Presidência da República

Jairo Nicolau: O triunfo do Bolsonarismo

Como os eleitores criaram o maior partido de extrema direita da história do país

Até o início do horário eleitoral, a visão dominante sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Nem PT nem PSDB acreditavam no fenômeno Bolsonaro.

No sábado, véspera do primeiro turno das eleições, fui a uma festa de família em Nova Friburgo, minha cidade natal. Durante o dia, no inevitável passeio pela avenida principal da cidade, deu para perceber os sinais de campanha presidencial, o que não tinha ocorrido em nenhum momento no Rio de Janeiro: dezenas de cabos eleitorais balançando bandeiras, muita gente vestindo a camisa amarela com a foto de Bolsonaro estampada.

Em conversa com familiares, comecei a dimensionar a força do bolsonarismo na cidade. No grupo de 25 pessoas que jogam vôlei com a minha irmã, apenas ela e mais três disseram que não votariam no candidato do PSL; no grupo de vinte que jogam a tradicional pelada de fim de semana com o meu cunhado, apenas ele e mais quatro não iam votar em Bolsonaro. O mais inesperado foi ouvir relatos sobre antigos colegas de colégio, figuras silenciosas e discretas, que tinham se transformado em virulentos defensores de Bolsonaro nas redes sociais. Adotando uma “tática de enxame”, eles se especializaram em conjuntamente atacar páginas do Facebook de amigos que postassem qualquer crítica ao capitão.

Friburgo é uma cidade conservadora, mas saí de lá com a sensação de que Bolsonaro estava muito mais forte do que eu imaginava. De volta ao Rio, ao votar no primeiro turno, encontrei uma situação muito mais equilibrada. Meu passatempo, durante a longa espera, foi tentar identificar o voto dos eleitores das filas vizinhas. Alguns, atendendo ao pedido da campanha de Bolsonaro, chegaram com a camisa da Seleção brasileira. Vi muitos com adesivos de candidatos do PSOL e de Ciro Gomes. Será que as urnas em geral estariam mais próximas da maré bolsonarista vista em Friburgo ou do cenário mais equilibrado das filas de uma escola de Botafogo?

Já faz alguns anos que não ligo a tevê para acompanhar a apuração. Prefiro baixar o programa do TSE e abrir o site de um grande jornal, navegando conforme as minhas escolhas. Esse ano, porém, como os resultados demoravam a aparecer, resolvi seguir as previsões feitas pelas pesquisas de boca de urna. À medida que os resultados eram divulgados nos jornais televisivos e outros eram compartilhados via WhatsApp por amigos que estudam eleições, mais estupefato eu ficava.

No Rio de Janeiro, o juiz Wilson Witzel, candidato apoiado pela família Bolsonaro, chegava em primeiro lugar, desbancando Eduardo Paes, líder em todas as pesquisas que foram publicadas desde o começo do ano. Imediatamente, recebo mensagens de toda a parte. Quem é esse juiz? Em Minas Gerais, os petistas sonharam com o crescimento do candidato do Novo, um empresário chamado Romeu Zema. Mas não imaginavam que ele tirasse o governador Fernando Pimentel da disputa no segundo turno. A sensação de que essa era uma eleição de ruptura com a velha ordem partidária ficou clara quando apareceram os dados para o Senado de Minas, com a ex-presidente Dilma amargando o quarto lugar. Era isso mesmo? Sim. Uma ex-presidente vitoriosa em quatro turnos naquele estado estava atrás de outros três concorrentes.

Os resultados da noite deixaram os analistas de política sem adjetivos. O uso de analogias climáticas, embora meio desgastado depois de anos de crise (quem não se lembra da “tempestade perfeita”?), foi a opção. Estávamos diante de um “tsunami” eleitoral, do “furacão” Bolsonaro, da “avalanche” de votos do PSL. Restava falar da velha ordem política também com imagens de destruição. O sistema partidário estaria “em escombros”, “em ruínas”, teria vindo ao chão diante de uma “hecatombe” de renovação.

Afinal, quais eram as bases do sistema partidário que teria sido destruído no primeiro turno do pleito de 2018?

Vale a pena voltar no tempo e lembrar a grande instabilidade que marcou a primeira década da vida partidária após a redemocratização. Cinco partidos foram fundados ainda no regime militar: PDS, PMDB, PT, PDT e PTB. Entre 1985 e 1994, nada menos do que 68 partidos foram organizados e disputaram pelo menos uma eleição. Dentre esses, destacam-se o PFL, o PSDB, o PL, o PCdoB, o PSB e o PRN.

Mais do que pelo grande número de legendas, o período foi caracterizado pela crise que afetou os partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais de 1989, os candidatos do PMDB e PFL – os dois partidos responsáveis pela vitória na eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – tiveram um desempenho pífio. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte que encerrara seu trabalho um ano antes da eleição, obteve 4,7% dos votos. Aureliano Chaves, ex-vice-presidente da República, alcançou apenas 0,9%.

A vitória de Fernando Collor pelo PRN, legenda à qual se filiou apenas para concorrer à Presidência, e o subsequente governo de Itamar Franco, presidente que se desfiliou do PRN e governou sem estar vinculado a nenhuma legenda, ilustram bem o quadro de crise do sistema partidário nos primeiros anos da década de 90.

Podemos definir o ano de 1994 como o início do sistema partidário com características mais ou menos estáveis, que perduraria por duas décadas até as eleições de 2014. Destaco três principais características desse sistema.

A primeira delas é a polarização entre PT e PSDB na disputa presidencial. Os dois partidos chegaram em primeiro ou em segundo lugar em todos os dez turnos disputados entre 1994 e 2014. Nas duas eleições em que o PSDB venceu no primeiro turno (1994 e 1998), o PT chegou em segundo lugar. Nos oito turnos em que o PT venceu (2002, 2006, 2010 e 2014), o PSDB chegou em segundo lugar.

A segunda característica é o papel central do PT no sistema partidário. Será difícil para os historiadores do futuro não chamarem esses vinte anos de “era do PT”. O partido ficou à frente da Presidência por mais tempo do que qualquer outro na história da República. Mesmo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o PT conseguiu ser um ator relevante, comandando uma combativa oposição.

Para além do sucesso eleitoral, um aspecto que sempre chamou a atenção no PT foi a sua capacidade de organização. Enquanto os outros partidos mantiveram uma estrutura organizacional tênue, com baixo envolvimento dos filiados em suas atividades, o PT inovou ao apostar em uma estrutura capaz de mobilizar milhares de quadros para as suas fileiras.

Os cientistas políticos David Samuels e Cesar Zucco, no livro Partisans, Antipartisans and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil (2018), mostraram como a divisão PT/anti-PT foi importante na escolha dos eleitores. Caso raro, o principal concorrente do PT não foi outro partido, mas um sentimento genérico com nome próprio: antipetismo.

Uma terceira característica do sistema partidário brasileiro é a fragmentação. Contrastando com a disputa concentrada para a Presidência, o quadro no Congresso Nacional é de alta pulverização, tendência que vem se aprofundando desde os anos 90. Para se ter uma ideia dessa dispersão: em 1994, as quatro legendas mais importantes (PSDB, PMDB, DEM e PT) tinham, juntas, 308 cadeiras na Câmara dos Deputados; em 2014, passaram a deter apenas 210. A predominância dos quatro partidos não é por acaso. PT e PSDB controlaram a Presidência, enquanto o PMDB (depois MDB) e o PFL (depois DEM) foram centrais no controle do Congresso Nacional.

Depois da perplexidade com os resultados de boca de urna do primeiro turno divulgados pela televisão, voltei ao computador para analisar os dados oficiais da apuração. Ao abrir os resultados de deputado federal do Rio de Janeiro me dei conta que o sucesso de Bolsonaro tinha transbordado para os cargos proporcionais.

Quem é esse Hélio Lopes que chegou em primeiro entre os candidatos a deputado federal, elegendo-se com 345 mil votos, à frente de Marcelo Freixo? Encontro na internet a foto de Lopes. Lembro que recebi um santinho dele. Dias depois, me atualizo. Chamado por Bolsonaro de “Hélio Negão”, ele é subtenente do Exército e tentou ser vereador em Nova Iguaçu em 2016, quando recebeu 480 votos. Nas estatísticas não será considerado como um político que tenta um cargo pela primeira vez.

Numa eleição de tantas surpresas, nada foi mais espantoso do que a votação obtida pelo Partido Social Liberal para a Câmara dos Deputados. O partido obteve 11,3% dos votos e 10,1% das cadeiras. Havia conseguido eleger apenas um deputado federal nas quatro das cinco eleições que disputou antes de 2018. Era um dos partidos a serem barrados pela cláusula de desempenho. A filiação de Bolsonaro e de seus seguidores ao PSL, em março desse ano, mudou inteiramente a sorte da legenda.

O PSL foi o partido que teve o maior crescimento desde as eleições de 1990, quando é possível comparar com a primeira eleição do regime democrático, em 1986. Em 1990, o PRN do então presidente Collor obteve 8,3% dos votos, enquanto o estreante PSDB recebeu 8,7%. Ambos já contavam com um grande número de deputados e tinham o apoio de importantes lideranças regionais.

Outra característica singular do PSL é o grande número de eleitos que disputam um cargo pela primeira vez. Dos 52 deputados federais eleitos, trinta nunca haviam concorrido. Nunca um partido elegeu tantos novatos como o PSL. Guardadas as proporções, é um fenômeno semelhante ao da ascensão do partido do presidente francês Emmanuel Macron (La République en Marche!) e do Movimento 5 Estrelas, na Itália; são novos partidos que levam dúzias de cidadãos sem experiência prévia aos legislativos nacionais.

Os diversos perfis da bancada do PSL feitos pela imprensa destacam a sua heterogeneidade. O que os une, além da admiração por Bolsonaro, é o fato de se posicionarem na extrema direita do espectro partidário. Só no fim da noite de domingo do primeiro turno da eleição, quando já era possível estimar o tamanho das bancadas de cada partido, me dei conta de algo surpreendente: os eleitores haviam criado o maior partido de extrema direita da história das eleições brasileiras.

Quando teria começado a ruína dos partidos e de parte da tradicional elite política do país? Não são poucos os analistas que atribuem a origem de tudo às manifestações que varreram o país em 2013. O forte conteúdo antipolítica dos protestos teria ajudado a minar a confiança da população no sistema representativo.

Além de pedir aos manifestantes que não usassem camisas com símbolos partidários e promover a queima da bandeira dos partidos, os protestos lançaram alguns bordões que expressam uma visão realmente negativa da política. “Partidos não” e “Não me representa” eram palavras de ordem reiteradas inúmeras vezes quando as pessoas se aproximavam da Câmara Municipal ou da Assembleia Legislativa.

