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Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, veio ao Brasil no início de dezembro para se reunir com Lula - Ricardo Stuckert

Agenda externa de Lula mira retomada de protagonismo e diálogo nivelado com potências

Alex Mirkhan*, Brasil de Fato

Com as primeiras viagens internacionais já definidas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já iniciou sua missão de reconstruir a imagem internacional do Brasil, profundamente arranhada durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Na opinião de especialistas, embora acumule prestígio e amizades estrangeiras após dois mandatos bem sucedidos na agenda externa, o presidente eleito precisará se equilibrar sobre um novo tabuleiro geopolítico.

A cerimônia de posse presidencial, em 1o de janeiro, terá a presença de pelo menos 17 chefes de Estado, um número recorde e simbólico. Mas é durante viagens ao exterior que Lula costuma atrair holofotes e alianças estratégicas, como fez em novembro. Já eleito presidente, participou da 27ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 27, no Egito, e visitou o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa.

A primeira viagem após eleito será à vizinha Argentina, onde o petista se encontrará com o aliado Alberto Fernández, após presenciar a reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Ainda no primeiro trimestre, os destinos confirmados são as duas maiores potências mundiais, Estados Unidos e China. Compromissos considerados indispensáveis.

“O Brasil tem relações comerciais mais fortes com a China, relações históricas com os EUA, que se consolidaram ao longo do século XX, e com a Argentina, o nosso parceiro mais próximo. São relações estruturais, a mudança de governo não muda muito isso. A diferença será a qualidade dessas relações com esses três em especial”, projeta Vinícius Müller, professor de história econômica na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

Para James Onnig, professor do Laboratório de Pesquisas em Relações Internacionais da Faculdade de Campinas (Facamp), os primeiros compromissos do próximo presidente indicam sua intenção de reativar fóruns regionais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a própria Celac. “É praticamente a volta do Brasil à cena. Essa reunião de Lula dia 24 de janeiro em Buenos Aires é a nova entrada do Brasil ao jogo internacional. Como se disséssemos ‘voltamos à mesa’”, comenta.

“Reputação leva anos para construir, mas é fácil de perder”

Mais do que surfar no carisma internacional de que desfruta Lula, que já foi chamado de “o cara” pelo então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, há um plano de longa duração. Sob as batutas de de Vieira e Maria Laura da Rocha — que será a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária-geral do Itamaraty — o objetivo é retomar a tradição secular da política externa brasileira e cultivada por diplomatas egressos do Instituto Rio Branco.

Uma agenda pautada na defesa da igualdade jurídica entre as nações, perspectiva inaugurada por Rui Barbosa em seu discurso na segunda Conferência de Haia, em 1907. É o que aponta Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), que acredita na continuidade da desconfiança do mundo perante ao Brasil.

“A minha impressão é que não se pode criar expectativa demais, porque a agenda interna vai ser muito difícil também. O presidente não terá a mesma disponibilidade nem energia para se dedicar aos assuntos internacionais que teve nos seus primeiros mandatos”, pondera Rocha.

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Na sua avaliação, o Brasil abriu mão do seu papel no ambiente internacional de forma arbitrária pelo governo Bolsonaro. Além do esvaziamento da diplomacia e da agenda externa, o atual presidente que ainda não reconheceu a derrota eleitoral também destilou ofensas pessoais contra a esposa do presidente francês Emmanuel Macron, contra a ex-presidenta do Chile, Michelle Bachelet, além de enviar sinais trocados na esfera ambiental, especialmente no que tange a preservação da Amazônia.
 
“Ninguém se esquece do discurso do chanceler (Ernesto) Araújo em que ele negou uma série de prioridades da política externa brasileira, mas nunca foi capaz de dizer o que queria colocar no lugar. Desde então, a atual gestão do chanceler Carlos França aparenta tentar apenas conter danos e imprimir alguma fachada de normalidade a uma política externa que já foi muito respeitada no mundo”, acrescenta. Só restariam a Bolsonaro fazer alianças com poucos expoentes da extrema-direita mundial, como Hungria, Polônia e os Estados Unidos, enquanto Donald Trump ocupava a presidência.

Para Onnig, seria lógico Lula buscar o apoio de outros países em desenvolvimento, como os sul-americanos, a partir do Mercosul, somados ao de Rússia, Índia, China e África do Sul, que compõem o BRICS. Assim, faria parte de um movimento, talvez com papel de protagonista, que poderia aos poucos reequilibrar a conjuntura geopolítica, reduzindo o poder exercido pelos países membros do Conselho de Segurança da ONU—- Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China.

