previdência
Míriam Leitão: Anúncios vazios minam confiança
Faltam dias para o novo governo assumir e seria bom que começasse a ir além das ideias voluntaristas que marcaram essa conversa inicial
O anúncio de que o governo Bolsonaro pensa em desonerar a folha de salários tem a mesma marca de improviso de todos os outros ditos da nova administração. É excelente a ideia, só não é original nem trivial. Para fazer isso será preciso saber de onde tirar pelo menos os R$ 200 bilhões que vão para a Previdência. Alguém precisa contar para as autoridades entrantes que governar é diferente de ter teses na academia, no mercado financeiro ou em palestras.
Para ir além da ideia é preciso explicar como fazer. Se não houver o caminho dos projetos até a sua realização é apenas balão de ensaio. Até agora, a lista de intenções anunciadas e abandonadas pelo governo Bolsonaro é enorme. A transição está se completando e a grande marca da preparação do novo governo é o anúncio precipitado de medidas que depois são desmentidas, para darem lugar a outras que também acabam indo para o rol das propostas arquivadas.
Para desonerar a folha é preciso saber o que pôr no lugar, porque passa de meio trilhão de reais o que se arrecada hoje. O que o futuro secretário da Receita, Marcos Cintra, propõe é a criação de um imposto sobre transações financeiras. Essa proposta é a recordista das idas e vindas. Foi dita, desdita, desmentida, negada, abjurada, e sempre reaparece. Cintra é conhecido por sua militância de décadas em defesa do imposto único. Uma ideia que tem nele um defensor único. Nunca impressionou os colegas de qualquer corrente na economia porque não fica em pé. Até ele traiu suas próprias crenças e chegou a defender que houvesse duas e não uma CPMF.
Todo mundo concorda que existem impostos e taxas demais sobre o emprego. Como reduzi-los é que são elas. O governo Dilma deu desonerações a setores. Vimos o resultado. Rombo, distorções, aumento do déficit da Previdência. Foi preciso fazer o caminho da reoneração, ainda incompleto. Portanto, o centro da questão é o “como”. Se a equipe econômica não tiver pensado no caminho prático da realização das ideias, elas são palavras vazias que servem apenas para minar a credibilidade de quem fala. Faltam dias para a nova administração assumir e seria bom que começasse a ir além das teses voluntaristas que marcaram essa conversa inicial.
Já se falou em reduzir os gastos tributários, o que significa eliminar as isenções, incentivos fiscais, programas especiais. Até agora não se apontou um único gasto tributário que vá ser extinto ou reduzido. O presidente Jair Bolsonaro prometeu ao agronegócio a anistia das dívidas passadas do setor com o Funrural. O governo Temer havia proposto um refinanciamento dessa dívida e deu muita confusão. O Congresso aumentou os descontos, foi negociada nova versão, mas tem havido pouca adesão porque os devedores estão de olho no perdão completo dessas dívidas prometido por Bolsonaro. Isso significa um gasto de R$ 17 bilhões e contradiz o que o economista Paulo Guedes disse durante a campanha sobre as bondades fiscais para setores.
A própria “faca no Sistema S” foi lançada aos comensais da Firjan sem qualquer explicação. Aqui comentei ontem sobre a importância da revisão do Sistema. Mas o relevante no caso é dizer que, se há alguma proposta, que seja apresentada com alguma concretude. Governar é mais do que lançar ideias, soltar balões e encantar plateias.
Cintra disse que a desoneração da folha será agora “definitiva e universal”. Isso é para ser diferente da que foi feita no governo petista e que foi seletiva e deixou um custo de R$ 108 bilhões de 2012 a 2019. A proposta é que o benefício não seja concedido discricionariamente a alguns, mas estendido a todos. Deu para entender, só não deu para saber como isso será feito.
Quem dirige a economia de um país complexo como o Brasil tem que expor os números e simulações que levaram à convicção de que uma proposta é viável, antes de anunciá-la. Se não o fizer, é apenas especulação. Além de serem medidas descalçadas de números, elas costumam frequentemente se chocar com o que é dito em outra ala do governo.
Faltam poucos dias para o início da nova administração. Que os senhores da equipe econômica — integralmente masculina, a propósito — pensem, calculem, analisem e estudem alternativas antes de apresentá-las. Se não fizerem isso, perderão credibilidade.
Maria Clara R. M. do Prado: O Brasil dos privilégios não tem futuro
Servidores fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma
Quando assumir a Presidência da República, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro passará a governar um país com renda bruta e PIB per capita, em dólares correntes, inferiores aos de 2010. Também a poupança bruta, que já era baixa, caiu ainda mais, do nível de 18% do PIB em 2010/2011 para 14,5% do PIB em 2017, segundo dados do Banco Mundial.
A renda continua concentrada. Mais da metade, 56,1%, é repartida entre os 20% do espectro mais alto. Sobram 43,9% da renda para serem divididos entre os demais brasileiros. Bolsonaro vai herdar um país que insiste em desprezar as vantagens de ter um grande e atrativo mercado interno, chamariz para investimentos e garantia de desenvolvimento consolidado, para benefício de um grupo de pessoas que, além de absorver a maior parte da renda, tem acesso a outros privilégios.
Ao contrário do PIB, que pode variar para mais ou para menos em função de fatores sazonais, o padrão da distribuição da renda brasileira, forjado ao longo de séculos, é crônico. Está presente em praticamente todos os setores da atividade econômica e social do país. Na saúde, na educação, nas condições sanitárias e de habitação, e na previdência social.
Os cofres públicos são generosos não com a qualidade de serviços que deve ser prestada à população, mas com os servidores que são regiamente pagos sem critérios de meritocracia, sem controle de produtividade e muitas vezes com a ajuda de padrinhos políticos. Fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma.
Neste país, ao contrário de outros, é muitíssimo mais vantajoso ser funcionário público do que empregado em empresa privada. Por funcionários públicos, deve-se entender todos os que trabalham nos governos federal, estadual e municipal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas universidades federais e estaduais, na autarquias, enfim... todos cujos rendimentos do trabalho são pagos com o dinheiro da arrecadação de taxas e impostos.
Não há dúvida de que os desequilíbrios da previdência social precisam ser enfrentados o mais rapidamente possível, na busca de soluções duradouras, a começar pela reforma do sistema de previdência do funcionalismo público. É caro, discrepante e injusto. O peso nas contas públicas tem aumentado exponencialmente, a ponto de muitos governos estaduais não terem mais condições financeiras de arcar com os custos dos seus aposentados. Sem falar que sobra pouco para outras rubricas. O governo gasta com pessoal seis vezes mais do que com investimento público.
