povos

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ministério da Saúde aponta falhas no atendimento aos Yanomami

Agência Brasil*

Estruturas de atendimento em condições precárias, falta de profissionais e uma desassistência generalizada. Essas são as principais conclusões de um relatório do Ministério da Saúde sobre a situação da saúde na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima.

A população da etnia vive uma crise humanitária grave. Afetados pela presença do garimpo ilegal em suas terras, os indígenas dessa região convivem com destruição ambiental, contaminação da água, propagação de doenças e violência. A situação é histórica, mas se agravou nos últimos quatro anos.

A equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que é vinculada ao Ministério da Saúde, levantou as informações do relatório entre os dias 15 e 25 de janeiro deste ano. No dia 20 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), responsável por coordenar as medidas para resolver a crise.

A TI Yanomami, a maior do Brasil em extensão territorial, tem uma população de 30,5 mil indígenas, sendo pelo menos 5,6 mil crianças menores de 5 anos. Ao todo, há 68 polos base para atendimento primário em saúde, mas a situação dessas unidades é precária.

"De fato, temos uma situação de muita precariedade na nossa infraestrutura e, a partir desse plano, estaremos realizando todas as melhorias, para além do orçamento que a Sesai já tem. Há uma decisão da Presidência da República, do Ministério da Saúde, de conseguir uma dotação orçamentária específica para mitigar e para resolver essas situações aqui no território Yanomami", afirmou o titular da Sesai, Ricardo Weibe Tapeba, em entrevista coletiva na tarde de ontem (7). Ele está em Boa Vista acompanhando as ações de enfrentamento à crise.

A equipe que fez o levantamento para o relatório começou investigando a denúncia de três óbitos de crianças, que ocorreram entre 24 e 27 de dezembro do ano passado. O documento destaca que, na ocasião, chegaram a ser abertos 17 chamados aeromédicos para casos graves que exigiam transporte imediato. Já em janeiro, a equipe da missão exploratória constatou pelo menos dez remoções por dia, sendo que 23 crianças foram resgatadas de uma só vez em uma delas.

Somente em janeiro, de acordo com o COE, foram efetuadas 223 remoções, sendo 111 deslocamentos dentro do território e 112 para Boa Vista. Segundo as equipes locais, os principais agravos de saúde na região são de malária, pneumonia, desnutrição e acidente com animais peçonhentos.

Hoje à tarde, os ministros da Defesa, José Mucio, e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, desembarcam na Base Aérea de Boa Vista. Eles vão cumprir uma série de agendas no estado até amanhã. Na primeira parte da viagem, eles visitam a Base da Operação Acolhida, que recebe os imigrantes venezuelanos, incluindo visita ao posto de recepção, ao Centro de Coordenação de Interiorização e aos abrigos.

Em seguida, eles farão uma vistoria na Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai), também na capital. Já na quinta-feira (9), ambos embarcam para uma visita ao polo de Surucuru, que é um dos centro de referência no território. O local fica a cerca de uma hora e meia de voo da capital do estado. Eles retornam de lá no mesmo dia e voltam a Brasília.

Ameaças

Outro ponto destacado no relatório é a situação de insegurança dentro do território, por causa da presença de garimpeiros. Há pelo menos quatro polos de atendimento fechados na região de Surucucu e três em outras localidades, devido a graves ameaças. Para se ter uma ideia, um desses polos chegou a ser reformado, mas não pôde ser reaberto. O governo federal estuda incluir lideranças indígenas Yanomami no serviço de proteção de defensores de direitos humanos.  

Outro fator que dificultou o atendimento às pessoas na região foi a falta de insumos, em especial, de medicamentos. As remoções de urgências necessitam de insumos como carrinho de parada, oxigênio medicinal em cilindro pequeno, desfibrilador automático externo (DEA), suporte de soro, mas nada disso estava à disposição da equipe no momento do trabalho de campo.

O secretário especial da saúde indígena criticou ainda o que chamou de aparelhamento político no serviço público de assistência à saúde do povo Yanomami. Segundo ele, uma auditoria realizada pelo próprio Ministério da Saúde no DSEI Yanomami já identificou irregularidades em contratos da unidade, e a Polícia Federal ainda investiga o envolvimento de agentes políticos em conluio com garimpeiros.

Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Terra Indígena Yanomami | Foto: Leonardo Prado/PGR

É urgente eliminar todo o garimpo ilegal da Terra Indígena Yanomami!

