populismo
Fábio Alves: Perdendo o bonde
Brasil está perdendo o bonde do crescimento acelerado da economia global
É cada vez maior o número de fundos de investimentos nacionais que está alocando uma parcela grande de suas carteiras em ativos no exterior, diante da percepção de que o Brasil está perdendo o bonde da elevada liquidez internacional, dos estímulos fiscais em países desenvolvidos e do maior otimismo com o crescimento acelerado da economia global em 2021.
Por enquanto, se esses gestores nacionais ainda não migraram em massa para posições apostando na derrocada de ativos domésticos, muitos deles reduziram significativamente a tomada de risco no Brasil, deixando de aproveitar uma possível alta da Bolsa brasileira ou valorização do câmbio. Ou seja, os ativos brasileiros estão ficando para trás e podem não aproveitar o vento a favor dos mercados globais.
Na semana passada, por exemplo, o Ibovespa caiu 2,47%, acumulando uma perda de 6,25% em apenas duas semanas. Enquanto isso, os índices das principais Bolsas americanas renovaram recordes históricos de alta no período, com o S&P 500 subindo 1,94% na semana e o Nasdaq saltando 4,19%. Já o dólar valorizou-se 3,30% na semana passada, elevando os ganhos a quase 6% em apenas 22 dias de janeiro e deixando o real brasileiro como a moeda com pior desempenho entre as emergentes.
O temor que vem se alastrando nas últimas semanas entre os gestores nacionais é o de que a retomada da economia brasileira poderá se frustrar neste ano em meio ao descontrole da pandemia do coronavírus no País, ao atraso no programa de vacinação, à maior pressão política no Congresso para a renovação do auxílio emergencial e, por tabela, à ameaça ao teto de gasto, a única âncora fiscal a sustentar a confiança dos investidores.
O consenso das estimativas aponta para um crescimento do PIB brasileiro de 3,49% neste ano, segundo a Pesquisa Focus, do Banco Central. Mas o banco BNP Paribas, por exemplo, reduziu recentemente sua projeção para o PIB de 2021 de 3,0% para 2,5%. Enquanto isso, o banco Goldman Sachs elevou sua previsão de expansão do PIB dos EUA para 6,6% neste ano. E o Barclays projeta um crescimento de 5,7% da economia mundial.
“Estamos mais reticentes com os ativos brasileiros por achar que a relação risco retorno está pior do que a dos ativos lá fora, pois ainda que vejamos, por exemplo, maior potencial de alta na Bolsa brasileira do que as de países desenvolvidos, o risco aqui é de piora enquanto lá fora esse risco é menor”, diz Fabiano Godoi, sócio fundador e diretor de investimentos da Kairós Capital, fundo que passou a aplicar em ativos no exterior nada menos do que 95% dos R$ 520 milhões sob gestão.
Para ele, a ameaça iminente é de uma crise fiscal. “Nas últimas semanas, tudo o que a gente escuta dos políticos, seja no Executivo, seja no Congresso, é que é preciso voltar com o auxílio emergencial, o que indica uma direção de piora fiscal”, diz.
No curtíssimo prazo, o foco dos investidores estará na aprovação do Orçamento de 2021. Se o Congresso aprovar um Orçamento que respeite o teto de gastos, sem incluir jeitinhos para gastos extras fora do teto, a sinalização será positiva para o mercado de que o País não caminha para um precipício fiscal.
Mas a eleição para a presidência da Câmara e do Senado, no dia 1 de fevereiro, vem turvando essa perspectiva, uma vez que os principais candidatos para o comando das duas Casas vêm fazendo declarações em apoio à prorrogação do auxílio emergencial.
“Independentemente do mérito, fazer mais gastos fiscais sem ter aprovado reformas como a PEC Emergencial ou a administrativa é um risco muito importante no médio prazo e o que está causando essa divergência entre o desempenho dos ativos brasileiros e de outros países”, diz Godoi. Ele espera que o Orçamento de 2021 possa ser aprovado até o fim de março, mas que apenas a PEC Emergencial, entre as reformas que têm impacto fiscal imediato, possa sair até o fim do ano.
“Não quero estar vendido em Brasil, pois os preços dos ativos domésticos estão convidativos – o real é uma das moedas mais baratas do mundo –, mas só não quero estar em Brasil neste momento, pois o equilíbrio é instável: ou o mercado vai melhorar muito ou a piora será rápida”, afirma Godoi.
Luiz Felipe D’Ávila: Três medidas para enfrentar o populismo
Para derrotá-lo, a união do centro em torno de propostas factíveis e um candidato competitivo
A democracia necessita de civilidade, instituições e lideranças exemplares para prosperar. Os valores e princípios que moldaram o florescimento da liberdade, do Estado de Direito, da igualdade de oportunidades e da criação de riqueza por meio da economia de mercado livraram milhões de pessoas de três males que acometeram a humanidade durante séculos: a tirania, a miséria e a barbárie.
Mas as democracias não são perfeitas. Elas enfrentam crises que as obrigam a rever crenças, valores e leis. Nos Estados Unidos, a escravidão era um direito constitucional no século 18, mas foi abolida na segunda no século 19. O apartheid racial só foi sepultado em 1964, quando se aprovou a Lei dos Direitos Civis. Em 2008 os americanos elegeram Barack Obama, o primeiro presidente negro do País.
Crises costumam liberar os glóbulos brancos das democracias, permitindo que elas evoluam de maneira gradual para adaptar as instituições, as leis e os costumes aos novos tempos. A democracia norte-americana deve sair mais forte da era Trump. O presidente que dizimou a civilidade na política e buscou destruir a credibilidade das instituições foi expurgado do poder pelos eleitores. O Partido Republicano, que agiu de maneira oportunista e abandonou suas bandeiras para surfar no populismo de Trump, foi dilacerado. As fissuras internas entre a ala histórica e os trumpistas demandarão um penoso esforço para desintoxicar o partido do populismo e resgatar seus valores e ideais. A intolerância e o ódio desencadeados pelo populismo acirraram a divisão política, econômica e social, obrigando os Estados Unidos a enfrentar os reais problemas: a questão racial, a crescente desigualdade de oportunidades e a raivosa política de identidade que minou a civilidade e a tolerância no País.
Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos prometendo restaurar a decência na política. Não há missão mais importante neste momento. Restaurar a decência significa respeitar a Constituição, as leis e as instituições, e não se sublevar contra elas quando as decisões não nos agradam. Implica honrar o mandato, travando o debate político no âmbito das regras do jogo, da civilidade e da cordialidade, e repudiando os atalhos do ódio e da intolerância, que esgarçam a confiança na democracia. Requer esclarecer a opinião pública e ter a coragem de frustrar alguns eleitores para defender os interesses da nação e das futuras gerações.
O Brasil pode extrair lições importantes da experiência norte-americana. Os efeitos colaterais do populismo podem ser mitigados com três medidas.
Primeira: a imprensa séria não pode agir como as redes sociais – que muitas vezes atuam como a cracolândia da informação. Precisa concentrar-se em noticiar os fatos que afetam o destino do País, mas necessita de discernimento para ignorar o turbilhão de impropérios que alimentam o Twitter dos populistas e de seus seguidores. Ao dar projeção nacional ao palavrório irresponsável que encanta a tribo dos radicais, a imprensa contribui para alimentar a covid do populismo. A indiferença é um potente antibiótico, sem a luz dos holofotes o vírus perece.
Segunda: os contrapesos constitucionais têm de agir para preservar a democracia. O Congresso precisa aprovar as reformas para tirar o País do atoleiro do baixo crescimento e libertar a Nação do cativeiro de privilégios concedidos ao corporativismo público e privado. Esses males comprometem a qualidade do serviço público, a eficiência do governo e a credibilidade das instituições democráticas. É imperioso que o Judiciário restaure o seu papel de guardião das leis e da Constituição e abandone o voluntarismo de juízes e de promotores que transformaram a interpretação da lei num vespeiro de insegurança jurídica. Por fim, tanto o Legislativo como o Judiciário devem exercer o seu papel fiscalizador e empregar os contrapesos constitucionais para frear as tentativas espúrias de governantes populistas que buscam achincalhar o Estado de Direito e as instituições democráticas.
Terceira: o centro democrático precisa se organizar rapidamente. Hoje, sua atuação é marcada pela absoluta ausência de ideias, propostas e liderança. Como diz o poeta W. B. Yeats, “o centro não se sustenta. Os melhores sem suas convicções, os piores com as mais fortes paixões”. A maioria dos eleitores precisa estar convencida de que existem alternativas concretas e líderes preparados para livrar o País do desastroso legado populismo: aumento recorde da pobreza e do desemprego, baixo crescimento econômico, calamitosa gestão da crise da pandemia, descrédito internacional e governos incompetentes e incapazes de reformar o Estado.
Em 1994 o centro tinha um plano (o Real) antes do surgimento da sua candidatura (Fernando Henrique Cardoso). Quando Fernando Henrique se tornou o rosto do Plano Real, venceu o populismo no primeiro turno em 1994 e em 1998. Somente a união do centro em torno da construção de propostas factíveis e de uma candidatura competitiva podem derrotar o populismo nas urnas em 2022.
Maria Hermínia Tavares: Poderia ter sido pior, mas a democracia brasileira barrou o populismo
Nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes
Fim de ano é época de dar sentido ao que aconteceu no período. Perguntar-se, por exemplo, como as instituições democráticas brasileiras se comportaram ao longo desses meses de medo e morte. Para fazê-lo com algum método, nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes. Com a vantajosa circunstância de ter o respaldo de dois estudos recém-publicados por organizações independentes que monitoram o estado da democracia no mundo.
O primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown – o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.
De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.
Pior ainda, em 91 deles restringiu-se a liberdade de imprensa. Das 22 eleições marcadas para este ano, sete foram adiadas e quatro tiveram suas regras alteradas. A violência policial relacionada às medidas de restrição aumentou em 59 países. Num em cada quatro, multiplicaram-se as restrições a minorias étnicas e religiosas. O Brasil ficou no grupo daqueles nos quais a praga não debilitou o sistema democrático.
O segundo dos estudos citados é o “Balanço das tendências democráticas na América Latina e Caribe antes e durante a epidemia da Covid-19”, produzido pela organização Idea Internacional.
Embora a meta, o método e algumas das dimensões por ela observadas sejam diferentes, as conclusões se assemelham às da Freedom House. A pandemia aprofundou problemas crônicos das democracias na região. As respostas variaram muito e nem todas agravaram as grandes limitações do sistema político.
Apesar de tudo, graças à reação do Legislativo e do Judiciário, à força da Federação, à autonomia da imprensa e à resistência da sociedade organizada, a democracia brasileira logrou barrar as investidas do populismo de direita instalado no Planalto.
Pode não parecer muito, dada a enormidade dos desafios que o país já enfrentava e que a pandemia agrandou. Foi pior em muitos lugares. Poderia ter sido também aqui.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Marcus Pestana: Sobre conservadores, liberais, progressistas e reacionários
Apesar dos efeitos paralisantes ocasionados pela pandemia da Covid-19, fatos importantes marcaram o cenário internacional em 2020, oferecendo pistas sobre o futuro e as ideias que o presidirão. O mais importante foi a vitória do democrata Joe Biden nos EUA e a derrota de Donald Trump. Parece uma sinalização clara de esvaziamento da onda de crescimento do populismo autoritário. O sentimento anti-globalista, xenófobo, racista, iliberal, antidemocrático, anti-humanista, vai dando lugar novamente a um mundo mais integrado, solidário e comprometido com a liberdade e a tolerância. Também os tropeços da concretização do Brexit, numa complexa negociação entre a Inglaterra e a União Europeia, indicam que a escolha da população inglesa talvez não tenha sido a melhor.
A China continua sua longa marcha rumo à hegemonia econômica, e mesmo servindo de espantalho ideológico para a guerra cultural dos reacionários, nunca esteve tão distante, com seu capitalismo de Estado ou seu socialismo de mercado, da matriz de pensamento marxista-leninista-maoísta. O resíduo que existe de socialismo real agoniza nas experiências de Cuba, Venezuela, Nicarágua e na exótica presença da Coreia do Norte no cenário mundial. Líderes do centro democrático, como Ângela Merkel e Macron, procuram manter posição de equilíbrio, diálogo e defesa da democracia. A esquerda moderna e democrática procura respostas para o futuro no reposicionamento permanente do PD italiano, do PS português, do PSOE espanhol, dos socialdemocratas alemães em crise e do enfraquecido PS francês.Diante deste quadro assistimos a um embaralhamento desqualificado de conceitos e valores, onde há uma confusão enorme entre conservadorismo, liberalismo, progressismo e reacionarismo. Na polarização ideológica global os reacionários procuram usar o escudo do liberalismo e do conservadorismo contra uma caricatural e inexistente ameaça comunista.
