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Política Democrática: ‘Reforma da Previdência não é o desmonte do Estado’, afirma Pedro Fernando Nery

Em artigo na quarta edição da revista Política Democrática online, consultor legislativo do Senado diz que aposentadoria por tempo de contribuição corresponde a 15 vezes o gasto com ensino profissional

Cleomar Almeida

Reforma é necessária para prestigiar a Constituição, garantindo a solvência do Estado nas três esferas, a prestação dos serviços públicos essenciais e o investimento público. É o que diz o consultor legislativo do Senado Pedro Fernando Nery, que também é autor do livro Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode esperar (Elsevier, 2019). “A reforma da Previdência não é o desmonte do Estado”, afirma.

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No artigo Reforma da Previdência para evitar o Desmonte do Estado, o autor afirma não reformá-la “é provocar um ajuste bíblico em outras despesas, transformar o Estado em uma mera folha de pagamento e viver um pesadelo ultraneoliberal”. “O Estado vai ser mínimo”, assevera.

De acordo com Pedro Fernando, no INSS, o benefício mais elevado é aposentadoria por tempo de contribuição, que, segundo ele, corresponde a 15 vezes o gasto com ensino profissional ou 20 vezes todo o orçamento de C&T. “A pensão por morte tem orçamento maior que o da saúde ou o da educação”, ressalta.

A aposentadoria por idade urbana ou a aposentadoria por invalidez, de acordo com o consultor, já despendem o equivalente a duas vezes o programa Bolsa Família. “Nos Estados, falidos, a previdência dos servidores já é quase duas vezes o próprio Fundo de Participação (FPE)”, afirma, para acrescentar: “Esta é a parte mais regressiva do sistema, pois exige gran- des aportes da sociedade para benefí- cios altos que apenas uma parcela da população vai receber”.

Esta é também, segundo Pedro Fernando, uma das características da previdência dos militares. “A carreira possui diferenças, mas não deve ser blindada sob argumentos de vitimismo. O déficit dos militares é equivalente a uma CPMF”, observa. “O crescimento anual da despesa total é igual a todo o investimento público”, continua.

Para o consultor, a pergunta mais difícil é “como reformar?”. Segundo ele, há na prática várias previdências para os vários “Brasis”. “Nos estados ricos, predomina a aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima. Nos estados pobres, a aposentadoria rural, com idade mínima. Nos muito pobres, o benefício assistencial ao idoso (BPC-Loas), com idade mínima mais dura”, analisa.

Por isso, conforme escreve o autor, o debate se concentra em duas opções. “Uma é aproveitar a atual versão da reforma de Temer, sem mexer nos rurais, no BPC e no tempo mínimo de contribuição (item caro aos mais pobres, que não têm carteira assinada). O foco seriam as aposentadorias urbanas de maior valor, as pensões por morte e os servidores”, diz.

A segunda opção, acrescenta o analista político, é fazer uma reforma mais ampla e definitiva, incluindo grupos mais pobres, tratando da vincu- lação ao salário mínimo, e criando um pilar de capitalização – mais sustentável – para as próximas gerações. Seja qual for a opção, é importante que a reforma exija maior esforço dos grupos mais ricos da população e que seja acompanhada também de medidas contra injustiças do lado da arrecadação. Entre elas, os Refis e a maior tribu- tação de pessoas físicas disfarçadas de pessoas jurídicas”.

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Adriana Fernandes: Gordura para queimar

Estratégia é entregar proposta mais dura e profunda do que aquela que se quer aprovar

O governo vai deixar na proposta de reforma da Previdência gordura para queimar durante as negociações no Congresso Nacional. A mesma estratégia foi usada pelo ex-presidente Michel Temer em 2016, quando encaminhou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287, que agora servirá de base para o texto de Jair Bolsonaro.

Deixar gordura significa entregar uma proposta mais dura e profunda do que aquela que verdadeiramente se espera aprovar. Essa estratégia contém, porém, o risco de contaminação das expectativas ao longo das negociações no Congresso à medida que os peões do xadrez da reforma vão sendo retirados do tabuleiro.

Durante a negociação da reforma de Temer, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles enfrentou o problema. A cada item que foi sendo banido da proposta original, Meirelles tinha de dar explicações de que a reforma não ficaria fraca demais e que o impacto da mudança para o equilíbrio das contas públicas continuava importante ao País.

A proposta de Temer começou com uma economia de R$ 800 bilhões em 10 anos. Esse ganho foi desidratado para menos de R$ 400 bilhões e virou motivo de incerteza entre os investidores diante da perda de força do seu impacto para as contas públicas e para a sustentabilidade da Previdência Social no Brasil.

Com Temer, antes mesmo do envio da PEC, caíram as alterações no abono salarial e a inclusão dos militares. Depois, saíram do texto as mudanças na aposentadoria rural e nas regras para policiais militares e bombeiros, a igualdade na idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres, a restrição mais dura para o acúmulo de benefícios, a desvinculação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) do salário mínimo, regras mais duras para professores, e assim por diante...

Foram muitas as baixas. Deve acontecer o mesmo agora. A gordura para queimar pode aparecer de imediato nas propostas de mudança na aposentadoria rural, desvinculação de benefícios do salário mínimo e criação de um modelo “fásico” para a assistência social. Esse sistema permite aos segurados solicitarem mais cedo a ajuda do governo, desde que aceitem receber um valor abaixo do salário mínimo.