WWF-Brasil*

O Brasil e o mundo vêm assistindo estarrecidos à tragédia humanitária e ambiental que mais uma vez assola o povo Yanomami. Assim como aconteceu nos estertores da ditadura militar, o território está novamente tomado por garimpeiros ilegais, financiados pelo crime organizado e estimulados pelas medidas tomadas pelo governo Bolsonaro, que fragilizou a fiscalização ambiental, desestruturou o sistema de atendimento à saúde e em mais de uma ocasião recebeu garimpeiros ilegais, prometendo legalizar a atividade e retirar qualquer tipo de obstáculo para que ela pudesse se expandir livremente. Como resultado, a área destruída pelo garimpo triplicou entre finais de 2018 e de 2022.

Embora a situação calamitosa já viesse sendo amplamente denunciada pelas organizações Yanomami e suas parceiras desde pelo menos 2020, é apenas agora, com a mudança no Governo Federal, que o tamanho da tragédia pode ser conhecido pela sociedade, dado que durante o regime Bolsonaro todo tipo de obstáculo foi criado para a entrada de jornalistas e organizações humanitárias - só os garimpeiros tinham acesso livre à área.

A ocupação do território pelo crime organizado deslocou famílias inteiras, que fugiam da violência. Algumas foram aliciadas para trabalhar para os invasores. Com isso, perderam seus roçados e, por consequência, suas fontes de alimento, dependendo da ajuda de outras famílias, que mal tinham para sua subsistência. Crianças e adultos mal nutridos ficaram mais vulneráveis a doenças, várias trazidas ou espalhadas pelos garimpeiros, como a malária.

O sistema de saúde entrou em colapso, seja pelo excesso de demanda, seja pela má gestão no Distrito Sanitário Indígena - há diversas denúncias de desvios no órgão, incluindo a venda de medicamentos para garimpeiros -, seja porque vários polos de atendimento simplesmente foram tomados pelos invasores.

O genocídio engendrado é tamanho que pela primeira vez, desde que se tem registros, o número de crianças com menos de 5 anos é inferior que o das faixas etárias maiores. Durante o governo Bolsonaro, pelo menos 570 crianças com menos de 5 anos morreram de doenças para as quais há tratamento.

Por isso, o WWF Brasil vem manifestar seu apoio às medidas adotadas pelo Governo Federal para combater o garimpo ilegal no território Yanomami. Foi publicado no Diário Oficial de ontem, 31/01, o Decreto Federal 11.405/23, que autoriza a adoção de diversas medidas emergenciais para o tratamento de saúde, fornecimento de alimento e água potável - muitas fontes de água estão completamente contaminadas pelo mercúrio lançado pelos garimpos - e estrangulamento da logística que viabiliza a manutenção de mais de 20 mil pessoas dentro do território, incluindo a possibilidade de derrubar aeronaves clandestinas que entrem na terra indígena.

O WWF-Brasil também parabeniza e se solidariza com outras organizações da sociedade civil, que estiveram junto aos Yanomami nos últimos quatro anos, ajudando a denunciar e a reverter os estragos causados pelo garimpo. Denúncias no Tribunal Penal Internacional e à Organização das Nações Unidas, feitas nos últimos anos, não teriam sido possíveis sem o trabalho dessas instituições.

A tentativa de genocídio dos Yanomami é certamente o episódio mais chocante da história recente do Brasil, mas os prejuízos causados pelo garimpo ilegal espalham-se por toda a Amazônia. No Pará, por exemplo, estudo realizado pelo LEpiMol (Laboratório de Epidemiologia Molecular) da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), em parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e o WWF-Brasil, mostrou alta taxa de concentração de mercúrio (Hg) no sangue de residentes de áreas urbanas e ribeirinhas da bacia do Baixo Tapajós, no Estado do Pará. No início de 2022, um dos principais destinos turísticos da região - Alter do Chão - viu suas cristalinas águas ficarem sujas e barrentas por conta da lama despejada por garimpeiros quilômetros abaixo, no rio Tapajós.

Rio acima, o povo Munduruku também sofre com as chagas do garimpo. Estudo realizado pela Fiocruz e WWF-Brasil mostra que a contaminação por mercúrio chega a 90% dos indígenas Munduruku que vivem em aldeias à margem dos rios. Resgatar a dignidade e os meios de vida dos demais povos afetados pelo garimpo ilegal é urgente para não chegarmos ao nível de impacto visto no território Yanomami.

Estancar o garimpo ilegal é urgente e esperamos que outras medidas sejam adotadas pelas autoridades competentes, incluindo o Judiciário, para atacar as raízes do problema: o comércio legalizado de ouro com origem ilegal. Duas medidas, pelo menos, são fundamentais: obrigar que as transações sejam registradas por notas fiscais eletrônicas - como acontece quando vamos comprar um pão na padaria, mas inexplicavelmente não quando se trata da venda de ouro - e revogar o princípio da boa fé do comprador estabelecido em legislação de 2003, o qual dispensa os compradores de verificarem a origem do ouro que estão adquirindo.