Quando se desce do patamar do debate intelectual para a guerrilha das redes sociais, aí que a confusão se aprofunda e o besteirol ideológico impera. Vejo, no Brasil, um amplo espaço para a necessária convergência entre os verdadeiros conservadores, liberais e progressistas, em torno de uma agenda que articule a defesa da liberdade política, econômica e individual, a eficiência do Estado, o fortalecimento da sociedade civil e o combate às desigualdades. Por isto, é importante separar o joio do trigo.
Dou aqui algumas dicas para aqueles que de boa fé querem travar um debate qualificado sobre as ideias que devem governar nosso futuro. Quem quiser conhecer o verdadeiro pensamento conservador sugiro a leitura do livro “Edmund Burke, redescobrindo um gênio” de seu discípulo Russel Kirk. Para quem quiser ser introduzido no pensamento liberal uma boa dica é “O chamado da tribo, grandes pensadores para nosso tempo” de Mário Vargas Llosa. Os que quiserem se aprofundar numa visão progressista de mundo recomendo os artigos e livros do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, quem quiser contrastar tudo isso com a visão atrasada e regressiva dos reacionários leia os livros de Olavo de Carvalho e os escritos de nosso chanceler Ernesto Araújo.
A teoria sem prática é estéril. A prática sem boa teoria é cega. Se queremos outro Brasil, o primeiro passo talvez seja colocar as ideias em ordem.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Pedro Cafardo: Populismo e terrorismo na polarização fiscal
Paulo Guedes é cobrado por não cumprir promessas
Dilma Rousseff deve estar rindo e não à toa. Ela foi acusada em 2015 de cometer estelionato eleitoral, com certa razão, e agora assiste de camarote o pessoal do atual governo provar do mesmo veneno. O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem sendo ferozmente criticado por executivos do mercado financeiro por não articular um plano para resolver a questão fiscal.
O próprio presidente do Banco Central fez, dias atrás, cobrança indireta a Guedes, dizendo que o país precisa de um plano que dê clara percepção aos investidores de que está preocupado com a “trajetória da dívida”.
A expressão acima não está entre aspas por acaso. Ela é fundamental no pensamento fiscalista dominante, diariamente repetido por economistas. Considera-se que, com a dívida bruta se aproximando de 100% do PIB, o país enfrentará um período dramático, porque perderá a confiança dos investidores e, sem esses recursos, não terá como reativar a economia.
O economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, discorda dessa opinião quase consensual no universo financeiro. Ele considera a preocupação com a confiança dos investidores infundada, porque em várias ocasiões na história, principalmente após guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas maiores que o PIB. E mesmo em situações normais, muitos mantêm até hoje esse nível, entre eles Estados Unidos, Itália e Japão.
Lara Resende é impiedoso ao contestar esse terrorismo fiscal, como dizem alguns críticos. “A pergunta mais complicada de ser respondida é: por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada ‘Visão do Tesouro’, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério”, disse o economista em entrevista ao “Estadão”.
O argumento de Lara Resende é que, desde que não siga uma trajetória explosiva, a dívida pública pode crescer e se estabilizar assim que passar a crise. O que pode preocupar é a dívida externa, mas nesse quesito o país vai muito bem, porque tem reservas cambiais de quase 30% do PIB, cerca de US$ 350 bilhões. A insolvência externa, esta sim, quebra um país, daí a célebre frase do ex-ministro Mário Henrique Simonsen: “A inflação aleija, mas o câmbio mata”.
Toda essa divagação sobre a questão fiscal é para dizer que Paulo Guedes, um fiscalista confesso, está agora sendo criticado por inoperância exatamente nessa área. A ponto de se espalhar a ideia de que ele deixou de ser o fiel da balança do governo, segundo dizem reservadamente executivos de bancos e investidores institucionais diariamente ouvidos pelo Valor. Sua eventual saída, portanto, não mais representaria uma ruptura na visão agora dominante no mercado. Mas o mercado quer um substituto que tenha compromisso com a agenda da responsabilidade fiscal, ou “Visão do Tesouro” do século XIX.
No fundo, o mercado faz com a equipe econômica de hoje o mesmo que a oposição fez em 2015 com o governo Dilma. Acusa-o de prometer uma coisa e fazer outra. Durante a campanha para a eleição de 2014, na qual superou Aécio Neves (PSDB) por poucos votos, Dilma garantiu que não haveria arrocho às custas dos mais pobres e que benefícios trabalhistas não seriam reduzidos. “Nem que a vaca tussa”, disse. Reeleita, porém, nem foi preciso a vaca tossir. Ela logo elevou impostos sobre gasolina, operações financeiras e cosméticos. E mudou normas trabalhistas, entre outras, o seguro-desemprego. Também vetou a correção da tabela do Imposto de Renda, o que atingiu em cheio a classe média. A oposição considerou essas medidas estelionato eleitoral, até porque Dilma nomeou para o Ministério da Fazenda um economista fiscalista radical, Joaquim Levy, conhecido como “mão de tesoura”.
Guedes estaria cometendo estelionato eleitoral pela razão oposta. Durante a campanha de Bolsonaro, ele prometeu adotar uma política econômica ultraliberal, com rigorosa austeridade fiscal, corte implacável de gastos, forte contenção de salários, demissão de servidores públicos e privatização de estatais. Seja lá como for, por razões políticas ou pela crise sanitária, Guedes não entregou o prometido nos dois primeiros anos de governo, com exceção da decantada reforma da Previdência. E a continuidade da pandemia indica que o “Posto Ipiranga” não conseguirá entregar muito mais em 2021. Mas o mercado quer sangue.
Estão em choque o populismo e o terrorismo fiscal, ambos altamente danosos.
Mudando completamente de assunto, observe o símbolo acima. Você está cansado de vê-lo por aí, em estacionamentos. Mas, algo o incomoda? Se não, provavelmente não é idoso. O leitor Humberto Viana Guimarães é. Ele leu coluna neste espaço, meses atrás, com o título “Clichês que aborrecem e eufemismos inócuos” e diz ter se divertido muito. E também fez uma observação sobre o preconceito exalado por esse símbolo. O assunto veio à baila porque as denúncias de violência contra idosos aumentaram 72% durante a pandemia. Foram de 62 mil no país de janeiro a setembro.
Guimarães irrita-se com esse símbolo que identifica vagas para idosos em estacionamentos, sempre de um velho curvado, com uma bengala na mão. Diz que tem 70 anos, postura correta, não usa bengala e faz diariamente três horas de exercícios físicos.