Rocha, por sua vez, identifica um novo momento histórico, que estaria ocorrendo desde meados da década passada. “Estamos vendo esse processo chamado de desglobalização, em que há uma diminuição da intensidade das trocas das economias e sociedades. Há uma ausência de uma governança adequada. Então o Brasil teria aí uma grande oportunidade e tem competência diplomática para fazer, historicamente. É isso que se espera de um país como o Brasil, como ele fez na OMC (Organização Mundial do Comércio)”, identifica Rocha.

Mesmo assim, na avaliação de Müller, seria temerário retomar a política de investimentos em países estratégicos ou considerados amigos, especialmente na América Latina e na África. O historiador alerta que esse tipo de política externa “com contornos imperialistas” poderia estimular a oposição à medida que o Brasil enviasse recursos via BNDES para países com “proximidade ideológica” ou que “não sejam muito zelosos com os preceitos democráticos”.

Brasil poderá intermediar conflitos e selar acordos

A nova relação com os Estados Unidos que já começou a ser costurada com Joe Biden. No último dia 5, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, se reuniu com Lula no hotel em que está hospedado em Brasília. Dentre os temas de maior destaque, está a possível aproximação norte-americana com a Venezuela de Nicolás Maduro, ancorada na necessidade do comércio de petróleo. 

Lula terá a oportunidade de intermediar essa reaproximação e ajudar a enterrar de vez o reconhecimento que fora dado a Juan Guaidó como presidente interino do país latino. Também é de interesse em comum do futuro governo brasileiro e de Biden fortalecer as instituições que regem suas democracias e, principalmente, liderar uma agenda ambiental e preocupada com o aquecimento global.

“Eu acho que o Lula vai chegar em Washington com a seguinte bandeira: nós vamos ter que trazer a COP-30 para o Brasil. Se nós queremos realmente discutir as questões ambientais, nós vamos estar no topo dessa discussão, não só pela biodiversidade, mas pela capacidade que temos de oferecer ao mundo soluções minimamente condizentes com a biodiversidade”, conjectura Onnig, mencionando o etanol brasileiro como exemplo, além de outras parcerias na transição energética que se avizinha.

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No entanto, há de se considerar um panorama mais amplo, incluindo as preferências e caminhos traçados pela China. Para Müller, o gigante asiático tende a ser refratário a esse tipo de discurso sob o argumento de “não fazer sentido pagar a conta da poluição gerada pelo Ocidente”, tornando-se um possível foco de tensão.

Mesmo assim, o historiador considera que Lula tem “tudo na mão” para formular um plano que insira o Brasil em um debate de alto nível. “Para isso, ele vai ter que se entender internamente com o agronegócio na questão ambiental, e externamente escapar dessas questões que podem afastar da China e da posição protecionista europeia, que é o fundamento da dificuldade no acordo Mercosul-União Europeia”, aponta.

O Brasil também pode sofrer pressões para abandonar sua neutralidade no longevo conflito entre Rússia e Ucrânia, especialmente por parte dos países membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Onnig discorre sobre a complexidade do tema e a solução que prevista a curto prazo.

“De um lado existem forças perigosas dentro da Ucrânia, e de outro há contestações muito sérias ao governo Putin. Porém, sabemos que a Rússia é nossa parceira dentro do BRICS e isso gera uma saia justa. Portanto, o Itamaraty deve manter sua neutralidade propositiva. Nós não vamos interferir na situação que está acontecendo, mas que devemos buscar a paz imediata. O Brasil deve buscar essa solução”, afirma Onnig.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Ruy de Almeida Silva e Monica Herz: O Atlântico Sul na competição entre as grandes potências

Os próximos episódios mostrarão como o Brasil se sairá nessa jornada

Filmes sobre o embate URSS EUA durante a Guerra Fria invadiram nossas telas entre os anos 50 e 90 do século passado. O vilão agora é outro e o anterior virou coadjuvante. A Rússia, por ainda ter um enorme arsenal nuclear, é esse personagem. O enredo é a competição entre as grandes potências, deixando em segundo plano a chamada “guerra ao terror”, e se desenrola, como um filme de 007, com ações nas várias regiões do mundo. Assim, poderia ser sintetizada, para os amantes do cinema, parte da Estratégia Nacional dos Estados Unidos, assinada em 2017, pelo Presidente Donald Trump

Segundo o documento, a China é agora o principal competidor que deve ser contido. Tarefa mais difícil, pois o “vilão” tem como principal instrumento o seu poder econômico. Competição  e  contenção que naturalmente afetam o Brasil e o Atlântico Sul, assim como ocorreu no primeiro filme, que tinha como pano de fundo a Guerra Fria. Em 1986, liderados pelo Brasil, os países do Atlântico Sul, preocupados com a possibilidade da competição entre as grandes potências gerar instabilidade e nuclearização na região, criaram a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), aprovada na Assembleia das Nações Unidas, com o voto contrário dos Estados Unidos da América. Para além da paz, a ZOPACAS também tinha como um dos seus objetivos a cooperação para o desenvolvimento econômico e social, a proteção dos recursos naturais vivos e do meio-ambiente marinho. 