A polêmica proposta de criação no Brasil do sistema de capitalização, com contas individuais para acumular os recursos que bancarão a futura aposentadoria, também deve passar pela tesourada dos parlamentares. Há muitas dúvidas se o País está preparado para uma mudança tão ampla e com custo de transição para as contas públicas.

A gordura a ser deixada para o Congresso motiva a profusão de ideias que estão sendo disseminadas nos bastidores em torno do texto que o presidente e sua equipe vão fechar na próxima semana.

A comunicação das propostas ainda em estudo acaba funcionando como uma espécie de “teste” para a receptividade das propostas mais polêmicas. Por outro lado, alimenta a especulação e pode ter um efeito nocivo na negociação que se seguirá. Há o risco de antemão de se “carimbar” na PEC de Bolsonaro propostas de retiradas de direitos que nem mesmo entrarão no texto final. O mesmo script se deu com Temer. E aí, a comunicação escapa do controle.

Há preocupação entre integrantes da equipe econômica envolvidos diretamente na elaboração da proposta com a estratégia de comunicação até agora. Há muita imprecisão e deturpação partindo de quem não está de fato coordenando a proposta. Tem gente que acha que é para atrapalhar.

Difícil mesmo é conciliar a necessidade de manter a confiança na reforma sem queimar a proposta logo na largada.


Julianna Sofia: Notícia que vem dos Alpes

Muitas dúvidas ainda pairam sobre os rumos da reforma da Previdência

Está nos planos do ministro Paulo Guedes (Economia) apresentar “algum detalhe” da reforma da Previdência ao escol de empresários, acadêmicos e autoridades presentes em Davos na próxima semana. Aqui —abaixo da linha do Equador— muito se fala, muito se vaza, mas pouco se sabe oficialmente. Neste domingo (20), o próprio presidente Jair Bolsonaro deve tomar mais conhecimento da proposta, quando lhe for feito um arrazoado.

As mudanças nas regras das aposentadorias tornaram-se a grande curiosidade dos investidores estrangeiros. Sem elas, o governo do capitão reformado —ou o de qualquer zé-ruela que envergasse a faixa presidencial— submergirá no caos, dada a dramática situação fiscal do país.

É curioso e emblemático que o público nos Alpes venha a saber algo antes, enquanto deputados do partido do presidente dão um rolé na China e não ganha forma a amálgama parlamentar que dará sustentação ao governo. Tampouco trabalhadores ou patrões foram chamados a conhecer o que se pretende mudar.

A expectativa é que em até duas semanas o martelo político seja batido. Conselheiros de Guedes ainda tentam dissuadi-lo da ideia de incluir na reforma um regime de capitalização para as aposentadorias de gerações futuras. Mais vale corrigir distorções do sistema atual, que corroem as contas públicas e abrigam privilégios. Não há sinal de recuo.

Até um desfecho, três diferentes núcleos rivalizam na construção da proposta, o que tem contribuído para a indefinição de pontos importantes. Ao Ministério da Economia se contrapõem Onyx Lorenzoni (Casa Civil) & asseclas e os onipresentes militares. Daí, por exemplo, a incerteza sobre a participação das Forças Armadas nas alterações previdenciárias a partir da blindagem montada pelos generais.

Para aplacar a ansiedade geral, Bolsonaro assinou nesta sexta (18) medida provisória para conter ralos e gastos no INSS. Na hora H e depois de muita boataria, o texto saiu bem menos ambicioso do que o esperado.


Monica De Bolle: Encurralados

Não tardará para que conflitos em torno das reforma da Previdência apareçam com mais clareza

“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” A frase, como muitos devem saber tamanha sua notoriedade, é de Dilma Rousseff. Na época em que a ex-presidente a proferiu em 2015, a opinião quase unânime era de que o amontoado de palavras sobre ganhar ou perder não fazia sentido algum, em linha com outros discursos e frases célebres de Dilma. Contudo, as reviravoltas no Brasil e no mundo que ocorreram nos últimos quatro anos tornaram o dito profético, sobretudo a asserção final: “Vai todo mundo perder.”

Quando esse artigo for publicado, já conheceremos o veredicto do Parlamento britânico sobre o plano de saída da União Europeia – o Brexit – negociado pela primeira-ministra Theresa May. Ao que tudo indica, May está encurralada. De um lado porque escolheu alijar das discussões parlamentares contrários ao Brexit tanto dentro de seu próprio partido, quanto na oposição. Tal estratégia para aplacar a base ruidosa de defensores do Brexit dentro do Partido Conservador deixou todos desconfiados: Theresa May, afinal, votou contra o Brexit. Portanto, seus correligionários sentem-se ou traídos ou ressabiados após a negociação de um acordo que, argumentam, não entregará o que tanto queriam.

Os argumentos sóbrios e os números frios, que mostram inequivocamente como sofrerá a economia do Reino Unido com a saída da UE estão sendo sumariamente ignorados pelos parlamentares dos dois partidos ante o estratagema de autoencurralamento que a primeira-ministra se impôs. Em caso de derrota do plano, todos perderão. No caso da menos provável vitória, todos também perderão – afinal, o Brexit é para lá de custoso em termos econômicos para a Grã-Bretanha.

Outro caso de autoencurralamento está em ampla evidência do outro lado do oceano. Há mais de três semanas, partes do governo norte-americano estão fechadas, funcionários públicos sem receber salários, por causa da intransigência de Trump com seu muro. Há notável quantidade de estudos técnicos mostrando que a imigração ilegal nos últimos anos tem sido menos pelo cruzamento da fronteira que separa o México dos EUA e mais por visitantes que entram no país pelos aeroportos com vistos válidos e permanecem após a expiração desses vistos.