Ele tem razão. Um senhor naquelas condições provavelmente não estaria dirigindo um carro e não precisaria da vaga. A placa indica flagrante preconceito.
Tramita há anos no Congresso um projeto de lei que proíbe o uso de símbolo pejorativo de idoso. Mas será que isso precisaria de lei?
Folha de S. Paulo: Trump implodiu direita intelectual e deixa legado populista
Mesmo derrotado, presidente ampliou votação entre negros e latinos e pode moldar futuro do Partido Republicano
Carlos Gustavo Poggio, Folha de S. Paulo
[RESUMO] Mesmo derrotado, presidente se firma como a maior referência simbólica do Partido Republicano desde Reagan. Rejeitado pela elite partidária, ele implodiu a vertente conservadora mais intelectual, impôs uma agenda nacional populista no lugar da liberal internacionalista e ampliou a votação de sua sigla na classe média pouco instruída e entre negros e latinos, o que pode levar a uma completa reformulação trumpista do partido.
As eleições de 2020 nos Estados Unidos confirmaram o diagnóstico que já havia ficado claro em 2016: os republicanos enfrentam um desafio demográfico, ao passo que os democratas estão diante de um dilema geográfico.
A dependência dos republicanos em relação ao eleitorado branco e mais velho em um país que se torna cada vez mais diverso tem sido um problema que há anos assombra as lideranças do partido. Por outro lado, o apoio aos democratas se concentra crescentemente nos grandes centros urbanos.
Como eles perceberam dolorosamente em 2016, em um país que elege presidentes via Colégio Eleitoral e não por voto popular, não basta ser mais votado: os votos precisam estar distribuídos nos lugares certos.
O futuro da política norte-americana vai depender de como ambos os partidos vão lidar com esses impasses. O resultado das urnas neste ano pode nos dar algumas pistas.[ x ]
O caminho para o Partido Democrata, como a vitória de Joe Biden deixou claro, é contar com um alto índice de comparecimento às urnas para aproveitar a vantagem demográfica —e torcer para que a margem de vitória nos grandes centros urbanos de estados-chave seja grande o suficiente para compensar a vantagem republicana no interior.
Pode parecer uma fórmula relativamente simples, mas depende de algum fator que mobilize o eleitorado. Em 2008, esse fator foi Obama. Em 2020, Trump. A má notícia para os democratas é que uma candidatura que gere o tipo de entusiasmo verificado em 2008 e 2020, seja por estímulos positivos ou negativos, não ocorre com frequência.
O desafio dos republicanos, porém, é bem mais complexo. Antes de mais nada, terão de lidar com uma profunda crise de identidade. Até 2016, a referência central do partido era o ex-presidente Ronald Reagan —reconheça-se, contudo, que mesmo antes da eleição de Trump esse apelo dava sinais de enfraquecimento.
Em 2010, Lindsey Graham, senador republicano pela Carolina do Sul, chegou a dizer que mesmo Reagan, fosse vivo, teria dificuldades em se eleger pelo partido naquela ocasião. Todavia, foi com a vitória de Trump que, pela primeira vez em quase 40 anos, surgiu uma figura para disputar a influência simbólica no partido.
Reagan subiu ao poder em 1980 depois de anos de articulação intelectual do conservadorismo norte-americano, a partir da fundação da revista National Review em 1955, por William Buckley Jr. Por outro lado, Trump é produto da implosão dessa vertente conservadora. A questão agora é o que os republicanos vão fazer com os cacos.
A captura trumpista do Partido Republicano ocorreu de baixo para cima e não no nível do establishment —que, a propósito, ainda tem dificuldades em lidar com a novidade. Um dos poucos apoios da elite partidária a Trump veio de Bob Dole, que disputou a eleição presidencial de 1996.
Mitt Romney, candidato em 2012, tem sido um dos maiores críticos de Trump entre os republicanos. John McCain, que morreu em 2018, também rejeitou o atual presidente no pleito de 2016, e a sua esposa fez campanha para Biden neste ano. George W. Bush tem adotado uma postura mais discreta, mas sabe-se que não votou em Trump nem em 2016 nem em 2020. O filho de Reagan chegou a declarar em entrevista recente que o pai ficaria horrorizado com o governo que se encerra agora.
Parte do apelo de Trump, contudo, reside justamente na rejeição a esse establishment. Ele soube identificar uma parcela significativa do eleitorado americano que não se sentia representada, por exemplo, pela globalização e seus acordos de liberalização comercial, por uma postura aberta com relação à imigração e por uma política externa assertiva de promoção dos valores americanos ao redor do mundo, mesmo que pela via militar.
Como alternativa a essa postura liberal internacionalista, Trump requentou um nacional-populismo que até então se encontrava às margens no Partido Republicano. Em 1992 e 1996, o representante dessa vertente foi Pat Buchanan, que concorreu às primárias republicanas nas duas ocasiões defendendo uma pauta de caráter nacionalista, isolacionista, protecionista, de combate ao multiculturalismo e fortemente anti-imigração.
Tudo isso estava na contramão dos valores defendidos pela elite republicana nos anos 1990. A rejeição à retórica de Buchanan ficou clara quando ele deixou a legenda e concorreu às eleições de 2000 pelo Partido Reformista. Com o slogan “America first” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), obteve menos de 0,5% dos votos e hoje poucos se lembram de sua campanha.
Ajudado pelas novas ferramentas de mídias sociais, que não estavam disponíveis à época de Buchanan, e pelas sequelas da crise econômica de 2008, Trump reuniu uma nova coalizão eleitoral que se mostrou vencedora em 2016 e competitiva em 2020, mesmo com os problemas demográficos enfrentados pelo Partido Republicano.
Da base que sustentava o partido desde Reagan —formada principalmente por defensores do livre-comércio, neoconservadores que advogam uma política externa intervencionista e os conservadores sociais representados pelo eleitorado evangélico—, Trump preservou apenas este último grupo. Os dois primeiros permanecem como os principais críticos internos do trumpismo, mas a sua influência parece ter diminuído consideravelmente.
Para o lugar deles, Trump cooptou uma parcela significativa da classe média e de brancos sem ensino universitário que costumavam votar nos democratas, enfraquecendo a chamada muralha azul em estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
Assim, quando Trump ressuscitou a agenda de Buchanan em 2016, encontrou uma audiência mais receptiva nos eleitores que se afastaram do Partido Democrata tanto por razões econômicas quanto culturais. Esse eleitorado passou a não enxergar diferenças significativas nas pautas econômicas dos dois partidos, dado que ambos levantavam a bandeira do livre-comércio, por exemplo.