É difícil dimensionar se 2013 teve um efeito mais duradouro sobre a avaliação dos brasileiros acerca dos seus representantes. O fato é que nas eleições do ano seguinte o impacto não foi perceptível. As pesquisas de opinião não indicaram um aumento da desconfiança em relação às instituições e aos partidos. A taxa de abstenção continuou praticamente a mesma da eleição anterior. Fora do padrão, apenas um aumento dos votos nulos e em branco para deputado federal, particularmente nos estados do Rio e de São Paulo.

Somente uma força externa muito poderosa poderia abalar um sistema de partidos estruturado em duas décadas de competição política, com diversos mecanismos de autoproteção. A Operação Lava Jato cumpriu esse papel. As investigações afetaram diversas legendas, mas sobretudo as três mais importantes: PT, PSDB e MDB. O PT teve vários de seus dirigentes presos e investigados, entre eles o ex-presidente Lula. Os principais dirigentes investigados do MDB tinham foro privilegiado (eram senadores e deputados), mas o que se viu na maior seção do partido, a do Rio de Janeiro, com a prisão de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Jorge Picciani, foi suficiente para fazer um estrago sem precedentes na legenda. Vários dirigentes do PSDB investigados também se beneficiaram do foro privilegiado, mas a revelação das conversas de Aécio Neves com o empresário Joesley Batista também amplificou muito a rejeição ao partido.

Olhando para trás e relembrando a maré de denúncias contra a elite política que circulou entre 2015 e 2018, percebo como os analistas subestimaram os efeitos da Lava Jato. A operação mudou o patamar de rejeição em relação aos principais partidos. Todos foram igualados por participarem sem pudor de gigantescos esquemas de corrupção.

Até o começo do horário eleitoral, a visão dominante dos cientistas políticos sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Eles acreditavam que: a disputa pela Presidência se daria novamente entre PT e PSDB; a renovação parlamentar seria baixa; e o trio PSDB/PT/MDB continuaria dominando a política brasileira.

O argumento dos que defendiam a tese de que “essa eleição é igual às últimas” baseava-se em duas premissas. Primeiro, a importância que a estrutura partidária e a montagem das coalizões de apoio nos estados havia tido em pleitos anteriores. Segundo, a nova legislação eleitoral, que concentrou o tempo de propaganda eleitoral e o dinheiro do fundo eleitoral nos grandes partidos; juntos, MDB, PSDB, PT e PP ficaram com 44% do dinheiro.

A mesma visão parece ter orientado as ações dos dirigentes partidários. O PSDB optou por lançar Geraldo Alckmin, uma liderança tradicional, que já havia sido candidato à Presidência. O ex-governador de São Paulo, mais do que qualquer um dos nomes ventilados pelo partido, tinha a cara da velha política. O PSDB teve como prioridade a montagem de palanques estaduais e o apoio dos partidos para conquistar o que havia sido o melhor ativo de outras eleições: o tempo de propaganda na tevê.

A estratégia do PT também mirou o passado. A ideia parecia simples. Lula liderava as pesquisas com enorme vantagem. O que, por si só, seria uma evidência de que o eleitorado queria uma nova edição da época de ouro dos governos petistas. Como as pesquisas mostravam que um número expressivo de eleitores estaria disposto a votar em um nome indicado por Lula, a equação estava fechada. Confiando na força do ex-presidente e na teoria de transferência de votos, o PT se deu ao luxo de fazer a mais estreita coalizão eleitoral desde 1989. Só conseguiu o apoio do PCdoB – que retirou a candidatura de Manuela D’Ávila à Presidência – e do PROS.

Nada, porém, supera a crença dos partidos na manutenção da velha ordem do que o comportamento dos partidos do centrão (DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade). É interessante lembrar que alguns deles haviam sido sondados pelo PT e outros pela candidatura de Ciro Gomes. Bolsonaro gostaria de ter o senador Magno Malta como seu vice, mas o PR não aceitou. Depois de semanas de negociação, os partidos resolveram apoiar qual candidato? Geraldo Alckmin.

PT e PSDB se prepararam para enfrentar um ao outro. Nenhum dos dois acreditava no fenômeno Bolsonaro. No último debate do primeiro turno na Rede Globo, a certa altura Alckmin escolheu Haddad para responder uma de suas perguntas. Durante minutos os dois falaram como se estivessem em 2014. Enquanto isso, Bolsonaro concedia uma entrevista nos seus termos à Rede Record do bispo Edir Macedo.

Fui mais cético que meus colegas de ofício sobre a possibilidade de que a eleição de 2018 repetisse o padrão das eleições anteriores. Minha desconfiança se devia a duas razões. A primeira, mais genérica, pode ser resumida no sentimento de que, depois de três anos de crise política, dificilmente as estruturas do sistema partidário não sairiam abaladas. Lembro-me de uma conversa com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, que também compartilhava do meu ceticismo, em que ela fez a pergunta definitiva: “Depois de tudo que aconteceu nesses anos, as eleições não vão mudar nada?”

A segunda razão é que venho há anos acompanhando a movimentação do candidato Bolsonaro. Por intermédio de um amigo que compartilha o material do candidato, assisti aos seus vídeos postados nas redes sociais, e os mais impressionantes deles mostravam o acolhimento efusivo que recebia de seus seguidores pelos aeroportos do país. Mas, apesar de não desprezar a força de Bolsonaro, minha expectativa sobre o que seria a eleição presidencial se revelaria totalmente equivocada. Consulto os slides de uma apresentação que fiz em março deste ano sobre o tema. Estimava que Bolsonaro teria algo em torno de 15% a 20% dos votos.

Minha aposta era que cinco candidatos (Marina, Alckmin, Ciro, Bolsonaro e o candidato do PT) disputariam entre si as duas vagas para o segundo turno; todos eles com potencial de votação semelhante, entre 10% e 20% dos votos. Uma pessoa cujo nome não lembro e que compartilhava de avaliação semelhante chegou a propor um número mágico: nesse cenário, o candidato que tivesse 17% dos votos passaria para o segundo turno.

Meu equívoco maior se deu quando projetava os resultados do segundo turno. Mais de uma vez, fui perguntado em debates e aulas sobre as chances de Bolsonaro vencer as eleições. Na resposta, sempre me lembrava do caso francês. Bolsonaro é candidato de um segmento específico do eleitorado, é um candidato de nicho, que lembra o desempenho do partido de extrema direita da França. Lá, a Frente Nacional consegue até chegar ao segundo turno, mas todas as forças do espectro político (da direita republicana à esquerda comunista) se juntam contra o partido, que é sempre derrotado. Não me lembro, mas provavelmente devo ter dito uma frase que muitos falavam em meados do ano: “O candidato do PSL será derrotado por qualquer um no segundo turno.”

Bolsonaro saiu do nicho. Esse é o fenômeno mais impressionante da campanha presidencial de 2018 e será o tema incontornável dos estudos sobre o comportamento político no Brasil nos próximos anos.

Como um candidato com uma história tão à direita no espectro político, com dezenas de vídeos em que revela seu racismo, sua homofobia e seu menosprezo pelas mulheres, foi capaz de conquistar uma parcela tão expressiva de eleitores de alta renda e alta escolaridade? Fui a São Paulo em junho e percebi que Bolsonaro já era o preferido dos motoristas de Uber e dos trabalhadores do hotel onde me hospedei. Em setembro, em nova viagem, soube que a comunidade judaica o apoiava em peso. O mesmo acontecia com a elite da cidade, outrora eleitora do PSDB.

O mais impressionante é que uma grande parte do eleitorado passou a apoiar Bolsonaro sem conhecer minimamente suas ideias. Recolhido no hospital ou em casa desde o atentado que sofreu em 6 de setembro, Bolsonaro compareceu somente aos dois primeiros debates da campanha. Sem dispor de tempo no horário eleitoral gratuito, também não detalhou nenhum dos seus projetos para o país. Minha impressão é que seus eleitores, ao votarem nele, imaginam escolher uma espécie de João Doria nacional.

Outra hipótese, mais óbvia mas não menos intrigante, é a que vê no antipetismo uma razão forte para Bolsonaro ter saído de seu nicho. A maré bolsonarista deveria menos aos méritos do candidato do que a uma força inercial da opinião pública. Dito de outro modo, qualquer candidato que disputasse contra o PT acabaria vencendo.

Usei o adjetivo “intrigante” no parágrafo acima por uma razão muito simples. Onde estava o antipetismo tão visceral que ninguém foi capaz de dimensioná-lo? Aos olhos de agora, parece que todo mundo já sabia da força do antipetismo, mas nenhuma pesquisa de opinião feita antes de a campanha começar foi capaz de capturá-lo. Ao contrário, as pesquisas mostravam que Lula reerguia o petismo e que o partido já recuperava seu tamanho como legenda preferida do país. Havia inclusive uma hipótese para explicar a força do petismo: “O governo Temer e a prisão do Lula teriam ressuscitado o PT.”

Estudos sobre o desenrolar da campanha eleitoral de 2018, particularmente sobre o papel das redes sociais, devem mostrar a evolução do antipetismo. Meu palpite é que tanto a ampliação do antipetismo, como a mudança de patamar desse sentimento (de um estágio relativamente leve para um visceral) deve-se à eficácia do que chamarei, na falta de expressão melhor, de máquina de propaganda da campanha de Bolsonaro.

As eleições para prefeito do Rio de Janeiro em outubro de 2016 e a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, mostraram a força de uma nova forma de comunicação e mobilização social: o WhatsApp. Falo especificamente desse instrumento porque ele é realmente uma inflexão na forma de os brasileiros se comunicarem. De novo, não tenho estudos, mas posso observar na minha rotina que o WhatsApp é o grande responsável pela inclusão de milhões de cidadãos de baixa renda e baixa escolaridade na era digital.

Somente a comunicação via redes sociais, cultivada nos últimos anos no país, poderia explicar a força e a rapidez com que as ondas de opinião se propagaram nessas eleições. Antes, velhas ondas de campanha demoravam dias para se formar e precisavam do “boca a boca” para se propagar. Agora, a propagação da informação faz-se de maneira veloz, em escala geométrica – como provavelmente ocorreu na impressionante campanha que levou o juiz Witzel a saltar de um dígito nas pesquisas feitas na quarta-feira antes da eleição para 41% dos votos válidos no primeiro turno.

A campanha também foi invadida por uma onda de fake news. Assisti a dezenas de vídeos, quase todos pró-Bolsonaro, com montagens toscas, adulterações de fatos e estatísticas inventadas. A Justiça Eleitoral não se preparou para lidar com o fenômeno. Diferentemente do que tinha feito em outras eleições, quando controlava os desvios e agressões da propaganda de rádio e televisão, nesse ano o silêncio foi a sua tônica.