A raiz do problema está, claro, na elevada remuneração dos servidores públicos. Funciona como uma bola de neve crescente, culminando com as altas aposentadorias. Entre o ano 2000 e 2016 o custo com pessoal do governo federal aumentou, em média, 4% ao ano em termos reais. Vale lembrar que ninguém é demitido no setor público brasileiro, a menos em situações muito graves.
O próximo presidente precisa encarar os fortes lobbies dos grupos de pressão se quiser resolver de vez o déficit fiscal. Precisará de coragem e determinação para enviar ao Congresso propostas de emenda constitucional que prevejam, por exemplo, o desaparecimento da prerrogativa que tem hoje o Poder Judiciário de decidir sobre o nível dos próprios salários, além dos auxílios moradia, viagem, etc... Se quem arrecada é o Poder Executivo, só este tem condições de determinar a remuneração dos servidores (e aqui entram também os deputados e senadores) que cabe dentro do orçamento público.
Um estudo do FMI, realizado por Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, mostra que a despesa com pessoal no Judiciário brasileiro é uma das mais altas do mundo, comparável à da Suíça. "O salário médio no Poder Judiciário é cinco vezes mais alto do que a média de salários do setor público e nove vezes mais alto do que a média salarial do setor privado", diz o estudo "Rightsizing Brazil's Public-Sector Wage Bill" (Dimensionando a conta do salário no setor público do Brasil), publicado em outubro.
Entre abril de 2004 e dezembro de 2015, os salários públicos em geral, no país, cresceram ao redor de 45% em termos reais, em média, enquanto que os salários do setor privado aumentaram em cerca de 25% em termos reais. Às implicações no perfil dos gastos da previdência social, soma-se a distorção na formação de preços do mercado de trabalho, além dos efeitos sobre a produtividade da economia brasileira.
Considerando idade, educação e gênero, o salário no setor público brasileiro é 30% mais alto, em média, do que no setor privado formal. "Essa marca está substancialmente acima da marca média de 9% para países relacionados no Estudo de Renda de Luxemburgo (Luxembourg Income Study, LIS, é um centro de dados transnacionais comparativos que atende a pesquisadores, estudiosos e governos)", diz o trabalho, indicando que a mão de obra com menos anos de educação no Brasil ganha em média, 50% a mais no setor público do que no privado.
Não bastasse isso, há ainda dentro do governo muitos governos. Cada ministério tem níveis salariais próprios, gerando deformidades para um mesmo tipo de atividade. O estudo cita o fato de um motorista no Ministério da Energia ganhar 30% a mais do que no resto do governo federal e o de uma operadora de telefonia do Ministério dos Transportes receber 53% a mais do que as telefonistas de outras áreas.
Com os votos que recebeu nas urnas, Bolsonaro tem obrigação de mudar a cara do setor público do país. O estudo do FMI sugere um corte de pelo menos 1% do PIB nas despesas com pessoal do governo federal para ajudar a enquadrar os números na lei do teto de gastos (PEC 241) até 2023. Representaria uma relevante quebra do paradigma histórico. No mais, o que se pode fazer é desejar aos leitores um Feliz 2019!
Merval Pereira: O caminho das reformas
O Supremo já decidiu que ninguém tem direito adquirido a não ser tributado no futuro, inclusive os inativos
É quase certo que o Supremo Tribunal Federal (STF) seja acionado para impedir a reforma da Previdência, com argumentos já utilizados para questionar reformas anteriores: afronta a direitos adquiridos, configuração de confisco, violação de ato jurídico perfeito e desconsideração de expectativas legítimas dos contribuintes dos sistemas.
Segundo o constitucionalista Gustavo Binemboin, a jurisprudência do Supremo tem sido de que apenas os aposentados, ou os que já tenham preenchido os requisitos para a aposentadoria, têm direito adquirido.
A ampliação de tempo de contribuição, e a imposição de idade mínima, podem, portanto, alcançar todos os que ainda não tenham preenchido os requisitos do regime atualmente em vigor. A majoração de alíquotas de contribuições tende a ser admitida, pois o Supremo já decidiu que ninguém tem direito adquirido a não ser tributado no futuro, inclusive os inativos.
Quanto às privatizações, Binemboin lembra que a jurisprudência do STF se limita a controlar aspectos formais da venda do controle acionário de empresas estatais. A Reforma Tributária também deve ser feita por emenda constitucional, e o desafio será superar alegação de afronta ao pacto federativo, e as garantias dos contribuintes, que o Supremo já entendeu serem também cláusulas pétreas.
O governo, segundo o constitucionalista, deverá ter êxito se o Supremo adotar uma concepção minimalista em relação às cláusulas pétreas, como, por exemplo, admitindo um novo arranjo tributário para a Federação – se for criado um IVA que junte o IPI, o ICMS e outras contribuições –, desde que a reforma não esvazie a autonomia de estados, municípios e Distrito Federal.
No que se refere às garantias dos contribuintes, Gustavo Binemboin lembra que apenas uma vez a Corte pronunciou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, na criação do IPMF, que não respeitava o princípio da anterioridade tributária. Na Reforma Orçamentária, parece ser intenção do novo governo conceder maior liberdade ao Congresso Nacional na elaboração do orçamento anual.
A proposta do então candidato Bolsonaro falava em “orçamento de base zero”, que seria a possibilidade de total liberdade de alocação de receitas na lei orçamentária, a cada ano. Não há, segundo Gustavo Binemboin, em nenhum país civilizado, nem mesmo nos de desenvolvimento semelhante ao do Brasil, esse tipo de amarras na Constituição.
Como a maioria dessas normas é proveniente de emendas constitucionais, não haverá problemas, avalia Binemboin, em se aprovar uma PEC para desamarrar o orçamento e permitir que o governo e o Congresso legislem mais democraticamente sobre como as receitas públicas devam ser alocadas, sempre observando o teto geral de gastos, também previsto na Constituição.
A maior mobilidade na alocação dos recursos é condição prioritária para que esse objetivo seja alcançado. Caso o Supremo seja provocado, a tendência é no sentido da aprovação da medida.
Em matéria de direitos e garantias individuais, os desafios devem surgir quanto à alteração da maioridade penal, por exemplo. Segundo Gustavo Binemboin, não parece ofender nenhuma cláusula pétrea a alteração da idade de 18 para 17 anos, que não chega a configurar uma medida “tendente a abolir” direito ou garantia individual.
O mais correto, na opinião do constitucionalista, seria, como sugeriu o futuro ministro Sérgio Moro, que a redução da maioridade penal alcance apenas crimes graves, como homicídio e latrocínio, por exemplo, em que a consciência da ilicitude pode facilmente ser presumida em jovens de 16 ou 17 anos.
Gravidade
Se analisado em suas diversas facetas, o caso do motorista de Flavio Bolsonaro é mais grave do que o provável desvio de parte do salário dos seus funcionários.