O tempo está correndo e o Brasil precisa acelerar para acabar com essa tragédia!

Texto publicado originalmente no portal WWF Brasil.


Foto: Agência Brasil

Lula faz reunião sobre ações emergenciais na Terra Yanomami

Agência Brasil*

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez reunião hoje (30) para tratar de ações emergenciais para proteção e auxílio aos yanomami, povo que vive uma crise sanitária que já resultou na morte de 570 crianças por desnutrição e causas evitáveis, nos últimos quatro anos.

Entre as ações previstas estão a assistência nutricional e de saúde, com alimentos adequados aos hábitos dos indígenas, e a garantia de segurança necessária para que equipes de saúde possam atuar nas aldeias. Outra prioridade é garantir rapidamente o acesso a água potável por meio de poços artesianos ou cisternas e medir a contaminação por mercúrio dos rios e nas pessoas.

A Terra Indígena (TI) Yanomami é a maior do país em extensão territorial e sofre com a invasão de garimpeiros. A contaminação da água pelo mercúrio utilizado no garimpo e o desmatamento impacta na segurança e disponibilidade de alimento nas comunidades.

“O presidente determinou que todas essas ações sejam feitas no menor prazo, para estancar a mortandade e auxiliar as famílias yanomami”, informou a Presidência, em nota.

Para combater o garimpo ilegal e outras atividades criminosas na região, devem ser adotadas iniciativas que impeçam o transporte aéreo e fluvial que abastece os grupos criminosos.

“As ações também visam impedir o acesso de pessoas não autorizadas pelo poder público à região buscando não apenas impedir atividades ilegais, mas também a disseminação de doenças”.

Participaram do encontro os ministros da Casa Civil, Rui Costa; da Justiça, Flávio Dino; da Defesa, José Mucio; dos Povos Originários, Sônia Guajajara; dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida; de Minas e Energia, Alexandre Silveira; das Relações Institucionais, Alexandre Padilha; além do comandante da Aeronáutica, Marcelo Damasceno; a presidenta da Funai, Joenia Wapichana; e o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Swedenberger Barbosa.

Embora entidades indígenas e órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) já denunciem a falta de assistência a essas comunidades há muito tempo, agora, com a posse do presidente Lula, o governo federal está implementando medidas emergenciais para socorrer os yanomami.

A última delas, nesta segunda-feira, o Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho que deverá apresentar propostas de ações a serem implementadas pelo governo federal a fim de combater a ação de organizações criminosas em terras indígenas, incluindo o garimpo ilegal.

Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Destravamento de demarcações foi uma das principais reivindicações do movimento indígena durante governo Bolsonaro - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Brasil retoma demarcações de terras indígenas após quatro anos de paralisação

Brasil de Fato*

O recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando de Sonia Guajajara (PSOL), pretende encaminhar para conclusão, nos primeiros meses de governo, processos demarcatórios de 13 terras indígenas nas regiões Norte, Nordeste, Centro Oeste e Sul. 

São territórios marcados por conflitos pela posse da terra e que já cumpriram todas as etapas da regularização, livres de entraves judiciais. Aguardavam apenas a homologação por parte do Executivo, até então refém da política anti-indígena do governo de Jair Bolsonaro (PL).  

Na prática, a homologação garante aos povos originários direitos plenos sobre a terra, a posse permanente e o uso exclusivo dos recursos naturais. Também viabilizam o acesso a políticas públicas e têm o potencial de pacificar disputas violentas entre indígenas e não indígenas. 

Confira a lista de áreas a serem homologadas e os municípios:

  • Aldeia Velha em Porto Seguro (BA)
  • Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio (AL)
  • Potiguara de Monte-Mor em Rio Tinto (PB)
  • Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios (AL)
  • Tremembé da Barra do Mundaú em Itapipoca (CE)
  • Morro dos Cavalos em Palhoça (SC)
  • Rio dos Índios em Vicente Dutra (RS)
  • Toldo Imbu em Abelardo Luz (SC)
  • Cacique Fontoura em São Félix do Araguaia (MT)
  • Arara do Rio Amônia em Marechal Thaumaturgo (AC)
  • Rio Gregório em Tarauacá (AC)
  • Uneiuxi em Santa Isabel do Rio Negro (AM)
  • Acapuri de Cima em Fonte Boa (AM)

Novo momento dos indígenas na política 

Para esses territórios, os próximos passos são a expulsão de invasores, além do reassentamento e indenização de não indígenas que tenham ocupado de boa fé as áreas demarcadas, como comunidades ribeirinhas e outros habitantes tradicionais dos biomas. 

