Prefeitura

Merval Pereira: Sem noção

O ditado latino “Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir” é a melhor explicação para o que acontece entre nós nos dias recentes. A começar pela festa de Neymar para 500 (150?) convidados no réveillon em Mangaratiba. Um estudo publicado no Journal of the American Association for the Advancement of Science no início deste mês, analisado no LinkedIn pelo economista e especialista em risco Paulo Dalla Nora Macedo, mostra que uma reunião internacional de 175 executivos da farmacêutica Biogen nos dias 26 e 27 de fevereiro em Boston foi responsável por nada menos que uma média de 245 mil casos de coronavírus confirmados nos Estados Unidos.

Este é um dos maiores estudos de como o coronavírus se espalha no decorrer do tempo, baseado no rastreamento dos casos e suas cepas genéticas únicas. O potencial de disseminação da doença aumenta no momento em que os índices de infecção e mortalidade estão em alta no Brasil. Teria condições de fazer essa festa na França? O insucesso subiu à cabeça de Neymar.

O conceito grego da húbris está ligado a essa falta de comedimento de figuras públicas brasileiras. A confiança excessiva leva, por exemplo, o presidente Bolsonaro a ter a língua solta, afirmando que não “dá bola" para pressões, mesmo que sejam pela vida dos brasileiros que, ao contrário de cerca de habitantes de 40 países, não têm a mínima ideia de quando poderão ser vacinados.

Como se estivesse numa negociação comercial, diz que o Brasil é “um mercado enorme” e, por isso, os laboratórios é que deveriam se antecipar ao pedido de registro na Anvisa. Mercado de vidas ? Quem deveria se antecipar não era o governo, como fizeram inúmeros deles ao redor do mundo, reservando as doses de vacinas necessárias à imunização de seus cidadãos?

Ao que tudo indica, os deuses já enlouqueceram Bolsonaro, que pode estar a caminho da destruição por pensamentos, palavras e obras. Para sorte dele, seu mais ostensivo adversário na eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo João Dória perdeu o senso depois de ter lidado muito bem com a vacina Coronavac, que está sendo produzida no Instituto Butantan com material da fábrica chinesa Sinovac.

Colocando-se como contraponto a um tresloucado Bolsonaro, que acha que ser macho é enfrentar a morte como se pudéssemos vencê-la sem a ajuda da vacina, o governador de São Paulo, apesar de abusar às vezes da politicagem, parecia ser a imposição do bom-senso no debate da vacina.

Até que, tendo vencido a eleição para a prefeitura de São Paulo com o candidato do PSDB Bruno Covas, resolveu que poderia tirar férias em Miami, ao mesmo tempo em que decretou a bandeira vermelha no estado que dirige. Mesmo que tenha voltado 24 horas depois, devido a seu vice ter sido infectado pela COVID-19, e tenha pedido desculpas públicas, ficou a imagem que o acompanhará até a eleição presidencial: a arrogância, a autoconfiança em excesso, de quem se considera acima dos demais.

A dificuldade que Dória claramente tem em entrar no nordeste, que poderia ter começado a ser superada com as doses de vacina que vários prefeitos e governadores da região querem, será aumentada com o apelido que Bolsonaro lhe pespegou: “calcinha apertada” ou “calça encravada”. São daqueles apelidos que políticos populistas como Bolsonaro sabem que pegam no povo, especialmente no lumpesinato, que o levou ao máximo de sua popularidade com o auxílio emergencial.

São Paulo, que é a principal base dos tucanos há anos, pode levar um candidato a presidente a ter uma diferença de quase 7 milhões de votos a favor, como aconteceu com o mineiro Aécio Neves em 2014. Mas pode também derrotá-lo se o domínio partidário de três décadas não se refletir em votos.

A campanha vencedora de Bruno Covas teve que esconder Dória porque ele não é bem visto na capital. Agora, talvez o próprio Covas, e Doria por tabela, sofram com outras medidas impopulares adotadas logo após a vitória, com a convicção de quem pode tudo: o aumento de seu salário em 47%, e o fim da passagem gratuita para idosos até 60 anos.

Outras seis capitais aumentaram o salário dos novos prefeitos, o que não justifica a falta de noção de Bruno Covas. No Rio, o prefeito Eduardo Paes receberia um aumento de 72% proposto pelo vereador Cesar Maia. A reação foi tão grande que a proposta foi retirada. Além do mais, a legislação municipal restringe o salário do prefeito a 81,2% do teto constitucional. Os deuses estão tendo muito trabalho no Brasil ultimamente. E os tribunais superiores ainda pedem prioridade para a vacinação.


Marco Aurélio Nogueira: A cidade em busca de regulação democrática

Doria precisa se concentrar em trabalhar em uma cidade de todos e para todos, que produza o máximo de igualdade possível, estruture redes permanentes de solidariedade e cooperação, se liberte da tirania dos automóveis e saiba criar e valorizar o belo, não só o funcional

O aniversário da cidade de São Paulo coincide, em 2017, com o início de uma nova gestão na Prefeitura. João Doria passará a mostrar aos paulistanos como pretende honrar os votos que recebeu maciçamente em outubro do ano passado.

É uma boa hora, portanto, para que se ponham as cartas na mesa. Tanto as do novo gestor como as dos cidadãos. A quantidade de problemas que a cidade enfrenta é tão grande que só se poderá chegar a uma equação razoável se Estado e sociedade civil cooperarem entre si, sem prejuízo de diferenças de opinião, responsabilidades institucionais e choques de interesses.