O STF proíbe a contratação de parente de servidor comissionado. No caso, há o motorista, a esposa dele, as duas filhas, o ex-marido da esposa e a filha dele. Muitos sem prestarem qualquer serviço.
E se completa com a indisfarçável cumplicidade do futuro presidente, ao contratar uma das filhas, exonerada ao mesmo tempo que o motorista, quando o escândalo veio à tona, numa provável tentativa de encobrimento.
*A coluna entra em recesso e volta a ser publicada no dia 27. Feliz Natal a todos.
Vera Magalhães: O risco de dispersão
Aprovação a plataforma de Bolsonaro é chance única para a reforma da Previdência
Na semana passada, mediei o painel sobre desafios políticos do governo Jair Bolsonarono fórum promovido pelo Estado e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas. Na mesa, cientistas políticos e economistas demonstraram otimismo quanto à possibilidade de Jair Bolsonaro aprovar a reforma da Previdência tão adiada, mas divergiram quanto ao timing e a estratégia de ataque da tarefa.
Com algumas nuances de análise, o cientista político Ricardo Ribeiro, da MCM Consultores, e o economista Samuel Pessoa, da FGV, opinaram que é possível mesclar a agenda econômica, da qual a reforma é o carro chefe, com aquela mais cara ao coração bolsonarista, que inclui projetos na área de segurança pública e outros voltados a questões de costumes, com viés conservador. O cientista político Fernando Abrucio, também da FGV, foi taxativo: se o futuro governo dispersar energias mandando ao Congresso várias prioridades, muitas das quais conflitantes e em sua maioria rejeitadas por algum setor da sociedade, a chance de aprovar a reforma ainda no primeiro semestre se reduz muito. Concordo plenamente com ele.
O Congresso é um organismo com humores próprios, difíceis de compreender para que se possa obter maiorias seguras e mais ou menos duradouras. Qualquer métrica que se use isoladamente para aferir a governabilidade é falha: alinhamento dos partidos, influência das chamadas bancadas temáticas, apelo no chamado baixo clero ou peso regional das pautas são variáveis intercambiáveis e que mudam ao sabor da circunstância.
Para a reforma da Previdência será necessário um manejo fino de todas essas forças que se aglutinam lá dentro, uma comunicação muito precisa com a sociedade e com os parlamentares para deixar claro, de uma vez por todas, que se trata de corrigir distorções e eliminar privilégios, e não de cassar direitos adquiridos (que não são tocados pela proposta) e assegurar alguma racionalidade fiscal para um Estado que, se continuar assim, não terá capacidade de investir nem de assegurar o simples pagamento dos próprios benefícios. Um desafio tão complexo exige foco, uniformidade no discurso da parte de todas as alas do governo, a começar do próprio presidente, e que não haja distrações pelo caminho.
E é neste momento que entram em cena alguns complicadores em potencial na maneira como o futuro governo vai sendo composto. Há pelo menos três pilares muito fortes no desenho da gestão Bolsonaro: o econômico, capitaneado por Paulo Guedes, o de segurança/combate à corrupção, nas mãos de Sérgio Moro, e o militar, simbolizado pelo general Augusto Heleno, mas com tentáculos em várias áreas, da coordenação política à infraestrutura.
A articulação política, diante de colunas assim tão robustas, parece meio tíbia. Mais do que isso: seu comando está disperso e não há clareza a respeito de quem terá a palavra final para dialogar com um Congresso tão complexo e em grande medida desconhecido, dada a renovação recorde que sofreu. Jair Bolsonaro tem um grande trunfo para começar o governo. Pesquisa CNI/Ibope mostra que 75% da população concorda com as medidas até aqui esboçadas. Isso demonstra que ele venceu a resistência inicial de um grande contingente que não votou nele e que começa com um voto de confiança muito robusto. Usá-lo vai requerer sabedoria.
Enviar de uma vez para o Congresso prioridades múltiplas e em alguma medida conflitante significará, a meu ver, começar gastando essa confiança de forma pouco inteligente. Se a reforma é a condição sine qua non para o sucesso do governo, o mais eficaz é tirá-la da frente logo para, aí sim, ter sossego para discutir a agenda mais cara ao bolsonarismo de raiz.
Adriana Fernandes: Fogo amigo
Apesar do discurso reformista, presidente e auxiliares põem obstáculos à Previdência
Faltando menos de um mês para o fim da transição, é nítida a dificuldade que o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, enfrenta para colocar as reformas na agenda política do governo Jair Bolsonaro e dos seus aliados no Congresso Nacional.
Os obstáculos têm sido colocados até mesmo pelo próprio presidente eleito e seus auxiliares mais próximos, apesar do discurso público reformista. É o velho fogo amigo alimentado por falas desencontradas em torno da reforma desde o primeiro dia da transição, logo após a vitória nas eleições. Tudo ainda de forma muito discreta.
Guedes reconhece que precisa de apoio amplo à reforma e, nesse caminho, reforçou tecnicamente a sua equipe para a elaboração de uma nova proposta a ser encaminhada em março do ano que vem ao Congresso. Previdência, Previdência, Previdência é o seu discurso a todos que conseguem uma hora na sua atribulada agenda.
Não foi à toa que o novo ministro repensou a estrutura do seu superministério e criou mais uma secretaria para abrigar o deputado tucano Rogério Marinho (RN) para cuidar da proposta de mudanças nas regras de aposentadoria. A ideia inicial era que a Previdência ficasse no guarda-chuva da Secretaria Especial de Arrecadação sob o comando do economista Marcos Cintra.
Mas, diante das barreiras políticas e aconselhado por amigos, ele mudou de ideia para fortalecer a parte negociadora da proposta.
Marinho fará dobradinha técnica com Leonardo Rolim, experiente consultor técnico da Câmara dos Deputados, especialista em Previdência e profundo conhecedor do modus operandi das negociações parlamentares. Depois de anunciado seu nome, Marinho veio a público logo para marcar posição e dizer que a expectativa é de que reforma será aprovada no primeiro semestre.
Com a escolha de um político para sua equipe técnica, fica claro que o ministro não quer ficar nas mãos dos futuros articuladores políticos palacianos, que têm titubeado em torno da necessidade de dar prioridade máxima à aprovação da reforma.
Relator da polêmica reforma trabalhista, Marinho não foi reeleito e leva para o time de Guedes um papel importante de negociador, tarefa que o futuro ministro e seus principais aliados ainda não conseguiram azeitar em meio à pressão dos partidos para ocupar cargos nos ministérios, bancos públicos e nas empresas estatais.
