pos-pandemia
William Waack: O vírus e a loucura
Filósofos andam céticos quanto ao mundo político pós-pandemia O mundo pós-pandemia não vai ser muito diferente do que era até o começo deste ano, talvez só um pouco pior. Do ponto de vista da ordem internacional, a China vai registrando importante vitória tecnológica e política. Ajudada pelos Estados Unidos, que se isolam cada vez mais e despertam no resto do mundo, pela primeira vez, um sentimento de pena em relação aos americanos, no lugar de admiração, respeito ou raiva – como costumava acontecer antes do vírus.
Do ponto de vista das sociedades ricas, acentua-se o egoísmo típico trazido pelo crescimento de desigualdades e concentração de renda em escala global. Da perspectiva dos mais pobres, o fim da esperança de que miséria fosse algo a ser liquidado ali na próxima esquina da história. No geral, morre a ideia de que “valores universais” (como direitos humanos, ou sociedades abertas, ou democracia liberal) fossem se impor de maneira mais ou menos “automática” na linha do tempo.
É a hora de os filósofos falarem da pandemia, e as ideias acima são do pensador-celebridade francês Bernard-Henri Lévy. Ele acaba de publicar já em inglês The Virus in The Age of Madness (em tradução livre: O Vírus na Era da Loucura), lançado no circuito internacional da propagação de ideias por meio de debates e conversas com outras celebridades como Fareed Zakaria (GPS), Thomas Friedman (New York Times) e Francis Fukuyama (American Interest). Está no YouTube para quem prefere assistir em vez de ler.
É difícil resumir em poucas palavras a sofisticação profissional de um Bernard-Henri (defensor de ideias liberais), mas algumas de suas frases são contundentes: “A epidemia veio da China, a resposta do Partido Comunista chinês foi eficiente e eles estão conseguindo vender para o resto do mundo o seu padrão de comportamento”. O título do livro não é só uma provocação. Um dos mais conhecidos “intelectuais públicos” está mesmo convencido de que vivemos uma “competição de loucuras” como resposta ao vírus.
Fala da “sombria alegria” com a qual se abraçou o vírus enxergado como não só mais uma pandemia (disso já tratavam os filósofos gregos uns quatro séculos antes de Cristo), mas como uma expressão de “coisa real”, de “história real”, de “tragédia verdadeira”, ao contrário do mundo das notícias, que se parecem nos tempos “pós-históricos” (Levy) em que vivemos como “eventos irreais”, como “eventos fake”. “Um vento de loucura está varrendo o mundo”, afirma.
O vírus não introduziu nada excepcionalmente novo, apenas acentuou ou escancarou tendências, problemas e dilemas já existentes, tanto na política quanto na economia. E tem até um lado que se diria vantajoso, segundo o filósofo: “Tornou evidentes a duplicidade e a inadequação”, além do oportunismo, de alguns dos personagens políticos citados por ele (nesta categoria negativa são Trump, Putin, Maduro e Bolsonaro).
Eles se esmeram na postura da “negação da realidade”, diz Levy, que dedica menções pouco simpáticas também aos que ele chama de “profilatocratas, vegetocratas e ecolocratas” (não só em alemão se inventam palavras no discurso filosófico), além dos defensores de políticas identitárias. Nesse sentido, tomando todos os “ismos” em curso, registra-se uma “competição de loucura” como resposta à pandemia, que nada tem de inédito, o mundo já lidou com isso muitas vezes antes, “e nem é tão ruim quanto parece”.
Mas não se pense que só o grande circuito intelectual global está dando atenção a filósofos. O recente congresso anual da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), no começo desta semana, trouxe um filósofo para examinar com produtores rurais, economistas e técnicos do setor o que se imagina que venha a ser o mundo pós-pandemia. “Daqui uns três anos ninguém vai se lembrar que teve a pandemia”, vaticinou Luiz Felipe Pondé, o filósofo convidado.
Paulo Hartung: Visões, possibilidades e tendências do pós-pandemia
Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez
O amanhã sempre ocupa a mente humana, ainda mais em tempos de crises angustiantes e desestabilizadoras. Nesse sentido, mesmo que ainda envolvidos numa longa travessia dramática, o cenário atual da pandemia pauta cada vez mais os nossos olhares e pensamentos para o que virá.
O nevoeiro das dúvidas ainda é denso, mas pelo que já se vivia antes da covid-19, e também em função dos comportamentos que estamos experimentando ou incrementando neste momento absolutamente desafiante, já se pode vislumbrar um quadro de possibilidades e tendências para o pós-crise.
A pandemia acabou por evidenciar nossas mazelas e fragilidades socioeconômicas, adicionando ainda mais dor e desamparo a este tempo horrendo. Assim, mais que uma tendência, as reformas estruturantes colocam-se como um dever de casa cívico e institucional do qual não podemos abrir mão se quisermos constituir um Brasil verdadeiramente civilizado.
O Estado precisa se digitalizar, modernizar seu arcabouço legal e se libertar do sequestro secular operado por grupos de interesse instalados dentro e ao redor das máquinas governativas. É urgente melhorar o sistema tributário, atualmente um obstáculo ao crescimento do País.
A educação básica demanda um esforço prioritário de qualificação do processo de ensino-aprendizagem, fundamental para promover a autonomia cidadã e tornar viável a inclusão produtiva. Ciência e tecnologia devem ser vistas como uma fronteira para avançarmos rumo um desenvolvimento amplo e consistente.
A corrosão da globalização, patrocinada por populistas de diferentes estaturas, ganhou novos fatos e argumentos. Para uns, a crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado. O fechamento de fronteiras e a “guerra” entre países por insumos e equipamentos para enfrentar a pandemia adicionaram calor às discussões.
Mas fatos da geopolítica abalam qualquer certeza sobre o enfraquecimento da globalização. O acordo de recuperação econômica da União Europeia reforça parâmetros de integração, assim como as parcerias globais que se firmam para a vacina contra o novo coronavírus.
E temos ainda a disputa eleitoral nos Estados Unidos, que contrapõe projetos antagônicos quanto a temas cruciais – clima, sustentabilidade, acordos comerciais etc. –, estando na dianteira Joe Biden, defensor de soluções articuladas planetariamente. Ou seja, sobre a globalização, a tendência é o acirramento dos debates acerca de seus fundamentos e alcance.
O eco planetário de acontecimentos locais, regionais e nacionais ganhou vigor extraordinário e a pandemia amplifica a agenda do respeito às diferenças e da busca da igualdade social.
A digitalização da vida expandiu-se de modo inédito, colocando-se como alternativa de conexões as mais diversas. Tornou-se importante para questões que vão do universo das afetividades, passando por soluções comerciais, até a viabilização do trabalho remoto nos mais variados segmentos. A digitalidade cria efeito em cadeia em outros segmentos, como o mercado imobiliário, afetando desde o desenho dos centros urbanos, passando por questões de mobilidade, até o design das residências, que estão virando o local de trabalho.
Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez. O interesse por processos sustentáveis, que põe os olhos do mundo sobre a tragédia amazônica, por exemplo, deve firmar parceria com outros fatores de vida saudável, como cuidados com a saúde física e emocional e preocupações com questões sanitárias, especialmente a conexão entre zoonoses e segurança alimentar.
As múltiplas carências do País, que já havia entrado na pandemia com fragilidades, ensejaram a dinamização da sociedade civil, fenômeno que se deve consolidar. Um exemplo é o movimento de líderes empresariais, investidores e grupos econômicos junto ao governo em defesa da Amazônia.
A humanidade ocupa-se de pensar o amanhã não por mero exercício de futurologia, mas porque, como observa Santo Agostinho, o futuro – “a esperança presente das coisas futuras” – é uma das marcas cruciais do presente, a única dimensão temporal que verdadeiramente usufruímos para existir.
Além das expectativas do hoje, inspiram o olhar em perspectiva “a lembrança presente das coisas passadas e a visão presente das coisas presentes”. É assim, pois, que seguimos, com a colheita de impressões fortes do que se passou e se passa, a pensar os dias que virão. Afinal, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas o que estamos construindo hoje, em memórias, sonhos, desejos, palavras, projetos e ações.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
“O que virá depois?” é tema de webinar da Biblioteca Salomão Malina
Conversa online vai abordar mundo pós-pandemia do coronavírus e crise política no Brasil
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A Biblioteca Salomão Malina realiza, nesta sexta-feira (15), a partir das 18h30, roda de conversa online (webinar) com o tema “O que virá depois?”, para discutir o pós-pandemia do coronavírus. A webconferência terá a participação do ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque, do jornalista Luiz Carlos Azedo, do sociólogo Caetano Araújo e do historiador Victor Missiato. A transmissão será realizada pelo página da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) no Facebook e pelo canal da entidade no Youtube.
Cristovam lamenta a crise sanitária global provocada pela pandemia, que já matou mais de 11 mil pessoas no Brasil e 284 mil no mundo até o início desta semana, mas reforça que a sociedade precisa se organizar e participar de debates virtuais no período de isolamento social. “Não podemos deixar que a epidemia nos confia e impeça o desenvolvimento de nossas ideias”, afirma. “Já que estamos confinados, é fundamental fazermos rodas de conversas pelos meios de comunicação a distância. Não podemos ser vencidos pela epidemia”, diz.
O sociólogo Caetano Araújo, que também é diretor executivo da FAP, ressalta a importância da webinar da Biblioteca Salomão Malina também em razão da crise política que atinge o Brasil. “Eventos como esse são particularmente importantes porque estamos enfrentando problemas complexos, agudos. De um lado, uma crise sanitária sem precedentes no país nos últimos 100 anos e, de outro lado, estamos enfrentando crise política que envolve escalada golpista de extrema direita”, assevera.
De acordo com Araújo, a sociedade deve debater política mesmo durante o isolamento social. “A pior coisa a se fazer é parar de discutir política. Como não podemos fazer reuniões presenciais e manifestações, o que temos de fazer é organizar discussões e debates sobre esses temas pela via do possível, que é a da internet”, pondera, para continuar: “Temos que persistir, conversar, trocar ideias, avançar na formulação de possíveis soluções, prospectar cenários futuros”.
Na avaliação de Missiato, doutor em história pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), a webinar da biblioteca Salomão Malina é um exemplo de que a pandemia do coronavírus vem acelerando a tendência da “participação democrática dos cidadãos” no mundo digital. “Acaba sendo aceleração de uma tendência até por conta das dificuldades de as pessoas se reunirem em cidades com muito trânsito ou em eventos que tenham que demandar diferentes atores de vários lugares, por exemplo”, afirma.
Ele observa que a pandemia do coronavírus é a primeira grande pandemia globalizada no que diz respeito à informação, por meio da participação dos cidadãos nas redes sociais. “De certa forma, as redes sociais ampliaram, globalmente, o debate em torno desse assunto. Mesmo que muitas vezes de forma tumultuada, democratizaram muito o debate”, acentua.
Victor acentua que, apesar da grande participação popular nas discussões, o poder de decisão sobre os assuntos debatidos ainda é concentrado. “Todos os debates nas redes sociais trouxeram uma politização muito grande em relação à própria humanidade”, pontua. “A participação política do cidadão na era digital conferiu ao cidadão enorme participação. Não quer dizer que o ambiente esteja mais plural, mais respeitoso”, observa.