primeira guerra mundial
Henrique Brandão: 1917 - O plano-sequência como protagonista
É difícil falar hoje em dia de cinema, dado que o grande thriller atual no Brasil é a postura irresponsável do presidente na condução da quarentena – quase um filme de terror – e, também, a sua conduta política, cada vez mais radical e estreita, sempre em direção à direita, deixando a nu suas reais intenções políticas e os interesses pessoais por trás dos movimentos que faz. Muitos fãs que apostaram neste roteiro macabro já se decepcionaram e pedem a devolução dos ingressos, alguns até com manifestação de apupos pelas janelas de suas casas. Outros, que nunca gostaram do canastrão escalado para o papel principal e tampouco dos atores coadjuvantes, seguem torcendo o nariz para esta chanchada que deixaria os geniais Oscarito e Grande Otelo envergonhados, tal a tacanhice das ideias expostas. Os próximos dias serão de grande suspense.
O que estamos assistindo não é um filme, mas uma sucessão de episódios cujo desdobramentos são ainda imprevisíveis na vida real. Já na telinha nossa de cada dia a que estamos sujeitos por conta da pandemia, é possível assistir filmes – e séries – melhores do que a conjuntura nos tem reservado.
Uma boa dica que estreou esta semana no Now é “1917”, filme que concorreu ao Oscar de 2020. Indicado em 10 categorias, acabou levando três estatuetas, sendo a mais importante delas a de fotografia – realmente exuberante – conferida a Roger Deakins, um veterano de indicações.
O filme tem um tênue fio condutor, apesar de ter concorrido à categoria de roteiro original. Dois soldados na Primeira Guerra Mundial (1914-18), recebem ordens de um general para entregar uma carta a um coronel que se encontra no front, avisando que aborte um ataque aos alemães, pois o aparente silêncio dos germânicos trata-se na verdade de uma emboscada.
A Primeira Guerra teve enormes baixas: 17 milhões de pessoas morreram no conflito. Os soldados muitas vezes passavam meses entrincheirados, em condições insalubres, e avançavam muito pouco em suas posições. É neste cenário que começa a, digamos assim, “corrida de obstáculos” dos jovens combatentes por entre as trincheiras da Tríplice Entente no norte da França.
Assim como os protagonistas de posse da carta saem em disparada serpenteando os tuneis repletos de soldados, a câmera que os acompanha na ação também não para: registra as imagens como se ela em si fosse um terceiro mensageiro, enfrentando lado a lado as peripécias e surpresas que a dupla encontra pelo caminho. Este é o grande diferencial do filme, realizado como um único plano sequência, mas também seu calcanhar de Aquiles. A “mise-em-scène” é excelente: centenas de figurantes são estrategicamente posicionados por onde a câmera passa, numa encenação naturalista de poucos diálogos e muita ação que mobiliza uma estrutura enorme para que tudo aconteça conforme a história avança. Deste ponto de vista, irrepreensível.
Nos dias de hoje não precisa ter frequentado escola de comunicação para saber que cinema é imagem em movimento. Todo mundo sabe, mesmo que não formule teoricamente, já que nosso código de mensagens é cada vez mais audiovisual. Cinema é linguagem.
No início do cinema não era a câmera que se movimentava, mas o personagem. Buster Keaton, com suas alucinadas correrias e Chaplin, na figura de Carlitos, o adorável vagabundo que vive fugindo da polícia, sempre derrapando ao dobrar uma esquina, são exemplos clássicos.
O desenvolvimento tecnológico permitiu trilhos que evitavam a trepidação durante os movimentos e câmeras mais leves possíveis de serem carregadas e que dispensavam o uso do tripé. O cinema ganhou mais dinâmica: os “travellings” e a câmera na mão passaram a fazer parte da linguagem. Mais recentemente, o trilho foi ficando para trás com o advento do “steadicam”, um estabilizador de câmera inventado em 1974, em que o fotógrafo entra dentro de uma estrutura de contrapesos que estabiliza a imagem. Hoje, tudo ficou mais leve e portátil.
O primeiro filme comercial a usar o “steadicam” como linguagem creio que foi ‘O Iluminado”, de Stanley Kubrick, baseado em obra de Setphen King, com seus “travellings” aterrorizantes pelos enormes corredores de um gigantesco hotel vazio no inverno, enquanto o personagem de Jack Nicholson enlouquece.
