populismo

Fernando Abrucio: Bolsonaro nos afasta do século XXI

A covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente

O Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do século XXI.

Muitos analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas para o curto prazo.

Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.

Uma das sequelas da crise é o aumento, ainda em curso, do contingente de descontentes que não mudarão sua visão apenas com a melhoria do cenário econômico. Puxando esse processo, há uma parcela significativa da população que avalia muito mal a gestão da política de saúde, algo que foi catapultado pelo fracasso inicial no processo de vacinação. Na verdade, consolidou-se num patamar próximo à metade do eleitorado, uma visão negativa sobre a capacidade de o governo gerir qualquer coisa. O fracasso não ocorreu apenas no plano sanitário. Ele também é nítido, especialmente para a população mais pobre, na política educacional, que foi abandonada por um MEC que nem consegue gastar o dinheiro que tem. A sensação de incompetência também aparece em outros setores, como meio ambiente e cultura, por exemplo, nos quais o bolsonarismo só fez por destruir.

Assim, além do radicalismo dos valores e da lógica política de guerra, o modelo bolsonarista caracteriza-se hoje, para grande parte da população, como um governo de incompetentes. Há uma enorme lista de ministros e auxiliares que são reconhecidos pela opinião pública como desastrosos. Mesmo que a economia seja puxada um pouco para cima, quase que naturalmente, pelo fim da pandemia, não parece haver muito espaço para Bolsonaro ampliar seu eleitorado por meio de políticas públicas.

Não por acaso a sua presidência alicerça-se numa concepção que independe ou é contraditória com uma lógica estruturada de políticas públicas. Bolsonaro busca legitimidade no terreno dos valores tradicionais, na criação de inimigos para seu séquito de apoiadores odiar e, cada vez mais, em medidas populistas que não são sustentáveis ao longo do tempo, mas que geram um alívio imediato em públicos-alvo importantes do bolsonarismo. Todo o debate recente sobre os preços dos combustíveis, com a mudança abrupta na gestão da Petrobras e a criação de um paliativo tributário, tem como objetivo contentar momentaneamente caminhoneiros, motoristas de aplicativos e afins. O que será feito para garantir no longo prazo essa política está fora do alcance do populismo bolsonarista.

Em poucas palavras, a crise da covid-19 revelou claramente que o governo Bolsonaro é adepto de um populismo imediatista, pouco preocupado em construir políticas públicas consistentes e bem estruturadas, seja porque seleciona basicamente gestores incompetentes, que estão lá porque têm juízo de obedecer, seja porque o bolsonarismo não tem nem um diagnóstico nem um plano para transformar o Brasil.

A falha da visão otimista alicerçada na teoria da pandemia como “bode na sala” vai além de não perceber as sequelas deixadas pela gestão populista da crise da covid-19. O maior problema do bolsonarismo reside na ausência de uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI. O governo oscila entre a defesa de ideias completamente ultrapassadas e a proposição de ações puramente imediatistas. Trata-se um populismo que bebe em visões arcaicas de sociedade e do modelo político - incluindo aqui sua defesa nefasta da ditadura militar -, ao mesmo tempo que procura saídas fáceis para resolver as demandas do eleitorado, como mudanças no Código Nacional de Trânsito como forma de “libertar” os motoristas ou a ampliação gigantesca do uso de armas como forma de garantir a paz do “cidadão de bem”.

A opinião pública em geral e as elites econômica e política continuam discutindo as ações e os factoides de curto prazo criados por Bolsonaro, mas deixam de lado a ausência de uma agenda minimamente antenada com as principais questões contemporâneas. Esse fenômeno já vinha de antes, porém, aprofundou-se com o bolsonarismo: perdemos a capacidade de pensarmos o futuro do país e de dialogarmos com as principais tendências internacionais.

Por isso, quando sairmos da fase mais crítica da pandemia, precisamos elencar quais são os grandes desafios para os quais devemos nos preparar nos próximos anos. Cinco deles serão decisivos como passagem a um século XXI melhor: questão ambiental, educação, novas formas de desenvolvimento econômico, combate às desigualdades e aperfeiçoamento da governança democrática.

A temática ambiental é relevante para todo o mundo, todavia, é muito mais importante para o Brasil, por causa de nossa riqueza e diversidade de ecossistemas, especialmente da Amazônia. O meio ambiente tem que se transformar num ativo para o desenvolvimento do país. Qualquer outra perspectiva é anacrônica e nos levará a perder apoio econômico e geopolítico.

O segundo desafio é o da educação. O Brasil precisa, aqui, fazer duas tarefas ao mesmo tempo: acabar com as mazelas derivadas de um longo tempo de letargia educacional e, sobretudo, criar pontes para o futuro. Professores e gestores mais qualificados e em constante renovação, métodos didáticos inovadores que ampliem as possibilidades formativas dos alunos, formas colaborativas de gestão, parcerias com a sociedade e um modelo educacional comprometido com a maior equidade das crianças e jovens, eis os pontos que deveriam ser discutidos agora. Mas, no momento, o MEC está completamente ausente deste debate.

Explorar as potencialidades econômicas do país de uma forma criativa, antenada com as tendências futuras e captando as singularidades brasileiras deveria ser uma tarefa central hoje. Várias frentes de produção de riqueza podem surgir: atividades culturais e de entretenimento, melhor exploração do meio ambiente pela agroecologia e pelo turismo sustentável, empreendedorismo das periferias, criação de novos serviços com tecnologia da informação, reorganização dos grandes centros urbanos, uso de fontes renováveis de energia, avanço da infraestrutura sob bases mais modernas, para ficar em alguns dos temas mais contemporâneos e fascinantes. Há um enorme espaço para novas formas de desenvolvimento, que podem ativar e renovar o restante da economia.

O combate às desigualdades é essencial para mudar a cara do Brasil no século XXI. É preciso atacar as profundezas desse fenômeno, ampliando as oportunidades para um enorme contingente de pessoas que estão alijadas do processo de desenvolvimento. Não se trata de políticas compensatórias de curto prazo. Em vez disso, são necessárias ações estruturais, baseadas num planejamento de longo prazo. A redução das iniquidades de diversas ordens - de renda, racial, de gênero, regional - vai não só tornar o país mais justo e solidário (algo essencial para a melhoria da ação coletiva, como a pandemia comprovou), como também vai aumentar o espaço sustentável de desenvolvimento econômico.

O quinto e último desafio é aperfeiçoar e fortalecer a governança democrática do país. Isso passa pelas estruturas institucionais mais gerais, como as eleições, as relações entre os Poderes e a responsabilização da administração pública, bem como pela cultura política, incentivando o diálogo social permanente e o reforço das formas solidárias de ação coletiva. Ter mais e melhor democracia tem efeitos positivos sobre todas as coisas. Basta pensar que novas pandemias podem surgir no futuro, e o Brasil não poderá repetir a vergonha que foi ter conjunto enorme de indivíduos atuando de forma egoísta, sem respeitar o distanciamento social e ignorando o uso de máscaras, o que se somou a um líder nacional que não teve empatia com os milhares de cidadãos mortos.