Doria chegou à Prefeitura apoiado num núcleo básico de proposições e em algumas expressões-chave: agilidade, eficiência, austeridade, redução do peso da máquina estatal, apoio à maior presença da iniciativa privada na oferta de serviços, tudo articulado por um protagonista principal, o “prefeito trabalhador”.

Pode ser que funcione, mas também pode ser que tudo se converta em jogo de cena e a cidade continue a mastigar suas dificuldades e fique mais exposta à competição econômica desenfreada. Em seus primeiros dias o novo prefeito mostrou apego a factoides e à hiperatividade. Resta ver como será a sequência, que rotina prevalecerá e quais de seus projetos serão de fato executados.

São Paulo é uma cidade de oportunidades, cujos dinamismo e gigantismo assombram e desafiam. Hoje a expansão dos problemas engole o cotidiano dos paulistanos. Há reclamações sobre tudo e ninguém, a rigor, se considera propriamente feliz ou satisfeito: o trânsito, a violência, a insegurança, as horas gastas nos deslocamentos – que sequestram o precioso tempo do lazer e da fruição cultural e exacerbam a exploração –, a exclusão, o desemprego, as periferias abandonadas, o centro descuidado. Na linguagem da vida cotidiana, o estresse anda pesando mais que a convivência, a leveza e a alegria.

Por isso, no léxico da cidade, as palavras fortes deveriam ser regulação democrática e humanização: uma cidade de todos e para todos, que produza o máximo de igualdade possível, estruture redes permanentes de solidariedade e cooperação, se liberte da tirania dos automóveis, saiba criar e valorizar o belo, não só o funcional, como diria um de seus grandes arquitetos, Vilanova Artigas. Uma polis efetivamente urbana, com o perdão da redundância. São Paulo precisa mais disso que de dinamismo e agilidade, ainda que os termos não se excluam.

A regulação democrática deve ser vista em sua dupla dimensão. Há a regulação estatal, a ser feita mediante leis, projetos e boas políticas públicas. Ela se destina a conter excessos, crimes e desigualdades, a prover regras e serviços, a fazer com que a lei prevaleça com base em direitos e justiça universal. E há a regulação dos próprios cidadãos, que se manifesta mediante formas variadas de participação e interação comunicativa, apoiando-se decisivamente na educação cívica da população. Ela se destina a controlar o poder e a direcioná-lo conforme os interesses coletivos e o bem-estar de todos.

Não há paulistano, por exemplo, que não se ressinta da falta de silêncio. O barulho excessivo é onipresente, produzido por fontes técnicas (motores) e por maus hábitos cívicos.

Os cidadãos têm pouco que fazer quanto aos motores, a não ser denunciar os abusos e exigir que a Prefeitura fiscalize mais e restrinja os barulhentos, exigindo silenciadores nas empresas com sistemas de refrigeração, impondo a regulagem dos ônibus, difundindo o uso de isolamento acústico, multando as motos turbinadas, os escapamentos abertos e os caminhões apocalípticos, que roncam dia e noite.

Mas os cidadãos, além de denunciar e fiscalizar os “ruídos do progresso”, podem agir contra os barulhos desnecessários, os que produzimos sem perceber ou sem levar em conta os outros. A festa do vizinho incomoda muito quem dela não participa. A música ao vivo do bar ao lado é bacana, mas depois das 22 horas se torna pura tortura para quem não está lá. Um cãozinho largado na janela do apartamento late incessantemente, incomodando moradores no raio de um quarteirão.

Obras são inevitáveis. A regulação estatal deve garantir que se cumpram os horários. A regulação cívica não só deve controlar e fiscalizar, como pode ajudar a que se atenue o ruído causado por reparos domésticos. Não há como impedir que motos e automóveis circulem, mas pode-se atuar para diminuir os estragos que causam, seja em termos de poluição (do ar e sonora) ou de tráfego.

Não são coisas irrelevantes. Ao se avolumarem, causam mal-estar, impedem o descanso, o lazer e as atividades de quem trabalha em casa. Provocam a sensação de que se vive numa selva submetida a comportamentos predatórios e indiferentes ao conjunto das almas viventes. A cacofonia dos sons impedindo que a cidade seja efetivamente falante, como gosta de dizer outro de seus gigantes, Paulo Mendes da Rocha.

Não há nada – o desenvolvimento, a prestação de serviços, a liberdade, o empreendedorismo, a revitalização comercial – que possa ser usado para justificar os excessos em termos de agressividade, de privatização do espaço público, da falta de acessibilidade, da má prestação de serviços, do descuido com calçadas e equipamentos coletivos.

Se o novo prefeito quiser mesmo marcar sua passagem pelo cargo, deveria olhar com atenção para o que se esconde por trás da cidade frenética e dinâmica e valorizar a cidade do tempo livre, do descanso, do convívio, da privacidade, da comunicação, da política com p maiúsculo. Depende dele, mas não só dele, pôr em curso ações que humanizem São Paulo e a convertam num local de menos estresse e mais civilidade, mais eficiência e produtividade, mas, sobretudo, mais regulação, beleza e urbanidade.

A cidade agradeceria. Os cidadãos que nela vivem, mais ainda.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da UNESP


Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-cidade-em-busca-de-regulacao-democratica,70001636856