Como o toma lá, dá cá não acaba com uma simples canetada, a pressão política da hora vem do Partido Progressista (PP). De fora da rodada inicial das conversas dos partidos com Bolsonaro, o PP ajudou na articulação das pautas bombas e segurou a votação do Orçamento de 2019. A apreciação do projeto ainda corre risco de ficar para o próximo Congresso em meio à queda de braço pelas disputadas emendas parlamentares. Um jogo em que os interesses do velho e do novo Congresso se misturam, e é possível encontrar aliados de Bolsonaro nos dois lados: entre deixar ou não o Orçamento para a nova legislatura que começa em fevereiro.
Funcionalismo
Se não bastassem as resistências à agenda reformista, o boicote dos procuradores da Fazenda Nacional à indicação do diretor do BNDES, Marcelo de Siqueira, para comandar o órgão é um sinal forte de que o futuro do ministro não terá vida fácil na relação com as carreiras de servidores mais influentes da Esplanada dos Ministérios.
Ao trazer a área de pessoal do atual Ministério do Planejamento para o novo superministério da Economia, Guedes vira alvo preferencial de pressão das lideranças do funcionalismo público federal. Serão 267 sindicatos que representam 309 carreiras de servidores do Executivo batendo na porta de Guedes.
Os procuradores ameaçam entregar os cargos de chefia e cobram a indicação de um nome da carreira para o comando da PGFN, órgão de assessoramento jurídico e cobrança das dívidas que a União tem a receber.
Com a equipe de transição promovendo mudanças na configuração dos ministérios, fazendo fusões e extinguindo pastas ministeriais, as carreiras estão agitadas. Um verdadeiro formigueiro se formou. Auditores fiscais do trabalho querem se acomodar na Receita Federal. Em contrapartida, como reação aos auditores, agora os servidores federais da Superintendência de Seguros Privados querem se abrigar no Banco Central. Sem contar a insatisfação de categorias ligadas à segurança com o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, que esta se cercando só de delegados na sua pasta. A confusão está instalada e só começando.
Gil Castello Branco: A vez e a hora da liberal-democracia
O economista americano Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia em 1976, que lecionou na Universidade de Chicago por três décadas, dizia: “Se o governo administrar o deserto do Saara, em cinco anos faltará areia”.
Lembrei-me da frase de Friedman ao ver vários economistas com passagens pela mesma universidade —o berço do liberalismo —assumirem funções no futuro governo, com a finalidade de destravar o Estado brasileiro, mastodôntico e corporativo. Os alvos iniciais serão a alteração das regras e do modelo previdenciário, a desestatização/desmobilização e a reforma do Estado.
O primeiro desafio será a aprovação no Congresso da reforma da Previdência para reduzir o déficit que atingiu R$ 268,8 bilhões no ano passado. A encrenca começa aí. A Previdência urbana e rural tem um rombo de R$ 182,4 bilhões, mas atende a quase 30 milhões de pessoas. O Regime de Previdência dos Servidores Públicos tem déficit de R$ 86,4 bilhões e só atende a 1,1 milhão de pessoas. Isoladamente, as maiores defasagens percentuais entre as arrecadações e os benefícios pagos estão nas previdências rural e dos militares, cujas receitas cobrem apenas cerca de 8% dos pagamentos. Diante desses números, como irão reagir os principais grupos de apoio a Bolsonaro, a bancada ruralista e a caserna, se os seus interesses forem contrariados? Não é simples refazer o pandemônio previdenciário, repleto de “privilégios e direitos adquiridos”, por mais injustos que sejam.
O segundo desafio passa por concessões, privatizações e venda de imóveis do patrimônio da União. O Brasil tem atualmente 138 empresas estatais que possuem 508 mil servidores e movimentam anualmente R$ 1,3 trilhão, mais de cinco vezes o PIB do Uruguai. Em tese, um prato cheio para gerar recursos para abater a trilionária dívida do país. Mas bastou ser anunciado o nome do futuro presidente do Banco do Brasil — e o BB nem está na relação das empresas privatizáveis — para a Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil comprar espaço na capa do jornal “Correio Braziliense” para criticar o escolhido por ser “vinculado ao mundo das finanças privadas e defensor inconteste das privatizações”.
Já o valor global do patrimônio imobiliário público federal é estimado em R$ 947 bilhões. O potencial de arrecadação é enorme, mas a falta de estrutura da Secretaria do Patrimônio da União é muito maior. O governo não tem vocação para gerir um conjunto de bens dessa natureza. Paga aluguéis a terceiros no valor de R $1,6 bilhão e recebe cerca de R$ 400 milhões como arrecadação decorrente dos seus bens.
O terceiro desafio é a reforma do Estado, com a eliminação de órgãos e atividades superpostas, redução dos privilégios, das reservas de mercado, dos monopólios, dos subsídios e dos generosos financiamentos concedidos pelos bancos públicos aos amigos do rei. A diminuição da quantidade de ministérios deverá implicar a revisão da estrutura de cargos e salários. Existiam 23.140 cargos de Direção e Assessoramento Superior e Funções Comissionadas do Poder Executivo, segundo dados de outubro de 2018.
Se reunidos todos os cargos, funções e gratificações atingia-se a 99.403! Os salários dos servidores federais são, em média, 96% superiores aos da iniciativa privada, conforme estudo do Banco Mundial. Nesse sentido, o governo Bolsonaro não participou da festa, mas já chegará pagando a conta, como a do descabido aumento dos subsídios dos ministros do STF, com reflexos de R$ 6 bilhões, e os reajustes salariais autorizados por Temer em 2016, com parcela a vencer em 2019. O corporativismo irresponsável solapa a austeridade fiscal nos Três Poderes e no Ministério Público.
Quando perguntavam ao economista e diplomata Roberto Campos —um liberal de carteirinha —se havia saída para o Brasil ele citava três: o aeroporto do Galeão, o de Cumbica e o liberalismo. Com suas ideias avançadas para a época, Roberto Campos deve estar exultante: atualmente, são vários os aeroportos que nos levam ao exterior e os liberais chegaram ao poder, inclusive o seu neto.
Luiz Carlos Azedo: Tropa de choque aflita
“O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, está sendo acusado de escantear o PSL e favorecer o DEM. Bolsonaro precisou acalmar a própria bancada”
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, precisou passar na reunião das bancadas do PSL na Câmara e no Senado, ontem, para apagar um princípio de incêndio por causa do descontentamento do seu próprio partido com a nomeação de três ministros do DEM em áreas politicamente estratégicas do futuro governo: a poderosa Casa Civil, que coordenará a articulação política e ficará a cargo de Onyx Lorenzoni, e os dois titulares da área política indicados até agora, o deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na Saúde, e a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), na Agricultura. A senadora Soraya Thronicke, eleita pelo PSL no Mato Grosso do Sul, puxou o coro de descontentes, porque ficou sabendo da nomeação de Tereza Cristina pela imprensa.