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que as homologações inauguram um novo momento da política brasileira e são fruto de um grau sem precedentes de participação dos povos indígenas na atuação do Estado. 

"Essa é um novidade histórica", avalia Marcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ativista pelos direitos indígenas há 40 anos.

"Não é mais uma política indigenista, como no passado. Agora são lideranças indígenas legítimas, reconhecidas no âmbito do movimento indígena, que passam a exercer funções de Estado", observa Santilli. 

As medidas dão concretude à promessa de campanha feita por Lula de fazer cumprir os direitos constitucionais dos povos indígenas. E são acompanhadas de mudanças importantes na Fundação Nacional do Índio (Funai), que passou a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas e, pela primeira vez, é presidida por uma mulher indígena, Joenia Wapichana

Homologações estavam na gaveta de Bolsonaro 

A homologação das 13 terras indígenas havia sido sugerida pela equipe de transição do governo federal. A gestão Bolsonaro foi marcada pela completa paralisação da regularização de terras indígenas, conforme o então candidato havia prometido durante a campanha eleitoral de 2018. 

"O que esses 13 processos estavam fazendo na gaveta que não foram homologados? Isso demonstra um explícito desejo do ex-presidente de descumprir a Constituição. Na verdade, o presidente Lula está retomando o cumprimento dos preceitos constitucionais", aponta Santilli. 

As terras indígenas prontas para homologação abrangem, juntas, cerca de 8,4 mil km², o equivalente a mais de cinco vezes a cidade de São Paulo (SP).

Segundo o ISA, 32% das 676 terras indígenas do Brasil ainda não foram homologadas e estão em etapas anteriores do processo demarcatório. 

Novo ministério deve priorizar Guarani Kaiowá, defende indigenista 

"Cada uma das 13 terras indígenas que serão homologadas têm histórico de muita guerra e muita luta", destaca a antropóloga Barbara Arisi, da Universidade Livre de Amsterdam. 

"A Morro dos Cavalos em Florianópolis (SC), por exemplo, já era pra ter sido demarcada há muitos anos. E o estado de Santa Catarina é extremamente anti-indígena, então tem um significado muito importante", comemora a indigenista. 

O primeiro esforço demarcatório do governo Lula foi celebrado por Arisi. Mas ela aponta que regiões importantes ficaram de fora, como as terras Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que passam por uma escalada de conflitos e mortes de indígenas.

"O Mato Grosso do Sul é uma área de conflito onde eu acho que realmente o Ministério dos Povos Indígenas vai provavelmente colocar toda a sua força para também fazer andar as demarcações e resolver a situação de extrema violência", diz. 

"Tomara que isso aconteça rápido, antes que os criminosos ambientais se organizem do lado de lá. Os trabalhos de demarcação podem demorar 10, 15, até 20 anos", ressalta.

Pronta para homologação, área do "marco temporal" ficou de fora 

Clovis Brighenti, indigenista e professor de História das Sociedades Indígenas na América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), sentiu falta da terra indígena Ibirama La-Klãnõ na lista das primeiras homologações do governo Lula.

Habitada pelos Xokleng, a área é objeto da ação do chamado marco temporal das terras indígenas, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento foi adiado pela terceira vez em junho do ano passado.

"Reconhecemos e respeitamos a decisão da comissão de transição que analisou as homologações, mas não há qualquer impedimento legal para a homologação deste território", diz Brighenti. 

"A decisão [de não homologar a terra indígena Ibirama La-Klãnõ] pode ter levado em consideração o julgamento do marco temporal. Mas teria sido importante ela ter entrado na lista das terras a serem homologadas", avalia. 

Empecilhos para continuidade das homologações 

O novo governo encontrará desafios significativos para prosseguir com a agenda de regularização de terras indígenas. Muitas delas estão travadas por ações judiciais protocoladas por não indígenas que se concederam legítimos ocupantes das terras. Há inclusive disputas protagonizadas por grades fazendeiros e empresas multinacionais.

Marcio Santilli, do Instituto Socioambiental, sugere um esforço jurídico concentrado por parte da Advocacia-Geral da União, no sentido de destravar as demarcações paralisadas pela Justiça. 

"Mas a verdade é que houve um corpo mole imenso por parte do último governo federal em todos esses níveis. Agora tudo isso pode ser agilizado. É preciso criar instrumentos para poder superar os gargalos que existem dentro dos processos demarcatórios", afirma. 

