Portugal

Mário Soares

Luiz Sérgio Henriques: O legado de Mário Soares

Se o século 20 foi breve, começando com a conflagração de 1914 e terminando sob os escombros do Muro de Berlim ou com a dissolução da URSS, seus temas e personagens às vezes só lentamente se despedem de nós, voltando inesperadamente de um relativo esquecimento para nos assombrar com a atualidade de gestos individuais e dramas coletivos que marcaram mais de uma geração. A morte de Mário Soares, figura emblemática do Portugal moderno, propicia um desses retornos: com ela vêm à memória o país anacrônico do fascismo e as promessas da nova democracia, o colonialismo tardio e os capitães de Abril, os rumos pós-revolucionários separados entre a Europa social-democrata e a do “socialismo real”, uma fórmula defensiva que então parecia ainda capaz de emocionar corações e mentes.

Para Portugal naquele momento se dirigiram as atenções de tantos que viam na derrubada do fascismo a possibilidade de uma revolução social à moda antiga, com seu receituário testado no Leste Europeu: a nacionalização ou a estatização da economia, a afirmação inevitavelmente autoritária de um partido sobre o Estado e a sociedade, o poder assentado na aliança entre o povo e os militares progressistas, num movimento que varreria o fascismo e abriria um flanco no Ocidente univocamente regressivo e imperialista.

Essa visão de mundo, evidentemente, supunha uma lógica binária, uma confrontação aberta ou subterrânea entre “campos” contrapostos. Álvaro Cunhal, o inquebrantável dirigente comunista da resistência, fazia-se o principal intérprete dessa extremada “hipótese de Abril”. Uma hipótese ameaçadora, dado que, entre outros limites, a cultura comunista ainda se via às voltas com conceitos enrijecidos, como a ditadura do proletariado. Já nos entregando à especulação contrafactual e ao humor dos anarquistas, vitoriosa tal possibilidade, muito provável que a Pide, a temível polícia fascista, tornasse a ser aberta em seguida, só que sob nova gerência...

Mário Soares era o homem da social-democracia numa de suas florações magníficas. A dar-lhe sustentação estavam dirigentes como Willy Brandt, François Mitterrand, Olof Palme e Bruno Kreisky, para não falar da compreensão e do apoio discreto do eurocomunismo de Enrico Berlinguer. Era a garantia da construção, num horizonte temporal largo e realista, do compromisso social-democrata entre mercado e direitos, capitalismo e democracia. Nada de “comunismo agora”, especialmente na forma soviética, já intrinsecamente corroída, como setores da própria esquerda crescentemente percebiam pelo menos desde a denúncia dos crimes de Stalin, a invasão da Hungria em 1956 e da Checoslováquia em 1968.

Os embates duríssimos com os comunistas e com a centro-direita marcaram a fisionomia política e intelectual de Mário Soares. Adversário desde sempre do fascismo e alheio ao integrismo comunista, Soares, numa frase de rara felicidade que voltou a circular por estes dias, afirmava-se um político socialista, evidentemente de esquerda, mas, antes disso, fundamentalmente um democrata. Nessa adesão irreprimível à democracia constitucional está a chave da grande arte política de Soares. Ou, para evocar termos de início do século breve, a chave da curiosa vitória, em Portugal, dos “mencheviques” sobre os “bolcheviques”, do marxismo antileninista sobre a ditadura “operária” do partido único.

Expressamo-nos metaforicamente, como está claro, uma vez ser duvidoso que a convulsão social de 1974-1975 pudesse ser caracterizada como situação revolucionária clássica, considerando a implantação minoritária da força política, o Partido Comunista, que a ela se aferrava. E, mais uma vez de modo contrafactual, um eventual Estado sovietizado que daí derivasse provavelmente teria tido a mesma sorte de seus coirmãos do Leste Europeu a partir de 1989. Nem é exato chamar de menchevique a orientação do PS português: afinal, a social-democracia europeia ocidental tem uma história própria, autônoma em relação aos nomes e às tendências da política russa de 1917.