Outros estudos revelam que barreiras físicas não são suficientes – ou mesmo viáveis em partes da fronteira, por isso não existem – para evitar, por exemplo, a entrada de drogas. É preciso ter aparato tecnológico mais sofisticado para tanto. Contudo, Trump prometeu entregar o muro durante a campanha, e agora finca o pé para tentar aplacar sua base de eleitores enquanto enfrenta democratas ávidos por investigá-lo em diversas frentes e por impedir qualquer de seus esforços legislativos. Enquanto não surge solução para o impasse, perdem todos. Quando surgir a solução, qualquer que seja, todos deverão também perder. A culpa pela paralisia prolongada e pela incapacidade de levar adiante uma negociação política deverá ser dividida entre Trump, republicanos, e democratas.

Voltando à frase de Dilma, ela remonta a uma reflexão interessante. A barganha privada, em que os dois lados tentam extrair algo do outro quando suas posições divergem, é mais simples do que a barganha política. Na barganha política há sempre um terceiro lado – os eleitores – a vigiar as negociações. Quando esses eleitores estão mais alinhados ao centro, a barganha política naturalmente acaba envolvendo concessões, ajudando a formar consensos e soluções para os embates. Contudo, quando esses eleitores estão polarizados nos extremos do debate, eles acabam agindo como força que enraíza posições duras. Nenhuma concessão no caso do Brexit, e portanto uma potencial derrota para May. Nenhuma concessão na questão do shutdown/muro de Trump, prolongando a angústia daqueles que sofrem diretamente e indiretamente os efeitos do fechamento parcial do governo. Conjecturo que nesses dois casos os impasses só poderão ser quebrados quando os custos de fincar o pé se tornarem excessivamente altos. Ou seja, quando ficar evidente que todos perderam, ainda que queiram posar de vencedores.

Encerro com uma breve nota sobre o Brasil. Não tardará para que conflitos em torno das reformas econômicas, sobretudo da contenciosa reforma da Previdência, apareçam com mais clareza. Temos no País um eleitorado polarizado diante do qual não foi exposta uma agenda econômica clara durante a campanha. Creio que estamos prestes a ver nossa própria versão dos encurralados do norte.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Marcus Pestana: Previdência, demagogia e populismo

Na última semana, realcei que a reforma da Previdência Social é central, inevitável e inadiável. Sem isso não haverá equilíbrio fiscal, inflação e juros baixos, volta dos investimentos e crescimento econômico. E que nosso sistema previdenciário não é justo nem sustentável.

Na Secretaria de Estado do Planejamento (Seplan-MG), em 1997, contratamos a Fundação Getulio Vargas, do Rio de Janeiro, para um cálculo atuarial e um diagnóstico prospectivo sobre o sistema previdenciário estadual. Já na época, escrevia sobre a “crônica da morte anunciada”, a marcha da insensatez rumo ao abismo. Neste mandato de deputado federal, prossegui a inglória luta como vice-presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência.

Talvez a reforma previdenciária seja a questão mais difícil do ponto de vista político. Ninguém quer perder “direitos”. O ambiente em torno do tema é um mar de demagogia, populismo, retórica manipulatória e covardia política. Muitos me diziam: “Não fale essas coisas, porque vai perder votos”. É impressionante a alienação das lideranças da sociedade diante de assunto tão grave e vital. É como aquela pessoa que salta do 25º andar e, quando passa pelo oitavo, comenta com alguém na janela: “Até aqui, tudo bem”.

No mundo inteiro, a reforma é inevitável por razões demográficas. Para se ter uma ideia, hoje no Brasil temos 9,2%, ou seja, 19,2 milhões de brasileiros com 65 anos ou mais. Em 2060, serão 25,5%, num total de 58 milhões de idosos. A taxa de natalidade em 1950 era de 44 nascidos para cada mil habitantes; em 2015, foi de 14,16 por mil habitantes. Ou seja, cada vez mais gente usufruindo e cada vez menos gente contribuindo.

E por que digo que o sistema é insustentável? O rombo nas contas federais foi de R$ 292,2 bilhões. Sem falar no déficit total dos Estados, que somou R$ 98 bilhões. Hoje, Previdência e benefícios sociais representam 54% dos gastos primários; se nada for feito, em dez anos, chegaremos a 82%. Ou seja, sobrarão apenas 12% para educação, saúde, segurança, relações exteriores, meio ambiente, ciência e tecnologia, Forças Armadas etc. É isso que queremos? É sustentável?

Por outro lado, o aspecto essencial. Como disse no artigo anterior, o objetivo central dos sistemas previdenciários era ser instrumento de combate às desigualdades. Os milhões de brasileiros que se aposentam pelo INSS têm benefício médio de R$ 1.300. Já a média do benefício do funcionalismo público federal é de R$ 7.000; nas Forças Armadas, é de R$ 9.000; no Ministério Público, é de R$ 18,5 mil; no Judiciário, é de R$ 25 mil; e o dos servidores do Congresso Nacional é de R$ 28 mil. Isso é justo? Este é o retrato da sociedade que queremos? A lógica previdenciária transformada em um Robin Hood às avessas? Fora as aposentadorias precoces do “andar de cima”, em contraste com os mais pobres.

Voltarei ao assunto ao longo do semestre. Esta é uma questão de vida ou morte para o Brasil voltar aos trilhos do desenvolvimento sustentado e sustentável.