Trinta e quatro anos depois, a ZOPACAS pouco avançou. A competição entre EUA e China traz de volta o risco da militarização, nuclearização e instabilidade no Atlântico Sul. Logicamente, as circunstâncias não são as mesmas. Naquela época, o Brasil, principalmente a partir da política externa pragmática do Presidente Geisel, estabeleceu, em 1974, relações com a China; e desenvolveu uma estratégia voltada para os interesses brasileiros, que contribuiu para que nas décadas seguintes houvesse a aproximação com a Argentina, a criação do Mercosul, e da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL).

No lado africano, o reconhecimento da independência de Angola. A derrota do apartheid na África do Sul e o apoio à independência da Namíbia, contribuíram para a aproximação com aquele continente e a criação, em 2006, da Cúpula América do Sul-África. No campo marítimo-naval, a Marinha do Brasil, durante os anos 1970, também mudava sua concepção estratégica, fundamentada na visão norte-americana da defesa hemisférica, para uma concepção calcada nos interesses marítimos brasileiros. A Política Básica e Diretrizes da Marinha, que esboçava essa nova postura, é publicada em fevereiro de 1977, praticamente um mês antes da denúncia pelo Brasil do acordo militar com os EUA.  

Hoje, o cenário é diferente. O mundo vive uma crise sanitária e econômica e a política externa brasileira elegeu os EUA como sua prioridade, deixando em segundo plano a América do Sul. O governo argentino e o Mercosul sofrem ataques de autoridades do governo, o Brasil saiu da UNASUL e a Cúpula América do Sul-África perdeu ímpeto.

A importância econômica e geo- estratégica do Atlântico Sul é inegável, tanto para o fluxo comercial como para a exploração econômica e para o sistemas de comunicações globais via cabos submarinos. A agenda ambiental na região está em fluxo e as preocupações com atividades criminais são muito significativas. Os Estados Unidos, diversos países da OTAN e a China partilham desta perspectiva. A presença da China e de países da OTAN na região é bastante óbvia. Ademais, EUA e Grã Bretanha  estão presentes militarmente na ilha de Ascenção, nas Malvinas e Georgia do Sul. Em 2009, o governo americano reativou a IV frota, subordinada ao Comando Sul dos Estados Unidos, que tem como “área de responsabilidade” o Atlântico Sul e o Caribe. A China por sua vez vem avançando sua capacidade marítima global e investimentos em infra estrutura associadas à circulação marítima e no final do ano passado realizou o primeiro exercício naval com a Rússia e a África do Sul na área marítima  adjacente a este país.  

A China é desde 2009 o principal parceiro comercial brasileiro e da Argentina desde o final de 2019, desbancando o Brasil pela primeira vez na história. O gigante asiático tem sido ainda o maior parceiro comercial da África por 10 anos consecutivos e um parceiro estratégico da África do Sul. A China tem investido fortemente em infraestrutura relacionada com o  poder marítimo, especialmente, em portos, de forma a garantir o fluxo de comércio necessário ao seu desenvolvimento.  

Diante da complexidade de relações no Atlântico Sul  como será o Brasil capaz de desenvolver uma estratégia própria, ao mesmo tempo baseada na cooperação internacional,  visando elaborar o melhor caminho para a realização dos interesses brasileiros? No atual enredo, o Brasil parece querer reanimar a combalida ZOPACAS, apesar da atual dificuldade de administrar de forma eficiente seu relacionamento com os EUA e a China.

O presidente Jair Bolsonaro mencionou a ZOPACAS no seu discurso na ONU, o Ministério  das Relações Exteriores e a Marinha promoveram um seminário internacional sobre o tema, e existe a possibilidade de uma participação naval mais ativa no Golfo da Guiné com a saída do Brasil da Força-Tarefa Marítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano. Os próximos episódios mostrarão como o Brasil se sairá nessa jornada, e se o governo brasileiro será capaz de reanimar a ZOPACAS para, pelo menos, evitar a militarização e a nuclearização do Atlântico Sul. Não percam!  

*RUY DE ALMEIDA SILVA É ALMIRANTE E MEMBRO DO GRUPO DE AVALIAÇÃO DA CONJUNTURA INTERNACIONAL DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (GACINT-USP)

*MONICA HERZ É PROFESSORA DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA PUC-RIO