Depois disso, veio o escândalo maior no qual ele está enredado, o que tem sido investigado pela Lava-Jato.
A mística de que ele é homem do povo em luta contra as elites engana os crentes, serve à propaganda e fere todos os fatos. Tudo o afasta desse papel, do preço do vinho com que comemorou a eleição, aos subsídios gordos entregues pelo seu governo aos grandes empresários. Alguns deles, como os Batista, os Odebrecht, tiveram um dinheiro imenso nos governos petistas e retribuíram, gratos, com as contribuições milionárias para as campanhas. Ao lado de tudo isso, Lula foi aceitando vantagens pessoais. Os casos estão distribuídos em várias ações, cada uma sendo julgada a um tempo, mas são um todo. O apartamento do Guarujá seria dado reformado, o sítio de Atibaia foi por muito tempo ponto de encontro da família, o apartamento ao lado do que mora em São Bernardo, a sede que seria comprada para o Instituto Lula. Foram muitos os casos, são várias as ações. Lula sempre deixou imprecisos os limites entre o público e o privado e nessa fronteira difusa ocorreram os eventos pelos quais ele responde.
Neste sábado ele mostrou o máximo da sua força, na mobilização de apoiadores em delírio, no discurso incandescente, no bloqueio humano muito conveniente impedindo a sua saída do sindicato. Parecia estar no auge, mas estava na véspera de um tempo difícil.
Nas entranhas do país que a Lava-Jato exibe, há provas contra outros partidos e governantes. Todos eles terão que enfrentar o mesmo duro momento que Lula vive agora, ou então não haverá justiça nem futuro nessa luta. A prisão de Lula é a mais forte evidência de que o país está firme no propósito de enfrentar a corrupção. Mas é um momento triste. De todos os líderes do país, ele foi o único capaz de fazer o chão tremer pelo entusiasmo da sua presença. O aperfeiçoamento da democracia nos trouxe a essa travessia, um tempo em que tudo parece estar tremendo nas instituições brasileiras.
Merval Pereira: Esperteza radical
A esperteza, quando é muita, cresce e come o dono. Essa pode ser a definição do que aconteceu ontem em São Bernardo do Campo. O ex-presidente Lula quebrou todos os acordos feitos com a Polícia Federal desde as 17 horas de sexta-feira para se entregar, e montou uma encenação que só piorou sua situação, política e jurídica.
Os militantes do PT que impediram o expresidente Lula de sair do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em combinação com os líderes petistas — o mais provável — ou não, estavam agindo de acordo com a orientação do ex-presidente que, horas antes, incentivara os integrantes do MST a fazerem invasões; os membros do MTST de Boulos que continuassem a invadir imóveis e terrenos; e os militantes que continuassem a queimar pneus para interromper as estradas como demonstração de protesto contra sua prisão.
Ele exortou seus seguidores contra a Justiça, os promotores e a imprensa, chancelando uma posição radicalizada de atuação política que só poderia resultar nos tumultos acontecidos ontem; no vandalismo que atingiu o edifício, em Belo Horizonte, da presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia; e em agressões a jornalistas.
Como se reage a uma confrontação dessas sem perder a credibilidade, e ao mesmo tempo, sem criar um ambiente de confrontação entre militantes e polícia? Esse foi o grande impasse que dominou a Polícia Federal e o próprio juiz Sergio Moro, durante toda a parte da manhã.
O acordo era que ele se entregasse ao longo do dia, e muita gente considerou ingênua a decisão de Moro de dar a Lula a oportunidade de se entregar, em vez de dar a ordem de prisão sem anúncio prévio. O que levou a essa decisão foi a lembrança de quando se fez a condução coercitiva de Lula para depor, quando a crítica foi pesada, mas as autoridades sentiram que o espaço concedido ao petista, em respeito ao cargo de presidente da República que ocupou duas vezes, e também para evitar confusão, provocou críticas da mesma maneira — e também o risco de uma desmoralização da Justiça.
O risco de haver um conflito que provocasse mortos e feridos foi o que mais pesou na decisão de ser condescendente com o ex-presidente. Por volta das 12 horas, quando Lula anunciou aos militantes de cima do carro de som que se entregaria à Polícia Federal, houve um alívio entre as autoridades que negociavam com os advogados do ex-presidente.
Esse alívio passou a angústia quando ficou desenhado que as manobras dos assessores do ex-presidente Lula protelavam sua saída do Sindicato dos Metalúrgicos. Tudo foi feito atrasado, a partir do ato ecumênico em homenagem ao aniversário de dona Marisa, até a decisão de Lula de almoçar e depois descansar no sindicato, para depois se apresentar.
O certo é que sua situação jurídica se complicou muito, e se não for punido agora mesmo, é quase certo que nas próximas condenações, se acontecerem, sua prisão preventiva pode ser decretada devido à resistência que ele já demonstrou ser capaz de mobilizar.