Mas nem tudo foi fake news. Depoimentos e trechos de eventos foram difundidos com eficácia pela campanha do PSL. Ouvi pastores e lideranças empresariais pedirem voto para o Bolsonaro. Vi compararem algumas propostas do candidato com as do PT. Acabo de assistir a um vídeo em que um bispo finaliza a sua homilia repetindo, e sendo efusivamente aplaudido pelos fiéis, o principal bordão da campanha bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”

Bolsonaro é, a meu juízo, o maior fenômeno da história das eleições no Brasil. Muitos o comparam com Collor em 1989, mas sua força e abrangência são bem maiores. Uma coisa parece certa. Com Collor, vimos a emergência de um fenômeno propagado pelas redes de televisão. Bolsonaro não só nos mostrou que a era da televisão está se encerrando, como uma nova era começa: a das campanhas feitas nos subterrâneos da sociedade, por meio das redes sociais.

Embora essa seja uma análise ainda inicial, minha sugestão é que o pleito desse ano é um exemplo do que os cientistas políticos chamam de “eleição crítica”: uma disputa que desestrutura o padrão de competição partidária vigente.

Enumero quatro elementos que demonstram que as eleições deste ano marcam o encerramento do sistema partidário que vigorou por duas décadas: o fim da polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais; o fim da centralidade do primeiro como força organizadora do sistema partidário; o declínio dos dois maiores partidos de centro (PMDB e PSDB); e a emergência de um novo e expressivo partido de direita (PSL).

A onda bolsonarista foi tão forte que, nos dias que se seguiram ao primeiro turno, os prognósticos sobre o resultado do segundo turno podiam ser resumidos em duas perguntas: Qual será a diferença a favor do candidato do PSL? Será que ele superará o desempenho de Lula em 2002? (Nesse ano, o candidato do PT recebeu 61,3% dos votos válidos, a maior votação já obtida por um candidato a presidente.) As pesquisas publicadas na primeira semana após o segundo turno reforçaram a ideia de vitória por grande margem. Na pesquisa do Datafolha, o deputado do PSL vencia com 58% dos votos válidos; na pesquisa Ibope vencia com 59%.

Em razão da grande vantagem confirmada nas primeiras pesquisas, Bolsonaro manteve a mesma estratégia adotada no último mês de campanha do primeiro turno: priorizou a difusão de mensagens por intermédio das redes sociais, não participou de eventos públicos e nem compareceu aos tradicionais debates promovidos pelos principais meios de comunicação do país. A diferença é que sua campanha chegou ao rádio e à televisão.

Com apenas oitos segundos, o ex-capitão havia sido quase invisível nos meios tradicionais de comunicação no primeiro turno. No segundo, com os dez minutos do programa eleitoral e centenas de inserções, ele teve que dar uma atenção especial ao velho (e para ele novo) formato de comunicação.

Se pudermos recorrer a uma metáfora esportiva, a estratégia de Bolsonaro lembrou a dos times de futebol que, vencendo por larga vantagem, “jogam contra o relógio”. Deixam o tempo passar, trocam passes para o lado até que o juiz aponte para o centro do gramado.

Na campanha de Haddad, em contrapartida, inicialmente nada parecia funcionar. A tentativa de organizar uma frente democrática foi um fiasco. O petista recebeu apoio crítico do PDT e Ciro Gomes preferiu não declarar seu voto; Fernando Henrique Cardoso e outras lideranças nacionais do PSDB também preferiram não se manifestar; Marina Silva deu seu apoio quinze dias depois do domingo do primeiro turno. Chegavam notícias de que até mesmo os dirigentes do PT não acreditavam na sorte de seu candidato e temiam uma derrota humilhante. Em mais de uma conversa com amigos chamei a atenção para a “solidão de Haddad”. A sensação era outra: a do time que está sendo derrotado por uma grande diferença e conta os segundos para que o jogo acabe.

A incapacidade de Haddad e do PT para ampliar o seu arco de alianças foi relativamente compensada por um movimento de apoio, também cultivado nas redes sociais, que contou com grandes atividades de rua na última semana antes do pleito. Foi provavelmente por causa desse movimento que o candidato do PT não sofreu a derrota que se desenhava no começo do segundo turno. A comparação dos votos dos dois turnos, incluindo os votos nulos e em branco no cálculo, mostra que Haddad acabou crescendo mais (passou de 27% para 40% dos votos totais), do que Bolsonaro (passou de 42% para 50%).

Escrevo as linhas finais desse texto poucos minutos após a confirmação de que Bolsonaro é o novo presidente do Brasil. Escuto muitos gritos, panelas batidas e fogos para celebrar a vitória. O volume se assemelha ao das manifestações contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Numa eleição de tantas novidades cabe registrar mais essa. Pelo menos no Rio de Janeiro, nunca tinha visto uma vitória eleitoral ser tão celebrada.

Ainda vou passar muitas semanas analisando os dados das eleições de 2018. Mas como não podia deixar de ser, começo observando o que ocorreu em Nova Friburgo: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 63% dos votos válidos, Ciro Gomes, 16% e Haddad, 10%. No segundo turno, Bolsonaro obteve 73%. Já na minha zona eleitoral, no Rio, o quadro foi bem mais equilibrado no primeiro turno: Bolsonaro obteve 44% dos votos, Ciro, 30% e Haddad, 13%; no segundo turno Bolsonaro chegou aos 54%.

Olho os números e me dou conta de como Bolsonaro foi bem votado em outras áreas da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os gritos pró-Bolsonaro e contra o PT continuam a ecoar lá fora. Realmente, estamos diante de um fenômeno eleitoral diferente de tudo que eu já tinha visto.

*JAIRO NICOLAU é cientista político e professor da UFRJ, é autor de Representantes de Quem?: Os (Des)Caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados


Foto: Beto Barata\PR

Miguel Reale Júnior: No alto das redes sociais

É preciso abrir frentes de interlocução com a sociedade, para não ser um presidente solitário

Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragaram. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.

De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldades serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.

O sentimento antissistema e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhamento do Estado, foi um dos fatores determinantes do processo eleitoral deste ano, principalmente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvimento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.

A população que se sentia mais independente da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governadores novéis na política, concorrendo por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperiente Romeu Zema, na tradicional Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administração pública, surpreenderam em Estados importantes como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.

Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimentos de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreendentes efeitos.

Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíram governos ditatoriais no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democráticos não conseguiram organizar um governo. A final, fundamentalistas e militares entraram em cena.

No Brasil, as redes sociais mobilizaram imensamente a população em favor do impeachment. Depois, virtualmente, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCunha, que se tornou trending topic, conseguindo-se impedir a vitória da impunidade.

O presidente da Câmara, ao saber da repercussão nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.

Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundentemente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.

Se já não tínhamos partidos políticos, substituídos por frentes parlamentares ou bancadas, com seus líderes processados por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.

Os órgãos intermediários fundamentais numa democracia representativa não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governadores do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilabicamente alguns princípios conservadores. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativas, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.

Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamental. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participante.

Como diz o cientista político da Universidade de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrático composto por eleições, partidos políticos profissionais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.

Na falha de corpos intermediários a mediar as reivindicações, cada qual não busca meios de ser representado, apresenta-se diretamente pelas redes sociais. Como sobreviverá a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.

No Brasil, a questão é ainda mais angustiante: a imensa participação nas redes sociais e a desmedida expectativa de resolução das dificuldades, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.

Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridades, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.

Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocução consistentes com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.

*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Carlos Pereira: A democracia brasileira corre riscos com Bolsonaro?

O Brasil tem sido capaz de eleger governos de forma livre, competitiva e sem fraudes. Partidos perdem eleições e se alternam no poder. As eleições ocorrem com alto grau de incerteza sobre quem será o vencedor. Perdedores se subordinam ao resultado final, e o jogo se repete de forma estável.

As democracias eleitorais possuem salvaguardas institucionais robustas capazes de proteger direitos individuais dos cidadãos? Seriam aptas a restringir potenciais comportamentos oportunistas de governantes que, uma vez eleitos, subvertam as regras do jogo e coloquem em risco a própria democracia?

Não tem sido incomum presidentes fazerem uso exagerado de poderes unilaterais. Usam mecanismos plebiscitários para subverter regras constitucionais e se perpetuar no poder. Exemplos recentes como os de Turquia, Polônia, Filipinas, Hungria, Venezuela, Peru, El Salvador têm levado estudiosos a identificar uma onda de recessão da democracia.

Alguns alertam que, nos dias atuais, democracias não morreriam via golpes, mas via deterioração gradativa das instituições. O novo mecanismo de quebra seria lento, através da eleição de políticos que distorcem de forma insidiosa o sistema representativo.

A eleição de um candidato “pré-moderno”, como Jair Bolsonaro, à Presidência tem gerado preocupações. Afinal de contas, não são poucas as declarações do novo presidente que revelam pouco apreço aos valores democráticos, exaltação a torturadores, apologia do uso de armas e contestações de direitos das minorias.

Tais preocupações fazem sentido? A democracia brasileira está consolidada e imune a comportamentos que a coloquem em risco? Para responder a essas perguntas, impõe-se não apenas saber se seus jogadores se comprometem com princípios democráticos, mas identificar se, de fato, existe uma crença dominante em favor da democracia e antídotos institucionais contra comportamentos iliberais.

O Brasil vem passando por transformações estruturais notáveis a partir da Constituição de 1988. O presidencialismo e o sistema eleitoral proporcional com lista aberta para o Legislativo foi preservado. Diante dos potenciais riscos de governabilidade, o constituinte delegou um conjunto de poderes constitucionais e orçamentários para que o chefe do Executivo tivesse condições de governar em ambiente multipartidário através de coalizões pós-eleitorais.

Ao antecipar que um presidente muito poderoso dificilmente seria controlado de forma efetiva pelo Legislativo, o constituinte também delegou uma série de poderes a instituições “externas” à política capazes de fiscalizar o chefe do Executivo. Um arcabouço vigoroso e multifacetado de instituições de freios e contrapesos foi criado e/ou fortalecido ao longo desses 30 anos. Tem-se um Judiciário e um Ministério Público independentes e profissionalizados. Tribunais de Contas ativos. Polícia Federal atuante contra a corrupção. Imprensa livre. Em outras palavras, a combinação de cachorro grande com coleira forte gera equilíbrio.