Na Câmara, o foco de descontentamento vem de Goiás: o deputado Delegado Waldir lançou sua candidatura a presidente da Câmara e pleiteia o apoio da bancada do PSL, que é a segunda da Casa, com 52 parlamentares. Foi preciso que a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), aliada incondicional de Bolsonaro, saísse em defesa do futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está sendo acusado de escantear o PSL e favorecer o DEM na montagem do governo. Ela minimizou o desagrado: “Foi uma reunião em que alguns parlamentares apresentaram certo descontentamento, certo desconforto”, declarou.
Bolsonaro justificou as nomeações com o argumento de que as indicações de Mandetta e Tereza Cristina não foram feitas pelo partido, mas por frentes parlamentares que eles representam, da saúde e do agronegócio, respectivamente. O fato de ambos serem do DEM e do Mato Grosso do Sul, segundo o presidente eleito, foi mera coincidência. O problema é que o DEM, com apenas 29 deputados eleitos para a próxima legislatura, ocupa postos estratégicos do governo. Atrás somente do PT, que elegeu 56 parlamentares, o PSL pretende filiar deputados dos partidos que não atingiram a chamada cláusula de barreira e se tornar a maior bancada da Câmara. Atualmente, tem apenas oito deputados, ou seja, a grande maioria da bancada é formada por estreantes.
O deputado Major Olímpio, eleito senador por São Paulo, defende uma posição mais agressiva do PSL na Câmara, confrontando o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que pleiteia a reeleição. Para isso, pretende lançar a candidatura de Luciano Bivar, presidente do PSL, ao comando da Câmara. Se isso ocorrer, será uma saia justa para Bolsonaro, que publicamente vem anunciando a intenção de manter distância da disputa no Legislativo. Ontem mesmo, manifestou essa posição em conversa com um dos concorrentes de Maia, o deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), vice-presidente da Câmara. A indicação do advogado Gustavo Bebianno para a Secretaria-Geral da Presidência também pode acalmar um pouco o PSL. Um dos conselheiros de Bolsonaro, ele exerceu a presidência interina do partido durante a campanha eleitoral e conquistou a confiança do presidente eleito.
Com apenas quatro senadores, o PSL não tem a menor chance de disputar a Presidência do Senado. A tendência é fazer uma composição com o senador Renan Calheiros (MDB-AL), mas esse acordo pode ser uma espécie de anticlímax na estratégia parlamentar de Bolsonaro, que fez uma campanha contra o sistema político e renegou o chamado “presidencialismo de coalizão”. Característica de todos os governos formados desde a redemocratização, o loteamento da Esplanada dos Ministérios entre os partidos da base fez do MDB, do DEM e do PP os fiadores da estabilidade dos governos no Congresso, na base do toma lá dá cá, ou seja, da distribuição de cargos e verbas em troca de apoio para votação de matérias de grande interesse do governo. Um compromisso de campanha de Bolsonaro é mudar essa relação, daí a estratégia de composição com as frentes parlamentares. Entretanto, o apoio desses parlamentares está relacionado às agendas corporativas que defendem; o problema é que isso não significa apoio a todas as propostas do governo, como a reforma da Previdência, que enfrenta o lobby das corporações.
Militares
O futuro ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, anunciou, ontem, os novos comandantes militares:
Antônio Carlos Moretti Bermudez, da Aeronáutica, é gaúcho, foi comandante da Base Aérea de Brasília, diretor-geral do Departamento de Ensino da Aeronáutica e adido de Defesa e Aeronáutico nas embaixadas do Brasil na França e na Bélgica. Atualmente, é o comandante-geral de Pessoal da FAB.
O general Edson Legal Pujol, futuro comandante do Exército, é colega de turma de Bolsonaro. Foi comandante Militar do Sul, secretário de Economia e Finanças, chefe do Centro de Inteligência do Exército, e instrutor na Academia Militar das Agulhas Negras. Comandou a Força de Paz Minustah, no Haiti, e atuou como observador militar da ONU em El Salvador.
O almirante Ilques Barbosa Júnior, paulista, é o chefe do Estado-Maior da Armada (EMA), foi comandante do 1º Distrito Naval, secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação da Marinha e diretor de Portos e Costas.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-tropa-de-choque-aflita/
Míriam Leitão: A melhor reforma da Previdência
Proposta de Arminio e Tafner para a Previdência é a melhor sobre a mesa, e equipe de Bolsonaro faria um bem ao país se estudasse esse projeto
O Brasil terá que fazer uma reforma da Previdência no começo do próximo ano por razões objetivas e não ideológicas. A melhor ideia que apareceu até agora é a apresentada pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner. Ela propõe que a fórmula mude para todos, inclusive as Forças Armadas, ainda que elas estejam num projeto separado. Tira os parâmetros de aposentadoria e pensão da Constituição, porque não faz sentido que estejam.
A Previdência das Forças Armadas hoje não está na Constituição. Foi feita e pode ser alterada por Lei Complementar. E mesmo assim tem funcionado. Se diante de cada mudança de parâmetro, como a inclusão da idade mínima, o país ficar mais de duas décadas discutindo, seremos tragados pelo déficit. A primeira vez que o governo tentou aprovar a idade mínima foi em 1996. Ainda estamos rodando em torno disso.
A proposta surge descolada de qualquer grupo político. Quando alguns dos melhores especialistas em Previdência no Brasil se reuniram sob o comando de Armínio Fraga era fevereiro. Não havia candidaturas definidas, e o líder das pesquisas era Lula, que estava solto. Portanto, não foi feita sob encomenda para nenhum partido, mas de acordo com a necessidade de um país que gasta muito mais com aposentadorias e pensões, como proporção do PIB, do que o Japão, que têm o dobro do percentual de idosos que o Brasil tem.
Paulo Tafner explica que a proposta de reforma da Previdência do governo Temer é boa e elogia os trabalhos coordenados por Marcelo Caetano na PEC 287. Há pontos em comum entre as duas, mas, se a proposta atual mantém o assunto na Constituição, a nova proposta retira para ter mais liberdade para alterá-la conforme as mudanças na realidade do país.
O sistema brasileiro de pensões e aposentadorias tem dois problemas: um déficit crescente e uma enorme desigualdade. Qualquer reforma consistente tem que atacar as duas questões ao mesmo tempo. A proposta original de Marcelo Caetano era mais abrangente, mas foi sendo reduzida com a retirada dos policiais e bombeiros, por exemplo. A ideia agora é todos os trabalhadores do setor privado e todos os servidores civis terem o mesmo regime de aposentadoria, e as regras de transição são mais rápidas.
— Isso quer dizer que na década de 2030, se você comparar um servidor público e um da iniciativa privada, eles terão as mesmas regras. Primeiro, tem que unificar, padronizar todas as regras de modo que se possa juntar todos os trabalhadores privados e todos os servidores civis federais, estaduais e municipais — explica Paulo Tafner.