Tal diferenciação deslocou-se então para o campo cultural, a partir da rejeição à agenda progressista na esfera dos valores, como a defesa de pautas identitárias e do aborto, e da percepção de que os democratas falavam apenas às elites costeiras, ignorando o interior do país. Nesse contexto, a adoção de uma linguagem politicamente incorreta por Trump ajudou a capturar esse eleitorado.
Não foi à toa que, na convenção republicana de 2016 em que foi sacramentado candidato, Trump voltou-se para o que chamou de os esquecidos pela elite política e bradou: “Eu sou a sua voz”.
O Partido Republicano deve responder agora se a coalizão reunida por Trump será uma divisão interna de relevo ou a nova base de toda a sigla. No médio prazo, parece descartada a hipótese de que a derrota neste ano signifique um retorno completo ao período anterior a 2016. O partido foi profundamente modificado pelo trumpismo.
A questão é de grau, ou seja, se o Partido Republicano irá se reformular completamente à imagem e semelhança de Trump ou se vai simplesmente absorver algumas mudanças, ao mesmo tempo que tenta preservar características da era pré-Trump.
Parte da resposta a essa pergunta passa por compreender quais lições os republicanos vão tirar de 2020, em especial no que se refere aos desafios demográficos —e elas não são óbvias.
Nas últimas oito eleições, da de 1992 à de 2020, os republicanos tiveram três vitórias (duas de Bush, em 2000 e 2004, e uma de Trump, em 2016), mas apenas a segunda de Bush também ocorreu no voto popular.
Desde 1964, nenhum candidato republicano em disputas presidenciais atingiu mais que 15% do voto negro —desde 1980, esse número tem flutuado entre 4% e 12%. Em 1992, um artigo na revista Political Science Quarterly indicava que os republicanos deveriam ter como meta capturar 20% do voto negro para permanecerem competitivos no futuro.
Em 2016, o partido obteve 8% do voto de negros com Trump. A estimativa para 2020 é de 12%, um crescimento de 50%, e apenas a terceira vez em 40 anos que os republicanos chegam a esse índice.
Se considerarmos somente homens negros, Trump chegou a 19%, bem próximo da desejada meta. Mesmo entre mulheres negras, Trump foi de 4% em 2016 para 9% em 2020, um incremento de mais de 100% nesse grupo.
Além disso, para serem eleitoralmente viáveis, os republicanos precisam se esforçar para atrair parcelas expressivas do eleitorado latino, o grupo minoritário que mais cresce nos Estados Unidos e que hoje representa parcela idêntica à do eleitorado negro: 13%.
Aqui também o trumpismo demonstrou ter algum apelo, conseguindo expandir a votação nesse grupo, de 28% em 2016 para 32% em 2020, o melhor índice para o partido em quase duas décadas, com ganhos expressivos em estados como Texas, Flórida e Nova York.
Assim como a expressiva votação obtida por Biden é em grande parte produto da rejeição a Trump, o desempenho de Trump entre alguns grupos demográficos pode ser mais uma rejeição da agenda democrata que um apoio explícito ao trumpismo. Afinal de contas, muitos eleitores negros e latinos, em especial os mais velhos, definem-se como conservadores.
A questão crucial sobre esses dados é se representam uma tendência ou se são pontos fora da curva. Ainda é cedo para responder. Uma hipótese plausível é que o aumento do apoio a Trump em determinados segmentos demográficos deve-se a uma percepção de melhora econômica, terreno em que a avaliação do presidente sempre foi relativamente boa.
Uma pesquisa do instituto Gallup publicada em setembro indicou que 56% dos americanos diziam que estavam em uma situação melhor que quatro anos atrás, um recorde desde que essa pergunta foi feita pela primeira vez, em 1984.
De qualquer forma, dado que muitos analistas estimavam que a retórica de Trump tenderia a afastar grupos minoritários, esses números apresentam um enigma a ser desvendado por estrategistas de ambos os partidos.
Se os republicanos concluírem que um efeito colateral não antecipado do trumpismo foi uma melhora no desempenho entre negros e latinos, isso pode ter impactos significativos para os rumos que o partido deve tomar a partir de 2021.
*Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)
Pierre Rosanvallon: “O aspecto ‘positivo’ do populismo foi subestimado durante muito tempo”
Pierre Rosanvallon, referência intelectual da França contemporânea e professor do Collège de France, teoriza em seu ambicioso livro sobre “a ideologia ascendente” deste século
Se existe um fantasma que assombra a Europa e o mundo hoje é o do populismo. Reação de ira, estratégia política, palavra para deslegitimar ou estigmatizar o adversário político, o uso do conceito é tão diverso quanto as realidades a que se refere. No entanto, renunciar a ele e voltar a categorias de análise mais antigas seria perder a oportunidade de entender o caráter inédito “do ciclo político que se iniciou no início do século XXI”. Assim acredita Pierre Rosanvallon (Blois, França, 1948), cujo último livro, O Século do Populismo: História, Teoria, Crítica (ainda sem edição no Brasil), é uma ambiciosa tentativa de teorizar e definir a essência do que considera ser “a ideologia ascendente” deste século. Uma teoria do fenômeno, entendido como uma proposta política coerente, afirma o historiador, professor do Collège de France, que se recusa a ver na derrota de Donald Trump, o “grande ator do iliberalismo”, um sinal de enfraquecimento dessa corrente. A página não está sendo virada nos Estados Unidos, nem o populismo vai recuar no mundo, acredita Rosanvallon, que se dedicou nos últimos 20 anos ao estudo das mutações da democracia contemporânea.
Pergunta. Por que o senhor acredita que o populismo é uma doutrina e merece uma teoria política?
Resposta. Considerar o populismo simplesmente como uma reação de ira ou uma expressão do “fora todos eles” não é suficiente para explicar o fenômeno. Há um cansaço democrático subjacente na vida política de muitos Estados que se expressa de maneira muito ampla. E também uma espécie de esgotamento da política, de sua capacidade de ação. Se o populismo tem uma força de atração é porque aparece como solução para problemas contemporâneos como a crise de representação ou as injustiças sociais. Queria mostrar esse aspecto positivo do populismo porque acredito que foi subestimado durante muito tempo. Pareceu-me importante passar de uma visão do populismo como uma reação a uma visão do populismo como uma proposta política positiva e própria.