Planos-sequências são algo comum no cinema. São vários os exemplos. Talvez o mais famoso seja o de abertura de “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles, uma obra-prima. Hitchcock filmou “Festim Diabólico” sem cortes, em planos-sequências até onde os chassis dos negativos permitiam. Filmou em ambiente fechado, o que facilita o ensaio dos atores.
A novidade de “1917” é realizar um filme inteiro quase que em locação ao ar livre, com centenas de figurantes. Algumas sequências ocorrem somente entre os dois soldados, ou nos tuneis das trincheiras ou em uma fazenda francesa. É uma façanha. E retrata muito bem, com direção de arte impecável, as condições terríveis da “guerra de posição”, como ficou conhecida a tática empregada do avanço lento e progressivo das posições estratégicas na Primeira Guerra.
O problema pela ousadia do uso do plano-sequência do início ao fim do filme é que ele, por privilegiar o meio ambiente em que a ação se desenvolve, acaba por distanciar o espectador da emoção do personagem. Ele sobrevive a tiros, bombas, granadas, explosões, cadáveres em profusão, corpos em putrefação, incêndios, ratos famintos, amigos mortos, civis em condições degradantes, sodados mutilados. Apesar do cenário tétrico que a Primeira Guerra engendrou, a sensação de dever cumprido ao final do filme, quando o personagem consegue afinal descansar, se sobrepõe aos horrores da carnificina que vivenciou. Seu esgotamento psicológico é imenso, mas tem pouco espaço. Sua “corrida de obstáculos” terminou.
Tecnicamente o filme é incontestável. A direção das cenas que envolvem centenas de pessoas, sua coordenação de movimentos, merece aplausos. Só por isso o filme merece ser visto. Uma aula de como o cinema avança impulsionado pelos avanços tecnológicos, superando marcos referencias e permitindo o desenvolvimento da linguagem.
Recomendo.
Rubens Barbosa: Nacionalismo, patriotismo e interesse nacional
Vivemos momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional
As comemorações pelo centenário do fim da Guerra de 1914-18, em Paris, reforçaram minha convicção de que estamos vivendo tempos estranhos e um momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional, com consequências para todos os países.
Foi curioso ver pequenos detalhes protocolares desencadearem reações políticas, como no caso da Sérvia, que se sentiu insultada pela baixa posição que seu presidente ocupou em relação ao Kosovo, colocado mais próximo ao presidente francês pelo cerimonial. Afinal, foi em Sarajevo que tudo começou. Notei a ausência do Brasil, convidado pela primeira vez para um encontro dessa magnitude, que seria uma oportunidade para mostrar que nosso país existe, tem presidente e foi parte das duas guerras (quando estava como embaixador em Londres, participei com o presidente FHC das celebrações do Dia da Vitória da 2.ª Grande Guerra, a de 1939-45, com o Brasil sendo convidado pela primeira vez).
Todos puderam assistir à deliciosa coreografia do poder entre Putin e Trump, que chegaram em limusines cercadas de seguranças, enquanto os outros 82 chefes de Estado e de governo saíram juntos do Palácio Élysée em ônibus especiais. Os líderes norte-americano e russo esperaram, escondidos, que todos tomassem assento para assumirem seus lugares ao lado do presidente Macron. Putin, mais esperto, esperou para chegar por último...
O presidente Macron, em discurso na solenidade, em vez de saudar a presença dos líderes mundiais, de ressaltar a paz e a superação da guerra fria entre EUA e Rússia, resolveu chamar a atenção para as ameaças atuais que põem a estabilidade internacional de novo em perigo, põem em risco a democracia e dividem os países ocidentais. Observou que os pilares que sustentam os regimes democráticos são mais importantes que a unidade transatlântica e nesse contexto mencionou que o patriotismo é mais importante que o nacionalismo. Essa afirmação tinha endereço direto não só aos grupos de direita radical na França, como, de maneira pouco sutil, era uma crítica direta aos que dizem colocar os interesses de seus países em primeiro lugar e a consequência disso para os outros pouco importa. Ao qualificar o nacionalismo como traição ao patriotismo, exagerou, porque o termo na França é associado à extrema direita, enquanto em outros países a expressão se renova e tem conotação valorizada, como, por exemplo, na Irlanda e no Canadá.
A tensão estava criada. Não era a primeira vez que Macron, depois de ter sido um amigo muito próximo, divergia publicamente do presidente dos EUA. As boas relações pessoais se deterioraram diante das decisões de Washington de abandonar o Acordo de Paris sobre clima e pelo término do programa nuclear com o Irã. E também por estimular o protecionismo (ameaça de guerra comercial com a China), criticar o multilateralismo e tornar difícil a solução de dois Estados para o conflito Israel-palestinos.