Embora o ativismo das instituições de controle não venha se dando de maneira linear, seus múltiplos pontos de veto têm servido como escudo protetor contra os comportamentos desviantes. Não muito tempo atrás, a grande maioria dos brasileiros acreditava que as elites políticas, burocráticas e empresariais sempre encontrariam maneiras de escapar de seus malfeitos. Entretanto, desde o julgamento do mensalão, vimos instituições de controle saírem do controle dos políticos.

Nada disso é excluir que um presidente eleito possa ter intenções iliberais — a questão é que, no Brasil de hoje, querer isso não é sinônimo de poder fazer isso. Presumir que a eleição de candidatos conservadores e/ou pouco comprometidos com os valores democráticos traz riscos à democracia é o mesmo que ignorar os constrangimentos gerados por uma crença democrática dominante na sociedade e as restrições que as instituições de controle exercem no comportamento dos próprios atores políticos. No mínimo, é não perceber que o Brasil não é mais o mesmo.


Luiz Carlos Azedo: Depois da ressaca

“Enquanto não forem divulgados a nova equipe econômica e os planos do governo, haverá inquietação no mercado. Há duas incógnitas: o corte de gastos e a reforma da Previdência”

“Presidente Jair Bolsonaro. Desejo-lhe sucesso. Nosso país merece o melhor. Escrevo essa mensagem, hoje, de coração leve, com sinceridade, para que ela estimule o melhor de todos nós. Boa sorte!”, disparou no Twitter o candidato do PT, Fernando Haddad, ontem, reconhecendo a vitória do adversário e cumprimentando o novo presidente eleito, o que não havia feito no domingo. Também pelo Twitter, lacônico, respondeu Bolsonaro: “Senhor Fernando Haddad, obrigado pelas palavras! Realmente o Brasil merece o melhor”. Que ninguém espere uma dança de acasalamento, mas é um bom começo para o país voltar à calma depois da ressaca eleitoral.

Ressaca mesmo, porque o dólar voltou a subir ontem. A moeda havia caído abaixo de R$ 3,60, mas encerrou o dia em alta de 1,51%, vendida a R$ 3,7068. O dólar turismo encerrou a R$ 3,86, sem a cobrança de IOF. Analistas de mercado fazem duas leituras: uma minimiza o fato, atribuindo a queda aos investidores que aproveitaram os preços atrativos para irem às compras; outros, veem na alta do dólar um sinal de que os investidores não estão com confiança nos rumos da economia, porque Bolsonaro emite sinais contraditórios sobre o poder de decisão de Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda, sobre a política econômica.

Apelidado de Posto Ipiranga pelo próprio presidente eleito, Guedes é um economista da escola de Chicago, com propostas ultraliberais. Acontece que o homem forte na equipe de transição é o deputado Onyx Lorenzoni, uma espécie de “tertius”, em razão dos choques que estariam ocorrendo entre o grupo de militares liderado pelo general Augusto Heleno, futuro ministro da Defesa, e a equipe de economistas de Guedes.

Enquanto não forem divulgados a nova equipe econômica e os planos do governo, haverá inquietação no mercado. Há duas incógnitas em relação à política econômica: o corte de gastos e a reforma da Previdência. Bolsonaro falou em reduzir para 10 os ministérios, fundindo ou extinguindo os existentes, mas já desistiu de acabar com os ministérios de Meio Ambiente, que seria anexado à Agricultura, e da Indústria e Comércio, que seria absorvido pela Fazenda. Recuou no decorrer do segundo turno, em razão de compromissos assumidos com o agronegócio e a indústria. O lobby desses setores é poderoso, são aliados de primeira hora do presidente eleito.

Previdência
Futuro ministro da Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM-RS) anunciou o desejo de que a reforma da Previdência seja feita de uma única vez, para durar 30 anos. Descartou o projeto apresentado pelo presidente Michel Temer, na forma de emenda à Constituição, que está à espera de votação na Câmara dos Deputados desde a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. A legislação impede mudanças na Constituição durante a vigência da intervenção. No caso do Rio, a medida tem previsão de durar até 31 de dezembro deste ano.

Ex-líder do DEM, Lorenzoni tem muita cancha na Câmara, mas pode ser que esteja desperdiçando uma grande oportunidade ao não votar a reforma ainda este ano, aproveitando a capacidade de negociação do governo Temer no Congresso e a expectativa de poder de Bolsonaro. Argumenta: “aquilo que foi proposto pelo atual governo era apenas um remendo com o objetivo de fazer um ajuste curto de caixa e não duraria cinco anos”.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-depois-da-ressaca/


El País: Porte de arma, Previdência, mentira: as declarações de Bolsonaro analisadas

Presidente eleito deu bateria de cinco entrevistas às TVs nesta segunda e defendeu aprofundar reforma trabalhista

Por Flávia Marreiro e Érica Saboya, do El País

ultradireitista Jair Bolsonaro concedeu nesta segunda-feira suas primeiras entrevistas como presidente eleito na qual mesclou a tentativa de suavizar sua retórica virulenta contra opositores à reafirmação de ameaças e a defesa de projetos radicais na área de segurança que devem enfrentar resistência na cúpula do Judiciário. As cinco principais TVs do país encadearam uma sequência de aparições do capitão reformado no Exército, algumas ao vivo e outras gravadas, nas quais ele afirmou que pretende negociar a aprovação da reforma da Previdência ainda neste ano. Bolsonaro anunciou que cogita convidar o juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, para uma vaga do Supremo Tribunal Federal ou para o Ministério da Justiça. No Jornal Nacional, da TV Globo, o principal noticiário televisivo do país, fez também novos ataques à imprensa e ao jornal Folha de S. Paulo, a quem ele voltou a ameaçar com o corte de verba de publicidade federal.

Leia as principais declarações das entrevistas contextualizadas e analisadas.

Reforma da Previdência

"Semana que vem estaremos em Brasília e buscaremos junto ao atual Governo aprovar alguma coisa do que está em andamento lá [no Congresso], como a reforma da Previdência, se não num todo, em parte do que está sendo proposto, porque evitaria problemas para o futuro governo que, no caso, seria eu. Vamos buscar maneiras de evitar novas ditas pautas bombas, porque temos um déficit monstruoso e não podemos aumentar esse déficit para o ano que vem sob o risco de um Brasil entrar em colapso”

"Todo mundo tem que entender que a melhor reforma não é a minha, não é a sua, é aquela que passa no Parlamento. Se quiser impor os 65 anos, a chance de derrota é muito grande. Se nós dermos um ano agora, o ano que vem dermos mais um ano, vamos para 62. Afinal de contas, a proposta de 65 não é para agora”

O contexto e as implicações: 

A promessa de tentar aprovar a reforma da Previdência ainda em 2018 deve ser bem recebida por investidores e a maior parte dos economistas, que defendem que a mudança é urgente para retirar as contas públicas de uma rota insustentável. O presidente Michel Temer se disse disposto a tentar aprovar a reforma neste ano, mas há, em primeiro lugar, a dificuldade de mobilizar o Congresso na reta final para passar um tema extremamente impopular. Bolsonaro e seus auxiliares criticam o projeto de Temer, que já tramita na Câmara, e emitem declarações contraditórias sobre o assunto. O presidente eleito fala em uma reforma gradual, no qual a idade mínima para homens comece subindo para 61 anos, e não para 65 anos como propõe o atual governo, o que melhoraria as chances de aprovação, mas podem desagradar as expectativas do mercado. Além disso, enquanto o presidente eleito fala em aprovar "parte" da reforma, Onyx Lorenzoni, seu futuro ministro-chefe da Casa Civil, disse nesta segunda-feira que quer que se discuta o tema "uma única vez". Outro obstáculo e que um dos principais rombos do sistema é a aposentadoria de militares, e a expectativa é que o futuro Governo não altere isso.

Sérgio Moro no Ministério da Justiça ou Supremo

"Pretendo, sim, (convidar Sérgio Moro) não só para o Supremo, mas quem sabe até para o Ministério da Justiça. Pretendo conversar com ele, saber se há interesse dele nesse sentido também. Se houver interesse, com toda certeza será uma pessoa de extrema importância para um Governo como o nosso.

O contexto e as implicações:

O juiz federal Sérgio Moro, do Paraná, se notabilizou pela Operação Lava Jato e, especialmente, por ter condenado por corrupção ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que culminaria na prisão do petista e no impedimento de que ele concorresse à Presidência da República. Não há vagas no Supremo Tribunal Federal no momento, de modo que, se nada mudar, o mais provável é que o convite seja feito para a Justiça, uma pasta estratégica que tem o comando da Polícia Federal. De acordo com as pesquisas, Moro não está no auge de sua popularidade nem é livre de críticas por tomar atitudes lidas como motivadas politicamente, como divulgar trechos da delação premiada do petista Antonio Palocci antes do primeiro turno. De todo modo, se o juiz aceitar, Bolsonaro agradaria a base antipetista ferrenha que idolatra o juiz.

Porte de armas e 'licença para matar'

“A orientação nossa é que a 'efetiva necessidade' (exigida no Estatuto do Desarmamento para compra de arma de fogo) está comprovada pelo estado de violência em que a gente vive no Brasil. Nós estamos em guerra. Nós queremos mexer na lei e também diminuir de 25 para 21 anos de idade (a idade mínima para o porte de armas). E mais ainda: dar o porte definitivo para o cidadão."

"O porte tem que ser flexibilizado também. ‘Por que um caminhoneiro não pode ter porte de arma de fogo?’ Um caminhoneiro dorme no posto de gasolina e quando acorda não mais nenhum step. Então, você casar isso com o excludente de ilicitude, que eu digo que é em defesa da vida própria e de terceiros, do patrimônio próprio e de terceiros. Pode ter certeza que a bandidagem vai diminuir. Porque um caminhoneiro armado, ao reagir a alguém que estiver furtando ou roubando o seu step, ele vai dar o exemplo para a bandidagem. Seguinte: atirou, o elemento está abatido, em legítima defesa. Ele vai responder, mas não tem punição. Isso vai diminuir a violência no Brasil com toda certeza”

"Temos que abandonar o politicamente correto de achar que com todo mundo desarmado o Brasil vai ser melhor. Não vai ser melhor [...] A arma de fogo, mais do que garantir a vida de uma pessoa, garante a liberdade de um povo”

O contexto e as implicações:

Derrubar o Estatuto do Desarmamento é uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro e há vários projetos tramitando na Câmara a respeito, que poderiam ser colocados em votação ainda neste ano. O presidente eleito quer liberar o porte, a posse e reduzir a idade mínima necessária para comprar uma arma, ou seja, fazer uma guinada radical na atual política. Especialistas criticam a possibilidade porque dizem que ela vai aumentar a violência e o número de homicídios, que já é recorde. Num reflexo da perspectiva de liberação, as ações da fabricante de armas Forjas Taurus têm subido.