P. A diversidade de populismos, seja entre o de direita e o de esquerda ou na extrema direita chama a atenção...
R. Se você olhar para as personalidades populistas de hoje, pode ter a sensação de que existe uma grande diversidade. Porque, o que pode haver em comum entre Trump e Salvini, ou entre Mélenchon e Duterte? Mas se observamos o populismo a partir das categorias amplas que o caracterizam, podemos encontrar temas comuns que são sempre articulados de uma maneira específica.
P. Apesar dessas semelhanças, o senhor não acredita que há um abuso do qualificativo no debate atual ou na caracterização de algumas personalidades políticas ou regimes?
R. Vimos o surgimento de movimentos e regimes que não podem ser simplesmente categorizados como autoritários, ou como fascistas ou ditatoriais. Existem regimes, como na Rússia, que se inclinam, poderíamos dizer, legalmente para o autoritarismo mediante a aprovação de reformas constitucionais que permitem a eleição quase indefinida de seus líderes. A tentação desses regimes de se tornarem democracias é uma característica absolutamente comum dos populistas, ou seja, regimes autoritários validados pelo sufrágio universal.
P. O qualificativo serve para estratégias adotadas por líderes como Emmanuel Macron, que ganhou as eleições em 2017 se opondo ao que chamava de o “velho mundo” de partidos tradicionais?
R. É difícil comparar Macron com Viktor Orbán, Boris Johnson ou Evo Morales, mas o que mostra a estratégia que adotou em 2017 é que o populismo está presente na própria atmosfera das sociedades democráticas e pode ser entendido como a difusão de um todo conjunto de questões para além dos partidos ou regimes de essência estritamente populista.
P. Entre as cinco características que compõem o tipo ideal do populismo, o senhor insiste na instrumentalização das emoções.
R. Se tivesse que destacar uma importante contribuição do populismo –ainda que seja muito ambígua– para a democracia contemporânea, seria ter entendido que se governa também de acordo com as emoções. Os sentimentos de pertença, de identidade, de rejeição determinam a visão que os indivíduos têm de seu papel na sociedade. Frequentemente, aqueles que criticam essa ideologia não a entendem. Não se pode criticar o populismo superficialmente ou limitar-se a dizer que promove uma democracia antiliberal. Quando isso acontece é porque a democracia liberal não está cumprindo sua agenda. Está em crise.
P. Uma fórmula com a qual Trump esteve prestes a ganhar novamente a presidência dos Estados Unidos... Como o senhor interpreta o momento político?
R. Há dois pontos essenciais. O primeiro: Trump teve 10 milhões de votos adicionais, o que significa que o voto populista está solidamente instalado na sociedade e hoje representa quase metade da população. O segundo: o Partido Republicano entendeu que se quiser manter grande parte de seus representantes no Senado terá que abraçar e aceitar a fórmula populista. Deixou de ser um partido reaganista e passou a ser um partido trumpiano.
P. E inclusive conquistou o voto latino em certos Estados e em alguns casos o afro-americano...
R. O voto latino é compreensível de um ponto de vista sociológico e psicológico. Depois que um imigrante obtém seus documentos e se torna um cidadão norte-americano, é frequente que mude de atitude em relação à imigração. É muito mais difícil de entender no caso do voto afro-americano. O populismo fez que a sociedade norte-americana, que costumava se definir por suas classes sociais, hoje se defina por suas identidades, no sentido mais reacionário do termo.
P. O senhor explica em seu livro que o populismo nasce das falhas intrínsecas da democracia e insiste muito em sua fragilidade. É realista pensar que a democracia ocidental pode desaparecer?
R. A democracia não funciona apenas com regras de direito, mas também com uma moral democrática. Voltando a Trump, ninguém antes dele havia demitido um diretor do FBI por não lhe ser fiel, e não há dúvida de que com um segundo mandato ele teria continuado a minar as instituições democráticas. A história está cheia de exemplos de democracias que desaparecem. A Grécia Antiga e o Século de Péricles são um bom exemplo. A democracia não é uma conquista. É uma frente de batalha. É frágil e morre se não for renovada. Sem instituições democráticas vivas existe o risco de que os cidadãos se cansem desse modelo e consintam seu desaparecimento.
P. Chama muito a atenção a posição central ocupada pelas redes sociais na estratégia política de líderes e de movimentos populistas e a escassa regulamentação vigente...
R. Sem dúvida, a regulamentação da Internet e em particular das redes sociais é um ponto central para a continuidade da democracia. É vital legislar porque, do contrário, sobre muitas questões, se continuará alegando que existe uma verdade alternativa. O melhor exemplo disso está sendo oferecido por Trump ao se recusar a reconhecer a vitória de Biden. Uma posição à qual adere, sem dúvida, grande parte de seu eleitorado, que acredita que houve fraude e que a vitória democrata foi um roubo. Essa faixa do eleitorado de Trump já não faz sociedade comum com os outros. E essa foi a grande novidade, por assim dizer, dos últimos anos: descobrir um país dividido em dois campos irreconciliáveis enquanto a própria essência da democracia consiste em pensar que existe uma base comum que permite falar dessas diferenças, negociar, acordar. A regulamentação das redes terá de ser acompanhada por uma política de educação que inculque no cidadão a importância dos argumentos, e que não existe apenas a sua verdade.
P. O senhor apresenta o populismo como a ideologia em ascensão do século XXI, mas a crise da covid-19 foi um golpe para a imagem desses líderes.
R. Podemos nos perguntar se estamos presenciando uma espécie de ponto de inflexão no discurso populista, já que esse discurso costuma ser apresentado como o detentor da verdade absoluta sobre a realidade. A dimensão objetiva desta crise de alguma forma encurralou os líderes populistas. Ninguém pode negar esta pandemia. Por outro lado, o populismo na Europa também entrou em confronto com o papel da União Europeia. A Itália e a Espanha estão entre os principais beneficiários do que pela primeira vez qualificaria como uma espécie de orçamentação e oficialização da solidariedade entre os países europeus. Existe uma dupla realidade que ninguém pode ignorar: a realidade do vírus e a realidade da crise econômica. Dito isso, o populismo mantém uma visão da democracia, da liderança e da vontade política que conserva seu poder.
El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba
Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade
A saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.
A vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.
Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.
A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.
Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.
“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.
A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.
Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.
“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.
A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.
“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.
Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.
A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.
Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.
Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.
Revés para Bolsonaro
Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.
A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.
Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.
O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.
Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.
Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.
Zeina Latif: Responsabilidade nas promessas
Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista
Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.
O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente.
É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.
Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos.
A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.
Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.
Depois da desistência de Fernando Haddad e o insucesso de João Doria, a reforma da Previdência foi aprovada no fim de 2018. A pressão do funcionalismo foi enorme e houve greve no início de 2019, data escolhida a dedo para coincidir com o calendário escolar, segundo os próprios sindicalistas.
A reforma, porém, foi tímida, prevendo praticamente apenas o aumento da alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.
Não foi alterada a idade mínima de aposentadoria, diferentemente da reforma federal, que, diga-se de passagem, foi atacada por Guilherme Boulos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Agora, ele defende mais contratações para aumentar a arrecadação previdenciária do município. Argumento incompreensível.
O jovem político reproduz o discurso da velha esquerda que não acredita em restrição orçamentária e acha que tudo se resolve com mais recursos. Nada se ouve sobre melhorar a gestão nas diversas áreas. A lista de promessas de campanha é inexequível, pela falta de recursos e por contemplar medidas tecnicamente equivocadas.
Para cobrar a dívida ativa, em boa medida irrecuperável neste País de crises frequentes, Boulos promete contratar mais procuradores. Para reduzir a população de rua, propõe usar a rede hoteleira e contratar mais agentes. Para a saúde, mais médicos. E por aí vai.
Promete uma “renda cidadã” paulistana, uma política onerosa e mais adequada para a União, e defende o que chama de economia solidária – por exemplo, a compra de alimentos de pequenos produtores no cinturão verde, fora de São Paulo, para prover escolas. No entanto, em uma grande metrópole, ganhos de escala são necessários para garantir a efetividade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, evitar despesas em demasia.
Para financiar seus programas, o candidato diz contar com a recuperação da dívida ativa e com a suposta sobra de caixa – um recurso já comprometido e exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele confunde fluxo com estoque (fluxo de despesa permanente pago com estoque finito de recursos), erro básico, que, de quebra, fere a LRF.
Faltam bons diagnósticos sobre os problemas da cidade, as prioridades e a realidade fiscal.
O próximo prefeito terá muitas outras missões, como povoar e adensar os bairros centrais com infraestrutura urbana, o que reduziria tempo no transporte, pressionaria menos o preço da terra – tema caro ao Boulos – e ajudaria a preservar o meio ambiente, em meio ao aumento de loteamentos ilegais.
Oxigenar o debate público, como fazem alguns candidatos “nanicos”, é saudável. O crescimento de Boulos exige, porém, maior responsabilidade nas propostas. Embora com tom mais moderado, ele repete o nefasto e equivocado discurso populista.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Joel Pinheiro da Fonseca: O jornalismo deveria fazer oposição ao populismo?
Derrota de Trump anima, mas é desmotivador ver a imprensa se tornar tão parcial
Biden venceu, viva! Uma vitória da democracia, da ciência, das instituições, da imprensa. Mas espere um momento: por acaso a imprensa deveria ser torcedora, ou até participante, nessa disputa?
Todo mundo sabe que não existe veículo completamente imparcial e objetivo. Há sempre valores, ideologias, narrativas, interesses, que inevitavelmente influenciarão as decisões sobre o que e como publicar. Nesse sentido, vejo muitas vozes defendendo que, como a imparcialidade perfeita é impossível, cada veículo de imprensa deveria assumir seu lado. Discordo.
A imprensa é relevante justamente na medida em que não é apenas mais um porta-voz de um campo político. A perfeita objetividade e imparcialidade pode ser uma utopia, inatingível na prática, mas é importante que siga como ideal operante na conduta institucional. A partir do momento em que aceitamos abrir mão de um valor em nome da defesa de um grupo político, é inevitável que a prática seja contaminada e que os padrões rigorosos sejam sacrificados ao partidarismo. À “opinião” do jornal basta o editorial; o jornalismo deve mirar a verdade e objetividade como valores superiores a qualquer causa política, mesmo as desejáveis.
A situação da imprensa não é fácil. Num momento de polarização, em que qualquer conteúdo que não seja feito sob medida para um dos lados da disputa é imediatamente rechaçado por ambos, publicar informações com objetividade não conquistará o amor de ninguém. Por mais que um lado possa estar mais próximo da verdade e dependa menos da fabricação sistemática de mentiras para se viabilizar, a realidade não costuma estar perfeitamente alinhada a ninguém. Assim, um jornalismo objetivo raramente encantará a torcida de qualquer lado. Mesmo quando confirma nossas crenças, não é com a ênfase e na medida que realmente gostaríamos. E aí reside seu valor para alimentar o debate público responsável.
As redes sociais participam desse debate também. Todas buscam alguma maneira de limitar o alcance de fake news. Não tenho a resposta para como fazê-lo, mas sei o tipo de medida que definitivamente não desce: suprimir notícias que prejudicavam o candidato democrata na semana da eleição.
As notícias envolvendo o filho de Joe Biden, veiculadas para tentar manchar a reputação do pai às vésperas do pleito, eram vazias. No entanto, quantas reportagens igualmente irresponsáveis em suas especulações e acusações contra Trump não foram compartilhadas livremente sem qualquer entrave do Twitter? O conluio com a Rússia, o caso com a atriz pornô, o abuso sexual. Se o site decidir que notícias bombásticas, sem o devido rigor jornalístico, devem ser limitadas perto das eleições, então que essa regra seja formulada abertamente e aplicada com transparência. Caso contrário, vira apenas sabotagem contra a direita, ao mesmo tempo em que se toleram todos os excessos do progressismo.
Populistas como Trump fazem do ataque à imprensa parte de seu jeito de governar. É muito fácil para a imprensa reagir conforme o esperado e transformar a oposição ao governo parte de seu ideário. Ao agir assim, apenas confere legitimidade aos ataques sem base de que é alvo. Considero a derrota de Trump um dos melhores eventos deste ano difícil que tem sido 2020. Mesmo assim, é desmotivador ver o The New York Times ou a CNN se tornarem tão abertamente parciais em sua cobertura.
O valor de uma fonte confiável de fatos relevantes para o debate público é muito maior do que o de uma militância de discursos louváveis.
*Joel Pinheiro da Fonseca,economista, mestre em filosofia pela USP.