José Roberto Mendonça de Barros: O mundo não começou agora

A retomada do investimento e o crescimento econômico podem levar o governo para a frente

A última eleição trouxe, realmente, uma novidade: o presidente Bolsonaro ganhou legitimamente o pleito com uma proposta que se coloca claramente à direita do espectro político, em contraste com o passado recente, como, aliás, está ocorrendo em muitos lugares do mundo.

Sua coligação é complexa, pois abarca vários grupos bem distintos, cada um referenciado a uma recorrente frustração, que compõe o mosaico da crise atual: o cansaço com a corrupção e o desgoverno (muito visível no plano dos Estados, como descobriram muitos dos novos governadores, por exemplo), a violência generalizada e o crescimento do crime organizado, a voracidade tributária e o baixo nível dos serviços públicos e a excessiva ingerência governamental na vida do cidadão, entre outras questões.

Tudo foi muito bem percebido e melhor ainda colocado por alguém que se posicionou como “novo”, embora participe da vida política há quase 30 anos. De novo realmente o que tivemos foi a competente utilização da comunicação pelas redes sociais.

Esta novidade política tem um grande desafio organizacional, pois será necessário estabelecer um convívio e, idealmente, alguma organicidade entre temas bem distintos, agrupados em três grandes campos: economia (liberal, num país de arraigado patrimonialismo e tradição de décadas de detalhada regulação pública, que afeta a vida do cidadão), governança pública (controle da violência e da corrupção) e um conjunto de coisas associadas a “valores familiares, tradicionais, conservadores e nacionalistas”.

Só o futuro vai dizer se esta “geringonça” (como foi apelidado o governo do primeiro-ministro Antonio Costa) será do tipo português, que está dando certo na terrinha ou uma coisa mais para confusão, como o despreparo de muitos transformou os primeiros dez dias de governo.

Existe, entretanto, algo que pode levar o governo para a frente: a retomada do investimento privado e do crescimento econômico.

Ora, as circunstâncias e a crise recente criaram uma oportunidade única, que pode facilitar a nova gestão. O debate dos últimos tempos gerou uma quase unanimidade da opinião pública em torno de duas coisas:

– não há como empurrar mais o enfrentamento da crise fiscal, sob pena de ocorrer um desastre sem precedentes.

– este enfrentamento tem como ponto de partida a aprovação de uma reforma da Previdência de certa abrangência. Mais ainda, dois ou três projetos de excelente qualidade estão disponíveis e já passaram por um intenso escrutínio técnico, de sorte que a equipe econômica pode apresentar o projeto que lhe aprouver antes de março.

Tudo passa a depender, então, da aprovação pelo Congresso, que nunca é simples, mas é possível. A experiência mostra que um presidente recém-eleito, desde que focado num projeto principal, consegue sucesso. Se tiver uma pauta dispersa, o sucesso fica muito mais difícil.

Assim, se a reforma da Previdência for aprovada neste ano, a porta estará aberta para a retomada do crescimento. Isto, apenas, não resolve o sucesso da gestão, mas é certo que as outras reformas e ações podem, então, ser tocadas com mais tranquilidade.

Olhado desta forma, fica claro que a agenda de hoje não é uma invenção recente. Ela é o resultado de uma crise profunda, dos avanços do governo Temer, da inflação ancorada, da folga no setor externo, de juros historicamente baixos e da evolução de um grande debate nacional.

O País não começou agora, ao contrário do que boa parte do discurso oficial procura mostrar.

** * * * *
A necessidade das privatizações, é, talvez, o maior exemplo do que foi colocado acima.

Estas começaram no governo Itamar Franco, há um bocado de tempo. Entre os muitos casos relevantes, chamo a atenção para a venda da CSN e de outros ativos do setor siderúrgico.

Em 1997 foi vendida a Vale do Rio Doce. A gigantesca criação de valor nos anos 2000 mostrou tudo o que o País tinha a ganhar com sua privatização.

Em 1998 a menor das subsidiárias da Eletrobrás, a Gerasul, foi leiloada e se transformou no que é hoje, a Engie, que por muito tempo foi mais valiosa que a gigante estatal e, finalmente, o conhecido caso da Telebrás que detonou a conhecida revolução das comunicações.

A feroz resistência às vendas foi provavelmente maior do que veremos neste ano.

De qualquer forma, a venda da Eletrobrás e as concessões na área de logística serão fundamentais para elevar o investimento na infraestrutura, com reflexos no avanço do PIB.

De fato, o mundo não começou agora.

* Economista e sócio da MB Associados


Míriam Leitão: As duas guerras da Previdência

Grande batalha da Previdência ainda nem começou e se dará no Congresso. Por isso, preocupa a falta de sintonia interna sobre o projeto no governo Bolsonaro

A principal batalha da reforma da Previdência ainda nem começou. A briga para valer será depois da posse do novo Congresso, em fevereiro, e da eleição da nova CCJ, que deve acontecer no final de março. Só aí os lobbies entrarão em campo. O que houve até agora é disputa interna, que tem emitido péssimos sinais. No governo passado, Temer, Padilha e Meirelles jogavam afinados a favor da reforma e tiveram que suar a camisa atrás dos votos que a fizesse avançar. No atual, há desencontros no trio: o presidente e os ministros da Economia e da Casa Civil.