O segundo ponto mencionado é transformar em automático o chamado "excludente de ilicitude", que é prerrogativa que todos têm, inclusive policiais, evocar legítima defesa quando cometem um homicídio. Bolsonaro não detalha, mas quer a isenção de punição seja ampla e para todos, espécie de "licença para matar", não apenas em defesa da própria vida ou de terceiros, mas em nome da defesa do patrimônio. A proposta, uma das mais radicais do presidente eleito, tem de passar no Congresso, mas  deve ter resistência importante no Supremo Tribunal Federal. "Isso seria claramente declarado inconstitucional", afirma Oscar Vilhena, da FGV. Para analistas, a simples defesa de Bolsonaro da medida pode impactar nas Polícias Militares, já que funcionaria como um endosso dos homicídios cometidos pelos policiais. A taxa de violência policial no Brasil já é uma das mais altas do mundo e há baixíssimo índice de investigação dos homicídios cometidos pelos agentes. Para especialistas, a regra pode escalar o número de mortes violentas no país. A ex-senadora e candidata derrotada à Presidência, Marina Silva (REDE), criticou.

Marina Silva

@MarinaSilva

A entrevista do é preocupante sob muitos aspectos, mas nenhum é tão preocupante quanto a sua ideia fixa em querer induzir a sociedade a acreditar que poderá resolver o grave problema da violência fazendo justiça com as próprias mãos

Minorias e mentira sobre o 'kit gay'

“Eu queria saber, que me definissem, o que é minoria. Quais os direitos de tais minorias? Nós somos todos, não tem diferença minha para você [...] Somos todos iguais, como está no próprio artigo quinto na Constituição. Agora, não podemos pegar certas minorias e achar que têm superpoderes, diferentes dos demais. Se conseguirmos igualdade para todo mundo, todos se sentirão satisfeitos”

“Ganhei o rótulo por muito tempo de homofóbico. Na verdade, eu fui contra um kit, feito pelo então ministro da Educação, (Fernando) Haddad, em 2009 para 2010, que chegaria nas escolas um conjunto de livros, cartazes e filmes onde passariam crianças se acariciando e meninos se beijando. Não poderia concordar com isso. E a forma como eu ataquei essa questão é que foi um tanto quanto agressiva. Tivemos, em parte, sucesso porque no ano seguinte, a própria presidente Dilma Rousseff resolveu recolher esse material, mas o rótulo ficou. Isso aconteceu em razão no Nono Seminário LGBT Infantil na Comissão de Direitos Humanos na Câmara.

O contexto e as implicações:

Bolsonaro rejeita o conceito de minorias, mas nega ser depreciativo em relação a esses seguimentos da sociedade, como negros, índios, mulheres e homossexuais. Ele tem amplo histórico de declarações racistas, homofóbicas e misóginas e seu apoiadores mais radicalizados tem evocado o presidente eleito para hostilizar e, em alguns casos atacar diretamente, esse público. Durante a campanha, também houve episódios em que ele voltou a estigmatizar esses setores. Numa transmissão ao vivo via Facebook, em 12 de outubro, ele atacou a ex-ministra das Mulheres do Governo Dilma, Eleonora Menicucci. No ar na rede, Bolsonaro leu trechos de uma entrevista onde Menicucci falava que é bissexual e lembrou que ela, durante a ditadura, ficou presa com a ex-presidenta Dilma Rousseff. "Como uma mulher dessas pode representar todas as mulheres do Brasil?" Tem sido uma estratégia comum do presidente eleito dar declarações de tons diferentes a diferentes audiências.

Durante a entrevista, na TV Globo, Bolsonaro voltou a mentir sobre o chamado "kit gay", termo pejorativo para um material antihomofobia que, à diferença do que ele afirma, não foi criado pelo petista Fernando Haddad. O presidente eleito voltou dizer que aconteceu na Câmara um seminário dedicado ao "LGBT Infantil". O evento, na verdade, debateria a sexualidade na infância. A repulsa a respeito de dois temas foi amplamente explorado por Bolsonaro na campanha.

Ataque a 'Folha de S.Paulo'

"Sou totalmente favorável à liberdade de imprensa. Temos a questão da propaganda oficial do governo que é uma outra coisa. (...) O jornal Folha de S.Paulo fez uma matéria, no dia 10 de janeiro, e a rotulou (Walderice Santos da Conceição) de forma injusta como (funcionária) fantasma. Só que nesse dia, 10 de janeiro, ela estava de férias. Então, ações como essa, como parte de uma imprensa que, mesmo se mostrando a injustiça que cometeu com uma senhora, ao não voltar atrás, obviamente que não posso considerar essa imprensa digna. Não quero que ela acabe. Mas no que depender de mim, na propagando oficial do governo, a imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal [...] Por si só esse jornal se acabou, não tem prestígio mais nenhum. Quase todas as fake news que se voltaram contra mim partiram da Folha de S. Paulo."

O contexto e as implicações:

Na TV Globo, Bolsonaro foi questionado sobre a ameaça que fez à Folha de S. Paulo via Twitter na semana anterior, prometendo cortar a publicidade federal se fosse eleito. O jornal, o maior do país, publicou reportagem afirmando que Walderice Santos da Conceição, lotada em seu gabinete na  Câmara, na verdade prestava serviços particulares para ele no litoral do Rio. A Folha também publicou reportagem sobre a existência de um esquema ilegal bancado por empresas para dispara mensagens em massa via WhatsApp para favorecer Bolsonaro - o caso está sob investigação.

Os ataques ao jornal são a faceta mais visível da estratégia que emula a usada por Donald Trump contra a imprensa tradicional. Todo conteúdo incômodo é classificado como fake newsAs ameaças provocaram reações de associações de jornalistas e das empresas jornalísticas. Jornalistas da Folha que fizeram reportagens críticas contra Bolsonaro e o WhatsApp do próprio jornal foram alvo de ataques virtuais coordenados. "O problema é o estímulo à intimidação, a ações coletivas para expor os profissionais e até suas famílias. Isso tudo não é condizente com a liberdade de expressão e com a liberdade de imprensa”, declarou, na semana passada, Daniel Bramatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI).


Celso Rocha de Barros: No fundo do poço há o porão

Nunca descemos tão baixo, nunca fomos tão repulsivos

Não há como diminuir o tamanho da catástrofe que aconteceu ao Brasil neste domingo (28). Somos o único país do Ocidente cujo presidente tem como livro de cabeceira as memórias falsificadas do maior torturador da ditadura militar. Somos o único país do Ocidente cujo presidente prefere ter um filho morto a ter um filho gay.

O vice-presidente do Brasil é um defensor consistente de golpes de Estado. O filho do presidente fala abertamente em fechar o Supremo Tribunal Federal. Animados pelo exemplo de seu líder, juízes censuram universidades, e fanáticos ofendem gays nas ruas.

Nunca descemos tão baixo, nunca fomos tão repulsivos diante do mundo, que assistiu o desenrolar desse desastre com horror.

Chegamos no fundo do poço, e ali havia um porão. O porão.

Temos o líder mais extremista de todas as nações democráticas, e precisamos torcer para que a situação continue a ser essa: afinal, talvez não estejamos mais entre as nações democráticas em breve.

O tema desse pós-eleição será o risco de golpe militar, ou escalada autoritária. Quando isso é assunto, a democracia já está doente. O papel dos militares na política brasileira deveria ser o que é em todas as nações desenvolvidas: nenhum.

Descemos um degrau, caímos para a Série B dos regimes políticos. Se já há o medo, a liberdade não é a mesma. Se há a preocupação de não provocar uma reação desmesurada do lado do poder, a liberdade não é mais a mesma. Hoje já amanhecemos menos livres.

A vitória de Bolsonaro consagrou os piores da campanha do impeachment: os adultos responsáveis que aceitaram participar do governo Temer e deram sua contribuição à estabilização -- Alckmin, Meirelles -- foram destroçados. Bolsonaro, aliás, teve especial satisfação em trabalhar por derrotas do PSDB nos segundos turnos estaduais.

Quem venceu: o MBL, Bolsonaro, os defensores do golpe militar, Janaina Paschoal, Levy Fidélix, leitores de Olavo de Carvalho. Pois é.

O que sobrou do centro? Há algum país do mundo em que o sujeito que apoiou Bolsonaro, que se absteve diante de Bolsonaro, é considerado de centro?

Há o Centrão, o fisiologismo, e a esperança de que o Centrão -- nosso inimigo até sábado, quando éramos uma nação civilizada -- agora controle Bolsonaro. Até sábado, discutíamos como nos livrarmos do Centrão e reposicionarmos a política brasileira em termos de uma centro-esquerda e uma centro-direita competitivas. Agora torcemos pelo Centrão. Caímos isso tudo.

E agora vai chegar a conta do estelionato eleitoral bolsonarista, das fraudes de WhatsApp e da fuga dos debates: o Brasil está prestes a descobrir que não, a crise econômica não foi causada por corrupção, e que ajustes dolorosos são necessários.

Enfim, o país escolheu o que escolheu, e agora é hora de pagar o preço dessas escolhas. Que, é claro, pode incluir o fim da democracia brasileira tal qual nós a conhecemos.

Mas foi muito importante que a vitória de Bolsonaro fosse muito menor do que teria sido antes que sua máquina de fake news fosse desbaratada, antes de sua promessa de perseguir opositores, antes da mobilização antifascista da última semana.

Bolsonaro assumirá com a maré já virando contra ele. Faz muita, muita diferença. No mínimo, ganhamos tempo para descobrir o que pode ser feito nesse novo cenário.

*Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Bernardo Mello Franco: O baixo clero sobe a rampa

Festa da vitória de Bolsonaro teve discurso anticomunista, oração com pastor e aceno às bancadas conservadoras do Congresso

Na primeira aparição como presidente eleito, Jair Bolsonaro fechou os olhos, baixou a cabeça e fez silêncio para ouvir apalavra de Magno Malta. De camiseta amarela e relógio de ouro no pulso, o dublê de senador e cantor gospel festejou a vitória de “um cristão verdadeiro, um patriota”. “Os tentáculos da esquerda jamais seriam arrancados sema mão de Deus”, celebrou.

O tom de pregação também marcou o discurso de Bolsonaro. Ele começou citando uma passagem bíblica: “Conhecerei a verdade, e a verdade vos libertará”. Depois agradeceu as orações de eleitores e definiu sua chegada à Presidência como “uma missão de Deus”.

Foram sinalizações claras ao eleitorado evangélico, que impulsionou sua vitória. No Ibope de sábado, ele ostentava 27 pontos de vantagem neste segmento religioso. Entre os católicos, Fernando Haddad aparecia dois pontos à frente.