O sentido da ação de Mário Soares, enraizada na economia social de mercado, na democracia representativa e na integração europeia, como logo adiante mostraria ser, constitui um capítulo adicional, relativamente tardio, das relações difíceis e nada lineares entre capitalismo e democracia política. Como afirma Habermas, teórico visceralmente comprometido com as liberdades, vistas em perspectiva histórica tais relações entre uma economia florescente e uma repartição mais justa de bens têm sido antes a exceção do que a regra. E, não por acidente, demandam forças de esquerda que se coloquem no terreno do constitucionalismo democrático, que têm ajudado a construir, embora contraditoriamente nem sempre o reconheçam como obra própria.

Hoje, a ação de socialistas como Mário Soares mais uma vez se encontra sob severo risco, a ponto de não poucos recordarem, como termo de comparação novamente saído do século breve, a conjuntura espinhosa dos anos 1930. Naquela altura, o fascismo e o nazismo pareciam em ascensão irresistível, fazendo recuar o liberalismo europeu. O mundo comunista, internamente congelado e precocemente incapaz de apontar um rumo positivo, marcado como estava por seu “pecado oriental”, ora se fechava sectariamente, ora se abria, nos momentos mais afortunados, para a aliança com os liberais e os socialistas, como nas chamadas frentes populares, que renovavam a capacidade de influenciar até a grande intelectualidade democrática.

De modo acidentado, os valores políticos do liberalismo então se salvaram não só por sua inegável força intrínseca, como também pela contribuição da esquerda em seu conjunto. Mais adiante, nos anos 1970, o doce e pequeno país de Mário Soares daria passos decididos no mesmo sentido. E, pensando bem, esse talvez seja o grande desafio que temos diante de nós.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org


FAP e PPS se solidarizam com socialistas de Portugal pela morte de Mário Soares

A FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e o PPS (Partido Popular Socialista) divulgaram nota pública (veja abaixo) de pesar pela morte no último sábado (7) do ex-presidente e ex-primeiro-ministro de Portugal, Mário Soares, aos 92 anos, em Lisboa. Ele estava internado desde 13 de dezembro do ano passado.

Na mensagem de solidaridade aos socialistas portugueses, a Fundação e o Partido reafirmam que Mário Soares foi um “grande democrata de importância capital para Portugal e para o Brasil. Um grande líder que resistiu ao autoritarismo e apoiou essa luta nas duas margens do Atlântico”.

Mario Soares, histórico dirigente socialista com quatro décadas de atividade política, foi presidente de Portugal entre 1986 e 1996 e ocupou o cargo de primeiro-ministro em duas ocasiões, entre 1976 e 1978, e entre 1983 e 1985.

Ele contribuiu para a instauração da democracia em 1974 e para a integração europeia do país. Fundador do Partido Socialista português, também foi ministro das Relações Exteriores e deputado europeu.

Até recentemente, Soares, se manteve ativo, atuando em uma fundação que leva seu nove, e publicando livros e artigos sobre a situação de Portugal. Ele era nascido em Lisboa e completou 92 anos recentemente, em 7 de dezembro.

NOTA DE PESAR

Aos socialistas portugueses.

Nossos pêsames pela morte do ex-presidente e ex-primeiro ministro, Mário Soares, um grande democrata de importância capital para Portugal e para o Brasil. Um grande líder que resistiu ao autoritarismo e apoiou essa luta nas duas margens do Atlântico.

Recebam todos nossa solidariedade em nome da FAP e do PPS, desde o Brasil.

Um abraço aos socialistas de Portugal nesse momento de tristeza, que compartilhamos com muita emoção.

Alberto Aggio

Pela Direção da FAP”


Pedro Del Picchia: Soares fez província imperial virar nação orgulhosamente europeia

Não seria despropositado dizer que o moderno Portugal nasceu não propriamente com a Revolução dos Cravos, em 1974, mas no ano seguinte, quando Mário Soares convocou uma das maiores manifestações realizadas em Lisboa.

Aquele dia marcaria o início do fim da tentação totalitária que animava, por um lado, os jovens oficiais das Forças Armadas; de outro, o Partido Comunista; e, por fim, mas com menos intensidade, os nostálgicos do salazarismo.

Os primeiros sonhavam com um regime autoritário progressista; os segundos, com um Estado soviético; e os terceiros, aproveitando-se da ameaça "vermelha", com a volta da ditadura que dominara o país de 1926 a 1974.

Foi nesse quadro que Mário Soares apresentou o "socialismo em liberdade", em oposição aos comunistas e à extrema-direita. "Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata".

Até a situação política chegar a esse ponto de confrontação, Portugal vivera os 15 meses mais vibrantes da história do país no século 20.

Tudo começara numa alvorada de abril de 74, em que um grupo de oficiais das Forças Armadas, contrariados com os rumos insanos da guerra colonial, mandara para o exílio o ditador Marcello Caetano.

Caetano era herdeiro ideológico e sucessor político de António de Oliveira Salazar, que erigira os contornos do chamado "Estado Novo" na longínqua década de 1930, inspirado nos exemplos de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros nos primórdios da ditadura, em 1932. Oito anos antes, a 7 de dezembro de 1924, nascera em Lisboa o homem que poria fim ao seu legado: Mário Alberto Nobre Lopes Soares.

Seu pai, o educador João Lopes Soares, fora ministro da República e era dono do renomado Colégio Moderno, na capital. Opôs-se ao salazarismo até o fim da vida. Em casa e na escola, Mário aprendeu a odiar a ditadura.

Na faculdade tornou-se comunista, chegando a pertencer ao PCP. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em 1951 e em Direito em 1957, sempre pela Universidade de Lisboa. Foi advogado, professor, jornalista e escritor.

Participou de todos os movimentos de oposição a Salazar, e depois, a Marcello Caetano, e chegou a ser candidato a deputado em 1961, em eleições fajutas que a ditadura promovia e que a oposição eventualmente conseguia entrar.

EXÍLIO

Por sua militância implacável, Soares foi preso 12 vezes pela Pide —a temível polícia política lusitana, treinada pela Gestapo— e chegou a ser torturado. Azucrinou tanto o regime que foi enviado por Salazar a São Tomé, na África.

Seis meses depois, o ditador adoece e é substituído por Marcello Caetano. O motivo da punição extremada fora a investigação provando que o general Humberto Delgado foi assassinado na Espanha pelos esbirros da Pide.

Dissidente do regime, Delgado concorrera à Presidência contra o candidato de Salazar, fora perseguido e se exilara no Brasil. Tentava voltar clandestinamente a Portugal quando, na Espanha, foi alcançado pela polícia política.

Em São Tomé, o socialista escreve o primeiro tomo de seu livro de memórias, "Portugal Ameaçado", ao qual se seguirá, já na década de 70, "Portugal Amordaçado", lançado em Paris às vésperas da Revolução dos Cravos.

Perdoado pelo governo, deixa a ilha africana no final de 1968 e organiza a participação de grupos oposicionistas nas eleições de 1969, quando o país vive um clima de esperança com os acenos liberalizantes do novo governante.

Mais uma vez, porém, as trevas prevalecem e Marcello Caetano volta a apertar os ferrolhos da repressão, entoando a velha ladainha salazarista do "nós ou o comunismo" que faz sucesso no Ocidente em tempo de Guerra Fria.

A Soares resta o caminho do exílio. Parte com a mulher, a atriz Maria Barroso, e os dois filhos para Paris, onde foi professor universitário. Graças aos recursos da família, nunca lhe faltou dinheiro para poder se dedicar à política.

A esta altura suas ideias estão consolidadas. É socialista. Defende a democracia e a liberdade. Aceita o marxismo como método de análise histórica e econômica, mas abomina os regimes da União Soviética e dos seus satélites.

Vem dessa época a piada colhida no Partido Socialista francês e que repetiria tantas vezes: "Os comunistas não estão à nossa esquerda. Estão a leste".

15.jun.1975/AFP
Em foto de 1975, Soares se encontra com o líder do Partido Social-Democrata alemão, Willy Brandt
Em foto de 1975, Soares se encontra com o líder do Partido Social-Democrata alemão, Willy Brandt

Aproxima-se dos líderes europeus da Internacional Socialista, do alemão Willy Brandt ao sueco Olof Palme, e em 19 de abril de 1973 cria o Partido Socialista, numa reunião na cidade alemã de Bad Münstenreifel.

Na plataforma da nova agremiação dois pontos se destacam: restauração da democracia e independência das colônias. Portugal mantinha, então, o maior domínio colonial do planeta: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, na África; Goa e Macau, na Ásia; Timor-Leste, na Oceania.

ARTICULAÇÕES PARA O GOVERNO

Um ano depois, a 28 de abril, retorna como herói a Portugal. Desembarca de trem, aclamado na Santa Apolônia, em Lisboa, que representará para ele o que foi a Estação Finlândia para Lênin.

Só que desta vez o menchevique ganhará a parada. Encontra-se imediatamente com o general António de Spínola, oposicionista conservador guindado ao comando da nação pelos oficiais militares que não sabiam direito o que fazer.

Logo se torna ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Provisório da Revolução dos Cravos. No cargo cumpre um dos pontos fundamentais do programa do seu PS, a independência de todas as colônias.

O segundo ponto —a construção de um regime democrático estável— ainda demandará muita luta e será na adversidade que Mário Soares se transformará no líder político mais notável da história de Portugal no século 20.

25.mai.1975/AFP
Mário Soares visita fazenda do líder socialista francês François Mitterand em Latche, em maio de 1975
Mário Soares visita fazenda do líder socialista francês François Mitterand em Latche, em maio de 1975

Entre 74 e 76, Portugal terá seis governos provisórios, todos com premiês militares, e três presidentes, também militares e legitimados pelas armas, não pelo voto: António de Spínola, Costa Gomes e Ramalho Eanes (este depois confirmado nas urnas).

Foram tempos de grandes comoções sociais, com reforma agrária, ocupações de terras e indústrias, nacionalizações de bancos, radicalização na universidade. A revolução estava nas ruas e os governos adernavam desordenadamente à esquerda.

Nesse cenário destacavam-se três personagens: Álvaro Cunhal, dirigente inconteste do Partido Comunista; Vasco Gonçalves, coronel e primeiro-ministro do 4º e do 5º governos provisórios (os mais esquerdistas do período); e Otelo Saraiva de Carvalho, major e ponta de lança da extrema-esquerda militar.

Coube a Mário Soares dar combate aos três ao mesmo tempo para repor o país nos trilhos da democracia representativa que almejava.

Alvaro Cunhal, confessaria Soares, foi um dos homens que mais o impressionou na juventude por sua determinação antisalazarista e pela coragem de trocar uma confortável carreira universitária pela ação clandestina no Partido Comunista.

Preso por muitos anos, Cunhal empreendeu uma fuga espetacular e reentrou em Portugal no rastro da marcha do MFA para liderar os comunistas. A aversão de Soares ao modelo socialista totalitário afastou-o de Cunhal já nos anos 60.

Mas a divergência ganha fôro de ruptura no dia 1º de maio de 1975. Um ano após a Revolução, Mário Soares, ministro, é impedido de subir ao palanque das comemorações pela tropa de choque do PCP.

21.abr.1975/AFP
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975

Este é o episódio que o fará convocar o povo às ruas naquele 19 de julho que marcará o início do declínio inexorável do PCP (até hoje uma força política de pouca expressão no país).

Afinal, a eleição para a Assembleia Constituinte, pouco antes, em 25 de abril de 1975, já conferira uma importante maioria relativa aos socialistas (38%). Mário Soares contaria mais tarde como foi o choque derradeiro com Cunhal:

"Ele estava eufórico e me diz: 'Nós e os rapazes (era assim que chamava aos homens do MFA) vamos para a frente. Vocês, socialistas, podem fazer um grande bocado do caminho conosco. Ou vêm ou são dizimados'. Eu não tinha grandes ilusões sobre o Partido Comunista, mas nunca me tinha passado pela cabeça que quisesse reproduzir em Portugal de 1974 a Revolução Russa de 1917."

A história mostrou que o juízo de Soares era correto. Enquanto no resto da Europa Ocidental os PCs faziam uma profunda revisão de conceitos, os comunistas locais trabalhavam para criar um estado soviético em Portugal —um desvario total sob a sombra da Otan e os olhares vigilantes dos EUA, no auge da Guerra Fria.

O fato é que os comunistas quase leva Portugal à guerra civil. Altura em que Soares bate às portas das embaixadas britânica e americana para pedir apoio em caso de confito. "Julguei algumas vezes que a guerra era inevitável".

Enquanto o líder do PS articulava as forças democráticas no campo civil, dois outros personagens que seriam fundamentais para os destinos da nação portuguesa operavam nas entranhas do MFA: os majores Vasco Lourenço e Melo Antunes.

Eles criam o Grupo dos Nove —por serem nove membros do Conselho da Revolução que assinam um documento de fundo socialista, mas com vigorosa defesa da solução democrática.

Começa aí, no mais alto organismo do MFA, a derrocada —mais adiante definitiva— da ala da esquerda militar representada por Vasco Gonçalves (aliado dos comunistas) e Otelo Saraiva de Carvalho (da extrema-esquerda).

O GOVERNO

Um ano depois, sob a égide da nova Constituição ± progressista e democrática ±, o PS obtém retumbante vitória nas eleições legislativas que levarão Mário Soares ao cargo de primeiro-ministro do 1ë e do 2ë Governos Constitucionais da República Portuguesa (76-78).

A faina principal agora é arrumar as finanças e reerguer a economia. Com o fim da espoliação das colônias, a desorganização administrativa, as nacionalizações desordenadas e as greves sem fim, Portugal está quebrado.

E lá vai Soares aos EUA apelar ao FMI. É do FMI e da Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia, à qual Portugal aderiria em 86) que virão os recursos para a reconstrução econômica. Com austeridade, estrutura um Estado capitalista e previdenciário nos padrões clássicos da social-democracia europeia.

Desde então, o embate político dá-se fundamentalmente entre forças de centro-esquerda, leia-se Partido Socialista, e o centro-direita.

Nesse contexto, ganhando e perdendo eleições, Soares foi mais uma vez primeiro-ministro entre 83 e 85 até surpreender o país em 1986, lançando-se candidato à Presidência da República quando sua popularidade está no fundo do poço.

Enfrenta dois candidatos de esquerda e um adversário de direita amplamente favorito, o ex-primeiro-ministro Freitas do Amaral.

21.jan.2006/AFP
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos

Passa para o segundo turno raspando com modestos 25% dos votos contra 46% de Amaral. A centro-direita festeja antecipadamente, certo de que os comunistas (21% nas eleições) darão, enfim, o troco a Soares.

Não contavam que no dia seguinte ao primeiro turno, o taciturno Álvaro Cunhal reentraria em cena com a palavra de ordem: "Derrotar Freitas do Amaral". O velho comunista salva a carreira política de Soares.

Na chefia do Estado, Mário Soares, com seu jeito bonachão e firmeza de atitudes, transforma-se no líder mais popular do Portugal democrático, reelegendo-se em 1991 com mais de 70% dos votos no primeiro turno.

Dos três adversários, o que pontuou mais teve 14%. Terminou o segundo mandato presidencial em 1996 no ápice do seu prestígio e assumiu o comando direto da Fundação Mário Soares.

FRACASSO

Aos 81 anos comete talvez seu maior equívoco político, lançando-se novamente candidato à Presidência no pleito de 2006. Sofre uma derrota vexatória ao obter escassos 14,3% dos votos.

O conservador Aníbal Cavaco Silva vence no primeiro turno, com 50,6%. Admitiria mais tarde não ter seguido o sábio conselho da família: "de que era melhor que eu ficasse em casa".

Patrícia de Melo Moreira - 30.nov.2014/AFP
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014

Desde então, Soares dedicou-se à sua Fundação, à participação como membro de júris e comissões, portuguesas e internacionais, até que com o advento da crise econômica europeia desdobrou-se em palestras e entrevistas contra a austeridade imposta pela UE (leia-se Alemanha) e FMI a países à beira da insolvência —Portugal incluído.

Afirmando que a Europa "está à beira do precipício", apelou, em junho de 2012, ao povo português para se opor firmemente ao plano de austeridade do "governo de centro-direita", chegando a elogiar as greves. Nessa cruzada, não poupou críticas à chanceler alemã Angela Merkel que —dizem nos bastidores— detestava.

Em "Um político assume-se", de 2011, fez uma espécie de balanço de sua vida em que, em meio ao relato de sucessos e desencantos, conclui com uma afirmação de esperança nos destinos da humanidade e reafirma sua crença no socialismo democrático.

Jamais perdeu o bom humor que o acompanharia até o fim. Afinal, não poderia viver de mau humor alguém que moldou o período mais virtuoso da moderna história de Portugal.

Alguém que transformou a "província imperial" de Salazar —arcaica e sem graça, isolada e cruel— numa nação democrática, desenvolvida, alegre e culta, orgulhosamente europeia. De certa forma, Mário Soares é o pai dessa pátria.

* PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor. Foi correspondente da Folha em Roma de 1978 a 1981.


Fonte: http://m.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1847975-soares-fez-provincia-imperial-virar-nacao-orgulhosamente-europeia.shtml?mobile


Com o Nobel para Bob Dylan, é hora de redescobrir os trovadores

Espanha, Portugal e Brasil não poderiam reagir com espanto diante do prêmio a Bob Dylan. Nossa literatura em comum nasceu com a música dos trovadores.

Por esta, as casas de aposta britânicas não esperavam: o cantor Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2016. Seria um sinal de que as já questionáveis fronteiras entre a cultura pop e a chamada alta literatura estão se desfazendo? Deixemos essa questão a quem interessa: os círculos acadêmicos obcecados por categorizar os gêneros do discurso.

Ao mundo hispanoamericano, no entanto, cabe uma lembrança oportuna: a importância dos trovadores para nossa formação cultural e sua atualidade nem sempre reconhecida.

Sim, houve um tempo em que poesia e música eram indissociáveis. A literatura na Península Ibérica nasceu com o canto dos trovadores da Idade Média, menestréis ambulantes ou abrigados nas cortes da Galícia e do norte de Portugal. Eles construíram um vigoroso retrato do amor medieval e deram lugar à voz feminina nas suas composições. Foram eles também os que denunciaram as mazelas daquela sociedade em suas cantigas de escárnio e maldizer.

Soterrados por séculos de esquecimento, os trovadores sofreram críticas pedantes que os consideravam repetitivos, vulgares...populares demais, enfim. Houve uma crueldade especial por parte dos eruditos até sua eventual redescoberta pela professora Carolina Michaelis de Vasconcelos, já no início do século XX. Vale notar que a lacuna de percepção que os menosprezou por 600 anos tem uma estreita relação com o esnobismo acadêmico que recusa às letras de canção o status de nobreza da poesia.

Para os brasileiros, nada disso faz sentido. Aí esteve Vinícius de Moraes que não nos deixa mentir. Tampouco a profunda absorção e diálogo entre MPB e literatura. Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, tornou-se espetáculo musical nas mãos de Chico Buarque; Caetano Veloso e suas constantes referências e citações literárias; José Miguel Wisnik e sua produção musical; Antonio Cícero poeta e letrista, e aí vão muitos et ceteras. Quando perguntaram a Manuel Bandeira qual o mais belo verso já escrito no Brasil, o poeta pernambucano respondeu: “Tu pisavas nos astros, distraída”, decassílabo de Orestes Barbosa na letra de Chão de estrelas.

Mesmo assim, entre nós, as manchetes denunciam a surpresa diante do compositor nobelizado. Como se não fosse ele sério o suficiente. Como se ele fosse produto de outro mundo... popular demais, enfim.

Espanha, Portugal e Brasil não poderiam reagir com espanto diante do prêmio a Bob Dylan. Nossa literatura em comum nasceu com a música dos trovadores. A lírica galego-portuguesa é um ponto de convergência das culturas ibéricas e influenciou profundamente a tradição brasileira. Não há como compreender a cultura popular nordestina, os repentes, os cantos de aboiar, a literatura de cordel, sem a presença do medievo ibérico, notadamente das cantigas trovadorescas. E o amor romântico, da literatura à música popular mais dor de cotovelo, alimenta-se delas também, em boa medida.

Infelizmente, o ensino de literatura nas escolas brasileiras mais e mais abandona o trovadorismo. Já na Galícia, há um movimento de revalorização da produção dos trovadores, na educação e na cena cultural. Os jovens voltam a se interessar pela cultura daquele período, produzindo inclusive música de excelente qualidade, reinventando a tradição. Seria hora de nós, aqui no Brasil, seguirmos o exemplo.

Por: José Ruy Lozano é professor do Instituto Sidarta e autor de livros didáticos.


Fonte: El País


José Roberto de Toledo: Caçando o voto inútil

Quem anula ou vota em branco pode, sem saber, ajudar o candidato mais votado.

Para 16 milhões de brasileiros, o voto se tornou inútil. No domingo passado, eles votaram em branco ou anularam, propositalmente ou não. É a maior ocorrência de votos inválidos em ao menos 20 anos: 13,7%. Mas, para ser compreendido, o fenômeno precisa ser escrutinado, sopesado, dividido. O diabo eleitoral é detalhista, nada tem de genérico. Não adianta procurar, o eleitor médio não existe. Se existisse, teria um seio e um testículo.

Antes de mais nada é preciso separar abstenção de brancos e nulos. Abstenção é um problema eminentemente cadastral. A Justiça Eleitoral não atualiza a listagem de eleitores como deveria. Ela está repleta de fantasmas e dados desatualizados sobre quem deveria votar - do endereço dos pais à escolaridade que o eleitor tinha aos 16 anos quando tirou seu título.

Tanto é assim que nos municípios onde houve recadastramento recente, como em Manaus, a abstenção foi menos da metade da média brasileira e quase um terço da verificada em cidades onde os cadastros não são atualizados há 30 anos, como São Paulo.

Só 8% dos eleitores manauaras não deram as caras, contra 22% dos paulistanos. É porque o cadastro eleitoral não tira a urna funerária da urna eletrônica em São Paulo. Mais idosos têm a zona eleitoral, como as do centro, mais abstenção. Quando os mortos se abstêm não há problema. Problema é quando eles votam.

À medida que mais localidades implantarem o sistema biométrico, mais viva e atualizada ficará a listagem de eleitores, porque o recadastramento é obrigatório. O problema é a falta de manutenção, porém. Cidades que recadastraram eleitores há mais tempo registraram taxas crescentes de abstenção no domingo.

Incompetência burocrática à parte, o problema para a democracia são os votos brancos e nulos. Porque eles indicam indiferença, revelam que para milhões e milhões tanto faz quem for eleito - porque, pensam eles, vai continuar tudo na mesma, sem solução.

Mas mesmo entre os votos nulos há que se separar os de protesto daqueles provocados pela Justiça Eleitoral ao anular a votação de candidatos cujos nomes estavam na urna eletrônica. Os nulos por impugnação somam 3,3 milhões de votos. Ocorreram em cidades como Matão, no interior de São Paulo, onde por causa do indeferimento da candidatura de Cidinho PT, seus 4.720 votos foram anulados, e o vencedor, Edinardo Esquetine (PSB), ficou com 100% dos votos válidos. O voto para prefeito desses 3,3 milhões acabou sendo inútil, mas não por vontade deles. Foi obra da Justiça Eleitoral.

Brancos e nulos de protesto (fazendo de conta que ninguém digitou número errado) somaram quase 13 milhões, ou 11% dos 119 milhões de eleitores que compareceram à sua seção de votação. É indiferença à beça, mais do que a população de Portugal, da Grécia ou da Bolívia. Mas os indiferentes não estão distribuídos uniformemente - nem pelo País nem dentro das cidades.

Já descontados os anulados pela Justiça, os brancos e nulos foram muito mais importantes em Belo Horizonte (21,5%) do que em Rio Branco (6,3%), gritaram mais alto no Rio (18,3%) do que em São Luís (7,4%), foram mais decisivos em São Paulo (16,6%) do que em Belém (8%). Decisivos? Voto nulo decisivo?

Decisivo, sim. Quem anula ou vota em branco pode achar que está apenas protestando, mas, sem saber, pode ajudar o mais votado. Aconteceu em São Paulo.

Os votos nulos e brancos apareceram proporcionalmente três vezes mais na periferia pobre do que no centro rico paulistano. Se dependesse das áreas pobres, a eleição teria dois turnos. Mas como até 20% de seus eleitores invalidaram seus votos, o peso da periferia diminuiu no total. E a vontade esmagadora do centro decidiu a eleição no primeiro turno. O voto inútil para uns foi útil para outros. Sorte de João Doria (PSDB).


Fonte: politica.estadao.com.br