Há uma proposta em separado para policiais militares e bombeiros, mas muda as regras atuais em que eles se aposentam antes dos 50. A ideia de Armínio-Tafner é fazer uma ampla reforma de todos os parâmetros da atual Previdência do regime de repartição. Ao mesmo tempo, criar um sistema novo para quem nasceu a partir de 2014. Tafner me explicou que se o país estiver crescendo e resolvendo seus problemas fiscais, haverá a possibilidade, para quem nasceu a partir de 2000, de optar pelo novo sistema de contas individuais, para o qual o empregador continuará contribuindo.
— Esse sistema é tão equilibrado que a partir de 2050 talvez seja possível reduzir as contribuições — diz Tafner.
O governo Bolsonaro fará um grande favor a si mesmo e ao país se estudar esse projeto. Ele foi feito por pessoas que ou passaram pelo setor público ou são funcionários públicos, do Ipea, do BNDES, da assessoria do Congresso. Ela é ampla, mas não fora da realidade, porque são todos maduros especialistas no assunto.
Para as Forças Armadas, como para todos os servidores, vai acabar a integralidade e a paridade. Hoje, quem dá baixa cedo passa a receber o salário integral da ativa na sua patente. A baixa oficialidade e os soldados, cabos e sargentos representam o custo maior do déficit das Forças Armadas, que está em R$ 43 bilhões. Eles não terão idade mínima, podem ir para a reserva mais cedo. Porém, todos vão contribuir mais. Hoje, o militar contribui com 7,5% para si mesmo e 1,5% para as pensões.
A proposta enfrenta todas as questões como a da desvinculação do piso da Previdência do salário mínimo. São assuntos polêmicos, mas a melhor hora para tratar é no início de um governo que chegou falando em mudança e em um projeto liberal.
Luiz Carlos Azedo: Acordar com passarinhos
“Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras”
Nos dois dias que passou em Brasília, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, mudou a rotina do prédio da quadra de deputados onde tem apartamento funcional, com a grande movimentação de pessoas a partir das cinco horas da madrugada, já em pleno horário de verão. Participou das comemorações dos 30 anos da Constituição, reuniu-se com os presidentes do Supremo Tribunal Federal e com os ministros do Superior Tribunal de Justiça, trocou figurinhas com o presidente Michel Temer e incorporou à transição dois futuros ministros, o juiz federal Sérgio Moro, que comandará um superministério da Justiça, e a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), que assumirá o Ministério da Agricultura sem o pepino do meio ambiente.
Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras. Deve ser até angustiante, principalmente para os generais que compõem seu estado-maior, constatar a desorganização da tropa. Militares têm regras rígidas de “apronto operacional” e “aprestamento pessoal”. No manual, uma tropa “só pode ser considerada adestrada quando dispuser de homens prontos para serem empregados no mais curto espaço de tempo a partir do momento em que for acionada”. Por enquanto, Bolsonaro está muito longe disso. O mais provável é que isso nunca aconteça, pois o governo não é uma unidade militar, é uma organização civil, ainda que com forte presença de militares.
Todo governante assume o mandato cheio de energia e disposição de pôr a tropa na rua; quer dizer, o bloco na rua. Lembro-me do começo do governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, eleito em 1982, num tsunami, como o que aconteceu agora no Brasil. No primeiro dia de mandato, o governador madrugou no Palácio Guanabara, para desespero dos repórteres que cobriam a administração estadual. Na primeira coletiva, disse que chegaria com os passarinhos. O repórter Ernesto Rodrigues, desde aquele dia, passou a anotar o horário de chegada de Brizola. Ao fim dos 100 primeiros dias de administração, quando geralmente acaba a lua de mel com a imprensa, o jornalista emplacou a manchete do Globo: “Brizola já não chega com os passarinhos”. Houve dias em que o governador nem sequer apareceu no seu gabinete, despachou do próprio apartamento, em Copacabana.
Palácios de governo são “jaulas de cristal”. O governante é cercado pelos áulicos e se isola da sociedade, mas muito do que acontece nos bastidores do seu gabinete acaba chegando à opinião pública. Árbitro de disputas constantes no interior de sua equipe, isso acaba agravando a solidão do poder, pois tudo o que um governante fala e decide acaba pondo mais lenha na fogueira das rivalidades, intrigas e idiossincrasias dos integrantes de sua equipe. Antes mesmo de tomar posse, a disputa se instala: primeiro entre a tropa de assalto, aqueles que chegaram primeiro e carregaram nas costas a campanha eleitoral, e a tropa de ocupação, os que foram chamados a compor a equipe por serem supostamente mais capazes de exercer as funções técnicas de governo.
Pelo Twitter
Divergências na equipe são a parte mais complicada. Muito da crise que levou à renúncia o presidente Jânio Quadros, segundo relato do jornalista Carlos Castelo Branco, que foi assessor de imprensa dele, foi consequência das disputas e intrigas entre José Aparecido e Raul Riff, dois colaboradores íntimos do presidente da República. Na equipe de Bolsonaro, o chefe da transição, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, superpoderosos, são dois fios desencapados. Não foi à toa que o general Augusto Heleno, homem acostumado a comandar gente da casca grossa, foi deslocado do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Apesar de militar, já é o algodão entre os cristais.
O maior embate no interior do novo governo, provavelmente, será com a alta burocracia federal, que votou em massa em Bolsonaro, mas espera recompensas. Políticos se movem pela ética das convicções, quem zela pela legitimidade dos meios, ou seja, a ética da responsabilidade, é a burocracia. Ao defender a reforma fiscal, o enxugamento do governo e a reforma da Previdência, Bolsonaro desperta o mais profundo corporativismo entre os servidores públicos. Além disso, o exercício do poder exige paciência e muita reflexão; o voluntarismo pode ser desastroso. Não é possível governar só pelo Twitter. O tipo de comunicação que adotou na campanha, por exemplo, nem sempre funciona na gestão pública, em que os binômios “comunicar-executar” e “executar-comunicar” se alternam de acordo com as circunstâncias.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-acordar-com-passarinhos/
Míriam Leitão: Cada cabeça, uma reforma
Previdência já provoca bateção de cabeça entre a cúpula do futuro governo Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão a reforma
A reforma da Previdência já provoca falas dissonantes no governo que nem começou de Jair Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão reforma. A partir daí começa a Torre de Babel. A batida de cabeça entre Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni era previsível. Aqui mesmo alertei que o cotado para chefe da Casa Civil, unido ao PT, fora um aguerrido adversário da proposta do governo Temer. Guedes lembrou ontem que sempre disse “aprovem a reforma”, e agora não pode dizer o contrário, e alfinetou: “é político falando de economia.”