Sete dias depois de ameaçar os opositores coma cadeia ou o exílio, o presidente eleito tentou se reapresentar como conciliador. No discurso lido, prometeu um governo “defensor da Constituição, da democracia e da liberdade”. “Não é a palavra vã de um homem. É um juramento a Deus”, disse.

Em outro momento, ele afagou as Forças Armadas com uma homenagem ao comandante da tropa na Guerra do Paraguai. “Não sou Caxias, mas sigo o exemplo deste grande herói brasileiro. Vamos pacificar o Brasil”, afirmou.

Antes de surgir diante das câmeras, Bolsonaro saudou os seguidores em seu ambiente favorito: as redes sociais. Mais à vontade, definiu seus eleitores como “integrantes de um grande exército que sabia para onde o Brasil estava marchando e clamava por mudanças”.

Na fala de improviso, o presidente eleito voltou a soar como o candidato em campanha. Atacou a “grande mídia”, prometeu combater o “comunismo” e acenou aos velhos companheiros do Congresso. “Todos os nossos compromissos serão cumpridos com as variadas bancadas”, disse.

A frase é uma senha de que Bolsonaro encampará as agendas dos ruralistas, da frente evangélica ed abancada da bala. O capitão construiu sua carreira no chamado baixo clero, esnobado por seguidos governos. Agora a turma vai subir a rampa do Planalto a seu lado.


Fernando Gabeira: Uma virada à direita

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. Mas dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo

A roda rodou. Já vi muitos presidentes, subindo e descendo a rampa. Um deles descendo ao fundo da terra, Tancredo. Collor chegando e saindo de nariz erguido. Lula com tantas promessas.

Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar o Plano Real.

Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora sem Guerra Fria, num contexto democrático.

Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.

Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho, apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.

O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.

Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?

Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o argumento de que normaliza a barbárie.

Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente, cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?

Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria do povo brasileiro.

Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder. Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um pouco também por filhos e netos. A sensação de continuidade ao lado da poesia são os territórios em que desafiamos a morte.

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.

O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões. Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade que se espera de um eleito.

Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais, propagandistas religiosos ocuparam as redes.

As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.

Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.

Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham. Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada, fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade, tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.

Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.

Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.

É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo, fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um pouco a gravidade de nossos problemas.

Agora, voltamos à vida real.


Fernando Limongi: Anos de chumbo

Aos derrotados cabe cobrar dos eleitos respeito às leis

"Ninguém poderia esperar que um candidato marxista venceria uma eleição pelo voto universal, secreto e burguês." Esta, a manchete do conservador "El Mercúrio" após a vitória de Salvador Allende no segundo turno da eleição presidencial chilena de 1970.

Urnas continuam a produzir resultados inesperados, difíceis de tragar para os derrotados. É da natureza da democracia: nenhuma opção pode ser descartada de antemão. O eleitor é soberano e não precisa explicar porque fez esta ou aquela escolha.

O paradoxal é que Bolsonaro foi eleito por um método pelo qual não tem o menor apreço. A sua rejeição à democracia vai além da desconfiança que nutre às urnas eletrônicas, que acredita serem programadas por petistas infiltrados no TSE e teleguiados por uma central sediada no Equador. A rejeição é mais profunda: Bolsonaro prefere um regime militar.

Em um de seus últimos programas de TV, o locutor afirmou que o governo Bolsonaro corrigiria os erros dos últimos 30 anos. Ou seja, os desacertos começaram quando os militares cederam o poder aos civis e a Constituição foi reescrita. A rejeição ao PT é parte da condenação do regime no qual o partido cresceu e chegou ao poder. Quando entrou na política, Bolsonaro queria fuzilar FHC.

Na cabeça do presidente eleito, formatada nos anos 60 do século passado, corrupção e dissolução moral seriam traços indissociáveis de regimes democráticos. O transplante do discurso da Guerra Fria para o mundo atual pediu algumas adaptações, mas o ideário do capitão continua pautado pelo "perigo vermelho". Nas suas categorias, esquerdistas não passam de vagabundos, isto é, merecem o mesmo tratamento que bandidos. Foi isto que prometeu fazer ao discursar para seus seguidores reunidos na Paulista.

Eduardo Bolsonaro, seu filho e deputado reeleito, pelo que disse em vídeo vazado, não dispensaria tratamento diverso ao Supremo Tribunal Federal, se este viesse a criar embaraços. Para os Bolsonaro, não há nada que não possa ser resolvido por cabos e sargentos armados - e isto sem querer desmerecer cabos e sargentos, apressou-se em esclarecer o deputado reeleito. Para dizer o mínimo, Eduardo Bolsonaro desaprova delicadezas e requintes próprios às relações civis. O cartão de visitas do deputado vem com os dizeres: "E aí, vai encarar?".

Os excessos verbais de domingo retrasado e o vídeo do filho custaram alguns votos a Bolsonaro, como as pesquisas do meio da semana captaram. Foi o que bastou para que o capitão adaptasse seu discurso, visando garantir a vitória. Em entrevista, pregou a conciliação, afirmando que governará para todos, que nunca lhe havia passado pela cabeça perseguir ninguém.

O episódio revela o oportunismo eleitoral do capitão. Não há razão alguma para acreditar no "Bolsonaro paz e amor" do meio da semana. Quando sincero, quando não calcula votos a ganhar, o capitão diz que vai varrer do mapa todos os que não rezam por sua cartilha. Foi isto que ensinou ao filho que, por sua vez, passou a mensagem adiante aos seus estudantes. É assim que, de acordo com o credo do presidente eleito, autoridades deveriam proceder.

No início da disputa, Bolsonaro não mostrou qualquer disposição para moderar seu discurso e fazer concessões. Entrevistado no "Roda Viva", fez questão de declarar, entre risos, sua idolatria por um torturador. Em geral, candidatos radicais não ganham eleições. Sem moderação, sem conquistar o centro, sem acordos e concessões, não se obtém a maioria dos votos. Bolsonaro não fez uma coisa nem outra e, ainda assim, venceu a eleição.

Só há uma explicação para o paradoxo: o candidato foi favorecido pelo atentado que lhe garantiu exposição na mídia sem fazer campanha. Foi um presente, uma dádiva salvadora. Bolsonaro cresceu nas pesquisas enquanto lutava pela vida em uma cama de hospital.

Foi silenciado pelas circunstâncias. Sua única esperteza foi mandar que seus colaboradores fizessem o mesmo. E, assim, operando no modo silencioso, o candidato atraiu para si todas as insatisfações e rejeições acumuladas nos últimos anos.

Bolsonaro não reviu suas posições para obter votos, apenas as escondeu. A votação expressiva obtida no primeiro turno lhe garantiu a possibilidade de se manter calado, evitando debates e o compromisso com propostas concretas.

Assim, Bolsonaro chega à Presidência porque pode jogar parado, porque pode deixar o que realmente defende debaixo do tapete. Perdeu votos quando sentiu a faixa no ombro e deixou de esconder o que pensa e o que pretende fazer. Não precisou fazer concessões para ganhar e não será após a vitória que encontrará razões para fazê-lo.

Não há pílula a dourar. O resultado da eleição é o anúncio de um desastre. Assumirá a Presidência um cidadão sem qualquer preparo para o exercício do cargo e que chancela em gênero, número e grau as palavras que seu filho pronunciou no vídeo vazado. Este, o presidente escolhido para exercer o poder por quatro anos.

O pequeno grupo que o cerca não oferece garantias de que a sobriedade e a ponderação prevalecerão. Pouco se sabe sobre seus auxiliares e menos ainda das propostas concretas que defendem. A revoada dos usuais amigos dos amigos em busca de influência junto ao governo já começou. Está aberta a temporada de captura da máquina pública pelos interesses organizados.

Quanto à economia, sabe-se apenas que o candidato contratou um guru para conquistar a simpatia do mercado. Gurus, como também se sabe, vendem terrenos no paraíso para conquistar seguidores. Para gerir a economia pede-se mais do que a fé nas leis de mercado e a adesão à responsabilidade fiscal.

Serão anos difíceis. A alternativa que resta aos derrotados é cobrar dos governantes eleitos serenidade e respeito às leis. Só assim, daqui a quatro anos, encontraremos urnas, e não cabos e sargentos, nas seções eleitorais.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Ascânio Seleme: O brasileiro pode contar com a imprensa

Cada movimento do novo presidente será divulgado, analisado e criticado pelos veículos brasileiros

Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente pela vontade da maioria da população brasileira e ganhou o direito de exercer o mandato que lhe foi conferido, sem qualquer questionamento político ou legal. A partir de agora deve ser chamado de presidente eleito, e do dia 1º de janeiro até o fim do seu mandato será o presidente do Brasil. Desde já, todos os seus passos e suas decisões deverão ser acompanhados, debatidos e virados do avesso pelos mesmos cidadãos que o elegeram e pelos que votaram em seu adversário. Para isso, os brasileiros podem contar coma imprensa de seu país. Bolso na rose rá vigiado e fiscalizado.

Esse é o papel dos jornalistas e do jornalismo. Desde a redemocratização, coma eleição de Tancredo/ Sarney, todos os presidentes do Brasil foram objeto de fiscalização permanente da imprensa. Nenhum deles, nem mesmo o primeiro eleito pelo voto direto, foi poupado pelo olhar crítico e independente dos jornalistas. Dois presidentes brasileiros foram afastados de suas funções pelo Congresso Nacional. Ambos foram objeto do escrutínio sem trégua da imprensa. Não será diferente com Bolsonaro. Cada movimento seu será divulgado, analisado e criticado pelos veículos brasileiros.

O Brasil assiste ao início da jornada de poder do presidente eleito coma incerteza que ele mesmo criou durante a campanha e até antes, ao longo dos seus múltiplos mandatos de deputado federal. Uma pesquisa do Datafolha, divulgada no sábado, mostra que a agenda dos brasileiros nem sempre se assemelha à de Bolsonaro. Se apoiam o combate mais rigoroso ao crime, querem (55%) que a venda de armas seja proibida. Por outro lado, afirmam (74%) que a homossexualidade deve ser aceita por todos e defendem (59%) salários iguais para homens e mulheres nas mesmas funções.

Mais do que isso, o brasileiro preza a sua democracia. Para 69%, é a melhor forma de governo. Apenas 13% disseram ao Datafolha, no dia 5 de outubro, que ditadura é melhor. Como o presidente eleito já disse que apoia a ditadura, é importante saber que os brasileiros, inclusive a maioria dos que votaram nele, pensam de maneira distinta. E quem afinal manda no país são os seus cidadãos. Ao lado dos cidadãos é que estará a imprensa.