Não foi surpresa a reação de Trump ao anfitrião, mas sim sua rapidez e virulência. Na tarde do dia 11, Macron organizou o Fórum da Paz, com o objetivo de defender o multilateralismo, um dos pilares da nova ordem internacional depois de 1945 com o surgimento da ONU e do Gatt/OMC, que os EUA ajudaram poderosamente a criar e agora procuram solapar. Todos os chefes de Estado compareceram, com exceção de Trump, que preferiu visitar sozinho cemitério militar americano na França. Além disso, desde a véspera havia iniciado uma troca de tuítes virulentos com Macron, trazendo a público a crescente rivalidade entre os dois líderes num momento de aumento das tensões transatlânticas. Apoio de Trump aos movimentos populistas-nacionalistas na Europa, despesas militares na Otan, criação de exército europeu, proposto por Macron-Merkel, e até ameaça velada à exportação de vinhos franceses para os EUA entraram na inusitada altercação presidencial. Ficou evidenciado o divórcio entre Trump e a Europa, em especial com as instituições supranacionais e multilaterais.
Cabem alguns comentários sobre o que se falou durante a cerimônia de Paris. A crítica de Macron ao nacionalismo está associada à direita populista de Marine le Pen, que, sob o pretexto de defender a nação, defende posições radicais contra o movimento de unidade europeia. Por outro lado, Trump não está preocupado com a unidade da Europa (agora ameaçada com a saída da Grã-Bretanha), mas sim com a China, e não quer continuar com os altos gastos militares na Otan. Por outro lado, talvez Macron não soubesse, mas a palavra patriotismo é pouco usada nos EUA, talvez por motivos históricos, além de ter ali um sentido algo pejorativo. Ao elogiar o patriotismo – com significado positivo nos países de língua latina –, Macron fez Trump se lembrar de frase atribuída a Samuel Johnson, “o patriotismo é o ultimo refúgio do canalha”. A oposição às instituições supranacionais e multilaterais representam um viés característico da superpotência norte-americana, agora exacerbado por Trump.
Qualquer semelhança disso tudo com alguns aspectos da discussão hoje no Brasil, em especial depois da eleição e da escolha do futuro ministro do exterior, não é mera coincidência.
A cerimônia parisiense mostra igualmente como é perigoso para qualquer país, nos tempos incertos que vivemos, declarar alinhamentos e afinidades definitivas com base em laços pessoais. Como aprendi nos meus primeiros anos no Itamaraty, os países (e os líderes) não têm amigos, têm interesses. O realismo e o pragmatismo na ação diplomática e comercial deverão prevalecer sobre vagos anseios conceituais, como o antiglobalismo e a defesa do Ocidente, de inspiração trumpista, bem assim sobre atitudes ideológicas em relação a China.
O interesse nacional, acima de países, grupos ou partidos, é a prioridade da política externa.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
Folha de S. Paulo: Líderes mundiais celebram o centenário do fim da Primeira Guerra em Paris
Discurso do presidente francês alertou para os perigos do nacionalismo
No dia que marca os cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial, o presidente francês Emmanuel Macron recebeu mais de 70 líderes mundiais e monarcas para as comemorações em Paris.
Em seu discurso, o líder alertou para o ressurgimento do nacionalismo e defendeu o "legado de paz" deixado pelo fim do con
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel e estavam entre os convidados.
Aqueles que lutaram no conflito viveram em um "inferno inimaginável", afirmou Macron.
"O legado da Primeira Guerra Mundial não deve ser o ressentimento entre os povos e o passado não deve ser esquecido" disse o presidente francês diante de uma plateia que incluía ex-combatentes franceses.
A cerimônia faz parte de uma série de tributos em homenagem aos dez milhões de soldados que foram mortos durante os quatro anos do conflito, se se encerrou às 11h do dia 11 de novembro de 1918.
Na última semana, Macron fez várias visitas a cidades e antigos campos de batalha localizados no front ocidental. Nessas ocasiões, ele advertiu sobre os perigos da ressurgência do nacionalismo na Europa e afirmou que se tratava de uma ameaça ao continente —um tema que ele abordou novamente neste domingo.
"Patriotismo é o exato oposto de nacionalismo. Nacionalismo é traição", afirmou.
"Velhos demônios estão despertando, prontos para semear caos e morte", disse o presidente, que fez um alerta sobre como religião, ideologias e desconsideração deliberada dos fatos podem ser explorados.