Isso na hipótese de que esteja solto, por obra de um novo habeas corpus, ou em prisão domiciliar, ou em consequência de eventual mudança da jurisprudência sobre a prisão em segunda instância. Mas vai ser proibido de fazer campanha. Depois de preso, acabou, define uma autoridade envolvida na operação de prisão do ex-presidente.
O ex-presidente Lula teve um final de atuação política patético, retornando a uma militância radical que fez com que perdesse diversas eleições presidenciais, até que ampliasse seu eleitorado com a inclusão da classe média. Da maneira como se comportou nesse episódio, transformou-se em um líder de um partido radical como alguns outros que existem por aí, sem maior expressão. Esse é o risco que o PT corre nas eleições de 2018.
Eliane Cantanhêde: Produto de exportação
Condenação de Lula é pelo triplex, mas longe de ser só pelo apartamento
Na missa para Marisa Letícia, que virou comício para Lula, o ex-presidente usou de toda a emoção e de todo vigor retórico para clamar que seu grande crime foi dar comida, escola e universidade para pobre. Porém, assim como o impeachment de Dilma Rousseff foi pelas pedaladas, mas não só por elas, a prisão de Lula foi pelo triplex no Guarujá, mas não só por ele. Tanto as pedaladas como o triplex estão inseridos num contexto muito mais amplo, são peças de um todo.
O que as investigações desvendaram, e as fotos no triplex confirmam, é a íntima relação de Lula não apenas com uma empreiteira, a OAS de Léo Pinheiro, mas com as grandes empreiteiras, conhecidas compradoras de políticos. No topo, a Odebrecht.
Os depoimentos de Emílio e Marcelo Odebrecht sobre as contas secretas mantidas para o ex-presidente e geridas por Antonio Palocci, antes e depois da Fazenda, são uma aula de como Lula foi afundando nos braços pródigos, mas gulosos, das empreiteiras.
E foi nessa simbiose entre Lula e elas que o Brasil virou um exportador de corrupção para América Latina, Caribe, África e Europa. Começou na Venezuela de Hugo Chávez e se expandiu para Peru, Colômbia, Equador, Angola... com régios financiamentos do nosso BNDES e uma cereja do bolo: os marqueteiros de Lula incluídos no pacote.
Para Fernando Gabeira, há uma estratégia nas investidas do triângulo Lula-Odebrecht-BNDES em tantos países: a mistificação de Lula, sua transformação em líder mundial de massas. Mas o revertério pega de jeito não só ele, mas também os aliados que entraram no esquema internacional. Ou seria pura coincidência que Lula esteja às voltas com a Justiça ao mesmo tempo que outros ex-presidentes, como o do Peru.
Lula desceu a rampa do Planalto com 80% de popularidade e ficou ainda mais à vontade nas suas relações com as empreiteiras, mantendo o controle do BNDES com Dilma na Presidência e viajando pelo mundo nos aviões da Odebrecht.
Por trás da desgraça da nossa Petrobrás estão as grandes empreiteiras e seus controladores agora presos. E, por trás dos processos contra Lula, estão as mesmas empreiteiras e seus controladores: o do triplex, o do sítio de Atibaia, o do Instituto Lula... logo, há profunda conexão entre Lula e elas, uma clara relação de causa e efeito, um jogo em que todos ganhavam. E, como ganhavam, agora perdem juntos. Ou vão para a cadeia juntos.
No seu discurso de ontem, Lula se colocou como um novo “pai dos pobres”, a eterna “vítima das elites”, mas, se os ganhos sociais são inegáveis, quem mais lucrou na sua era foram o sistema financeiro e as empreiteiras, enquanto estatais, bancos públicos e fundos de pensão eram devorados. E ele atiçou a militância contra Moro e a mídia, jogando álcool na fogueira e isolando ainda mais o PT e as esquerdas. A baixa adesão à manifestação pró-Lula num dia histórico, e no berço do PT, já diz tudo.
Quanto a Dilma: ela efetivamente cometeu crime de responsabilidade com as pedaladas, além de governar com a velha e perigosa avaliação de que “um pouco de inflação não faz mal a ninguém” e gastar desbragadamente é “bom para povo” (que, obviamente, é quem depois paga a conta com juros e lágrimas). E vivia de canetadas: na quebra de contratos no setor elétrico, na exploração do pré-sal, na queda artificial dos juros.
Enfim, Dilma caiu porque o Brasil não aguentaria mais dois anos de Dilma, assim com Lula foi preso por ambição, cobiça e uma promiscuidade com empreiteiras (para ficar só nelas) incompatível com a Presidência da República e com a sua emocionante biografia e seu vibrante carisma.
Foi, além de tudo, uma traição à origem do PT, que nasceu para lutar por um País mais justo e mais ético – não para Lula chegar ao pódio e dali mergulhar alegremente nos tentáculos da Odebrecht e da OAS e nadar de braçada nas piores práticas do velho Brasil.