A opção de começar do zero é a pior ideia que surgiu. Por isso no Ministério da Economia bate-se para que seja aproveitado o projeto que já caminhou contra todas as críticas do então deputado Onyx Lorenzoni. A tramitação, no caso de ter um novo projeto, seria longa demais e desperdiçaria o período de lua de mel com o Congresso, o mercado e o eleitorado. Neste caso, a discussão só teria início após a formação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no final de março. Depois, seria constituída uma Comissão Especial para discutir a PEC. O primeiro semestre seria perdido refazendo-se os passos da reforma de Temer.

Esse é o argumento mais forte do ministro Paulo Guedes. Ele sempre diz que a reforma do Temer é “remendo em calça velha”, porém esse remendo será o veículo para a proposta de Bolsonaro avançar. Quem já esteve negociando no governo passado explica que há uma margem de manobra enorme para se mexer no texto. Mais de 200 emendas foram apresentadas ao projeto original, na Comissão Especial que analisou a PEC. Essas emendas servem de base para alterações no substitutivo do relator Arthur Maia (PPS-BA), incluindo a capitalização. O próximo passo então seria a votação em plenário.

Será preciso contornar o fato de que o chefe da Casa Civil e o presidente fizeram duras críticas à reforma de Temer. Bolsonaro chegou a dizer que ela era dura demais e que não se podia “matar idoso” para salvar o Brasil. Onyx se juntou ao PT, na época, para negar a existência do déficit. A oposição e os lobbies contrários às mudanças vão usar isso contra o governo.

Há vários grupos com muita força que são adversários da reforma. Os funcionários públicos de alto escalão, inclusive alguns servidores legislativos que assessoram os parlamentares e que conhecem como ninguém o funcionamento do Congresso. Junto deles, os funcionários do poder judiciário e as forças de segurança. A bancada de servidores aumentou nesta eleição.

Outro grupo é composto pelos ruralistas, influentes no atual governo. Eles não são exatamente contra a reforma mas não querem alteração que afete os privilégios do setor rural. E há também os militares, que continuam falando em alto e bom som que são diferentes. Na verdade, Bolsonaro em si é representante desse grupo. Ele fez sua carreira política defendendo interesses corporativos das Forças Armadas e dos policiais. No caso dos policiais é fundamental para os estados que eles se aposentem mais tarde. Hoje muitos deles se aposentam antes dos 50 anos.

O economista Fábio Giambiagi, especialista em Previdência, avalia que propor o regime de capitalização será um erro, porque vai causar muito ruído e gerar pouca economia para se combater a crise fiscal. Pelas suas contas, se for aprovado o projeto sugerido pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner, que tem uma transição de regimes lenta, apenas 1,5% das despesas do INSS seriam afetadas.

—Das duas uma: ou se faz uma capitalização mais rápida e aí o custo é alto demais, praticamente impagável. Ou se faz uma capitalização mais lenta, e aí o ganho é muito pequeno e não vale a pena —argumenta. Giambiagi também vê com preocupação a estratégia política de negociar com as bancadas e não com os partidos. A maioria dos cientistas políticos concorda que ignorar os partidos vai aumentar o custo da aprovação de medidas difíceis como a Previdência.

Paulo Guedes quer uma capitalização mais rápida. A proposta de só estar disponível para quem nasceu após 2014 é lenta demais, na opinião dele. O problema é que sobre esse assunto a Casa Civil tem projeto pronto. Em suma, o governo está ainda em plena guerra interna para saber que reforma afinal apresentará. A segunda grande guerra será no Congresso.


Vera Magalhães: Presidente ou sindicalista?

Bolsonaro terá de mostrar se fez a conversão liberal ou se continua um defensor das pautas militares

Nas duas primeiras semanas de governo de Jair Bolsonaro, uma das únicas coisas virtuosas foi justamente aquela que é mais importante, e a que corre mais riscos, pelo andar da carruagem dos últimos dias: a aula de liberalismo de Paulo Guedes, que parecia apontar para uma mudança concreta de diretriz econômica num País pouco afeito a temas como responsabilidade fiscal, eficiência do Estado e estímulo ao empreendedorismo.

Parecia. O levante organizado pelos militares tão logo vislumbraram a possibilidade de serem incluídos na reforma da Previdência será o primeiro e decisivo teste para Bolsonaro demonstrar, na prática, se fez mesmo sua conversão no altar do liberalismo ou se continua sendo aquilo que sempre foi: um ardoroso defensor das causas sindicais dos militares – a quem continua tratando como “nós” mesmo depois de empossado, numa clara demonstração de que ainda não entendeu a dimensão do novo cargo que ocupa, e o fato de que agora não é mais o “capitão”.

Uma pista a respeito do lado para o qual ele pode pender foi dada em seu discurso na transmissão de cargo do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Ali, no dia 1 de seu governo, Bolsonaro voltou a encarnar o sindicalista que foi nos seus 27 anos de Câmara. “Um breve histórico, já que falamos de Defesa”, começou Bolsonaro, naquela prosódia de quem está lendo um ditado. E se pôs a elencar os governos que o antecederam. Não para se ombrear com os presidentes, mas com os militares, enumerando perdas e ganhos salariais, leis que retiraram benefícios, contingenciamento de recursos para as Forças Armadas e por aí afora. Apenas pautas corporativas. Nenhuma grande questão de Defesa. “Nós fomos um tanto quanto esquecidos”, se lamuriou.

Com um presidente que se apresenta como um deles e representados como nunca estiveram desde a redemocratização na estrutura política do governo, os militares já trataram de marcar posição na questão da reforma: acham que têm de ficar fora do regime que for fixado para servidores, pelas especificidades da carreira.