"A História às vezes ameaça repetir seus trágicos padrões e enfraquecer o legado de paz que nós achávamos ter selado com o sangue de nossos antepassados".
No sábado, Macron e Merkel participaram de um encontro histórico em Compiègne, ao norte de Paris, no mesmo lugar onde, cem anos atrás, a Alemanha e as potências aliadas assinaram o armistício que encerrou o conflito.
Foi a primeira vez que os líderes máximos dos dois países visitam juntos o local que serviu de cenário também, duas décadas depois, para a capitulação da França ocupada diante da Alemanha nazista de Adolf Hitler.
Na tarde deste domingo, a capital francesa sediará o Fórum de Paz de Paris, cujo objetivo é promover uma abordagem multilateral a questões de segurança e, dessa forma, evitar os erros que levaram à eclosão da Primeira Guerra.
Trump, que tem promovido uma política externa nacionalista baseada no conceito "América primeiro", não comparecerá.
O presidente americano afirmou que também não se encontrará com Putin este final de semana. Há conversas bilaterais previstas entre os dois líderes na cúpula do G20 em Buenos Aires no fim de novembro.
Folha de S. Paulo: Mundo atual lembra o que emergiu da Primeira Guerra Mundial, diz historiador
Modris Eksteins afirma que falta "grau de alarme" à reação conservadora, mas crê que a crise é bem menos aguda
Por Igor Gielow, da Folha de S. Paulo
A obliteração da Europa na Primeira Guerra Mundial deu à luz o mundo moderno, e hoje vivemos um ambiente muito semelhante ao vivido naquela infância brutal dos anos 1920 e 1930: ressentidos e frustrados.
"O que falta é um grau de alarme", diz o historiador cultural Modris Eksteins, 74, sobre o risco da emergência de autoritarismos análogos ao fascismo no ambiente saturado da pós-verdade. Ele considera, contudo, pequena a chance de que isso ocorra.
Letão-canadense, Eksteins é autor de uma das mais inovadoras leituras da Grande Guerra, como o conflito cujo fim completa cem anos neste domingo (11) era conhecido até sua continuação anabolizada explodir em 1939.
Apesar da visão algo otimista sobre o que ocorrerá daqui para a frente, ele vê o trem da reação em marcha como nos anos 1920: daí a eleição de líderes como Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro, Viktor Orbán(Hungria) e Rodrigo Duterte (Filipinas).
Nesta troca de emails, ele vê a arte atual como um ente sem vida, dissolvida no kitsch.
Citando o pintor holandês Vincent van Gogh e seu plagiador alemão Otto Wacker, cujo julgamento em 1932 Eksteins esmiuçou em outro livro sobre o pós-1918, "Dança Solar" (2012, não lançado no Brasil), ele diz: "Nosso mundo, com sua cultura de celebridades, é uma amálgama dos dois".
Em "A Sagração da Primavera", o senhor define a Primeira Guerra Mundial como o berço do mundo moderno. Quanto daquela centelha original pode ser reconhecida um século depois?
A verdade, nos dizem, foi substituída hoje pela verdade subjetiva. A crítica cultural Michiko Kakutani, que venceu um prêmio Pulitzer, inclusive fala num livro recente sobre a morte da verdade. Nada disso é novo de fato.
Um golfo sempre existiu entre os eventos e nossa habilidade de articular seu significado. Ainda assim, esse golfo se tornou intransponível na primeira metade do século 20, um processo acelerado pelas duas guerras mundiais.
Eventos, especialmente morte em massa e destruição da guerra total, afastaram nossa habilidade de representá-los. A linguagem falhou.
Se guerra e tecnologia foram as engrenagens da mudança no século passado, tecnologia hoje é o principal motor de uma inovação alucinante, cujas implicações são excitantes, mas também assustadoras. As consequências são potencialmente devastadoras.
Hoje, os ocidentais guerreiam à distância e assistem aos combates nos seus celulares. A arte como um meio de perceber o mundo parece ter sido sobrepujada por um tédio que se correlaciona com esse tipo de guerra sem heroísmo.
Todas as antigas normas foram erodidas. O que é arte? O que é guerra? Não há mais declarações formais, quem dirá definições, de nenhum dos dois. Tudo depende da percepção e do desejo do observador. Numa era da selfie, arte é o que eu digo que é. E meu inimigo é simplesmente "o outro".