São os políticos que aprovam as propostas dos economistas, portanto os dois precisam se entender. Há três ideias na mesa: aprovar a reforma de Temer, fazer um projeto mais amplo para o ano que vem, apresentar uma fórmula para mudar do regime de repartição para o de capitalização. Cada uma tem sua vantagem, mas também tem seu problema.
Se a decisão for aprovar a reforma do Temer, só será possível votar na Câmara, mas ganha-se tempo. No ano que vem, ela poderia ser modificada no Senado e teria que voltar à Câmara. Ela tem a vantagem de estabelecer a idade mínima, coisa que está se tentando no Brasil desde o primeiro governo Fernando Henrique. O problema é que a proposta perdeu substância em parte pela ação de políticos como Onyx Lorenzoni e o Major Olímpio, da base de Bolsonaro. Ontem mesmo, Olímpio avisou que, se o texto for a plenário, votará contra.
Aí viria a segunda proposta. A do político Lorenzoni. Ele diz que a atual é remendo e sugere que seja ampliada e que dure para os próximos 30 anos. Ótima ideia. O futuro chefe da Casa Civil pode começar por incluir de volta os policiais militares e bombeiros que foram retirados pela pressão dos defensores dessas corporações, entre os quais está o presidente eleito. Inclua-se também as Forças Armadas. Se é para valer por 30 anos precisa ser ampla, geral e irrestrita. O déficit das três Forças vai ser de R$ 42 bilhões no ano que vem. O valor foi retirado da conta da Previdência, e levado para a Defesa, sob a alegação de que militar não se aposenta, vai para a reserva e pode ser chamado a qualquer momento. Balela. Déficit é a despesa maior do que a receita. Mudar de nome ou de escaninho não resolve o problema.
A terceira ideia também é boa. É mudar do sistema de repartição, em que cada ativo contribui para o pagamento dos inativos, para o de capitalização, em que cada um contribui para si mesmo em contas individuais. Esse sistema foi muito falado pela campanha de Ciro Gomes, que se debruçou sobre a proposta, mas nunca ficou claro o custo dessa transição. E esse é o problema.
Se quiser preparar a migração de um modelo ao outro, Paulo Guedes precisará de meses de estudo e recomenda-se ouvir mais especialistas. Há várias questões sem resposta, mas a maior delas é que, se cada um vai poupar para si, isso reduz o financiamento para os que já estão aposentados. Aí o déficit aumenta no curto prazo. Guedes tem usado como parâmetro o modelo chileno de 1981. Só que ele foi implementado na ditadura de Pinochet e foi fácil cortar direitos adquiridos. Naquela época, a pirâmide etária era mais favorável e a previdência chilena estava bem mais equilibrada que a nossa. Tem que se escolher como, quando e com que velocidade se faria a migração. A propósito: a do Chile tem dado problemas.
O deputado Onyx Lorenzoni quer separar sistema de aposentadorias e pensões de seguridade social. Teria que mudar a Constituição, que criou dois orçamentos, o fiscal e o da seguridade. No primeiro, a fonte de renda são impostos, e quase todos eles são compartilhados com estados e municípios. O da seguridade social, financiado por contribuições, está dividido em previdência, saúde e assistência social. Nesse último estão Bolsa Família e benefícios para os muito pobres e mais velhos que nunca contribuíram (Loas e BPC). Mas o déficit da Previdência mesmo é o resultado do que os trabalhadores e patrões recolhem e o custo das pensões e aposentadorias. Portanto, separar previdência de assistência pode tornar os dados mais compreensíveis, mas não reduz em nada o déficit. Mesmo quando se tira da conta a saúde e a assistência social, há um enorme rombo. Quem não quer fazer reforma costuma falar que a mistura é que causa o déficit. Essas contas estão no vermelho quando estão juntas ou separadas.
Enfim, que reforma o governo Bolsonaro quer fazer e sob o comando de quem? Isso ainda não se sabe, mas, também, o governo não começou.
Luiz Carlos Azedo: Uma vírgula
Doa a quem doer, o combate à corrupção pela Lava-Jato se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real
Quando a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) completou 100 anos, em 7 de abril de 2008, lançou uma campanha em parceria com o Grupo ABC que tinha a “vírgula” como protagonista. Com produção da agência África, de Nizan Guanaes, e narração do ator Matheus Nachtergaele, a campanha fez enorme sucesso: “Vírgula pode ser uma pausa… Ou não. Não, espere. Não espere… Ela pode sumir com seu dinheiro. 23,4. 2,34. Pode criar heróis… Isso só, ele resolve. Isso só ele resolve. Ela pode ser a solução. Vamos perder, nada foi resolvido. Vamos perder nada, foi resolvido. A vírgula muda uma opinião. Não queremos saber. Não, queremos saber. A vírgula pode condenar ou salvar. Não tenha clemência! Não, tenha clemência! Uma vírgula muda tudo. ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.”
O presidente Michel Temer é a nova vítima da vírgula. A peça antológica, que virou case nas escolas de propaganda e marketing, foi ignorada pelo Palácio do Planalto, ao lançar o slogan comemorativo dos 24 meses de seu governo: “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, em tempos de fake news, virou um tremendo tiro no pé, porque basta retirar a vírgula para mudar radicalmente o sentido da frase. O que era pra ser uma afirmação das realizações de sua administração virou objeto de piada. É óbvio que Temer não passou recibo da mancada, ao fazer um balanço de suas realizações, mas o assunto mais comentado no Palácio do Planalto ontem era a danada da vírgula.
Temer forçou a barra ao comparar seu governo com o de Juscelino Kubitschek, o construtor de Brasília, cujo slogan de governo foi “50 anos em 5”. O Plano de Metas de JK era um projeto de desenvolvimento nacional com 31 objetivos, um dos quais a transferência da capital federal. Baseava-se em estudos realizados pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos entre os anos de 1951 e 1953, cuja missão foi identificar os pontos cruciais de estagnação da economia brasileira que inviabilizavam o crescimento econômico do país em um viés capitalista e liberal.
Para promover “50 anos de progresso em 5 anos de realizações”, Juscelino escolheu cinco setores: energia, transportes, indústrias de base, alimentação e educação. Os três primeiros receberam 93% dos recursos, e educação e alimentação contaram apenas com 7%. Houve crescimento de 100% na indústria de base nacional, mas também um grande desequilíbrio monetário. Em contrapartida, o país esbanjou otimismo, num ambiente de liberdade, sem estado de sítio nem censura à imprensa, apesar da guerra fria.
O saldo de realizações do governo JK foi positivo, mas nem por isso ele deixou de ser atacado pela esquerda, após a renúncia de seu sucessor, Jânio Quadros, e a posse do trabalhista João Goulart, que acabou deposto por um golpe militar, em 1964. Liberal conservador, o PSD de Juscelino, Amaral Peixoto e Tancredo Neves é que dava equilíbrio de centro-esquerda à aliança com trabalhistas e comunistas que garantiu a posse de Jango, que logo se rompeu.