Esse alinhamento natural não significa que jornalistas serão oposição ao presidente eleito. Claro que não. Este não é o papel da imprensa, quem faz oposição são partidos políticos. E oposição não faltará a Bolsonaro, embora esteja claro que ele vai conseguir fazer uma maioria parlamentar para governar. O papel da imprensa é informar. Quem cria os fatos que serão divulgados e criticados são os mandatários políticos. Esses merecem respeito, mas com eles não pode haver alinhamento.


BBC Brasil: Bolsonaro presidente - A surpreendente trajetória de político do baixo clero ao Planalto

Deputado Federal há 28 anos, Bolsonaro sempre foi do chamado "baixo clero" do Congresso Nacional - não tinha papel de liderança nos partidos políticos a que pertenceu, nunca assumiu cargos no governo federal ou posições de destaque na Câmara dos Deputados.

Mas se tornou nacionalmente conhecido ao longo dos anos por declarações polêmicas, principalmente sobre a comunidade LGBT e a ditadura militar. Até o início campanha, analistas políticos afirmavam que a candidatura do deputado federal poderia se "desidratar", já que ele teria direito a apenas 8 segundos diários de propaganda eleitoral na TV.

No entanto, o capitão reformado cresceu de forma continuada nas pesquisas, se consolidando no primeiro lugar já no primeiro turno. A BBC News Brasil reuniu os principais fatos na trajetória do candidato do PSL rumo ao resultado da eleição deste domingo.

Entre 2015 e 2016 - 'Vou ser candidato a presidente gostem ou não gostem'

Bolsonaro fala publicamente na possibilidade de ser candidato à Presidência da República há cerca de três anos. Em abril de 2015, ele se desfiliou do PP já com a intenção de seguir o "sonho" de ser presidente.

"Foi um pedido verbal, mas oficial. A gente começa aí um processo de separação, que espero que seja amigável. Tenho um sonho para 2018 de disputar o cargo de senador ou presidente da República. No partido onde estou, dificilmente serei candidato sequer para o Senado. O que sinto é que eles querem uma opção diferente para 2018", afirmou, na ocasião.

Bolsonaro cresceu fortemente em intenção de voto na semana que antecedeu à eleição
© MAURO PIMENTEL/AFP Bolsonaro cresceu fortemente em intenção de voto na semana que antecedeu à eleição
Em novembro de 2016, ele reforçou que disputaria a eleição presidencial "quer gostem ou não", ao prestar depoimento na condição de testemunha num processo aberto pelo Conselho de Ética da Câmara para apurar se Jean Wyllys (PSOL-RJ) quebrou o decoro parlamentar ao cuspir em Bolsonaro em 2015.

Na época, o ex-capitão do Exército estava filiado ao Partido Social Cristão (PSC) - sigla conhecida por reunir líderes evangélicos -, e havia divergências dentro do partido sobre uma eventual candidatura dele.

"Há dois anos me preparo para que o partido, se assim entender, (permita minha candidatura) de acordo com minha aceitação popular. Eu estarei pronto para enfrentar uma campanha presidencial, o que não é fácil", disse.

Agosto de 2017- Primeiras pesquisas mostravam Bolsonaro atrás de Lula

Em agosto do ano passado, quando as primeiras pesquisas de intenção de voto começaram a ser divulgadas, Bolsonaro já aparecia em posição competitiva. Na ocasião, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda era tido como o candidato do PT - ele ainda não havia sido condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em segunda instância, o que acabou ocorrendo em janeiro de 2018.

Uma pesquisa do Datafolha divulgada no dia 30 de agosto de 2017 pelo jornal "Folha de S.Paulo" mostrava Lula em primeiro lugar com 36% das intenções de voto, seguido por Bolsonaro, com 16%, e por Marina Silva (Rede), com 14%.

Março de 2018 - Filiação ao PSL e lançamento da pré-candidatura

Após divergências com o PSC e sem ver espaço para ser candidato por esse partido, Bolsonaro migrou para o Partido Social Liberal (PSL) em 7 de março deste ano.

Ele aproveitou a ocasião para lançar a pré-candidatura à Presidência com um discurso focado em defender a revisão da Lei do Desarmamento. O evento contou com gritos de "mito, mito, mito", orações e Hino Nacional.

Abril de 2018 - Prisão de Lula e tomada da dianteira nas pesquisas por Bolsonaro

Lula foi preso em abril, mas, mesmo assim, o PT registrou a candidatura do ex-presidente no TSE
© MIGUEL SCHINCARIOL/AFP Lula foi preso em abril, mas, mesmo assim, o PT registrou a candidatura do ex-presidente no TSE
Em abril, Lula foi preso, três dias depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) negar habeas corpus da defesa que pedia que ele não pudesse ser detido até uma condenação definitiva - o chamado trânsito em julgado. Apesar da prisão, o PT decidiu insistir na candidatura de Lula até o prazo final dado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a substituição do nome.

Bolsonaro passou à dianteira nas pesquisas de intenção de voto nos cenários em que Fernando Haddad aparecia como substituto do ex-presidente na chapa do PT. Pesquisa Ibope divulgada em 20 de junho mostrava o candidato do PSL com 17% das intenções de voto, seguido por Marina Silva (13%), Ciro (8%) e Alckmin (6%). Haddad, até então vice na chapa de Lula, aparecia só com 2%.

14 de agosto de 2018 - Bolsonaro registra a candidatura

Em 14 de agosto, Bolsonaro registrou a sua candidatura no TSE e declarou um patrimônio de R$ 2,3 milhões (todos os candidatos precisam declarar patrimônio à Justiça Eleitoral).

No dia seguinte, o PT registrou a candidatura de Lula, embora o petista estivesse preso e impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa.

6 de setembro - Bolsonaro leva facada em comício em Juiz de Fora (MG)

Um dos episódios mais marcantes de toda a campanha ocorreria no dia 6 de setembro na cidade mineira de Juiz de Fora. Bolsonaro estava nos ombros de apoiadores, durante um comício, quando levou uma facada na barriga.

Bolsonaro após ataque: Bolsonaro sofreu ataque a faca e ficou afastado da campanha
© BBC Bolsonaro sofreu ataque a faca e ficou afastado da campanha
O autor do atentado, Adelio Bispo de Oliveira, 40, foi preso. Bolsonaro chegou a perder 40% do sangue do corpo - cerca de 2,5 litros - e passou por duas cirurgias.

Com o episódio, ele se afastou das campanhas nas ruas mas, ao mesmo tempo, ganhou ampla visibilidade na mídia, inclusive no horário nobre de televisão.

Os adversários dele, por sua vez, decidiram mudar a estratégia de campanha, moderando o tom das críticas ao candidato do PSL nas duas primeiras semanas que se seguiram ao atentado. A lógica era a de que poderia não pegar bem fazer ataques pesados a alguém hospitalizado.

10 de setembro - Substituição de Lula por Haddad como candidato do PT

Após Lula ser barrado pela Justiça Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa, o PT decidiu substituir a candidatura do ex-presidente pelo vice na chapa, Fernando Haddad. Nos dias que se seguiram, começou a ficar mais evidente que a reta final da campanha poderia se centralizar numa disputa entre Bolsonaro e o ex-prefeito de São Paulo.

O candidato do PSL passou a apresentar um crescimento constante nas pesquisas, se consolidando no primeiro lugar em intenções de voto. Haddad também cresceu fortemente, se beneficiando da transferência de votos de Lula e passando a figurar em segundo lugar. Mas os dois também carregavam altas taxas de rejeição - acima de 40%.

A campanha eleitoral assumiu, então, o seu maior grau de polarização, com a possibilidade de uma disputa entre anti-petistas e anti-Bolsonaro num segundo turno.

30 de setembro - Mulheres vão às ruas em campanha #EleNão

Uma semana antes do primeiro turno da eleição, milhões de mulheres tomaram as ruas de 114 cidades do Brasil para protestar contra Bolsonaro, como parte do movimento #EleNão, que se espalhou nas redes sociais.

Conhecido por declarações machistas, como quando disse, em 2016, que não empregaria uma mulher com o mesmo salário que um homem, o candidato do PSL alcançou, ao longo da campanha, patamar de 50% de rejeição entre as eleitoras.

Em reação ao #EleNão, mulheres apoiadoras de Bolsonaro organizaram atos em 16 cidades.

5 de outubro - Bolsonaro 'boicota' debate da TV Globo dando entrevista para a Record

Desde que levou a facada, Bolsonaro precisou passar semanas internado e deixou de participar de debates televisivos.

Para especialistas, o fato de não ter precisado enfrentar perguntas difíceis, no embate ao vivo com os demais candidatos, pode ter beneficiado o candidato do PSL, que passou a se dedicar à divulgação de vídeos nas redes sociais.

No último debate televisivo, marcado para ocorrer dois dias antes do primeiro turno, Bolsonaro já havia sido liberado do hospital e se recuperava em casa. Mas afirmou que não participaria "por recomendação médica".

No entanto, no mesmo dia e horário do debate, quando todos os outros candidatos se dedicavam a responder às perguntas uns dos outros, a TV Record exibiu uma entrevista exclusiva com Bolsonaro, gravada na casa no deputado do PSL.

Nos 30 minutos de vídeo, o candidato atacou seus adversários, especialmente Haddad, a quem chamou de "fantoche de Lula", além de criticar a condução das investigações sobre o atentado que sofreu e dizer que não tem responsabilidade sobre a divulgação de fake news por seus apoiadores.

6 de outubro - A última pesquisa e a chance de vitória em primeiro turno

Na semana que antecedeu o primeiro turno das votações, Bolsonaro cresceu fortemente nas pesquisas a ponto de alcançar 40% dos votos válidos, seguido por Haddad, com 25%, e Ciro, com 15%.

A alta gerou, nas redes sociais, um movimento em prol de "voto útil" do eleitor "antipetista" por uma vitória de Bolsonaro no primeiro turno.

7 de outubro - Bolsonaro vota no Rio de Janeiro

© MAURO PIMENTEL/AFP Bolsonaro votou em colégio militar, no Rio de Janeiro. Ao sair da seção eleitoral disse: 'Acaba hoje'. Bolsonaro votou às 8:55, na Escola Municipal Rosa da Fonseca, dentro da Vila Militar, em Deodoro, na Zona Oeste do Rio. Ao ser perguntado por jornalistas sobre sua expectativa, ele afirmou: "Acaba hoje".À noite, foi anunciado o resultado do primeiro turno: Bolsonaro recebeu 46,03% dos votos e Haddad, 29,28%. Em transmissão ao vivo para o Facebook, o candidato do PSL comemorou o resultado, mas colocou em dúvida as urnas eletrônicas."Vamos junto ao TSE exigir soluções para isso que aconteceu agora, e não foi pouca coisa, foi muita coisa. Tenha certeza: se esses problemas não tivessem ocorrido, e tivéssemos confiança no voto eletrônico, já teríamos o nome do futuro presidente da República decidido hoje."