A experiência das pessoas se sobrepõe à autoridade externa, sobre o "establishment" ou "o pântano", como Donald Trump insiste em chamá-lo. Como resultado, a imagem passada se fragmentou sucessivamente, e a realidade para muitos virou uma extensão narcísica do eu, uma forma de autoindulgência.
Como isso se conecta com a Primeira Guerra Mundial?
A Grande Guerra produziu uma estonteante erosão da autoridade tradicional. Como alguém poderia distinguir entre vitória ou derrota após talvez 10 milhões de mortos e 20 milhões de mutilados? Ninguém ganhou.
Palavras e todas as outras formas usuais de expressão perderam sentido, assim como velhos políticos, generais e pregadores. "Palavras escapam, deslizam, perecem, decaem", escreveu o poeta T. S. Eliot.
Fascismo, um fenômeno novo, um "movimento do povo" como Hitler chamava seu partido, foi o produto dessa crise. A guerra havia sido liderada por generais; Hitler foi um cabo.
A Grande Guerra democratizou a dúvida e empoderou o ressentimento. "Minha Luta", como a polêmica egomaníaca de Hitler foi intitulada, se transformou na estrela-guia.
Os enormes avanços tecnológicos desde então deram seguimento a essa tendência. A mídia eletrônica é o principal instrumento na transmissão de emoções pessoais, assim como a manipulação delas.
Se a informação é disponível para todos, nós também sofremos pela saturação e uma correspondente desconfiança das fontes. Nós estamos no comando do jogo.
No meio do tsunami informativo, incompreensão e confusão, em vez de iluminação, são frequentemente o resultado. Assim como o tédio e a ignorância, esses parentes de sangue da incompreensão.
Em "Solar Dance", o senhor diz que a República de Weimar era "uma instalação" que deu à luz tanto Hitler quanto [o arquiteto] Walter Gropius. É possível encontrar algum lugar ou movimento hoje com tais características?
No passado, numa era de impérios, todos os olhos estavam em Paris, depois em Londres e, então, em Nova York. No nosso mundo de fragmentos, com "notícias" e pizza sendo entregues 24 horas por dia, tal foco não é mais possível.
Uma hora é Riad, na próxima o Rio, e daí talvez Reykjavik, quando outro vulcão, literal ou figurativamente, entra em erupção.
Em 1978, o artista americano Mick Haggerty fez uma pintura mostrando um Mondrian dissolvendo na parede de uma galeria e, gota a gota, se metamorfoseando numa figura no chão. A figura era a de Mickey Mouse. Haggerty parece nos dizer que uma arte de provocação sensacional virou, no último quarto do século 20, uma arte do kitsch.
Àquela altura, toda corporação proeminente tinha arte moderna em suas paredes; o Übermensch de Friedrich Nietzsche virou o Superman; as grades de Mondrian seriam logo apropriadas pelo Pac-Man. O modernismo foi domesticado. A euforia se foi.
Já o impulso moderno, com sua ética da provocação, obviamente ainda está entre nós. A única forma de conseguir atenção é com um slogan ou uma manchete chamativas. Mas no âmbito cultural, a maioria das tentativas para chocar deliberadamente agora inspiram bocejos.
Cansados do sistema político, os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro. Temos Rodrigo Duterte, Viktor Orbán, Matteo Salviniesposando diversos graus de cultura da morte e de kitsch. Cada país tem sua característica, mas há uma tendência mundial? Como ela se relaciona com 1918?
Há, sem dúvida, uma onda populista, alimentada por confusão, raiva e ressentimento em todo canto. A caravana da lei e da ordem está em marcha mundialmente, tentando retardar a mudança e domar a ebulição.
Há algumas semelhanças distintas com os anos 1920 e 1930. O que está faltando até aqui, contudo, é algum grau de alarme.
Creio que profunda frustração e desapontamento são os denominadores comuns unindo a polarização política e social de hoje com o mundo pós-1918.
O estranho agora é visto como um perigo. Ao mesmo tempo, a contínua secularização provocou extremismo religioso na forma de fundamentalismo e de farisaísmo moral. Resumindo, a cola social oriunda das instituições estabelecidas, da escola, da igreja, desmoronou.
Por outro lado, minha sensação é de que essa crise mundial de hoje não é nem um pouco próxima ou aguda como era nos anos 1920.
Modris Eksteins, 74
Historiador pela Universidade de Toronto, mestre por Heildelberg, doutor por Oxford; é professor emérito em Toronto. Escreveu "A Sagração da Primavera" (1989), "Caminhando desde a Aurora" (1999) e "Dança Solar" (2012)