Juscelino era considerado entreguista pela esquerda e sua política de conciliação, uma ameaça de retrocesso, caso voltasse ao poder em 1965. Isso jogou o ex-presidente da República no colo das forças que depuseram João Goulart; quando se arrependeu do apoio aos militares, que suspenderam as eleições presidenciais, já era tarde: foi cassado e obrigado a se exilar. Morreu num desastre de automóvel, em 1976.
Futebol e política
Outra mancada foi misturar o velho slogan reciclado com o grito das torcidas de futebol em “O Brasil voltou”, uma alusão à entrada em campo de jogadores que estavam contundidos ou foram recontratados por suas equipes. Há certo mito em relação ao impacto do desempenho da seleção brasileira em copas do mundo nos anos de eleição. Isso vem da Copa de 1970, no México, quando o Brasil foi tricampeão e a Arena, partido governista do regime militar, obteve uma esmagadora vitória eleitoral. O slogan “Pra frente, Brasil” fez enorme sucesso àquela época, na qual o país vivia a euforia provocada pelas altas de taxas de crescimento do chamado “milagre brasileiro”, acima de 10%. Tanto que na Copa do Mundo de 2014, o traumático vexame da seleção, que perdeu por 7 a 1 para a Alemanha, não impediu a reeleição da presidente Dilma Rousseff.
Não faltam os “causos” de insucesso em relação à mistura de futebol com política. No antigo estado do Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos era o da entrega de uniformes completos para um dos times de Niterói, pelo então candidato a governador do PSD, Getúlio de Moura. Depois que começou a partida, a charanga da torcida atacou: “Roberto Silveira, deu camisa e deu chuteira!”. O político trabalhista é que se elegeu governador, mas morreu precocemente num desastre de helicóptero, em 1961.
Voltando ao tema original, há que se reconhecer: diante da recessão que herdou de Dilma Rousseff, o presidente Temer realmente recolocou a economia do país nos trilhos, com o controle da inflação, a redução dos juros e a retomada do crescimento. Mas não resolveu o problema fiscal, porque a reforma da Previdência não foi aprovada, e o governo continua transbordando a Esplanada dos Ministérios. O maior problema do governo, porém, não é nem o desemprego. É a crise ética. Quem quiser que se iluda, doa a quem doer, o combate à corrupção se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real.
Vírgula – Campanha dos 100 anos da ABI
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-uma-virgula/
Gustavo Franco: Previdência 2.0
Precisamos discutir a criação de uma previdência por capitalização em larga escala no Brasil
O debate sobre a Previdência esteve muito focado no INSS, o instituto através do qual trabalhadores empregados recolhem uma contribuição que é utilizada para os pagamentos aos inativos. É um sistema, digamos assim, “da mão para a boca”, ou mais precisamente de uma mão (jovem) para outra boca (inativa), e que pode ficar seriamente desequilibrado com mudanças demográficas.
Pouco se falou, no entanto, sobre previdência complementar em regime de capitalização, aquela onde o indivíduo se aposenta com o que poupou, incluído o rendimento adequado do seu dinheiro.
Na verdade, se a “reforma da Previdência” serve para assegurar uma velhice confortável ao cidadão contribuinte, deveria cuidar de mudanças coordenadas nesses dois pilares do sistema, e em especial do segundo.
A primeira vantagem de se trazer a previdência por capitalização para o debate é a de oferecer um conceito intuitivo de aposentadoria justa: aquela que resulta diretamente do esforço de poupança do contribuinte somado à poupança feita a seu favor pelo seu empregador nos termos combinados em seu contrato de trabalho.
Se o cidadão, ao se aposentar, ganha mais do que isso, será em razão da generosidade da sociedade em assim presenteá-lo e necessariamente às custas de terceiros que nada têm com o assunto. Analogamente, se receber menos, será porque o governo lhe surrupiou um pedaço em benefício de algum escolhido das autoridades.
Como seria possível criar uma previdência por capitalização em larga escala no Brasil?
Resposta: através de poupanças previamente acumuladas pelas pessoas, nem sempre voluntariamente, e que têm sido utilizadas para outros fins. Estamos falando do FGTS, um fundo que tem 86,4 milhões de quotistas, mas cuja utilização passa bem longe dos melhores interesses dos donos do dinheiro.
O FGTS é caro, mal gerido e remunera miseravelmente o quotista.
A Caixa cobra uma taxa de administração elevada para gerir os recursos que, em verdade, formam uma linha auxiliar de funding para seus empréstimos habitacionais e de infraestrutura urbana, todos fortemente subsidiados.
Não se pratica no FGTS, ao contrário do que se passa em fundos de pensão, uma política de investimento que busque a melhor rentabilidade para o quotista, observado o seu perfil de risco. Ao invés, a prioridade é para os objetivos do governo, ainda que o dinheiro seja privado.
Além disso, o FTGS criou uma linha especial de investimentos em infraestrutura, o famoso FI-FGTS, que investiu em diversos projetos muito citados pela clientela da Operação Lava-Jato.
Durante o período 2003-2017, o FGTS rendeu para seus quotistas exatos 95%, correspondentes a TR + 3% anuais, perdendo para o IPCA do período, que andou 141%. Enquanto isso, o CDI andou 511% e o rendimento médio dos 262 fundos de pensão em funcionamento no país alcançou 641%.
Isso quer dizer que, em retrospecto, se o FGTS tivesse se convertido em um fundo de pensão em 2003, e investido seus recursos tal qual a média de outros da espécie, cada R$ 1 teria se transformado em R$ 7,41, e não em R$ 1,95 como se verificou.
Os R$ 5,46 dessa diferença, que poderiam estar na conta dos quotistas do FGTS, foram gastos pelo governo em “políticas públicas”. Muitos empregos podem ter sido criados, e muitas pessoas podem ter ficado felizes com isso, mas por que o governo não faz essas bondades com o dinheiro dele?
O ônus desse esquema é do cidadão poupador que deixou de acumular recursos que lhe garantiriam mais qualidade de vida na terceira idade.
Na posição de setembro de 2017, o FGTS possuía R$ 486 bilhões em ativos, e cada um de seus 86,4 milhões de quotistas poderia conjecturar que teria 7,41 vezes o que contribuiu de 2003 para cá se o FGTS tivesse investido como um fundo de pensão, observando o interesse do dono do dinheiro.
No fim de 2017, os 262 fundos de pensão em operação no país tinham R$ 802 bilhões em investimentos para 2,6 milhões de participantes ativos e 750 mil assistidos.
Uma boa reforma no FGTS faria muita gente mais tranquila com a reforma da Previdência.