Começar a refletir, debater e planejar para atuar nestes cinco desafios é tarefa urgente. O pós-pandemia, neste sentido, é muito mais complexo do que o debate rasteiro que tem sido feito no Brasil. Pior: Bolsonaro não quer dialogar ou mesmo ignora os desafios do século XXI. A covid 19 é o maior mal imediato, mas o problema mais profundo do país está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Maria Cristina Fernandes: O léxico mortífero de Bolsonaro na crise sanitária

Prisão de deputado por ofensa a um poder contrasta com a inimputabilidade de um presidente que, ao longo de 12 meses, foi determinante para a posição do Brasil no pódio mundial da covid-19

1) “Obviamente temos uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é tudo isso que a grande mídia propaga pelo mundo todo” (10/2/2020)
Discurso para a comunidade brasileira em Miami, três dias depois de chegar à Flórida, onde jantou com o então presidente Donald Trump. Nas semanas que se seguiram, 23 integrantes da comitiva foram diagnosticados com o vírus. No dia seguinte, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia. No dia 26 seria oficializado o primeiro caso de coronavírus. O Ministério da Saúde depois reconheceria que havia casos, sem diagnóstico, desde janeiro.

2) “O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos” (17/03/2020)
Entrevista à rádio Tupi. No dia anterior, o Ministério da Saúde havia notificado a primeira morte por coronavírus, depois ratificado para 12 de março. No dia seguinte à entrevista, o presidente solicitou a calamidade pública para suspender artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

3) “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” (24/03/2020)
Pronunciamento em rede nacional. No dia seguinte, o presidente baixaria decreto incluindo atividades religiosas de qualquer natureza e unidades lotéricas entre atividades essenciais durante a pandemia.

4) “O tratamento da covid-19, à base de hidroxicloroquina e azitromicina, tem se mostrado eficaz nos pacientes ora em tratamento” (25/03/2020)
Postagem em redes sociais. A produção de hidroxicloroquina pelo Laboratório Químico do Exército chegaria a 80 vezes a média histórica, com compra de insumo 167% mais caro que a média do mercado. Em maio a OMS suspenderia estudos sobre a hidroxicloroquina em função dos efeitos adversos do medicamento.

5) "Eu acho que não vai chegar a esse ponto [a situação dos Estados Unidos]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele". (26/03/2020)
Declaração a apoiadores em frente ao Alvorada. Nesse dia, a Secretaria de Comunicação do governo lança a campanha “Brasil não pode parar”, com a informação de que, no mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos”.

6) “O vírus está aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”(29/03/2020)
Declaração a apoiadores em aglomeração em Brasília. No dia seguinte, o Ministério da Saúde suspende as entrevistas diárias sobre a pandemia. Dois dias depois, Trump diz que avalia a possibilidade de banir vôos provenientes do Brasil.

7) “Ninguém vai tolher meu direito de ir e vir” (10/04/2020)
Declaração em aglomeração formada pelo presidente durante ida a farmácia em Brasília. Dois dias depois, o então ministro Luiz Henrique Mandetta se queixa, em entrevista ao Fantástico, que o brasileiro não sabe a quem escutar, se a Bolsonaro ou a ele, Mandetta.

8) “Eu não sou coveiro” (20/04/2020)
Responde a jornalistas na saída do Alvorada sobre a escalada de mortes da pandemia. Naquela semana, demitiu Mandetta e deu posse a Nelson Teich.

9) “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre” (28/04/2020)
Em resposta a jornalistas à saída do Palácio do Alvorada. Brasil ultrapassa a China em número de casos confirmados. Estudo do Imperial College, de Londres, mostra que o país tem a maior taxa de contágio do mundo.

10) “Eu gostaria que todos voltassem a trabalhar, mas quem decide isso não sou eu, são os governadores e prefeitos” (01/05/2020)
Em ‘live’ por ocasião do Dia do Trabalho. Dias depois, acompanhado de empresários, atravessa a pé a praça dos Três Poderes para uma visita ao então presidente do STF, Dias Toffoli, a quem se queixa da decisão do Supremo pela autonomia dos Estados e municípios na gestão da pandemia.

11) "Os senhores, com todo o respeito, têm que chamar o governador e jogar pesado. Jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra. Estou exigindo a questão da cloroquina agora também” (14/05/2020)
Em videoconferência com empresários. Na véspera, Teich alertara sobre efeitos colaterais da hidroxicloroquina. Presidente edita MP que isenta agentes públicos de responsabilização por atos e omissões na pandemia. Congresso não vota e a medida caduca.

12) “Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína” (19/05/2020)
Entrevista ao Blog do Magno. Brasil ultrapassa a marca dos mil mortos pelo coronavírus em 24 horas. Quatro dias antes, Teich se demitira. Assume interinamente o general Eduardo Pazuello, que adota protocolo para uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.

13) “Alguém lembra da guerra do Pacífico? Os soldados chegavam feridos e precisavam de transfusão, mas não tinha doador. Começaram a meter água de côco na veia deles. Sem comprovação científica, salvou milhares de pessoas” (22/05/2020)
Declaração em live. Dois dias depois, EUA proíbem entrada de estrangeiros que tenham partido do Brasil. Dez dias depois, Bolsonaro passeia a cavalo por Brasília durante atos antidemocráticos.

14) “STF decidiu que os governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política, inclusive isolamento. Agora está vindo uma onda de desemprego enorme […] Não queiram colocar no meu colo” (07/06/2020)
Declaração à saída do Alvorada. Na véspera, governo tira do ar plataforma do Ministério da Saúde com informações consolidadas sobre a pandemia, levando os meios de comunicação a formar consórcios para atualizar os dados.

15) “Seria bom você, na ponta da linha, tem um hospital de campanha aí perto de você, um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. […] tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não" (11/06/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Universidade Johns Hopkins coloca o Brasil como o segundo em número de mortes. Uma semana depois, o Brasil ultrapassaria a marca de 1 milhão de casos.

16) “Eu sou a prova viva de que [a cloroquina] deu certo” (18/08/2020)
Declaração em inauguração de obra no Pará. Bolsonaro é diagnosticado em 6 de julho, no mesmo dia em que veta dispositivos da lei que obrigava estabelecimentos a fornecer gratuitamente a funcionários máscaras de proteção. Dali a um mês, quando o Brasil já contava 130 mil mortos, Pazuello seria confirmado na Saúde.

17) “Isso existe, os países se preparam para guerras, até com bombas. Aí tem a guerra nuclear, bacteriológica. Pessoal mexe com vírus em laboratório, pode ter escapado isso aí” (28/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Na semana anterior, o Ministério da Ciência e da Tecnologia anunciara estudos sem evidências sobre inibição da carga com o vermífugo Anita.

18) "Está acabando a pandemia [no Brasil]. Acho que [o Doria] quer vacinar o pessoal na marra rapidinho porque vai acabar e daí ele fala: 'acabou por causa da minha vacina'. Quem está acabando é o governo dele, com toda certeza" (30/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada no início da guerra das vacinas com o governador paulista.

19) “Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?” (16/12/2020)
Entrevista à TV Bandeirantes. Dois meses depois, seria tornada pública carta da Pfizer com a oferta da vacina ao Brasil.

20) "A questão da máscara, ainda vai ter um estudo sério falando sobre a efetividade da máscara… é o último tabu a cair” (26/11/2020)
Declaração na ‘live’ semanal. Anvisa autoriza prorrogação excepcional da validade dos testes depois que o “Estadão” informou que mais de 6 milhões de testes perderiam a validade.

21) "Eu não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu” (15/12/2020)
Discurso na Ceagesp, em São Paulo. Na semana anterior, 11 ex-ministros da Saúde haviam publicado artigo- denúncia da estratégia de vacinação.

22) "A pandemia, realmente, está chegando ao fim […] pequeno repique pode acontecer, mas a pressa da vacina não se justifica” (19/12/2020)
Entrevista ao programa do filho, Eduardo Bolsonaro. Na semana seguinte, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) eleva o imposto de importação sobre cilindros que armazenam gases medicinais.

23) “Quem frequenta a praia pega um sol, e o sol é o que fixa a vitamina D no corpo. Tiveram problemas graves? Não. A solução está aí” (07/01/2021)
Declaração em live semanal. No dia seguinte, Supremo concede liminar para impedir que a União requisite agulhas e seringas contratados pelo Estado de São Paulo.

24) “Nós demos dinheiro, recursos e meios. Não fomos oficiados por ninguém do Estado na questão do oxigênio” (27/01/2021)
Declaração no Alvorada. Duas semanas antes, Pazuello dissera saber da crise de oxigênio. Governo escolheu Manaus, onde se acumulam mortes por asfixia, para lançar o aplicativo TrateCov, que sugeria hidroxicloroquina e ivermectina até para bebês.

25) “O pessoal fica buscando alternativas já que não existe remédio específico e, pelo que tudo indica, o tratamento da covid em casos graves tem tudo pra dar certo com esse spray” (16/02/2021)
Live gravada em Camboriú (SC) sobre a negociação de compra de um spray nasal de Israel, o único país que já conseguiu o patamar seguro de vacinação de sua população.


Murillo de Aragão: As crises e as oportunidades

O Brasil foi desarmado para a guerra contra a pandemia

Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Avaliar o debate sobre a PEC Emergencial antes de sua aprovação é temerário. No entanto, quando escrevia esta coluna o Senado já tinha aprovado a proposta de emenda constitucional de forma razoável: abrindo espaço para o auxílio emergencial com a manutenção do teto de gastos. E, em meio a intenso debate, a emenda provavelmente será definitivamente aprovada nesse formato.

A aprovação definitiva da PEC Emergencial respeitando a integridade do conceito de teto de gastos é apenas uma batalha na guerra travada neste momento pelo povo brasileiro. A questão fiscal permanece relevante com o futuro debate do Orçamento da União e o andamento das reformas constitucionais e infraconstitucionais. Mas outras batalhas estão em curso.

Meus leitores sabem que, no fim de janeiro do ano passado, coloquei aqui mesmo minhas preocupações com a epidemia que vinha da China. Alertava que seria um imenso desafio para governos e sociedade. E com repercussões alarmantes, caso se alastrasse. Tempos depois escrevi Ano Zero, livro que traz uma reflexão sobre a economia e a política no pós-pandemia e que está disponível em Veja Insights, no site desta revista.

“O auxílio emergencial foi essencial, mas não houve um programa de retomada do crescimento”

Embora minhas preocupações e as de outros tenham sido transmitidas às autoridades ainda em janeiro, o Brasil partiu desarmado para a guerra contra a pandemia. Eventos tão extraordinários como esta crise sanitária exigem foco, liderança e planificação. Aspectos que foram insuficientes ao longo da evolução da pandemia. Pela capacidade econômica do Brasil, nosso programa de vacinação deveria ter sido iniciado em dezembro do ano passado. Não fosse a “vachina” do Instituto Butantan, a nossa situação seria muito, muito pior. Em tempos de pandemia, cada dia desperdiçado resulta em vidas perdidas e atrasos na retomada das atividades.

No campo econômico, as respostas foram parciais e, de alguma maneira, não houve uma tragédia maior. O auxílio emergencial foi essencial, mas não se traçou um programa estruturado de retomada do crescimento econômico da magnitude que situações como a pandemia exigem. Não há saída de crises profundas sem esforços organizados. Foi assim na Grande Depressão, dos anos 30, no pós-­guerra dos anos 40 e após o crash de 2008.

Todos sabem que as crises também significam oportunidades. Perdemos a chance de debater soluções estruturantes para a miséria, a pobreza, a economia informal, a qualidade da educação e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Ficamos no meio do caminho cuidando da questão fiscal e distribuindo dinheiro para os necessitados. Não basta. Infelizmente, o país não para de validar a frase do economista Roberto Campos: “O Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade”.

A pandemia nos dá a possibilidade de encaminhar questões estruturais, que deveriam ser enfrentadas com determinação, organização e patriotismo. Sobraram chiliques, meias verdades, guerra de egos, conflito de competências, indefinição e negacionismo. Milhares de pessoas morreram. E essa tragédia poderia ter sido, pelo menos, minimizada.

Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728


Armando Castelar Pinheiro: Sabor de fim de festa

Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável vão complicar o quadro econômico

A matéria de Lucas Hirata, manchete do Valor de uma semana atrás, impressionou: A bolsa de valores “sofreu fuga recorde de capital externo após a intervenção do presidente Jair Bolsonaro na Petrobras. Investidores estrangeiros retiraram, segundo a B3, R$ 9,2 bilhões no período de três pregões desde o estouro da crise”. No mês, os estrangeiros tiraram R$ 6,8 bilhões da bolsa, depois de três meses investindo uma média de R$ 28,3 bilhões ao mês. Com essa virada, não surpreende o Ibovespa ter caído 5,1% em fevereiro.

Dois fatos determinaram esse movimento, nenhum deles provável de ser revertido nos próximos meses.

Primeiro, a percepção de que o “estilo populista” do presidente influenciará cada vez mais na política econômica, conforme as eleições se aproximem e a economia siga sem se recuperar.

Reflita um instante sobre a coreografia da crise da Petrobras. O mandato de Roberto Castello Branco estava acabando e ele logo poderia ser substituído, sem ruído ou o presidente se envolver. Este, porém, optou por comandar a mudança, via a imprensa, com grande alarde, supostamente para impedir uma paralisação de caminhoneiros. Como mostrou Malu Gaspar, porém, esse risco não existia (glo.bo/3kD06MY). A conclusão é que a “crise” foi construída do nada, para colocar o presidente do lado do “povo” contras as “elites”. Nas suas palavras: “O petróleo é nosso? Ou é de um pequeno grupo no Brasil?”.

Ao fim, a ruidosa destituição de Castello Branco rendeu o resultado que buscava: grande exposição do presidente na mídia.

Até aí, trata-se de estilo político. Ocorre que o evento trouxe grande prejuízo para os investidores, e não apenas os estrangeiros, e não apenas da Petrobras, mas de empresas estatais em geral. A gestão dessas empresas ficará mais difícil, afetando seu desempenho. A gestão da política econômica também se complica, inclusive nas negociações no Congresso, pois se perde segurança sobre que posições defender. Levar a MP de privatização da Eletrobras ao Congresso, ou iniciar o debate da reforma do monopólio postal, não muda isso: a chance de um dos dois avançar é mínima no quadro atual, em que pese o esforço dos envolvidos.

E fica no ar a dúvida de se algo semelhante ocorrerá em outras áreas da política econômica. Me preocupa, em especial, o não trivial ciclo de alta da taxa Selic que o Banco Central (BC) deve iniciar em sua reunião de daqui a duas semanas. A Selic a 2% está bem fora de lugar, considerando a perspectiva de uma inflação girando perto de 7% no meio do ano, a mudança no quadro externo e a necessidade de evitar riscos à estabilidade financeira. Será que o presidente manterá nessa nova etapa o mesmo apoio que deu ao BC quando este trouxe a Selic para 2%? Ou será que, com a economia estagnada, e a pandemia se agravando, veremos uma repetição do episódio Petrobras, se se opor à alta da Selic render popularidade?

O outro fato propulsor da saída dos estrangeiros foi a mudança de humor global em relação a ativos de países emergentes e ativos de risco em geral. Esta resultou da escalada dos juros pagos nos títulos públicos americanos, refletindo a expectativa de inflação e de juros reais mais altos. Isso porque a provável aprovação de um pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão e o impulso advindo da vacinação, que já alcançou um quarto da população americana, devem aquecer fortemente a economia do país, levando o Fed, o BC americano, a subir os juros antes do que se esperava.

Uma economia americana mais aquecida fará o país ter um déficit externo mais alto, irrigando o mundo de dólares. Por outro lado, se os EUA forem vistos como o melhor destino dos investimentos, pela perspectiva de mais crescimento e de juros mais altos, o fluxo de recursos financeiros para lá será grande. O resultado líquido provavelmente será um dólar mais forte, que é algo ruim para emergentes e o Brasil em particular, que já está com o câmbio muito depreciado.

Difícil imaginar como evitar uma alta mais significativa da Selic nesse cenário. Especialmente porque o Brasil seguirá crescendo pouco e demorando muito para alcançar um nível mínimo de normalização sanitária, fatores que o tornarão pouco atraente para o investidor estrangeiro, mesmo na comparação com outros emergentes.

Durou pouco para nós, portanto, o clima de festa que emergiu com o anúncio da vacina contra a covid-19 no início de novembro. É verdade que a vacinação vai acelerar nos próximos meses, que com isso o desempenho da economia pode melhorar no segundo semestre, e que sempre há a esperança de o Congresso aprovar reformas que diminuam o risco fiscal e estimulem o investimento. Mas será que dá para apostar em avanços substantivos?

Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável do que se imaginava na virada do ano vão complicar o quadro econômico nos próximos meses. Turbulência e incerteza, em um mercado financeiro internacional também volátil, vão ser a norma até que as eleições de 2022 tragam alguma ancoragem às expectativas.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


César Felício: O grande eleitor e o fator de ruptura

Bolsonaro tem a sorte de poder contar com a oposição

A pandemia e a dificuldade do presidente Jair Bolsonaro em lidar com ela superaram as expectativas mais negativas do mais delirante pessimista. Tudo que pôde dar errado deu, desde escolhas equivocadas na definição das vacinas a serem usadas até o surgimento no país de uma variante especialmente maligna, pouco antes do início da imunização.

O próprio presidente também foi muito além do que se podia imaginar para quem esperava dele um papel de liderança. No dia em que a Nação começava uma escalada rumo ao abismo, à vertigem de mais de um morto por minuto, essa foi a palavra do chefe de Estado: “Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.

Na sequência, quem começou o mimimi foi ele: “Fui eleito para comandar o Brasil, espero que este poder me seja restabelecido. eu sou um democrata, criticam decisões que tomam contra mim e eu não reajo”, argumentou.

Soma-se a esse desastre verbal a circunstância econômica. O auxílio emergencial virá, menor do que o do ano passado. Compensações para a redução de jornada e salário serão feitas, também, mas inferiores O espaço fiscal para crédito a empresas em dificuldades tende a ser mais reduzido. Estas três variáveis significam que a economia ficará muito mais exposta à devastação da pandemia neste primeiro semestre do que ficou em 2020.

Tudo isso desgasta o presidente, cuja popularidade encolhe na pobreza sem auxílio e cuja rejeição cresce nos segmentos urbanos desesperados com a lentidão da vacinação. O normal, nessas circunstâncias, seria considerar as perspectivas políticas de Bolsonaro sombrias. Foi um combo parecido com esse que terminou por derrotar Donald Trump. Mas aqui não é assim.

Nada, por agora, retira a dianteira de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, mas antes a condiciona. O presidente torna-se mais dependente de variáveis que não controla.

“O Bolsonaro presidente não tem muito o que entregar para o Bolsonaro candidato”, comentou Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, experiente em pesquisas de opinião. O grande eleitor de Bolsonaro, mais decisivo do que o eleitor evangélico e conservador, é a oposição, mais precisamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O antipetismo ainda é mais relevante que o antibolsonarismo. Se Lula estiver no segundo turno contra Bolsonaro, a eleição presidencial parece resolvida a favor do presidente.

“Percebemos nas simulações que fazemos que, quando Lula é colocado na lista de candidatos, Bolsonaro cresce. Lula tem rejeição absolutamente cristalizada e acirra a polarização”, diz Lavareda.

O ex-presidente por ora está inelegível, dado que tem condenação por órgão colegiado, o que o enquadra na Ficha Limpa. A reversão desta restrição pelo Judiciário, contudo, está longe de ser improvável. A candidatura de Lula, mesmo fadada à derrota, é atraente para o PT. O partido talvez se preocupe mais em manter sua gorda fatia do fundo partidário e uma bancada expressiva no Legislativo do que tirar Bolsonaro do poder.

Se em vez de Lula o candidato petista for Fernando Haddad, o panorama fica um pouco menos risonho para a reeleição de Bolsonaro. “A personalidade política de Haddad está menos sedimentada para o eleitor. Embora ele tenha disputado em 2018, não ficou em evidência ao longo dos últimos anos e o eleitorado vai se modificando”, diz Márcia Cavallari, da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), a empresa para onde migrou boa parte do corpo técnico do antigo Ibope.

As opções contra a polarização patinam. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), antagoniza Bolsonaro com todas as pontes com o eleitor de esquerda rompidas, depois das campanhas de 2016 e 2018. Também briga dentro do seu próprio partido. “Ele não tem a direita, não tem a esquerda e não tem o centro”, comenta Lavareda. O ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT) faz muito sucesso nas redes sociais, mas não sai do lugar. Essencialmente dialoga com um público fiel.

Para barrar o Fla X Flu entre Bolsonaro e PT, o mais factível seria o surgimento de uma novidade desestruturante, um fator de ruptura. Para Maurício Moura, do Instituto Ideia Big Data, que está permanentemente testando cenários para a eleição de 2022, a empresária Luiza Trajano tem potencial para exercer este papel. “Ela dá um passo além de ser uma simples novidade. É uma empresária, conhecida por ter lojas no Brasil inteiro com seu nome, que dificilmente se enquadra em um cenário de polarização”, comenta.

Em relação ao fator potencialmente disruptivo mais comentado, que seria uma candidatura do apresentador Luciano Huck, ela teria a vantagem de poder navegar em faixas do eleitorado nas quais ele tem dificuldades. Huck vai bem no eleitorado feminino, mais pobre, menos instruído, mais jovem, do Nordeste. É um eleitor semelhante à sua audiência. Luiza transita nesta faixa por inteiro, mas é capaz de entrar em um segmento de renda mais alta no Sudeste que não assiste o Caldeirão.

O ponto fraco de Luiza Trajano, caso ela se anime a se apresentar, é o fato de talvez chegar tarde demais. Tanto Lavareda, quanto Moura e Márcia Cavallari veem um cenário em 2022 adverso a entrantes de última hora.

“A atividade política hoje ganhou uma dinâmica inversa à que vínhamos tendo. Antes podia ser estratégico um candidato novo mas relativamente conhecido ter a menor campanha possível. Hoje a campanha precisa ser longa, para que dê tempo inclusive de se reagir a toda maré de informações negativas que podem surgir”, disse Moura.

“Não basta ser simpática e ter empatia, como Luiza Trajano tem. É necessário também ser vista como presidenciável. Huck faz este esforço há cinco anos e ainda não terminou este processo de construção”, comentou Lavareda.

Sem fato novo que surja a galope e com a improvável sociedade estabelecida com o PT, Bolsonaro parece livre para fazer qualquer bobagem e ainda assim ser reeleito. Da parte que cabe a si, e não à ajuda involuntária dos adversários, precisa ter atenção a dois limites: sua popularidade não pode baixar o patamar de 20% de aprovação e o mercado precisa seguir vendo-o como o mal menor. Do contrário até a conclusão do mandato está em risco.


Ruth de Aquino: Sem lockdown nacional, teremos 3 mil mortos por dia

Quem diz isso é o médico, neurocientista e professor catedrático Miguel Nicolelis. Sem 21 dias de lockdown nacional, o Brasil entrará numa “guerra explícita”, “um prejuízo épico, incalculável, bíblico”. E será já neste março. A pneumologista Margareth Dalcolmo receia que o mês seja lembrado como “o mais triste de nossas vidas”. A saída é lockdown ao estilo europeu: “Duas semanas ao menos. Zero circulação. Sem shopping, sem restaurante, sem BRT. A não ser serviços essenciais. Para reduzir a transmissão e desafogar hospitais, enquanto se produzem mais vacinas”.

Parece radical. Mas o Brasil é um dos poucos que jamais recorreram ao lockdown. Só jeitinho, embromação, apelo à consciência cívica. Países civilizados sabiam que não bastava pedir empatia a uma população instruída. Fecharam. A única forma de salvar milhares de vidas era o lockdown temporário, com auxílio emergencial aos mais pobres para ficar em casa. Toque de recolher, agora, é uma medida cosmética, porque o vírus circula muito mais durante o dia. O BRT lotado é um viveiro de Covid. 

No desespero, enfermos são transferidos para outras cidades em busca de ar. Jovens caem doentes. As novas variantes do vírus são mais contagiosas e mais letais. Os anticorpos de alguém que já teve Covid são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Governadores choram diante dos frigoríficos da morte. Não adianta ter mais leitos apenas. Não tem mais médico nem enfermeiro. 

Em julho, Nicolelis previu 200 mil mortos até o fim do ano, se não fizéssemos testagem e isolamento social. Alarmista? Atingimos essa marca na primeira semana de 2021. Nicolelis deixa muito claras as opções para o Brasil. Lockdown. Lockdown. Lockdown. E, claro, vacinação em massa. No ritmo atual, ditado pela incompetência política, diplomática e logística do governo, só em dois anos e meio todos os adultos estariam imunizados. 

Em fevereiro, capitais como o Rio pararam de vacinar. Por falta de imunizante. Foram sete meses de conversa de Pazuello com a Pfizer. Agora, o ministro se confunde com datas e até de estado. A história das negociações de vacinas no governo Bolsonaro será enquadrada um dia como crime de guerra. Fomos vítimas de barganhas de preço, atritos diplomáticos e burocracias.

Nicolelis disse à edição brasileira do El País: “John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular”.

Temos um simulacro de presidente que despreza máscaras e vacinas. Derrama palavrões, cloroquina e armas. Um líder covarde que culpa governadores, prefeitos e a mídia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos”. Diante dos atuais 260 mil mortos, mais uma ofensa hoje às famílias que perderam : “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” Até que o senhor seja deposto.

O Congresso, cúmplice, festejava sem máscara há dias e agora encena um minuto de silêncio. O Supremo age por espasmos. E por isso a população jamais entendeu a gravidade da pandemia. Só os cientistas alertam, mas são persona non grata no governo. O alerta da Fiocruz esta semana é dramático. Não há mais tempo.

Mas o Brasil tem estrutura para imunizar 1 milhão de pessoas por dia. Usando drive-thrus, escolas, ginásios, postos. Apelando para as Forças Armadas. Vejo jovens militares de farda camuflada vacinando civis nos Estados Unidos. Entendem de guerra. Essa é uma guerra biológica. Não sejam, aqui, soldados de Bolsonaro nessa matança. 

Engajem-se na vacinação. Se o mundo nos ajudar mandando vacinas, poderemos imunizar 2 milhões por dia. A palavra de 2021 é “colapso”. Colapso da vida e de uma nação. Se Bolsonaro temia um Brasil vermelho, agora o mapa está ficando roxo. Roxo de vergonha e luto. 


Bernardo Mello Franco: Chega de mimimi

Nem a morte de 261 mil brasileiros é capaz de extrair alguma humanidade de Jair Bolsonaro. No pior momento da pandemia, o capitão voltou a ostentar desprezo pelo sofrimento alheio. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, debochou ontem, em Goiás.

As duas frases sintetizam a visão do presidente sobre a tragédia. Nas palavras dele, os esforços para conter a doença não passam de “frescura”. Quem usa máscara tem “medinho do vírus”. Quem respeita as regras de distanciamento é “frouxo” e “covarde”.

Obcecado por afirmar sua masculinidade, o capitão diz que é preciso enfrentar o vírus “como homem, não como moleque”. “Tem que deixar de ser um país de maricas!”, esbravejou, em outro comício contra o isolamento social.

Com o termo “mimimi”, o presidente tenta desmerecer as críticas a seu comportamento irresponsável. A gíria foi adotada pela militância bolsonarista para ironizar minorias e grupos oprimidos. Quem protesta contra o racismo é “vitimista”. Quem contesta a homofobia é “mimizento”.

Por essa lógica, também é “mimimi” reclamar de um governo que ignora a ciência, deixa pacientes sem oxigênio e sabota a negociação de vacinas. Ontem o capitão chamou de “idiota” quem reivindica a compra de imunizantes para todos. “Só se for na casa da tua mãe!”, acrescentou.

A pergunta “Vão ficar chorando até quando?” expõe Bolsonaro em estado puro: um político que despreza a vida e celebra a morte.

Em 28 anos no Congresso, ele se notabilizou por exaltar torturadores e dizer que a ditadura “matou pouco”. Quando a Justiça ordenou buscas por ossadas de desaparecidos no Araguaia, enfeitou o gabinete com um adesivo que dizia “Quem procura osso é cachorro”. Agora, ele achincalha os parentes das vítimas da Covid-19.

Bolsonaro não vai mudar. Enquanto permanecer no cargo, continuará a atentar contra a saúde pública e a desrespeitar as famílias enlutadas.

Hoje completa um mês o pedido de impeachment apresentado por médicos como Gonzalo Vecina e José Gomes Temporão. O documento lista dezenas de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente na pandemia. Pressionar a Câmara a aceitá-lo é uma forma de transformar a indignação em ação. 


O Estado de S. Paulo: Definição de grade de programação da Globo pode acelerar decisão de Huck sobre 2022

Apresentador se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo TSE e uma possível definição na esfera profissional, em meados deste ano

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Em seu cálculo para uma possível candidatura à Presidência da República em 2022, o apresentador e empresário Luciano Huck se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outro mais curto envolvendo uma decisão na esfera profissional. O apresentador da TV Globo tem dividido sua agenda entre a produção do Caldeirão do Huck, principal atração dos sábados da emissora, 'lives' na internet para debater o cenário nacional, encontros com líderes políticos e empresariais e artigos para a imprensa. 

Diante desta atuação em múltiplas frentes, dirigentes partidários e operadores do mercado publicitário aguardam sinais mais claros sobre as intenções do apresentador. Este sinal pode vir até junho deste ano, quando a TV Globo deve definir sua futura grade de programação. O prazo é o mesmo projetado por políticos que mantêm interlocução com Huck para que o apresentador comece a marcar posição no tabuleiro eleitoral. 

Com o anúncio do fim do Domingão do Faustão – em dezembro deste ano, quando vencer o contrato do apresentador Fausto Silva -, a indefinição sobre o futuro dos domingos na grade Globo é hoje o principal foco de debate entre os profissionais de mídia das agências, que são os responsáveis por definir a distribuição das verbas dos anunciantes. Huck é considerado um sucessor natural de Fausto Silva nas tardes de domingo. Publicitários ouvidos em caráter reservado pelo Estadão dizem que as pretensões´políticas de Huck estão causando um "rebuliço no mercado" porque a Globo tem poucas "pautas inéditas" para apresentar na grade de 2022 devido à pandemia. 

O principal patrocinador do programa Caldeirão do Huck é a rede Magazine Luiza, da empresária Luiza Trajano, que também vem sendo assediada por partidos para entrar na disputa presidencial em 2022. O patrocínio, porém, vale até junho deste ano. Se renovar o contrato, ele valerá até junho de 2022. Isso significa que, caso se filie a um partido em abril, no prazo estabelecido pelo TSE, Huck entraria na política no meio da vigência de um dos principais contratos da Globo e teria que deixar o comando do programa. 

Procurada, a assessoria de imprensa da Globo não se manifestou. Segundo fontes do mercado publicitário, as tabelas de preços de patrocínios e comerciais costumam mudar a partir de abril e os anunciantes encaram 2022 como uma grande incógnita.

Precoce

Na cena política, a leitura é que o processo eleitoral de 2022 foi antecipado pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo PT, que colocou o "bloco na rua" com Fernando Haddad, por João Doria (PSDB) e Ciro Gomes (PDT) – que se movimenta para construir uma frente de centro esquerda alternativa ao PT com Rede, PSB e PV. "Está havendo uma aceleração do processo eleitoral. Ele (Huck) deve se decidir até o meio do ano e a grade da Globo é a antessala dessa decisão", disse o ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania, um dos partidos que cortejam o apresentador. 

O presidente do PSB, Carlos Siqueira, evita falar em nomes, mas afirma que o partido também busca um "outsider" para disputar o Palácio do Planalto ano que vem. "Estamos com o radar ligado na busca por um nome que unifique as forças sociais", afirmou. Sobre o processo de escolha do nome, o dirigente afirmou que o "ideal" é que ocorra até meados de 2021.  

No cálculo para uma eventual candidatura ao Palácio do Planalto são levadas em conta por aliados de Huck fusões de legendas e um arranjo que sustente a proposta de um centro liberal e democrático, capaz de se contrapor à polarização entre bolsonaristas e petistas. Desde o ano passado, ao menos quatro partidos já sondaram o global. 

Com o DEM fragmentado e mais governista, uma opção que passou a ser avaliada com atenção extra por aliados do apresentador é o PSB. As conversas ocorrem desde o ano passado e têm sido estimuladas pelo prefeito do Recife, João Campos (PSB), e por sua namorada, a deputada federal Tabata Amaral (SP), que está rompida com seu partido, o PDT. Tabata tem relação próxima com Huck e foi a ponte entre ele e Campos. Os dois jovens políticos integram o RenovaBR, grupo de renovação e formação política que tem o apoio do apresentador. 

Huck tem subido vem subindo o tom contra o governo Boslonaro em suas falas. Na segunda-feira, 1, ele disse que é preciso tirar "um entulho do meio da sala", ao se referir à atuação do governo federal diante da pandemia do novo coronavírus. Na fala, o potencial candidato à Presidência em 2022 não citou o nome do atual ocupante do Planalto. 

Em outro evento promovido na quinta-feira, 04, pelo RenovaBr,  Huck criticou "o não diálogo" no Brasil ao formular uma pergunta ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é apontado como potencial candidato do PSDB ao Palácio do Planalto. "A sensação que eu tenho, Eduardo, é que falta o adulto na sala, sabe? E você a meu ver tem sido uma voz ouvida no cenário nacional hoje em dia, uma voz ponderada, uma voz defendendo a sensatez no trato da gestão pública. E acho que esse é o melhor caminho."

Procurada, a assessoria do apresentador não respondeu. 

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Rogério Werneck: Populismo explícito

Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, equipe econômica terá de lidar com o risco de uma guinada populista inequívoca

Não é de hoje que o País anda sobressaltado com a possibilidade de Bolsonaro rasgar a fantasia e abandonar de vez seu suposto compromisso com uma agenda de política econômica liberal. 

Em janeiro, houve a tentativa de demissão do presidente do Banco do Brasil, por ter anunciado redução no quadro de funcionários da instituição. A escalada mais recente, da demissão do presidente da Petrobrás, por insensibilidade pelos interesses dos caminhoneiros, configurou episódio bem mais grave. 

Como interpretar a súbita disposição de Bolsonaro de se mostrar tão mais truculento no problemático cabo de guerra que, há tempos, vem travando com Paulo Guedes e sua equipe? Em que medida tudo isso levanta incerteza sobre a condução da política econômica no País?

Não há como se agarrar ao autoengano. O episódio deixa mais do que clara a extensão do esgarçamento na complexa relação de Bolsonaro com seu ministro. É inegável que houve constrangedora perda de face de Paulo Guedes e sério comprometimento de sua credibilidade. E, sobretudo, de sua capacidade de articulação, tanto dentro do governo como com o Congresso.

A demissão caiu como uma ducha de água fria no ambiente de negócios no País. Trouxe desestímulo a investimentos relacionados a privatizações e concessões, em que Guedes vinha fazendo muita fé. Um clima de desalento que se fará sentir tanto no timing como no vigor da tão aguardada retomada da economia. Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, a economia terá de lidar agora com o risco cada vez mais palpável de uma guinada populista inequívoca.

O que terá feito Bolsonaro, de repente, partir para tamanha truculência, botando em risco sua relação com Guedes? Em se tratando de quem é, não se pode descartar, claro, a possibilidade de que tenha sido só mais uma decisão desajuizada da qual o presidente já esteja arrependido, mas, como sempre, incapaz de recuar.

Na verdade, o movimento parece ter tido motivação mais fundamentada. Por difícil que seja tentar racionalizar o comportamento de Jair Bolsonaro, vale a pena especular sobre o que o terá movido. A resposta mais óbvia tem a ver com sua crescente apreensão com a provável evolução de sua popularidade nos 19 meses de travessia que ainda tem pela frente, até a eleição presidencial de outubro de 2022.

Na esteira do recrudescimento da pandemia, do surgimento de novas cepas do vírus e da ineficácia das ações do governo na Saúde, o País parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais. O que deverá retardar a recuperação da economia para o segundo semestre, na melhor das hipóteses.

Sobram sinais de crescente indignação da população com o deplorável avanço da vacinação. Impactado pelas cenas macabras de Manaus, Bolsonaro, afinal, se deu conta de como o agravamento da pandemia, antes da vacinação, poderá lhe ser desastroso.

Ao continuar se gabando em público de jamais se ter equivocado quanto à pandemia – “não errei nenhuma” –, o presidente parece, de fato, alucinado. Mas a verdade é que Bolsonaro não cospe para cima nem rasga dinheiro. É perfeitamente capaz de perceber as reais proporções das barbaridades que se permitiu cometer diante do avanço da pandemia e teme, a cada dia, quão oneroso tudo isso ainda lhe poderá ser. Não sabe por quanto tempo poderá continuar a confiar no Centrão para se esquivar da conta que acabará lhe sendo apresentada.

Além dessa espada sobre sua cabeça, o que o presidente agora entrevê são muitos meses mais de pandemia e uma recuperação cada vez mais tardia e menos convincente da economia, fadada a deixar a taxa de desemprego ainda assustadoramente alta no seu último ano de mandato. 

Não chega a ser surpreendente que, alarmado com essa perspectiva, Bolsonaro tenha decidido, afinal, “entrar (para valer) na política econômica”. Já não esconde de ninguém que quer conduzir a seu modo sua difícil travessia até as eleições. “Se tiver de errar, quero pagar pelos meus erros.”

O que mais estará disposto a fazer, se sua queda de popularidade persistir?

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-RIO


Alberto Aggio: O debate em torno do populismo volta à cena

Os ziguezagues de Bolsonaro no comando do governo federal, dentre eles seus desconexos movimentos justificadamente interpretados como mais um retorno a políticas de caráter estatizante, evidenciados recentemente na desastrada intervenção na Petrobrás, recolocaram um velho debate no centro da conjuntura: a suposição de um “retorno ao populismo” que por sua vez contestaria as até então declaradas inclinações pelo liberalismo como a principal orientação da política econômica governamental. De repente, tudo virou de pernas para o ar e as acusações de populismo a Bolsonaro passaram a ser vocalizadas insistentemente e se combinaram com estapafúrdias similitudes com o comunismo e o fascismo — tudo junto e misturado! Num ambiente como esse, as discrepâncias entre conceitos são chocantes, o que torna imprescindível, pelo menos brevemente, revisitar a temática do populismo a partir de uma perspectiva mais crítica e esclarecedora.

Sir Isaiah Berlin, retratado por Gemma Levine

O populismo não é um conceito simples como vem aparecendo na verborragia que tal debate ensejou. Ele é reconhecidamente um conceito problemático por sua ambiguidade, imprecisão, vagueza, generalização, elasticidade, subjetividade etc. Para início de conversa, trata-se de um neologismo que visou descrever as iniciativas de “ida ao povo” por parte de opositores a regimes autocráticos que se sustentavam em sociedades fechadas ou pouco dinâmicas. A historiografia registra o nascimento do conceito na tradução para inglês (populism) do movimento narodnik na Rússia do final do século XIX. A ele se consagra a pré-história do conceito, no mesmo momento, aliás, que o termo seria utilizado para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no interland norte-americano. Depois da Rússia, como escreveu José Aricó, a América Latina tornou-se a “grande pátria do populismo”.[1] Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser utilizado por historiadores e cientistas sociais como a denominação de um período da sua história.

Em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, Isaiah Berlin chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo.[2] Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em riste, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência tivesse se dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar disso, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais, no jornalismo ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.

O populismo é, portanto, um constructo e sua elaboração teórica resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democráticas que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identificação.

O CONTEXTO HISTÓRICO DO POPULISMO LATINO-AMERICANO

Correlato aos acontecimentos mundiais, o populismo emergiu, na América Latina, num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas. É, portanto, um conceito construído para descrever e compreender um contexto de transição histórica, de crise e redefinição das relações entre Estado e sociedade. Enquanto governos ou regimes, o chamado populismo assumiu, em termos gerais, a perspectiva de construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O que se qualifica de populismo latino-americano atuou, portanto, no sentido de promover a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente.

Joan Domingo Perón, um dos símbolos do populismo juntamente com Lázaro Cárdenas (México) e Getúlio Vargas (Brasil)

No essencial, o populismo latino-americano do século XX interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo foi concebido e difundido como uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.

Desde o pós-guerra, no século passado, uma marca pejorativa acompanha o populismo. Ele seria o “outro” repugnante, uma manifestação aberrante e anormal, uma síndrome, um espectro ou mesmo uma recorrente “tentação” que acompanha os atores políticos latino-americanos como via para alcançar e se manter no poder. Desde o final do século XX, cristalizou-se a ideia de que as sociedades latino-americanas necessitariam de uma ruptura histórica antipopulista necessária para “implantar” ou mesmo fazer avançar o capitalismo. Numa abordagem mais ordinária, o terreno dessa aguardada “ruptura” estabeleceria recorrentemente a contraposição entre liberalismo e estatismo, independentemente de quais sejam as questões em tela no debate público.

O POPULISMO, ENTRE UM SÉCULO E OUTRO

Do final do século XX para as duas primeiras décadas do século XXI constata-se uma deriva do populismo que dilui o conceito ou a teoria explicativa que ele significou no passado, reduzindo-o apenas a um termo utilizado de maneira instrumental como identificador de uma política sempre qualificada como negativa. Assim, se instaura na opinião pública e entre os analistas da política contemporânea uma indiferenciação que se baseia quase que exclusivamente nos comportamentos políticos de líderes que são chamados, sem muito rigor, de populistas. Essa indiferenciação induz a que líderes políticos sejam caracterizados como populistas independentemente da identificação, semelhança ou mesmo proximidade entre eles. Assim, líderes políticos como Berlusconi, Lula, Chávez/Maduro, Trump, Beppe Grillo, Macron, Matteo Salvini ou Renzi, Orbán, Bolsonaro, Obama, todos eles, foram ou são, em alguns momentos ou por diferenciados comentadores, qualificados como populistas. Se o populismo do século XX foi acusado de uma polissemia insuperável, o populismo do novo milênio não fica atrás.

Silvio Berlusconi e Matteo Salvini (Reprodução: Alberto Pizzoli/AFP/Acervo)

Independentemente de ser entendido como um fenômeno de direita ou esquerda, o que a maior parte dos analistas observa é que, nesse início de milênio, vive-se uma espécie de “revanche do populismo”, quer como resultado imprevisto da luta contra os regimes autoritários na América Latina quer como resultado de uma crise profunda não apenas das democracias consolidadas, na Europa, como também do welfare state, sua base de sustentação — os EUA de Trump se mostrou um caso particular, embora significativo. Outro elemento a ser considerado são os desajustes da globalização que acabaram por gerar uma reação nacionalista que assumiu, em muitos países, formas extremistas, quase todas elas caracterizadas como populistas. O populismo haveria ressurgido como uma força regressiva no político, com seus rastros de afronta aos direitos humanos, repressão a opositores, perseguição a juízes e ataques à imprensa e às instituições. Em países nos quais a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência da sociedade e das instituições políticas tem sido maior, contrapondo-se a esse tipo de movimento extremista que, em termos mais apropriados, não deveria ser qualificado como populismo.

De uma foram ou de outra, buscando isolar o populismo enquanto um fenômeno consonante com o nosso tempo, inúmeras interpretações têm sido formuladas procurando, invariavelmente, encetar o populismo na chamada “crise da democracia”.[3] E, nesse plano, a questão passa a ser pensada a partir da essencialidade da construção da estrutura de poder nas sociedades contemporâneas.

A interpretação mais virtuosa por sua densidade teórica é reconhecidamente a de Ernesto Laclau.[4] Entusiasmado com os chamados governos de esquerda que se espalharam por diversos países latino-americanos no início do milênio, Laclau não hesitou em construir uma potente analogia. Sem rodeios, afirmou: “há um fantasma que assombra a América Latina, esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx sugere claramente que Laclau pensava em reservar ao “populismo atual” um lugar semelhante ao que Marx imaginou para o comunismo na Europa dos idos de 1848. O cenário de crise da democracia ou de vigência de uma pós-democracia seria o terreno propício para isso.

Laclau e Chantal Mouffe

Para Laclau, o populismo do século XXI expressaria uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos. A razão populista e a razão política, como afirmou E. Laclau, seriam idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. O termo populista, nesta leitura, seria aplicável a qualquer orientação ou movimento político “antissistema”, o que faz emergir a tese de que contra um “populismo de direita” caberia a construção de um “populismo de esquerda”. Supõe-se, nesse caso, que o populismo seja capaz de estabelecer a passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. A identificação, à esquerda, com o bolivarianismo seria direta e imediata; à direita, o iliberalismo de Viktor Orbán obviamente não estaria distanciado daquele objetivo.

Em qualquer dos casos, a contraposição à modernidade é explícita porque se mostra avessa ao indivíduo em sua expressão autônoma, submetido a um desígnio abstrato advindo do “povo-Nação” ou a um regresso anacrônico à noção de “pátria”. Nenhum traço ou sinal de uma “modernidade alternativa”, entendida como democrática, progressista e emancipadora. Contraposta à modernidade a perspectiva analítica laclauliana poderia se confundir com algo que Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, sintetizou magnificamente: o populismo seria então, justificadamente, “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”. Estaria aí seu maior equívoco e o seu insuperável limite.

Como afirmou Margaret Somers, “conceitos são palavras em seus contextos”,[5] o que talvez explique as razões para que, nos dias que correm, seja difícil compartilhar uma crítica ao populismo, tal a aceitação e a ligeireza com que ele é utilizado, sejam quais forem as intenções de seus vocalizadores. Mais produtivo seria se buscássemos construir um debate público em que pudéssemos identificar processos e atores políticos pelo que realmente são. Certamente oxigenaria o já infestado ambiente de degradação em que vivemos.

Notas:

[1] ARICÓ, José. La cola del diablo. Caracas: Nueva Sociedad, 1988.

[2] Citado em ALLOCK, J. B. “Populism, a brief biography”, Sociology, 1971, p. 385, apud MACKINNON, M. M.; PETRONE, M. A. (orgs.) Populismo y neopopulismo en América Latina. Buenos Aires: Eudeba, 1988, p. 11.

[3] PANIZZA, Francisco (compilador). El populismo como espejo de la democracia. Buenos Aires: Fonde de Cultura Económica, 2009.

[4] LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.

[5] SOMERS, Margaret. “Que hay de político o cultural en la cultura política y en la esfera pública?”, Zona Abierta, 77/78, 1996/97, p. 31-94.

(Esse texto é uma publicação conjunta e simultânea com a revista eletrônica Estado da Arte, vinculada ao jornal O Estado de São Paulo).


Merval Pereira: Os extremos se encontram

O conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita, em entrevista à GloboNews, fez um comentário lateral sobre a crise na estatal, com a tentativa do governo Bolsonaro de controlar os preços dos combustíveis, que se torna fundamental quando se olha o quadro de maneira mais abrangente. Disse ele que “se fosse o PT, nós sabemos que teríamos esse problema há dois anos”, referindo-se à política do governo Dilma Rousseff na mesma direção.

Não é à toa que o PT está defendendo a intervenção do governo, e até mesmo o ex-ministro Aloizio Mercadante elogiou o general Joaquim Silva e Luna como “um militar nacionalista”. Há muitos pontos de contato entre visões de mundo autoritárias. Lula deu uma entrevista recente apoiando Bolsonaro quando ele critica o jornalismo profissional. Os dois se sentem atingidos pelas críticas e denúncias.

Tanto Bolsonaro quanto o PT consideram que o indutor do crescimento nacional é o governo e usam as estatais com tal objetivo, mesmo que já tenha sido provado na prática que o resultado é nulo. Mesquita lembrou que a Petrobras teve que pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma ação de investidores internacionais (class action), quando o governo Dilma segurou o preço dos combustíveis com o intuito de conter a inflação.

Noutros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, houve essa tentativa, frustrada, uma das vezes quando o ex-ministro José Serra era candidato à Presidência em 2002 e queria que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, segurasse os aumentos de combustíveis durante a campanha.

Agora o presidente Bolsonaro anuncia que vai “colocar o dedo” na eletricidade, o que geralmente dá choque nos governantes que tentam. Também a ex-presidente Dilma controlou o preço da eletricidade na canetada, e o resultado foi que, mais adiante, o repasse teve que ser feito de maneira mais acentuada, e até hoje a Eletrobras ainda sofre com o rombo provocado naquele tempo.

Na medida provisória que permite ao BNDES estudar a privatização da estatal de energia — o que parece mais um gesto simbólico do que realidade —, há o sistema de capitalização com a intenção desfazer o rombo nas tarifas das usinas da Eletrobras da época de Dilma. Com isso, a empresa pode vir a recuperar sua capacidade de investimento. Mas técnicos admitem que um impacto para cima nas tarifas haverá, seja ela privatizada ou não.

As trapaças da sorte levaram a que tanto Bolsonaro quanto o PT tivessem inimigos comuns, como o ex-ministro Sergio Moro, e métodos semelhantes para tentar se livrar das acusações de corrupção que atingem Lula e Flávio Bolsonaro. O caminho da anulação de provas, ou de julgamentos, leva ao mesmo objetivo: conseguir nos tribunais superiores (STJ e STF) a alforria dos seus.

A razão pela qual a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou as provas contra o hoje senador Flávio Bolsonaro, uma justificativa insuficiente do juiz de primeira instância para autorizar quebra de sigilo, é uma tecnicalidade semelhante à que levou à anulação do processo conhecido como Castelo de Areia, que envolvia empresários e políticos: a investigação se originou numa denúncia anônima.

Mas, quando se quer beneficiar alguém, aceitam-se até provas ilícitas, como no processo que julga uma denúncia de parcialidade contra o então juiz Sergio Moro. A decisão da 2ª Turma do Supremo, que deve ser contra ele, vai anular a condenação do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá e poderá levar de roldão todos os demais julgamentos em que ele foi condenado. E até outras condenações de réus da Lava-Jato.

Assim como a anulação das provas pode levar a investigação contra Flávio Bolsonaro à estaca zero. É possível ampliar o entendimento da lei, como a Operação Lava-Jato fez durante cinco anos, com bons resultados. Mas também usar provas ilegais, como os diálogos entre os procuradores e o então juiz Moro, para absolver condenados. Mesmo que, sabendo da discutível utilização dessas provas, elas não apareçam nos votos dos ministros da 2ª Turma do STF, elas já foram divulgadas largamente para criar um clima contrário ao juiz. O mesmo que acusam os procuradores e o próprio Moro de ter feito. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre Lula e ele.


Mariliz Pereira Jorge: Instituições barram ímpetos golpistas do presidente, mas não de seus seguidores

Ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada

Depois do decreto que pretende flexibilizar o acesso às armas e que só tem o intuito de abastecer milícias bolsonaristas, temos mais um capítulo de “como as democracias morrem”. Um grupo criou uma tal Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil, que nada tem com a OAB, mas com o compromisso de intimidar críticos ao governo.

Por meio de um comunicado nas redes sociais, ameaça processar “todos” que ofenderem Bolsonaro, sua família e integrantes da administração: “vamos derrotar o mal”. O “mal”, como sabemos, é a liberdade de expressão garantida pela Constituição, que dá aos brasileiros o direito de fiscalizar, questionar, desaprovar e esculhambar até o ocupante do cargo mais importante do país.

Os ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada, que pretende promover uma cruzada contra políticos de oposição, artistas, professores e, claro, jornalistas, os que estão em primeiro plano na mira da seita criada pelo presidente.

Se o ministro da Justiça usa sua caneta para perseguir profissionais como está fazendo com meus colegas Ruy Castro e Hélio Schwartsman, por que um grupo de gente ressentida e ignorante, mas com diploma de advogado, não faria o mesmo? Sigamos o mestre, devem pensar.

Pode parecer meia dúzia de aloprados, mas é exatamente como têm sido tratados grupos envolvidos em manifestações pró-golpe militar e em disparos de fake news. As instituições, por enquanto, têm barrado os ímpetos golpistas do presidente, mas não podemos dizer o mesmo sobre seus seguidores. Somos testemunhas do como a democracia vem sendo corroída pelas bordas —e por gente aparentemente insignificante.

Sempre bom lembrar do vice-presidente Pedro Aleixo, em 1968, que foi a única voz discordante da atrocidade do AI-5. “O problema é o guarda da esquina.” Como sabemos, este governo está cercado cada vez mais de gente assim, em cada esquina do país.