Reportagem do Estadão da última semana mostrou que o déficit da Previdência dos militares cresce mais que o dos servidores civis e o do INSS. Hoje, 90% dos militares se aposentam antes dos 54 anos, sendo que 50% o fazem antes de 49. Mais de metade do orçamento da Defesa é destinado ao pagamento de pensões ou aposentadorias.

Quando se aposenta – mesmo quando o faz dessa forma prematura, muitas vezes por questão de hierarquia, para evitar que um subordinado seja mais antigo que um superior, por não ter progredido de patente –, o militar leva 100% do último soldo. Por qualquer ângulo que se olhe essa realidade é incompatível com o saneamento do sistema previdenciário.

Propostas de reforma como a dos economistas Paulo Tafner e Pedro Fernando Nery atacam essa questão e enquadram os militares na regra geral. A equipe de Paulo Guedes pretende ir pelo mesmo caminho, comprando a briga de defender a reforma mais abrangente possível no Congresso.

Mas, para ter sucesso, precisará de respaldo político. E é aí que mora o perigo. Num governo em que o presidente vive um dilema hamletiano entre ser ou não ser mais um capitão e os militares estão em algumas das principais posições de poder e já fincaram o pé contra a proposta, a balança parece desequilibrada em desfavor do “posto Ipiranga”.

Excluir os militares é a primeira brecha para começar a fazer da reforma um queijo suíço em que cada lobby organizado vai lá e fura um buraquinho. Daí para perder o embalo político capaz de assegurar sua aprovação o caminho é curto e bastante conhecido, pois foi o trilhado por todos os governos que antecederam o atual.


Bernardo Mello Franco: Privilégios da farda: Bolsonaro sempre defendeu aposentadoria especial de militares

Está montada a arena para o primeiro duelo entre a equipe econômica e o núcleo militar do governo. Os generais prometem resistir a qualquer tentativa de incluir as Forças Armadas na reforma da Previdência. Eles cavaram a trincheira nos últimos dias, com recados públicos aos “Chicago Oldies” de Paulo Guedes.

Na terça-feira, o ministro Santos Cruz (Secretaria de Governo) desembainhou a espada. “Militar é uma categoria muito marcante, de farda”, disse. Ele afirmou que a carreira possui “características especiais”. É um argumento comum a policiais, juízes, promotores e outras corporações que defendem seus interesses.

O ministro Fernando Azevedo e Lima (Defesa) também defendeu tratamento especial aos militares. “Se o nome é reforma da Previdência, não estamos nela”, decretou, em entrevista ao “Valor Econômico”.

A equipe econômica quer incluir os militares na reforma para “dar o exemplo” e mostrar que ninguém será poupado. Ao cortar regalias da farda, o governo indicaria que o aperto valerá até para os amigos do presidente. Se a aposta for essa, é melhor jair refazendo as contas.

Há mais de um quarto de século, Bolsonaro é um combatente incansável pelos privilégios dos militares. Em 1993, ele já dizia que as consequências de uma reforma seriam “as piores possíveis”. “Não posso admitir calado a marcha dos militares para a Previdência”, afirmou.

Dois anos depois, o capitão acusou o presidente Fernando Henrique Cardoso de patrocinar uma reforma “insana”. “O governo agora quer assassinar os militares da reserva e os pensionistas dos militares”, dramatizou.

Em 1998, Bolsonaro se opôs ao fim do pagamento de pensão às filhas dos militares. “É um negócio chato de falar”, reconheceu. Na sequência, ele alegou que a regalia teria sido criada em 1790, como se a antiguidade justificasse a manutenção do privilégio.

No mesmo discurso, o futuro presidente definiu como “palhaçada” a ideia de mexer na aposentadoria dos militares. Em seguida, ele dissertou sobre a participação popular na política. “Detesto o Pelé, mas ele tem razão quando diz que o povo não sabe votar”, disse. “Se democracia é isso, prefiro a ditadura do Pinochet”, acrescentou.


Vinicius Torres Freire: Novo governo se enrola com o conflito dos impostos

Assessores parecem querer reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe

Economistas de Jair Bolsonaro dizem com frequência que impostos sobre empresas vão baixar. Logo, a arrecadação vai diminuir. Então, alguém vai ficar com esta conta: vai pagar mais imposto.

Por quê? O governo não pode tomar ainda mais empréstimos para cobrir suas despesas. Mesmo se cortar muito gasto, faltará dinheiro por anos: ainda haverá déficit e dívida crescente, um motivo principal desta meia década de crise.

Quem vai ficar com o mico?

Pode ser a classe média remediada ou ricos. Mas não sabemos. Parece que o governo também não. O próprio presidente não sabe o que seus assessores sabem e vice-versa, mesmo quando se trata de decisões que já teriam sido firmadas. Ou não.

No meio desta sexta (4), Bolsonaro disse que assinara um aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Era solução lamentável, dizia o presidente, para compensar uma perda de receita aprovada em 2018 pelo Congresso.

Horas depois, um ministro e um secretário negavam que havia decreto ou que haveria alta de imposto. Por cortesia, diga-se que foi um lapso. Ou não.

Assim que tratou do IOF, Bolsonaro contou que Paulo Guedes (Economia) anunciaria a "possibilidade" ou a "ideia inicial" de diminuir o Imposto de Renda da Pessoa Física. Rendimento superior a R$ 4.664,68 não pagaria mais a alíquota de 27,7%, mas de 25%.

Ficaria bem prometer um docinho de IR menor quando se aplicava uma injeção de IOF maior, mas nem isso fazia sentido.

Não era preciso compensar o IOF. Não é essa a discussão do IR entre economistas do governo, embora não se saiba bem quem está mal informado, se o presidente ou seus assessores que planejam reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe.

A equipe econômica pensa em reduzir o número de alíquotas do IR das pessoas físicas (cada parcela do rendimento é tributada com cinco alíquotas cada vez mais altas, de zero a 27,5%). Haveria uma mordida maior para gente de renda mais alta. Ou não.

Além disso, discute-se o fim de certas deduções do IR, os conhecidos "abatimentos" com despesas particulares com educação e saúde. Isso resultaria na prática em aumento de imposto, embora a ideia seja socialmente justa.

A Receita prevê que, em 2019, o governo deixará de arrecadar R$ 21 bilhões por causa desses subsídios para gasto privado em saúde e educação. Isso equivale a uns dois terços do gasto com o Bolsa Família. Ou a quase metade do gasto federal com investimento em obras.

Pode ser ainda que aumente o imposto de quem recebe via empresa individual, o dito "PJ", pessoa jurídica. Seria uma mordida em profissionais liberais, na classe média alta ou nos ricos "mais pobres".

Talvez viesse dessas mordidas parte da compensação do fim de algum imposto sobre empresas ou da redução do IR de pessoas que ganham menos. Sabe-se lá.

Em suma, o governo diz que não quer nem aumentar a carga tributária nem perder receita. Mas, assim, se baixar imposto sobre alguns, terá de cobrar de outros. Transferir o peso da carga. Ou não?

A encrenca é que Bolsonaro se elegeu com a promessa maior de não aumentar impostos e, no futuro, de reduzi-los. Mas falava de carga tributária, o total arrecadado, não do imposto de cada um.

Uma reorganização dos tributos, no entanto, pode fazer com que milhões de pessoas paguem mais.

Ao que parece, o governo não sabe como dar essa notícia ao eleitorado e, pelo jeito, ao próprio presidente.


Míriam Leitão: Hora da clareza na Previdência

Se o risco é de colapso, como disse corretamente Bolsonaro, já passou da hora de o governo saber o que fazer para reformar a Previdência

Está na hora da clareza sobre a reforma da Previdência e nesta primeira semana de governo ela ficou mais obscura. O ministro Paulo Guedes, na posse, deu a entender que há uma alternativa à reforma, e todos sabem, inclusive ele, que não existe. O presidente Jair Bolsonaro na entrevista ao SBT criou mais dúvida quando falou de uma idade mínima menor do que a que está na reforma do ex-presidente Temer. O ministro Onyx Lorenzoni disse que era para ser mais suave, mas, na verdade, ela pode até ser mais dura dependendo do que se entender do que o presidente disse.

Não há mais tempo para o improviso e as falas conflitantes. O próprio presidente disse que a questão é urgente:

— Mais dois, três anos, vamos entrar em colapso. Nós não queremos que o Brasil chegue na situação da Grécia e todos vão contribuir um pouco para que ela seja aprovada.

Se o risco é de “colapso”, o governo precisa saber o que fazer. O que Bolsonaro disse é que a idade mínima será de 57 anos e 62 anos para a entrada em vigor em 2022. Bom, se for isso, é mais dura do que a de Temer, que previa 62 e 65 anos apenas em 2038. Na proposta que está no Congresso, a idade mínima de 62 anos, para homem no INSS, só seria atingida em 2032. Se na de Bolsonaro vai ser em 2022, então é dez anos antes. Agora, se ele está dizendo que essa será a idade mínima ao fim do processo, então está enfraquecendo a reforma.

Esses improvisos de Bolsonaro em assunto que ele não domina criaram ontem uma crise com a área econômica. Ele anunciou de manhã aumento de IOF e mudanças no Imposto de Renda e foi desmentido pelo secretário da Receita, Marcos Cintra. O ministro Paulo Guedes ficou em silêncio apesar de a confusão ter estourado em sua área.

Está aí um assunto que não precisava de dúvidas. Houve muita bateção de cabeça na época da transição. Bolsonaro indicou que vai aproveitar a reforma que já está na Câmara, mas com mudanças:

— Pretendemos, ao colocar num plano a reforma da Previdência, é nós passarmos um corte até o final de 2022. Isso seria aumentar para 62 os homens, 57 as mulheres, um ano a partir da promulgação e outro ano em 2022, e o futuro presidente reavaliaria esta situação para passar para 63 ou 64.

Quando ele fala “aumentar”, parece estar se referindo ao servidor público porque o Regime Geral não tem idade mínima. O funcionalismo tem idade mínima de 55 e 60 anos. E em 2022 seria 57 e 62. Quando Bolsonaro diz que o próximo presidente “reavaliaria”, levanta outra questão. Todos sabem que uma reforma da Previdência não pode estar contida dentro do curto tempo de um mandato. Precisa haver regras válidas para décadas.

Bolsonaro não é o único a gerar dúvidas sobre o tema de crucial importância para a solidez da economia. O próprio ministro Paulo Guedes no seu discurso levantou uma grande interrogação quando disse que se a reforma não fosse aprovada haveria outra PEC a ser enviada desvinculando as receitas. Admitiu haver alternativa para a reforma, o que é um erro, e além disso acenou com um projeto ainda mais difícil de aprovar.

O Brasil está diante do seguinte fato. A primeira vez que o governo propôs a idade mínima foi na reforma do então presidente Fernando Henrique, há 23 anos. Não foi aprovada e desde então estamos rodando em círculos nesse assunto. O déficit cresce de forma vertiginosa. Em 2019, a projeção é de R$ 218 bilhões no INSS, de R$ 44 bi nos servidores civis federais e de R$ 43 bilhões nas Forças Armadas. Soma-se tudo, chega a R$ 305 bilhões, sem contar os estados. E crescerá ainda mais nos próximos anos. A reforma não é panaceia. Ao contrário do que disse Paulo Guedes, ela, sozinha, não é a garantia de que o país cresça durante 10 anos. Uma agenda de reformas, com esta e outras mudanças, pode sim dar um impulso novo à economia brasileira. Nessa agenda, a reforma da Previdência é indispensável. Sem ela não dá para começar o trabalho de elevar a confiança.

Em fevereiro assume o novo Congresso e até lá o governo terá que se organizar para falar de forma única sobre esse assunto. A Previdência, além de ter um rombo insustentável, é, como disse Guedes, uma fábrica de desigualdades. Cristalizou-se a ideia de que reformá-la prejudica os pobres, quando é exatamente o oposto. Quanto mais o governo se contradiz e bate cabeça, mais fica difícil convencer o país.


Míriam Leitão: Os que falam a mesma língua

Mourão revela sintonia com a equipe econômica ao apoiar a flexibilização do Orçamento e o projeto de reforma que já está no Congresso

O que se ouve de mais lógico na equipe de transição foi dito pelo vice-presidente eleito Hamilton Mourão na entrevista ao “Valor”. O governo prepara um projeto de emenda constitucional para desengessar o Orçamento e será aproveitada a proposta para a reforma da Previdência que já tramita no Congresso. É o que também tenho ouvido de integrantes do novo governo.

Mourão fala a mesma língua que a equipe econômica, mas isso não significa que haja unidade no futuro governo. Até o ponto mais lógico, que é aproveitar a atual reforma da Previdência que já cumpriu etapas longas de tramitação, não tem o apoio de todos. Por isso, a primeira batalha na reforma será a unidade interna. Aproveitar a atual proposta criará para o chefe da Casa Civil, ministro Onyx Lorenzoni, o constrangimento de ter que defender o que atacou na Comissão Especial. Onyx montou uma equipe sobre o assunto e tem suas próprias ideias.

O vice-presidente falou ao “Valor” em uma abertura “lenta, gradual e segura”. O vocabulário geiselista foi adaptado aqui à área do comércio exterior para dizer que a indústria enfrentará maior competição com o produto importado pela redução das tarifas externas, a ser feita em fases. Durante uma de suas falas na transição, o futuro ministro Paulo Guedes criticou a indústria que estaria ainda em suas “trincheiras da primeira guerra”, e prometeu “salvar a indústria, apesar da indústria”. A despeito do tom forte, a tendência é não fazer uma abertura drástica.

Em entrevista que me concedeu no último dia 6, o general Mourão defendeu com entusiasmo a ideia de um desengessar do Orçamento. Com isso também sonha o economista Paulo Guedes. Para realizá-lo será preciso convencer o Congresso a retirar todas vinculações constitucionais, a começar as da saúde e educação. Um projeto que permita começar o Orçamento do zero sempre foi o sonho de inúmeros economistas. O problema não é ter a ideia, é como aprová-la porque ela pode atrair a oposição dos grupos de interesse, principalmente as bancadas da saúde e da educação. Fácil chegar ao diagnóstico de que o engessamento do Orçamento inviabiliza o país, difícil é mudar isso. O argumento do general Mourão na entrevista que me concedeu foi que o Congresso ganharia mais poderes se isso for aprovado porque poderia verdadeiramente formular a proposta de destinação das receitas a cada ano.

Como em outras democracias, o parlamento faria o orçamento, em vez de disputar os valores residuais. Isso convencerá o Congresso? Neste momento de aguda crise fiscal, cada setor está convencido de que, se abrir mão do mínimo constitucional, ficará sem qualquer garantia.

O general falou da necessidade de enfrentar as “igrejinhas”, como definiu as corporações do serviço público. Sempre foi difícil mesmo. Uma dessas ideias em defesa do grupo ao qual pertence se vê na própria entrevista, quando Mourão insiste na tese de que não há uma previdência dos militares e sim “um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão”. Chame-se do que for, a previdência dos militares tem um déficit de R$ 42 bilhões.

Sobre o custo da dívida pública, o vice-presidente propõe algo que não é factível. Ele repete o número do qual Paulo Guedes não se separa, que o Brasil gasta R$ 400 bilhões de juros por ano. O general acerta quando diz que se forem feitas as reformas, esse custo pode cair. No resto da solução ele erra. Acha que se fizer esse dever de casa, pode “chegar para os meus credores e dizer ‘vamos fazer uma negociação’”.

Segundo o general, o governo poderá repactuar essa dívida, alongar os títulos e reduzir os juros para diminuí-los, por exemplo, para R$ 350 bilhões, e usar esse dinheiro para investir. A redução do custo da dívida não acontece via negociação com credores, mas sim naturalmente se o governo fizer as reformas. A despesa caiu no governo Temer pelos acertos da equipe. Isso não libera dinheiro para qualquer outro uso. Apenas reduz a trajetória de crescimento da dívida. O vice-presidente mostra uma compreensão imprecisa da política monetária com essa sugestão de negociação com credores da dívida interna. E nesse ponto qualquer mal-entendido é arriscado.