9 de outubro em diante - Denúncias de agressões no segundo turno

Logo depois do primeiro turno, começaram a proliferar relatos de agressões relacionadas ao discurso eleitoral. Um dos casos mais dramáticos foi registrado em Salvador: o assassinato do mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos. Ele foi morto a facadas após uma discussão política algumas horas depois da eleição de domingo.

Testemunhas disseram que o desentendimento começou quando o capoeirista revelou apoio ao candidato do PT. O agressor, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, teria defendido Bolsonaro.

O período eleitoral também foi marcado por casos de agressões a jornalistas. Foram 137 em 2018, segundo estimativas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) - sendo 75 ataques digitais e 62 físicos, e a maioria deles ligados à cobertura eleitoral.

Moa do Katendê: Mestre de capoeira, compositor e dançarino baiano Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos, foi morto a facadas
© BRUNO FIGUEIREDO/ÁREA DE SERVIÇO Mestre de capoeira, compositor e dançarino baiano Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos, foi morto a facadas
Ao ser questionado sobre atos de violência nas ruas, Bolsonaro disse que não tem controle sobre seus apoiadores. "O cara lá que tem uma camisa minha e comete um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?", questionou.

"Eu lamento. Peço ao pessoal que não pratique isso, mas eu não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam."

No dia 12 de outubro, ele foi mais enfático em condenar as agressões. "Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar", afirmou, em sua conta no Twitter.

10 de outubro - Bolsonaro anuncia que não vai participar de debates

Dois dias após o primeiro turno da eleição, Bolsonaro afirmou que não participaria do debate organizado por Folha de S.Paulo, UOL e SBT, marcado para o dia 17 de outubro. Na época, ele alegou que a equipe médica recomendou "mais alguns dias de repouso".

Pouco mais de uma semana depois, o presidente em exercício do PSL, Gustavo Bebianno, declarou que Bolsonaro não participaria de nenhum debate televisivo com Haddad no segundo turno e nem viajaria para atos de campanha.

Fernando Haddad: Haddad explorou ausência de Bolsonaro nos debates durante a campanha do segundo turno
© FERNANDO BIZERRA/EPA Haddad explorou ausência de Bolsonaro nos debates durante a campanha do segundo turno
A justificativa dada foi o desconforto causado pela bolsa de colostomia presa ao seu corpo desde que levou a facada, além de questões de segurança. Em entrevista à TV Globo, Bolsonaro afirmou considerar os debates algo "secundário".

"Eu poderia me submeter a uma aventura, mas poderia ter uma consequência péssima para minha saúde. Levando-se em conta a restrição, a minha saúde e a gravidade do que ocorreu, a tendência é eu não participar de debates. Não posso abusar nesse momento. Questão de debate é secundário. Da minha parte, até gostaria porque não teria dificuldade de debater com preposto com um poste do Lula."

18 de outubro - Reportagem diz que empresas pagavam por disparos contra o PT no WhatsApp

Reportagem da Folha de S.Paulo publicada no dia 18 de outubro afirmou que empresas que apoiam Bolsonaro estavam comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada.

Bolsonaro se pronunciou dizendo que "não tem nada a ver com isso". E passou a criticar fortemente a Folha de S.Paulo, inclusive prometendo cortar, quando eleito, publicidade do governo federal no jornal. "A Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo", disse, em transmissão ao vivo.

A pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a Polícia Federal abriu uma investigação sobre a compra de pacotes de disparos no WhatsApp.

20 de outubro - Filho de Bolsonaro fala em 'fechar o STF'

Eduardo Bolsonaro: Em víde gravado em julho, mas divulgado em outubro, Eduardo Bolsonaro diz que não seria difícil fechar o Supremo
© NELSON ALMEIDA/AFP Em víde gravado em julho, mas divulgado em outubro, Eduardo Bolsonaro diz que não seria difícil fechar o Supremo
Um dos acontecimentos que mais geraram repercussão durante a campanha do segundo turno foi a divulgação de imagens em que Eduardo Bolsonaro, 34 anos, um dos filhos do candidato à Presidência, afirma que bastariam um "cabo e um soldado" para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF).

Em vídeo gravado em julho, disponível na internet, Eduardo, que foi reeleito deputado federal, aparece numa sala de aula de um cursinho para interessados em ingressar na Polícia Federal, em Cascavel (PR).

Ele é perguntado por um aluno sobre o que poderia ser feito caso o STF impugnasse a candidatura ou diplomação do pai dele por fraude eleitoral. Eduardo respondeu, em tom de ameaça, que o tribunal "terá que pagar para ver o que acontece" e argumentou que dificilmente haveria reação popular se um ministro do Supremo fosse preso.

A declaração gerou forte reação entre ministros da Corte. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, afirmou que "atacar o Poder Judiciário é atacar a democracia", enquanto Celso de Mello - decano do Supremo - disse que a fala foi "inconsequente e golpista".

Jair Bolsonaro primeiro afirmou que "qualquer um que fale em fechar o Supremo precisa se consultar com um psiquiatra". Posteriormente, ele disse: "Eu já adverti o garoto, o meu filho, a responsabilidade é dele. Ele já se desculpou".

21 de outubro - Bolsonaro fala em 'faxina' e promete 'banir marginais vermelhos'

Em vídeo ao vivo transmitido durante um comício na Avenina Paulista, em São Paulo, Bolsonaro proferiu um dos discursos mais agressivos da campanha. "A faxina agora será muito mais ampla. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria", afirmou o capitão reformado.

Ele também ameaçou prender o senador Lindbergh Farias e o próprio Haddad, e afirmou que Lula irá "apodrecer na cadeia".

"Seu Lula da Silva, se você estava esperando Haddad vencer para assinar o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia. Brevemente você terá Lindbergh Farias para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad vai chegar aí também. Não será para visitá-lo não, será para ficar alguns anos ao seu lado", disse. "Será uma limpeza nunca vista na história", completou.

27 de outubro - Última pesquisa Datafolha aponta vitória de Bolsonaro

No sábado, foi divulgada a última pesquisa de intenção de voto do Datafolha dessas eleições. Bolsonaro aparecia com 55% das intenções de votos válidos, uma vantagem de dez pontos percentuais em relação a Haddad (45%).

Ao longo das semanas que antecederam a eleição, a vantagem de Bolsonaro sobre Haddad, que chegou a ser de 18 pontos percentuais, diminuiu. Mas não o suficiente para que o petista chegasse perto de efetivamente ameaçar a liderança do candidato do PSL.

28 de outubro - Bolsonaro vota no Rio de Janeiro

Bolsonaro votou no Rio de Janeiro, na manhã deste domingo
© ANTONIO LACERDA/EPA Bolsonaro votou no Rio de Janeiro, na manhã deste domingo
Com esquema reforçado de segurança e vestindo um colete a prova de balas, Bolsonaro votou às 9h17, acompanhado da esposa, na Escola Municipal Rosa da Fonseca, na Vila Militar, em Deodoro, na Zona Oeste do Rio.

"Pelo que eu vi nas ruas nos últimos meses, é vitória", disse ele, ao ser questionado sobre a expectativa para o resultado.


Samuel Pessôa: A maré da direita

A política está funcionando; se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas

No início, era o antipetismo. Essa coisa meio amorfa. Tomou a rua. Fiquei surpreso com o tamanho da onda.

No domingo passado (21), o capitão falou. À la Trump, disse um monte de impropérios. Condenou a diferença e prometeu destruir os opositores. Não falou nada muito diferente do que muito radical petista fala em convenção do partido.

Mas há conteúdo positivo, propositivo, no voto para o tenente que se aposentou como capitão.

Há uma genuína agenda conservadora em gestação. Reforço do direito de propriedade com a criminalização das invasões —seja de imóveis urbanos ou propriedade rural—, empregadas como mecanismo de pressão contra nossas desigualdades históricas.

Redução do gasto público com as organizações não governamentais e, penso eu, corte em benefícios da Lei Rouanet. Provavelmente cobrança de mensalidade para universidades públicas de quem pode pagar.

Recrudescimento das penas para crimes, flexibilização da maioridade penal, maior liberalidade no porte de armas e elevação das garantias de proteção à atuação das polícias no engajamento com criminosos.

Total reforço à Lava Jato. Possivelmente serão retomadas as Dez Medidas Contra a Corrupção do Ministério Público.

Aparentemente, esse será o governo de direita por aqui. Dado que, para os petistas, FHC era neoliberal e centro-direita, faltarão graus no transferidor do espectro político para posicionar Bolsonaro.

Os intelectuais, artistas e tantos outros terão que aprender que há legitimidade nessas pautas da direita. Elas serão tratadas no Congresso Nacional, e o STF, como instância contramajoritária, vai se pronunciar e terá poder de veto sempre que novas legislações ferirem disposições constitucionais.

A fala do tenente aposentado como capitão, porém, nada disse sobre como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 300 bilhões.

Se Bolsonaro tiver sabedoria, tocará a agenda econômica o mais rapidamente que puder.

Tapar o buraco fiscal é tarefa do Congresso. No entanto, a tão alardeada renovação foi qualitativamente muito ruim. Diversos parlamentares que conheciam a natureza do problema e as entranhas do sistema político não foram reeleitos.

Não poderemos contar com a experiência desses e teremos de lidar com uma leva de novos atores que deverão se adaptar ao seu novo ambiente e destrinchar seus mecanismos de funcionamento, em um momento em que não há tempo.

Sim, o presidente que for eleito terá que propor, coordenar e liderar as ações, mas o desenho final do ajuste fiscal será construído invariavelmente pelo Congresso.

O risco é Bolsonaro inverter as pautas. Em um afã de agradar a seu eleitor, tocar a pauta da segurança e dos direitos de propriedade antes da pauta econômica. A segurança não vivenciará uma melhora repentina, o crescimento não virá a tempo, o país não sairá do imobilismo e, inevitável, a popularidade cairá. Simultaneamente, terá que administrar inúmeros conflitos com o Supremo nessas pautas.

Há histeria no ar com a possibilidade de um golpe clássico ou com a deterioração da democracia com Bolsonaro.

Não sei se a histeria é sincera ou segue de certa dificuldade da esquerda em conviver com pautas democraticamente escolhidas que sejam frontalmente contrárias aos seus pontos de vista.

A política está funcionando. Quando e se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas. Hoje é o momento da política.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


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