Maria Hermínia Tavares: A sombra do populismo
Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar
Se confirmada, a derrota de Donald Trump fará bem à democracia nos Estados Unidos e no mundo. Atestará que a corrosão das instituições representativas não é a única sina dos países que se entregaram a líderes populistas. Tendo ascendido pelo voto livre, podem ser por ele dispensados antes de consumar os seus projetos autoritários.
Mas o provável resultado das eleições americanas não garante a transferência suave do governo para os democratas. E ainda que ocorra no final das contas, enfraquecerá, mas não erradicará, lideranças que, naquele país ou em qualquer outro, e não apenas nos dias que correm, se afirmam representantes do "povo verdadeiro" —o volk, no jargão nazista— em contraposição a elites cosmopolitas, surdas aos anseios das pessoas comuns. Em seu nome, os populistas agem para solapar as regras que limitam o poder dos governantes e garantem os direitos de todos, inclusive das minorias.
A Itália oferece um exemplo da força e resiliência do fenômeno. Desde que o sistema de partidos do segundo pós-Guerra, ancorado na Democracia Cristã, veio abaixo nos anos 1990, políticos populistas, ora no governo, ora na oposição, tornaram-se participantes destacados da vida política do país. Casos de Silvio Berlusconi, Giuseppe Conte, Matteo Salvini, Beppe Grillo, à frente de diferentes partidos —Força Itália, Liga Norte, Liga, Movimento 5 Estrelas— com significativa projeção eleitoral.
"O populismo é uma sombra permanente da moderna democracia representativa" diz o historiador alemão Jan Werner Müller, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Alimenta-se do que o filósofo italiano Norberto Bobbio chamou de promessas não cumpridas da democracia. Populistas exploram expectativas frustradas e variados temores, reais ou imaginários: do desemprego, da destituição, dos imigrantes, dos negros, dos pobres, dos esquerdistas ateus. E se beneficiam da exposição às feias engrenagens da política por parte de um público mais informado.
O fato é que, já há algumas décadas, a desconfiança dos cidadãos em face de partidos, parlamentos e governos só faz crescer em todo o mundo democrático. No Brasil, a propósito, é assustadoramente elevada. Cidadãos insatisfeitos e desconfiados são mais sensíveis a políticos, tanto faz se de direita ou de esquerda, para os quais a vitória eleitoral é só o que conta, não passando de um estorvo os mecanismos de controle do poder típicos do sistema representativo.
Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar. Mas fará toda a diferença para a democracia sempre que for batido nas urnas.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A decepção de dois mestres
Mergulhamos na ortodoxia liberal e no populismo
Em sua coluna na Folha, em 18 de setembro último, Silvio Almeida falou de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), o notável sociólogo negro que foi um dos meus mestres nos anos 1950, quando eu tinha 20 anos. Em conjunto com Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro foi um dos grandes intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que se reuniram no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e repensaram o Brasil.
Eles o fizeram a partir das ideias de revolução nacional e industrial, as quais, para se concretizar, implicavam a crítica sistemática à dependência ou ao entreguismo das elites liberais locais e ao imperialismo das grandes potências. Conforme diz Silvio Almeida, Guerreiro Ramos é “a síntese de tudo aquilo que o atual governo brasileiro vem se empenhando em combater: uma pessoa negra, um intelectual, um defensor da soberania nacional e um servidor público preocupado com o Brasil”.
Naquela época, o Brasil tinha um projeto nacional de desenvolvimento baseado na ideia de industrialização e um líder político comprometido com esse modelo, Getúlio Vargas, o estadista que o Brasil teve no século 20.
Guerreiro e seus colegas apostaram na associação da burguesia industrial com os trabalhadores, a burocracia pública e os intelectuais desenvolvimentistas em torno desse projeto porque essa coalizão era uma realidade naquela época, não obstante suas ambiguidades e contradições. Estava acontecendo e estava dando certo. Entre 1930 e 1980, o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico acelerado que deu origem a uma grande classe operária e a uma grande classe média de natureza tanto gerencial e profissional quanto empresarial.
Entre 1930 e 1960, sob o comando ou a inspiração de Getúlio Vargas, e entre 1964 e 1980, sob o comando dos militares, o Brasil se industrializou e se tornou um grande exportador de bens manufaturados.
Mas, já nos anos 1970, surge uma teoria da dependência associada, de origem marxista, que era equivocada —tanto ao negar que a burguesia pudesse ser nacionalista quanto ao afirmar que o imperialismo não era contra nossa industrialização. Equivocada, mas que ganhou os intelectuais brasileiros porque estes eram democráticos e os militares haviam se tornado desenvolvimentistas.
Conheci bem Guerreiro. Eleito deputado federal em 1960, foi cassado em 1964 e se exilou nos Estados Unidos, onde se tornou professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Morreu em 1982, profundamente decepcionado com o Brasil e seus intelectuais.
Decepção semelhante aconteceu com outro grande intelectual brasileiro, também meu mestre, Celso Furtado. Ao morrer, em 2004, ele já via a economia brasileira semiestagnada desde 1980 e, desde 1990, dominada pela ortodoxia liberal.
Nos anos 2000, Lula tentou reverter esse quadro, mas a alternativa que os desenvolvimentistas ofereciam ao liberalismo econômico era pobre, baseada apenas na política industrial; faltava uma macroeconomia do desenvolvimento.
Desde 2013, depois de 33 anos de quase-estagnação, mergulhamos em uma grande crise política e econômica, enquanto se aprofundava a subordinação à ortodoxia liberal do Norte, não obstante essa ortodoxia venha sendo abandonada pelos países ricos desde então.
Há alguma esperança para o Brasil? O país pode voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento? Não estou seguro. Há dois grandes líderes políticos hoje no Brasil, Lula e Ciro Gomes; e há um terceiro, jovem, que aponta para o futuro, Guilherme Boulos. Ciro é o que está mais próximo a ter um projeto.
Mas Getúlio Vargas tinha por trás de si uma sociedade que se repensava, ajudada por seus intelectuais. Isso não acontece hoje.
Nossas elites intelectuais estão perplexas. Tão perplexas quanto as do Norte, que dizem, equivocadamente, que sua crise é a crise da “democracia liberal”. Na verdade, é a crise do neoliberalismo americano, que é dominante naquele país desde 1980, diante do bem-sucedido desenvolvimentismo chinês.
É uma crise que está levando os países ricos, um a um, a abandonar o liberalismo econômico e a adotar políticas desenvolvimentistas, enquanto o Brasil, ao invés de se repensar, como fizeram seus intelectuais nos anos 1950, mergulha no liberalismo econômico e no populismo de direita.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)