Outro empecilho a ser superado é a paralisação de estudos demarcatórios conduzidos por grupos de trabalho no âmbito da Funai. O déficit de servidores do órgão indigenista, que atingiu níveis críticos sob Bolsonaro, contribui para a morosidade desses procedimentos. E nem sempre há estudos antropológicos prévios que atestem a presença ancestral indígena. 

"As demarcações são simplesmente estabelecer os limites da terra. Tem toda uma agenda gigante, que é também de alto interesse nacional, que é a gestão desses territórios. Tem muita coisa pela frente para ser feita", projeta o fundador do ISA. 

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Folha de S. Paulo: Direitos são conquistas dos povos e comunidades tradicionais

É preciso integrar a política de conservação da natureza aos territórios de uso comum

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

No último dia 12 de abril, a Fundação Florestal (FF) e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima) do estado de São Paulo vieram a público manifestar seu respeito e apoio às comunidades tradicionais, em artigo publicado nesta Folha ("Manifesto sobre a Jureia").

No texto, são elencados o que chamam de “projetos e ações concretas” dos órgãos ambientais paulistas em prol das comunidades. Contudo, o tom de benevolência que paira sobre a lista de ações que teriam beneficiado as comunidades tradicionais se traduz, na verdade, na tentativa de manipulação de uma história de luta e conquistas dessas populações.

Promovem o apagamento da nossa história ao se apropriarem dessas árduas conquistas para autopromoção e, ainda, se utilizam delas para justificar as violências cometidas contra outras comunidades, como no caso das comunidades caiçaras e indígenas da Jureia. As “ações concretas” enumeradas no referido artigo não são dádivas, mas obrigações e deveres impostos a estes órgãos, em respeito a direitos historicamente conquistados pelos povos e comunidades tradicionais.

Foi a nossa mobilização e articulação política-comunitária em defesa da vida em nossos territórios ancestrais, da nossa cultura e dos nossos projetos de conservação socialmente justos que levou ao reconhecimento desses direitos e, ainda, que nos possibilita estar aqui hoje, novamente resistindo. Eis que essas violências e criminalizações por parte do Estado continuam sendo promovidas.

Enfrentamos gestores públicos e grandes ONGs ambientalistas que buscam efetivar formas de controle sobre os nossos territórios, invisibilizando ou enfraquecendo a presença de nossas comunidades, lutas travadas nas mais diversas esferas de debate, inclusive na esfera judicial e com apoio da Defensoria Pública do Estado e do Ministério Público Federal.

Por isso, reiteramos nosso apoio às famílias caiçaras da Jureia, detentoras de saberes ancestrais e de direitos territoriais ainda hoje negados pelos órgãos ambientais em uma política marcada pelo racismo ambiental. Sabemos que nossos direitos, saberes e práticas ancestrais, cada vez mais reconhecidos, inclusive cientificamente, como congregados em modos de vida que respeitam a conservação, são pedras no caminho de megaprojetos de governos associados à mercantilização da natureza por meio de concessão e privatização dos territórios em que vivemos.

Mesmo que as “dádivas” mencionadas constituíssem benefícios construídos com as comunidades, não caberia instrumentalizá-las como discurso para justificar a violência sistemática contra outras comunidades.

É preciso reconhecer a tradicionalidade da comunidade no território caiçara do Rio Verde e Grajaúna, já amplamente atestada em laudos antropológicos, e garantir seus direitos territoriais expressos, inclusive, na lei que cria o Mosaico de Unidades de Conservação Jureia-Itatins. Lá, como em muitos outros territórios, o que chamam de “mata virgem” é onde vivemos há séculos, comprovadamente.

Por fim, convocamos os órgãos ambientais a solucionarem os conflitos socioambientais históricos na mata atlântica, buscando construir projetos de conservação socialmente justos com as comunidades tradicionais. Rever as políticas ambientais caracterizadas pelo racismo ambiental exige escuta e diálogo com aqueles que foram e continuam sendo o objeto do preconceito e da discriminação. É preciso um novo paradigma que integre a política de conservação da natureza aos territórios de uso comum e aos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais.

Adriana de Souza de Lima
Caiçara da Jureia e representante da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC)

Rafaela Eduarda Miranda dos Santos
Quilombola da comunidade de Porto Velho e advogada na Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone)

Tatiana Mendonça Cardoso
Caiçara representante da Comunidade da Enseada da Baleia, na Ilha do Cardoso, e integrante do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR)

Timóteo Karai Popyguá
Cacique da Tekoa Takuari e representante da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY) Regional Vale do Ribeira

* Os autores integram o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira