política
Luiz Carlos Azedo: Um dia de cada vez
Para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade
“Só por hoje” é o lema dos dependentes químicos que participam de grupos de autoajuda, como Alcoólicos Anônimos. É a síntese do famoso método dos Doze Passos, criado nos Estados Unidos, em 1935, por William Griffith Wilson e pelo doutor Bob Smith, conhecidos pelos membros do AA como “Bill W” e “Dr. Bob”. Muito difundido no Brasil, é utilizado também por instituições que trabalham com recuperação de outras dependências, como a da cocaína, por exemplo. Começa sempre pelo reconhecimento da impotência para enfrentar a dependência. É mais ou menos essa a estratégia que será adotada pelo Palácio do Planalto na intervenção federal no Rio de Janeiro. Reduzir os indicadores de violência enfrentando o crime organizado com ações a cada dia.
Começou ontem, com as operações de bloqueio e fiscalização das fronteiras e pontos estratégicos do estado, com objetivo imediato de inibir o roubo de cargas, o contrabando de armas e a entrada de drogas. Domingo, no Palácio do Planalto, na reunião com ministros e assessores, entusiasmado com os resultados da pesquisa do Ibope que constatou 83% de aprovação para a intervenção federal, Temer decidiu que as ações deveriam buscar a redução dos crimes que mais geram insegurança na cidade, com ações nos locais de maior incidência e nos setores mais atingidos da economia. Na avaliação do governo, a reestruturação das forças policiais e o combate à banda podre das polícias Civil e Militar somente terão êxito se vierem acompanhados de resultados mensuráveis, que possam ser divulgados à população.
A estratégia “um dia de cada vez” tem tudo a ver com o calendário eleitoral, o projeto de reeleição do grupo palaciano que defende a candidatura de Temer e a necessidade de o presidente da República dar um cavalo de pau na agenda do governo, com o fracasso anunciado do esforço para aprovação da reforma da Previdência. Isso explica os desencontros entre o Palácio do Planalto e o general Braga Netto, comandante militar do Leste, nomeado como interventor federal para comandar a área de segurança, que abrange as polícias Civil e Militar, os bombeiros e o sistema penitenciário. O general interventor foi pego no contrapé pela rebelião no presídio de Japeri, no domingo, que acompanhou a distância. Na segunda-feira, em nota, explicou que ainda aguardava a aprovação do decreto pelo Congresso antes de assumir o comando efetivo do sistema de segurança fluminense.
Foi preciso que o ministro da Defesa, Raul Jungmann, viesse a público explicar a situação. Político, o ministro deixou claro que o cargo de interventor é civil e que o emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem obedecerá aos comandantes militares. Disse também que a escolha do general se deveu ao fato de que a intervenção se limitou à segurança pública; se fosse mais abrangente, como chegou a ser cogitado, talvez fosse um economista, porque se pensou em intervir nas finanças do Rio de Janeiro. Numa situação dessa, aí seria o caso de o governador Luiz Fernando Pezão, já tão desmoralizado, entregar as chaves do Palácio Guanabara para o presidente da República.
Nos bastidores das Forças Armadas, como nos revelou o editor de Política do Correio, Leonardo Cavalcanti, há muita pressão para que o governo ofereça mais garantias legais para o emprego de forças do Exército, Marinha e Aeronáutica no combate direto aos traficantes. Mesmo com a mudança da legislação, que garante julgamento pela Justiça Militar em casos de processos penais, os militares consideram as salvaguardas insuficientes. Há dois raciocínios embutidos aqui: primeiro, a intervenção é um recurso extremo, que não pode fracassar como missão (há um exagero nisso, pois trata-se de uma ação de curto prazo e emergencial para um problema crônico, que demanda ações estruturantes de quase todas as políticas públicas); segundo, a lógica de guerra, na qual não existe o princípio de proporcionalidade do emprego da força, mas sim o da superioridade e letalidade. Trocando em miúdos, para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade. Essa salvaguarda não existe. O que pode haver, além do que já existe, é o mandado de busca e apreensão coletivo, pleiteado para permitir que as tropas façam revistas em busca dos esconderijos das armas dos traficantes.
Sucessão
Em meio a essa situação, o Alto Comando do Exército se reuniu ontem para discutir o futuro da Força. Na prática, iniciou-se a sucessão do comandante Eduardo Villas Bôas, que está muito doente, embora exerça plena liderança intelectual e comando efetivo das tropas. Serão escolhidos os substitutos de quatro generais que passarão à reserva em março: Juarez de Paula Cunha (Ciência e Tecnologia), Antônio Mourão (sem função), Theófilo Oliveira (Logística) e João Campos (comandante militar do Sudeste). Agora, o mais antigo oficial do Alto Comando é o general Fernando Azevedo e Silva, chefe de Estado-Maior, que passa a ser o sucessor natural de Villas Bôas, por ser o mais antigo. Ambos são amigos e afinados politicamente, ao contrário de Mourão, que estava afastado da tropa e sem poder de mando desde quando deu declarações admitindo uma eventual intervenção militar, numa reunião da Maçonaria em Brasília.
Augusto Santos Silva: Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais?
O populismo e a desinformação constituem, hoje, ameaças muito sérias às nossas democracias. Seria um erro funesto ignorá-los.
Na esteira de Jan-Werner Müller, professor do Departamento de Política da Universidade de Princeton (EUA), caracterizo o populismo por sua contestação às elites, seu desprezo pelo pluralismo e sua representação moralista e emocional do povo.
Antielitista, o populismo combate as lideranças políticas e intelectuais, a quem acusa de distância e traição em relação aos anseios e sentimentos dos "de baixo". Antipluralista, rejeita a diversidade de interesses e opiniões, desqualifica os partidos e as instituições parlamentares e nega o direito à diferença e à dissidência. Moralista, arroga-se o estatuto de representante genuíno e único de um "verdadeiro povo" que ele próprio define, dele excluindo o que lhe pareça contrário e desqualificando-o como falso ou estrangeiro.
Por seu lado, designo como desinformação (fake news) a corrente que põe em causa três distinções fundamentais do jornalismo e em seu lugar cultiva o apelo populista.
A primeira distinção separa a informação da propaganda: esta é legítima, mas não se confunde com aquela, que faz depender o que diz do que apura com o máximo de rigor, objetividade e isenção possível.
A segunda é a distinção entre a notícia e o boato ou o rumor: a notícia não é o fato cru, muito menos o alarido imediato, mas sim o fato identificado, verificado e interpretado segundo regras cognitivas, éticas e profissionais próprias.
A terceira é a separação entre fatos e opiniões: embora a separação não seja estanque, porque as interpretações são situadas e influenciadas, ela constitui uma referência de que se aproximam todos os que entendem que os cidadãos necessitam, ao mesmo tempo, de informação atualizada e criteriosa e de opiniões livres e diversas.
A desinformação abomina estas distinções porque o seu propósito é militante, o seu fim é a inculcação de preconceitos e estereótipos e as suas armas são o recurso à psicologia de massas, a relação emocional com os destinatários e a ilusão de que essa relação não precisa de mediação nem de mediadores.
Por isso mesmo, a desinformação e o populismo alimentam-se um do outro, e ambos representam enorme perigo para a vida pública democrática. Une-os, em particular, o culto do chefe (por contraposição às elites cosmopolitas e abertas), o desamor pela esfera pública e, correlativamente, o desprezo pela racionalidade comunicacional que, como mostrou o filósofo Jürgen Habermas, se funda na argumentação pública entre as partes.
Seria outro erro fatal supor que essa alimentação recíproca entre populismos e fake news seja um perigo somente para os governos, os partidos políticos e as competições eleitorais. Dois outros pilares das democracias maduras se encontram também ameaçados, e a derrocada deles terá consequências devastadoras para a nossa cidadania. Refiro-me ao campo acadêmico (ou universidade, em sentido amplo) e ao jornalismo; ou seja, refiro-me aos intelectuais e à função intelectual.
Em primeiro lugar, o crescimento da influência do populismo e da prática da desinformação deslegitima a razão crítica, entendida como exercício analítico orientado para o conhecimento e dele esperando recursos para a ação reflexiva e o bem comum. Esse crescimento significa (ao mesmo tempo como causa e como efeito) o declínio da cultura científica (como exame crítico segundo protocolos de problematização, observação e prova) e do debate público (como troca de argumentos sujeitos a validações e falsificações cruzadas).
Em segundo lugar, desqualifica o esforço de mediação, a função mediadora e a prática profissional associada a ela.
Pouco haverá de mais contrário ao que pensam e fazem jornalistas, acadêmicos e outros intelectuais do que a ilusão populista do acesso instantâneo e da relação direta entre a pessoa comum e o conhecimento das coisas, como se fosse só necessário crer para que algo existisse, como se fosse possível tomar posição sem saber os dados do problema e, sobretudo, como se essas elites profissionais intrusas da adesão emocional imediata ao chefe fossem não só dispensáveis como também inimigas.
A mediação exige análise técnica, prática profissional e competências próprias, um trabalho que se submete a protocolos de método e deontologia, que se faz em instituições específicas e que prima pela comparação e confrontação de paradigmas e teorias rivais. O populismo e as fake news oferecem a alternativa do faça-você-mesmo-de-uma-só-maneira, em suposta ligação direta com o chefe.
AUTOCRÍTICA
O populismo não nasceu hoje. No sentido preciso que Jan-Werner Müller lhe atribui, e aqui perfilho, o populismo é "a sombra da democracia representativa".
Como sempre sucede com processos sociais complexos, o incremento da sua projeção pública não se deveu apenas à força própria; elementos disfuncionais realmente existentes nas democracias (como desvios oligárquicos, controles partidários ou défice de transparência perante os cidadãos) ajudaram a impulsionar as críticas populistas às elites alegadamente todo-poderosas ou aos partidos alegadamente indiferentes ao sentir do povo.
Coisa análoga aconteceu com os intelectuais: vários desempenhos negativos desse papel justificaram o ceticismo sobre seus méritos.
Não é possível, portanto, fazer a crítica do anti-intelectualismo populista sem identificar as responsabilidades próprias dos intelectuais.
Primeiro, a culpa da arrogância, tão típica do "intelectual legislador" moderno, tipificado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017). A ideia de que o intelectual encarnava uma autoridade superior, superlegítima, quase transcendente, cuja razão de ser estaria numa ciência ou numa cultura inacessível às pessoas comuns, teve, como todos sabemos, consequências catastróficas nos séculos 19 e 20.
Os intelectuais que aumentaram deliberadamente o seu próprio distanciamento em relação ao povo não podem queixar-se de que o povo lhes pague em dobro.
Segundo, a culpa da traição. O nome é forte, mas o tempo não está para palavras mansas. Quando, no século passado, muitos acadêmicos, escritores e jornalistas levaram o conceito de "intelectual orgânico" a um limite que nem o próprio filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) havia imaginado, diluíram por completo a capacidade crítica inerente ao seu trabalho. Aceitando tornar-se porta-vozes de ideologias diante das quais abdicavam de qualquer escrutínio e juízo crítico, puseram em xeque o fundamento mesmo da sua condição.
Terceiro, a culpa do descumprimento ostensivo da deontologia profissional. O que tem sido particularmente evidente e grave no jornalismo, onde todos os dias se repetem infrações descaradas a regras básicas de ética e deontologia, como a separação entre fatos e opiniões, o respeito pela intimidade e a vida privada, a obrigação do contraditório ou o dever de prova. Mas também acontece, infelizmente, no próprio meio universitário, onde se sucedem os casos de desleixo ou desprezo pelas regras de método e a confusão entre substância científica e retórica comunicacional.
Quarto, a culpa da autossatisfação. Quando a norma vira ritual e se toma ainda Versalhes por modelo de representação, cultivando pomposamente o espírito de corpo e reclamando permanentemente honrarias e privilégios, quando os jornalistas se acham o centro das notícias e os acadêmicos só falam de uns para os outros, a distância com o restante da sociedade vai-se cavando e a ligação com a cidadania (essencial ao papel do intelectual) vai-se deslaçando.
Em quinto lugar, sintetizando todos, a violência do poder simbólico, tão bem analisada pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002). Como todos os poderes, o poder das academias e, sobretudo, o da mídia, se não limitado nem escrutinado, gera exclusão e opressão. E chega sempre um dia em que os excluídos e os oprimidos se revoltam, mesmo que sob bandeiras erradas e lideranças perversas.
O CAMINHO
Portanto, não é possível fazer a crítica do anti-intelectualismo dos populistas sem fazer a (auto)crítica do intelectualismo dos intelectuais —quando são fechados, autocentrados, arrogantes, quando esquecem suas próprias normas profissionais ou as colocam convenientemente em suspenso.
Em poucas palavras: a primeira condição necessária para enfrentar o anti-intelectualismo é ser humilde na relação com outrem e exigente na relação consigo próprio e o seu ofício.
Há ainda uma segunda condição, igualmente indispensável. É não entrar em modo de negação diante da nova realidade social e comunicacional representada pelas redes sociais. Estas existem, são poderosas e nada indica que sua presença e influência vão regredir. É preciso fazer, portanto, um esforço sério de compreensão.
Comecemos pela comunicação. No princípio, ela era ponto a ponto, quer dizer, pessoa a pessoa, em contextos marcados pela copresença física e a interação direta. Depois, passa a se dar também através de meios de comunicação a distância (como a carta escrita).
A comunicação de massas, que terá seu apogeu no século 20, com a imprensa de distribuição maciça, o rádio e a televisão, multiplicará as audiências: um ponto emissor (o jornal, o canal de rádio ou de televisão) dirige-se a massas de leitores, ouvintes e espectadores. Comunicação ponto-multiponto, pois.
Claro que haveria muitas precisões e modulações a fazer neste esquema demasiado básico; no entanto, para o que aqui nos interessa, ele basta.
O que o modo de comunicação da nova mídia faz é repor formas de interação individualizada ou por grupo, agora em contextos não de copresença física, mas sim de comunicação digital que, no limite, dispensa qualquer outro conhecimento ou contato pessoal.
Depois, as funções de emissão e recepção tornam-se muito mais mescladas, porque a tecnologia permite a multiplicação das fontes de informação e agiliza a retroação de receptores sobre emissores e mediadores.
Finalmente, tudo isso ocorre numa enorme aceleração temporal, podendo ser praticamente instantâneo o acesso a dados e emoções sobre eventos ou pessoas localizadas nos confins do mundo.
As consequências no plano específico da informação e do conhecimento são óbvias. Maior variedade de fontes de informação, multiplicação dos canais de acesso, diversificação e concorrência recíproca das várias instâncias de legitimação, controle e interpretação da informação em circulação —e maior rapidez nesta circulação, em direções cruzadas.
Não são menos importantes os efeitos sobre os padrões de conduta social. De um lado, no que importa à entrada dos "leigos" no mercado de opinião, quer dizer, das pessoas comuns, que se podem reconhecer e ser reconhecidas como produtoras e difusoras de notícias e avaliações sobre a realidade circundante. Do outro, quanto à dependência muito menor dessas pessoas, quer no acesso, quer na interpretação, em relação aos mediadores institucionais ou profissionais, tais como, precisamente, jornais e academias, jornalistas e intelectuais.
No universo comunicacional atual, cada sujeito pode dizer e muitas vezes diz: "Eu sei mais depressa o que se passa, eu próprio posso dizer aos outros o que se passa, eu comento com os outros o que se passa, verifico eu próprio o sentido do que me dizem, eu falo sobre o que se passa, eu faço acontecer o que se passa, através da internet, da Wikipedia, do Facebook, do Twitter, do WhatsApp e de tantas outras aplicações e plataformas que me vão permitindo constituir a minha tribo, os meus pares, os emissores-mediadores-receptores do meu quadro de conhecimento, informação e comunicação; portanto, ouçam-me; e, se não me ouvirem, eu procurarei quem me ouça, neste mesmo quadro, fora das elites sociais e fora das instituições políticas que teimam em ignorar-me, ou tratar-me como se ainda estivéssemos na era da comunicação de ponto a multiponto".
Faço mais uma vez minhas as palavras de Jan-Werner Müller: é um erro dramático recusar direitos de cidadania a este mundo e a estes sujeitos das redes sociais; é preciso compreendê-los e falar, não como eles, mas certamente com eles. Não vale a pena imaginar que eles são transitórios, ou vão ficando mais fracos. É realmente o contrário que se passa.
COMBATE
Que fazer, então?
Ter consciência lúcida da complexidade e das dificuldades da situação presente. É um fato que as redes sociais e a nova mídia estão aí, e para ficar. É um fato que elas ampliam o raio de ação e de socialização de cada sujeito social, e isso é coisa positiva.
É também um fato que, pela ilusão da ligação direta entre pessoa e mundo, e entre pessoas-no-mundo, assim como pela ilusão da soberania plena do homem e da mulher comum, aparentemente investidos de um poder de fornecer e recolher informação e formar opinião de que antes não dispunham, as redes sociais constituem um caldo de cultura muito favorável à germinação e à difusão das atitudes e mobilizações populistas, antielitistas e antipluralistas.
Finalmente, é ainda um fato que as redes sociais são especialmente vulneráveis às lógicas e práticas de manipulação por desinformação e tração moralista e emocional.
A questão é, pois: como podemos assumir a existência e a força das novas redes sociais e dos seus modos de comunicação e socialização e tirar vantagem da ampliação das capacidades e poderes das pessoas, sendo ao mesmo tempo eficazes no combate à manipulação que denega a cidadania e faz perigar a democracia, sem cair nos velhos erros da arrogância intelectual?
Na minha opinião, podemos e devemos fazer tudo isto. Se há um veneno que se está espalhando pelo tecido cívico e institucional —o veneno do populismo e da desinformação—, os antídotos a que devemos recorrer são os três seguintes.
Primeiro, defender e praticar uma razão hermenêutica e comunicacional (na linha de pensadores como Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman). Quero dizer uma racionalidade crítica (diante do mundo e de si própria), compreensiva (respeitando e conhecendo os diferentes universos de pensamento) e fundada no diálogo e na argumentação pública. Esse é o melhor antídoto contra o moralismo e o emocionalismo. Esse é o melhor método de escrutínio e verificação dos fatos e dos projetos que circulam à nossa volta.
Segundo, defender e praticar a mediação. Contra a ilusão do imediato, da transparência e da plena evidência, isto é, contra a negação da complexidade das coisas e do trabalho necessário para definir os problemas e encontrar as respostas; e contra a sugestão tipicamente populista de que a "verdade" se daria a ver a si própria sem dificuldade nem questão, só não a atingindo os de condição estrangeira aos sentimentos e identidade do povo.
A informação, que permite dispor de elementos sobre o real, e o conhecimento, que permite interpretá-los, estão certamente ao alcance de todos. Mas no sentido em que todos podem aceder aos resultados e aos instrumentos de um processo intelectual específico, que requer regras, método e labor, que implica um esforço específico de análise e crítica, que requer mediação.
A qual —terceiro antídoto fundamental— não é apenas nem sobretudo tarefa de indivíduos, por mais talentosos que sejam, mas de instituições; ou seja, de indivíduos em instituições. Da imprensa à academia, da escola ao Parlamento, da comunidade local ao Estado, da organização não governamental à entidade pública, a nossa interpretação do real e a nossa ação sobre o real fazem-se em contexto e são tanto mais fortes quanto mais forte for o contexto institucional e os recursos coletivos que ele providencia.
O ser-no-mundo exige conhecer e contatar instituições diversas e plurais; exige respeitar e praticar os meios cognitivos que acrescentam rigor, profundidade e imparcialidade à informação de que todos necessitamos.
Numa palavra: não precisamos de menos, mas de mais intelectuais. De mais acadêmicos, mais professores, mais jornalistas. De mais cultura jornalística —como escrutínio crítico e organizado de fontes diferenciadas de informação— e de mais cultura científica —como forma específica e autodirigida de produzir e circular conhecimento.
Não vejo alternativa. Se queremos combater o populismo e a desinformação, não podemos querer ignorar, muito menos lançar anátema sobre as novas plataformas, tecnologias e modelos de informação e comunicação, e nomeadamente sobre as chamadas redes sociais. Devemos, isto sim, conhecê-las, compreendê-las e frequentá-las.
Não para subordinarmos à sua lógica hegemônica a função própria dos intelectuais no espaço público, mas para mobilizar todo o enorme poder de capacitação crítica que essa função transporta, para revigorar a cidadania e preservar a democracia.
Podem os intelectuais ser substituídos pelas redes sociais? Sem dúvida. Mas só se renunciarem à sua dupla responsabilidade: de conhecer e de agir.
Augusto Santos Silva, 61, doutor em sociologia e professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, é ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
Adams Carvalho, 38, é ilustrador.
Luiz Carlos Azedo: Agora, sim. 2018!
Pesaram na decisão de Huck o encerramento precoce de uma carreira bem-sucedida na TV Globo, as pressões familiares e, sobretudo, as incertezas da política
Ainda vão se realizar os desfiles das escolas de samba campeãs do carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo, haverá o rescaldo dos blocos de frevo e maracatu no Recife, muita gente ainda vai atrás dos trios elétricos em Salvador; enfim, carnaval acabou, mas, até o fim de semana, as ruas estarão cheias de foliões. Entretanto, o ano eleitoral começou.
A notícia do dia foi a segunda desistência de Luciano Huck, aquele que sonhou com Ulysses e não atravessou o Egeu, apesar do canto das sereias, isto é, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do presidente do PPS, Roberto Freire (SP). Com a desistência, levaram a melhor, em primeiro lugar, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que já estava sendo “cristianizado” pelos demais tucanos de alta plumagem; em segundo, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que pleiteia a vaga de candidato à Presidência da República do PPS.
Certamente, pesaram na decisão de Huck o encerramento precoce de uma carreira bem-sucedida na TV Globo, as pressões familiares e, sobretudo, as incertezas da política. Huck precisaria de uma aliança robusta para compensar a falta de tempo de televisão e de recursos do PPS caso se filiasse a este partido, o que somente aconteceria se o seu nome roncasse nas pesquisas, o que não aconteceu. Ou, então, filiar-se a um partido maior, como o DEM, mas perderia o charme de candidato do “novo”. Em qualquer das situações, teria que largar em inferioridade de condições, com Bolsonaro à frente, embolado com Marina Silva (Rede) e tendo nos seus calcanhares Ciro Gomes (PDT) e Álvaro Dias (Podemos).
Isso é coisa para profissional da política, não é para principiantes. Qualquer marqueteiro ou especialista em pesquisas não interessado em vender os próprios serviços à campanha diria que esse é um cenário muito adverso, desafiador, ou seja, uma missão para alguém que não tivesse nada a perder nas eleições. Não é o caso de Huck, que teria tudo a perder e nenhuma garantia de que venceria o pleito. Com a desistência do apresentador, a ideia de uma debacle do sistema partidário atual, com um estouro de boiada que possibilitasse a emergência de uma nova e arrebatadora força política, morre praticamente no nascedouro.
A campanha eleitoral de 2018 começa com uma guerra de posições, como querem os atores políticos tradicionais, e não com uma guerra de movimento, na qual o único protagonista por enquanto é Bolsonaro. A contrarreforma política operada pelos grandes partidos começa a impor as regras do jogo, essa é a verdade. Os grandes partidos têm a vantagem estratégica de maior tempo de televisão e de mais recursos financeiros, porém, não têm candidatos que apareçam como favoritos.
Nesse cenário, o PSDB leva certa vantagem em relação ao PMDB, cujo candidato, se houver, será o presidente Michel Temer; ao PT, que deve lançar o ex-governador Jacques Wagner ou o ex-prefeito Fernando Haddad; e ao DEM, que ensaia a candidatura do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ). Marina Silva, Ciro Gomes e Álvaro Dias também apostam na guerra de movimento, como Bolsonaro. Mas não são propriamente uma novidade na política, como seria Huck.
Habeas corpus
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, lançou mais uma pá de cal na candidatura do ex-presidente Lula. Ontem, manifestou-se contra a concessão de um habeas corpus ao petista, que foi condenado a 12 anos e 1 mês, em regime inicialmente fechado, pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF-4), responsável pelos processos da Operação Lava-Jato em segunda instância.
Os desembargadores decidiram que a pena deverá ser cumprida quando não couber mais recurso ao tribunal, mas a defesa de Lula tenta evitar sua prisão recorrendo aos tribunais superiores, com o argumento de que ninguém pode ser considerado culpado “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, segundo a Constituição. O pedido já havia sido negado pelo ministro Humberto Marins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas a defesa de Lula recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Luiz Edson Fachin, relator do processo no STF, também negou o habeas corpus, mas decidiu que a palavra final caberá ao plenário da Corte, formado por mais 10 ministros.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-agora-sim-2018/
Monica de Bolle: Fragmentação e ajuste
O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo
Aqui em Washington começa a despontar algum interesse sobre as eleições brasileiras. Nas últimas semanas foram vários os eventos em que participei pela cidade onde acadêmicos, integrantes do governo americano e membros do setor privado têm se reunido para refletir sobre os cenários e suas implicações. Pouco se estranha que as atenções estejam majoritariamente concentradas em mapear os presidenciáveis e as chances de cada um. Tampouco surpreende que muitos dos participantes desses seminários acreditem que, apesar da imprevisibilidade, há chance de que algum candidato favorável às reformas consiga chegar ao segundo turno, ecoando o otimismo cauteloso que hoje caracteriza muitas análises do Brasil produzidas no Brasil. Mas é quarta-feira de cinzas. Acabou nosso carnaval. Ninguém ouve cantar canções. Portanto, é necessário pensar sobre os custos econômicos crescentes da fragmentação política.
Muito se fala sobre os presidenciáveis, pouco se reflete sobre o Congresso. Como bem sabem os cientistas políticos – brasileiros ou não –, tem o País o poder legislativo mais fragmentado da América Latina. Usando métricas como os índices que medem o número efetivo de partidos, isto é, medidas que ponderam o número de partidos no Congresso por seu peso, seja por número de assentos ou poder de voto, o Brasil é absolutamente fora de padrão. Em 2014, quando das últimas eleições gerais, exibia o País índice de fragmentação política cerca de 4 vezes maior do que a média da região. A tendência da fragmentação política brasileira também assusta: somente entre 2010 e 2014, a fragmentação aumentou ao redor de 30%; entre 2002 e 2014, os índices de fragmentação revelam aumento de quase 50%. Diante da notável polarização do País revelada nas pesquisas de opinião e na boca do povo que hoje ocupa as redes sociais, as chances de que vejamos novo salto na fragmentação legislativa em 2018 são enormes.
Como mostra vasta literatura acadêmica sobre a relação entre fragmentação política e qualidade da política fiscal, tais constatações são assustadoras. De modo geral, há forte correlação positiva entre fragmentação política e gastos, déficits e dívida pública. Estudo recente do FMI usando dados para 92 países entre 1975 e 2015 mostra que um maior grau de fragmentação política está geralmente associado a aumentos na dívida pública. Além disso, a análise revela que a corrupção acentua tal correlação, ou seja, em países onde há mais corrupção, a relação entre fragmentação política e aumento da dívida é mais forte.
No caso específico do presidencialismo de coalizão brasileiro não é difícil explicar porque isso ocorre: quanto mais fragmentada a política, mais precisa o governo gastar – com emendas parlamentares, por exemplo – para manter uma coalizão relativamente estável. Coalizão que aprove, por exemplo, seus planos de reformas e ajustes. Se os planos de reformas e ajustes requerem redução dos gastos, dos déficits, das dívidas, percebe-se com facilidade que a maior fragmentação do poder legislativo é incompatível com a consolidação fiscal. Eis o nosso nó górdio.
O Brasil tem, hoje, situação fiscal insustentável. Com ou sem a diluída reforma da Previdência que voltará brevemente à pauta depois do carnaval, os déficits fiscais continuarão altos nos próximos anos, a dívida pública seguirá aumentando. Atualmente, segundo a metodologia do FMI, nossa dívida bruta está na faixa dos 83% do PIB. Sem ajustes ou reformas profundas, é fácil traçar cenários em que a dívida alcança os 100% da renda gerada na economia brasileira em apenas dois anos. Há quem acredite que esse cenário não haverá de se concretizar pois o País acabará elegendo alguém que defenda as reformas. A ingenuidade dessa tese está na premissa implícita de que o novo governante conseguiria tudo reverter independentemente da composição do Congresso. Contudo, diante das evidências empíricas e da possibilidade de que o fogo e a fúria dos eleitores entregue-nos poder legislativo ainda mais fragmentado do que temos hoje, cai por terra qualquer tese esperançosa.
O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo. A herança para lá de maldita, construída por anos a fio com a ajuda do próprio presidente, ficou para o próximo governo. Cinza é pouco para descrever nossa situação.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Luiz Carlos Azedo: Tristeza também faz parte
O ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou um pedido de habeas corpus preventivo de Lula, que pode ser preso
Domingo de carnaval não é um dia muito apropriado para falar de política, embora o tema mais badalado no carnaval deste ano, obviamente, seja exatamente a mixórdia da política nacional, cujos personagens mais ilustres são alvos sistemáticos da troça popular. Foi-se o tempo em que a apologia dos políticos vivos era enredo de escola de samba. Agora, o melhor para os políticos é passar o carnaval recolhido, porque a maré não está boa para a maioria deles.
No Rio de Janeiro, por exemplo, o prefeito Marcelo Crivela (PRB) faz o que pode para desfazer a imagem de que é o inimigo público número 1 dos foliões cariocas. Visitou o Sambódromo, recebeu o Rei Momo, Milton Junior, no Palácio da Cidade e até gravou vídeo falando que tudo está às mil maravilhas na cidade, cujo hino começa como abertura de sinfonia e acaba como marchinha de carnaval.
O vídeo de Crivela viralizou nas redes porque diz que as ruas amanhecem limpas depois da passagem dos blocos, os hospitais funcionam a pleno vapor, a guarda municipal garante a segurança dos blocos e não faltará transporte para quem quiser assistir aos desfiles no Sambódromo. Arriscou até a previsão do tempo, prometendo sol em abundância nos dias de folia. De gozação, os cariocas dizem que o prefeito estava doidão quando fez a gravação. Alegria, alegria, apesar dos tiroteios na Rocinha e em outras “comunidades”.
Não se fazem fantasias como antigamente. Boa parte vem embalada da China e lembra os super-heróis hollywoodianos. Na velho Saara, o tradicional comércio popular do Centro do Rio de Janeiro, no qual árabes e judeus vivem em plena harmonia, um adereço não custava mais do que R$ 5; uma fantasia do Batman ou da Mulher-Maravilha, R$ 49. O controle da inflação e a baixa taxa de juros ajudaram os foliões.
Já as fantasias das escolas de samba são outra história, estão cotadas em euros e dólar, porque desfilar na Sapucaí virou pacote turístico. Para sair numa das alas da Mangueira, uma fantasia não fica por menos de R$ 1.600; na Império Serrano, a Ala das Feras cobra R$ 1.000. Na São Clemente, Paraíso do Tuiuti e na Unidos da Tijuca, era possível pagar R$ 700 para desfilar no primeiro grupo.
Habeas corpus
Carnaval tem de tudo. Por exemplo, depois da morte do Jamelão, não existe ninguém mais rabugento no mundo musical carioca do que o Alfredinho, dono do Bip-Bip, na Almirante Gonçalves, em Copacabana, que abriga uma das mais tradicionais rodas de samba da cidade. Seu bloco sai à meia-noite e um minuto do sábado de carnaval e às 23h59 da terça-feira Gorda. Para evitar superlotação, ele sempre diz aos desconhecidos que não pretende abrir o único boteco self-service carioca durante o carnaval e diz que não sabe se o bloco vai sair. É sempre mentira!
Tristeza também faz parte do carnaval, que nos diga a belíssima Máscara Negra, samba de Zé Kéti, eternizado na voz de Dalva de Oliveira. E o habeas corpus do folião de raça, aquele descrito em prosa e verso por Ary Barroso e Elizeth Cardoso, em Camisa Amarela, que mergulha no turbilhão carnaval com um reco-reco na mão e só reaparece na Quarta-feira de Cinzas cantando A Jardineira.
Mas eis que chegamos à política. O ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou um pedido de habeas corpus preventivo da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, que pretende evitar a prisão do ex-presidente. Além disso, Fachin submeteu a decisão final ao plenário do STF, formado por 11 ministros. Lula está condenado a 12 anos e 1 mês em regime semiaberto pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF-4), em um processo da Lava-Jato. Pela decisão dos desembargadores, a pena deverá ser cumprida quando não couber mais recurso na 2ª instância da Justiça.
A defesa de Lula, que agora tem à frente o ex-presidente do STF Sepúlveda Pertence, apresentou habeas corpus ao STF pedindo que o ex-presidente não seja preso até o processo transitar em julgado. Pleiteava que o caso fosse analisado pela Segunda Turma, formada pelos ministros Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Dias Toffoli. A datada decisão será definida pela presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. Não foi uma boa notícia para o petista, que luta na Justiça para não ser preso, nem enquadrado na Lei da Ficha Lima, que o torna inelegível, ou seja, deixa-o fora da disputa eleitoral de 2018.
Demétrio Magnoli: Ideias fora de lugar
O Santo Guerreiro precisa do Dragão da Maldade: a ausência de Lula tende a esvaziar o discurso de Jair Bolsonaro
As ideias já estavam fora de lugar antes da condenação de Lula pelo TRF-4 e sua consequente inelegibilidade. O voto unânime dos três magistrados mudou radicalmente o panorama político-eleitoral. As ideias moveram-se junto com os votos, girando 180 graus — e continuaram fora de lugar. Não era verdade, antes, que as eleições presidenciais necessariamente ficariam reféns da polarização entre populistas de esquerda e de direita. Não é verdade, agora, que o espectro dos populismos simétricos tenha sido conjurado. Agora, como antes, o enigma situa-se em outro lugar: a crise do centro político no Brasil.
Antes da sentença do TRF-4, as sondagens atribuíam a Lula algo em torno de 35% das intenções de voto, enquanto Jair Bolsonaro atingia cerca de 15%. O número relevante, que passava quase imperceptível, era 50% — não a soma dos potenciais eleitores de ambos, mas a metade do eleitorado avesso às duas alternativas populistas. Num cenário em que a massa menos informada dos cidadãos só sabia da existência daquelas duas candidaturas, 50% declaravam rejeitá-los. O espaço para uma candidatura vitoriosa de centro ampliou-se, obviamente, com a virtual destruição da postulação de Lula. Mas o centro não triunfará se persistir na sua crônica incapacidade de formular um discurso político popular.
O outono do lulismo reflete-se na fragmentação do campo do populismo de esquerda. Ciro Gomes (PDT), Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos, presumível candidato pelo PSOL, já disputam seu espólio eleitoral, enquanto o PSB tenta atrair o interesse de Joaquim Barbosa. Tudo indica, porém, que o PT erguerá uma candidatura própria. Nutrido a partir da campanha fantasmagórica de Lula, que promete a restauração de uma mítica “idade de ouro” e exibe-se como vítima da “perseguição das elites”, mister X, o candidato do PT, tem chances apreciáveis de ultrapassar a barreira do primeiro turno. Nessa hipótese, uma imagem holográfica de Lula reunificaria, no segundo turno, o bloco do capitalismo de compadrio, do corporativismo e do paternalismo estatal.
Na ponta oposta (ao menos, aparentemente), o populismo de direita apresenta-se unificado desde o início. Bolsonaro investiu no promissor mercado eleitoral do ódio ao lulismo, mesclando sua alma original ultranacionalista a uma agenda ultraliberal fornecida por seitas ideológicas das catacumbas da internet. O Santo Guerreiro precisa do Dragão da Maldade: a ausência de Lula tende a esvaziar o discurso de Bolsonaro. Contudo, por enquanto, sua candidatura progride, alimentada pela ilusória candidatura de Lula. Dias atrás, num evento patrocinado pelo BTG Pactual, o sombrio deputado foi ovacionado por mais de dois mil investidores, uma reiterada comprovação de que a idiotia política e a habilidade para ganhar dinheiro não são mutuamente excludentes.
Mister X (Lula em holografia ou Ciro Gomes, ou mesmo Boulos) versus Bolsonaro? Mesmo agora, não pode ser descartada a hipótese de um tóxico segundo turno, uma “escolha de Sofia” entre a tradição varguista e a nostalgia da ditadura militar, uma recusa absoluta a encarar os dilemas do presente. Contudo, só seremos arrastados a essa encruzilhada impossível se o centro político concluir sua trajetória de implosão.
O PSDB avançou, de olhos abertos, rumo ao abismo engalfinhando-se durante 15 anos nas estéreis lutas intestinas entre seus caciques, firmando um pacto faustiano com Eduardo Cunha em nome do impeachment e, finalmente, perfilando-se com o Aécio Neves do malote de dinheiro da JBS. Mas o colapso tem raízes mais profundas: desenhou-se lá atrás, quando o partido de FHC não soube formular uma política social alternativa ao programa paternalista de estímulo ao consumo privado conduzido pelo lulismo triunfante. O vazio de ideias da candidatura de Geraldo Alckmin espelha um impasse antigo, que se manifesta agonicamente nas periódicas celebrações tucanas dos aniversários do Plano Real.
“Exemplo de lealdade no ninho: enquanto Alckmin tenta consolidar sua candidatura, FHC busca um Macron para chamar de seu”, disparou um obscuro deputado petista, acertando o alvo. Duvidando do candidato tucano, FHC descreve círculos especulativos ao redor da potencial candidatura de Luciano Huck, qualificando-a como “boa para o Brasil”, capaz de “arejar” o cenário e “botar em perigo a política tradicional”. O Macron da França surgiu no vórtice de uma crise dramática, criou um partido centrista viável e ofereceu à nação um ousado projeto de reformas econômicas, sociais e institucionais. Já o Macron de FHC emerge como fenômeno exclusivamente midiático: uma estrela brilhante na constelação das celebridades.
Macron — como, em circunstâncias nacionais diferentes, o argentino Mauricio Macri e o partido espanhol Cidadãos — evidencia que o centro político é capaz de se reinventar diante do desafio populista. O Macron de FHC é o exato oposto disso: um atestado de falência do nosso centro político.
Brasileira disputa reeleição para Câmara dos Deputados da Itália
Em seu primeiro mandato na Itália, Renata Bueno atuou em temas importantes para os dois países como a extradição do ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, condenado no processo do mensalão, e também no processo para entrada em vigor do acordo de reconhecimento recíproco da carteira de habilitação entre os dois países. Atuou ainda em parcerias nas áreas de Defesa, Cultura, entre outros assuntos.
Antes de ser eleita em 2013, Renata já tinha experiência parlamentar e exerceu um mandato como vereadora em Curitiba. Ela explica que, no Brasil, só em São Paulo existem 115 mil italianos em condições de votar (é o maior colégio eleitoral do país, seguido por Paraná e Santa Catarina). Ao todo, cerca de 350 mil pessoas podem votar em todo o Brasil.
Como votar
A parlamentar disputa o cargo por uma lista cívica popular (Civica Popolare), encabeçada pela ministra da Saúde, Beatrice Lorenzin, e que conta com o apoio do Movimento Passione Itália. Tem direito a voto todos os italianos e cidadãos com dupla cidadania que moram na América do Sul. Entre os dias 09 e 16 de fevereiro todos os registrados nos consulados receberão a cédula em sua casa.
Para votar na brasileira, o eleitor deve marcar um “X” no símbolo da CIVICA POPULARE e ao lado escrever de forma legível o nome de Renata Bueno. Vencerá a eleição quem tiver o maior número de votos pela lista cívica. Desde 2006, a Itália abre espaço para candidaturas de representantes de outros países.
O voto deve ser devolvido pelos Correios até 25 de fevereiro ou entregue nos consulados até o dia 1º de março. Caso o eleitor não receba a cédula deve requisitá-la no consulado até o prazo final para a entrega do voto. Na Itália, os eleitores vão às urnas no dia 4 de março de 2018. Ao contrário do Brasil, o voto no país é facultativo.
Com dupla nacionalidade, Renata Bueno morou quatro anos na Itália antes de ser eleita deputada em 2013. Lá fez pós-graduação e mestrado, além de cursos na área de Direitos Humanos.
A candidata ressalta a importância da eleição de um brasileiro já que, devido ao processo histórico de migração, existem muitos pontos de interesse comum entre o Brasil e a Itália. Lembra ainda que o PPS tem esse perfil internacionalista muito forte em sua atuação política e sua história. “A Argentina, por exemplo, é muito organizada com relação a política italiana, mas aqui no Brasil nós não éramos muito organizados. Com a minha eleição em 2013, essa situação começou a mudar. A eleição de uma brasileira para o parlamento italiano chamou a atenção da comunidade residente no país que passou a se interessar mais pelo processo eleitoral e pela política italiana. Espero continuar esse trabalho para sacramentar cada vez mais a parceria entre os dois países”, afirmou a candidata.
Momento atual da política italiana
Renata lembra ainda que hoje a Itália vive um momento muito delicado e de muita mudança. “Depois da queda do governo de Mateo Renzi e de um período de governo provisório, o parlamento foi dissolvido e convocadas novas eleições. Não só na Itália, mas no mundo todo vem surgindo um processo de reflexão sobre a representação política. Assim como no Brasil, o país passa por uma crise econômica e enfrenta a questão da migração. O cidadão italiano é muito politizado e isso gera uma expectativa muito grande para essa eleição. Acredito que vai ser um momento importantíssimo. E não podemos nos esquecer que a Itália é um país que reflete na economia mundial, o que torna essa eleição ainda mais emblemática”, ressaltou.
Sistema eleitoral
O voto na Itália é pelo sistema de lista fechada, no qual os eleitores votam em uma lista de representantes – equivalente às nossas legendas. As cadeiras são distribuídas de acordo com a lista. Entretanto, para as vagas destinadas a estrangeiros, o sistema é por lista aberta. O eleitor deve votar em uma das listas disponíveis e destacar um dos candidatos. As vagas são distribuídas de acordo com os votos das listas e os ocupantes das cadeiras que são os mais citados.
O parlamento e o Senado italiano reservam, respectivamente, 12 e 6 vagas para residentes no exterior – sendo que quatro deputados e dois senadores são eleitos pelo distrito da América do Sul, que inclui o Brasil. Estão aptos a votar cidadãos italianos maiores de 18 anos.
El País: Lava Jato segue emperrada no STF quase três anos após primeira lista de Janot
Lento e silencioso. Assim vem sendo o avanço dos inquéritos abertos contra políticos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça nos últimos três anos, após as famosas listas de Janot e delações premiadas que prometiam derrubar a República. Do total de 36 denúncias feitas pela Procuradoria-Geral da República no STF no âmbito da Operação Lava Jato, apenas sete se tornaram ações penais — uma delas corre em sigilo na Corte.
Os dados são da PGR. A curto e médio prazo, isso significa que políticos com foro privilegiado que apareceram em delações de ex-diretores da Petrobras e de executivos da Odebrecht e da JBS vem ganhando tempo. O contrário do padrão que se instaurou na primeira instância durante a Lava Jato, que vem atingindo sobretudo o mundo empresarial e políticos sem foro — como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pelo TRF-4 na última semana a 12 anos e 1 mês de prisão após uma tramitação em tempo recorde entre a primeira e a segunda instância.
As chamadas listas de Janot produziram poucos efeitos práticos. A última delas, também apelidada de lista de Fachin, foi divulgada em março do ano passado e continha nomes citados nas delações da Odebrecht. Chegou a ser apelidada de delação do fim do mundo devido aos potenciais estragos no sistema político, mas até agora bem pouco estrago fez. Janot apresentou cerca de 100 nomes de políticos e pediu a abertura de 83 inquéritos para apurar supostos crimes. Dos que estavam na lista, apenas uma pessoa foi denunciada, em agosto do ano passado, pelo então procurador-geral Rodrigo Janot: o senador Romero Jucá (MDB).
Em outubro do ano passado, a atual procuradora-geral, Raquel Dodge, reforçou a denúncia, que apontou suposto favorecimento do emedebista ao Grupo Gerdau em uma medida provisória em troca de doações eleitorais. No entanto, cabe agora ao STF dizer se há indícios mínimos de crime para que o parlamentar se torne réu. Um embate que colocará o Supremo no centro das atenções depois do midiático julgamento e condenação de Lula no TRF-4. Valerão as mesmas evidências para condená-lo?
Os demais inquéritos abertos – a primeira fase de uma possível ação penal — com base nas delações da Odebrecht estão em andamento e quatro já foram arquivados, sendo um deles por prescrição. Oito dos políticos que estavam na segunda lista eram ministros do presidente Michel Temer: Eliseu Padilha (MDB), Moreira Franco (MDB), Giberto Kassab (PSD), Blairo Maggi (PP), Helder Barbalho (MDB), Bruno Araújo (PSDB), Aloysio Nunes (PSDB), Marcos Pereira (PRB). Há também inquéritos abertos contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM) — apelidado de Botafogo na planilha da Odebrecht —, e o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB).
Também estava na lista o governador de São Paulo e presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), após ser acusado de receber recursos via caixa 2 da construtora nas eleições de 2010 e 2014. Seu inquérito corre em sigilo no STJ. Por sua vez, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), acusado pelos executivos da Odebrecht de receber 15 milhões de reais em propinas da construtora, se tornou réu no STJ em dezembro do ano passado acusado de corrupção passiva.
A primeira lista de Janot foi apresentada em março de 2015. Possuía 50 nomes e 28 pedidos de abertura de inquérito. A maioria também segue em curso. Alguns foram arquivados, como os dos senadores Fernando Collor (PTC), Antonio Anastasia (PSDB) e Lindbergh Farias (PT). Outros nomes tiveram suas ações enviadas à primeira instância e se tornaram réus, entre eles o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB). Ele acabou condenado pelo juiz Sergio Moro a 15 anos de prisão em março do ano passado por lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
Dos 50 nomes da lista, ao menos 16 foram denunciados e ao menos cinco se tornaram réus. Entre eles está a senadora e presidenta do PT, Gleisi Hoffmann. Ela foi acusada junto com seu marido, o ex-ministro do Planejamento Paulo Bernardo, de receber um milhão de reais para a sua campanha de 2010 com recursos desviados de contratos da Petrobras. Ambos respondem pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Seu processo está bastante avançado: a PGR já fez suas alegações finais e o ministro Edson Fachin, relator do caso, já liberou para revisão seu voto. O julgamento deve ocorrer ainda neste ano na Segunda Turma da Corte.
Em setembro do ano passado, no apagar das luzes de seu mandato na PGR e após as delações dos principais executivos da JBS, Janot também apresentou denúncias contra o presidente Michel Temer (MDB) — que conseguiu escapar no Congresso de ser investigado — e o senador Aécio Neves (PSDB), além de ações coletivas contra dirigentes do PT, MDB e PP. Até o momento, todos esses processos não tiveram efeitos práticos. Antes, porém, em julho, pouco depois de estourar a gravação de Joesley com Temer, Janot pediu abertura de inquérito contra o senador José Serra, que chegou a ser ministro de Relações Exteriores do Governo Temer. Serra, porém, entrou com pedido para arquivar o pedido, uma vez que ele tem mais de 70 anos, o que acelera a prescrição de processos. No dia 24 de janeiro, mesmo dia da condenação de Lula no TRF-4, a PGR encaminhou ao Supremo a solicitação do tucano.
Em meio a um calendário eleitoral cheio de incertezas, e ainda sem uma definição sobre se Lula poderá ou não se candidatar, a Procuradoria-Geral da República, chefiada desde setembro por Dodge, assegura que "a condução das investigações em curso não está vinculada ao calendário eleitoral". A procuradora-geral já apresentou oito denúncias durante seu mandato, sendo que três delas seguem em sigilo. "Em relação aos casos decorrentes de acordos de colaboração premiada, têm sido adotadas providências no sentido de assegurar o cumprimento integral dos acordos, o que inclui as sanções penais e financeiras", afirma a Procuradoria.
Questionada sobre a lentidão dos processos nas instâncias superiores, a PGR assegura que a "orientação é que todos os casos — inquéritos, denúncias, ações penais ou procedimentos extrajudiciais — sejam conduzidos com agilidade, e conforme os critérios previstos na legislação". A Procuradoria disse ainda que "não comenta o ritmo adotado por outros órgãos para conduzir as investigações em curso".
Já a Polícia Federal disse que não comenta sobre os inquéritos em andamento. Já o STF explica que, durante a fase de inquérito, a Corte apenas atua para observar a legalidade, autorizando diligências e prorrogando prazos. Toda iniciativa durante as investigações, argumenta o Supremo, depende da PGR e da PF.
Luiz Carlos Azedo: Os gastos da União
Estados e municípios, com a exceção dos que já entraram em colapso, têm mais responsabilidade com o equilíbrio fiscal do que a União, porque não podem fechar o ano no vermelho
O falecido historiador carioca José Honório Rodrigues, autor de Conciliação e reforma no Brasil, era um crítico da história focada na construção do Estado nacional e seus protagonistas. Era fã incondicional do cearense Capistrano de Abreu, autor de Caminhos antigos e povoamento do Brasil, obra que revolucionou a historiografia brasileira e motivou seus grandes intérpretes, de Euclides da Cunha, com os Sertões, a Jorge Caldeira, que acaba de lançar História da Riqueza do Brasil. Honório dizia que o grande problema das reformas no Brasil era o distanciamento entre a União e a sociedade brasileira. Formado em Direito pela Universidade do Brasil, em 1937, fez parte de uma geração que mudou o modo de olhar o Brasil, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Pedro Calmon, Américo Jacobina Lacombe, Nelson Werneck Sodré e Caio Prado, entre outros.
Liberal moderado, às vésperas do golpe militar de 1964, fez um diagnóstico sobre a política nacional que vem bem a calhar, embora o contexto seja completamente diferente: “As aspirações atuais do povo brasileiro crescem mais rapidamente do que os níveis de satisfação promovidos pelas minorias dominantes. A diferença entre o padrão de vida que possui e o nível de vida a que aspira aumenta sempre mais. Nem por isso ele busca soluções extremistas porque é, como convém repetir, infenso, por feitio, às ideologias. Sua posição não é engaiolada, doutrinária, fechada, dogmática, mas flexível, conciliável, personalista; ele aceita as mais esdrúxulas alianças, promovidas pelas cúpulas, e rejeita, de um ou de outro lado, as atitudes discriminatórias, fanáticas, indiscutíveis, extremas…”(Aspirações Nacionais, 1963).
Ao prefaciar a 4ª edição da mesma obra, em 1970, nos anos de chumbo do regime militar, Honório fez uma afirmação premonitória do que viria a ser a transição à democracia, com a eleição no colégio eleitoral de Tancredo Neves, em 1985: “A situação política atual se caracteriza pela existência de três minorias e uma maioria. Duas minorias exaltadas e neuróticas, uma liberticida e outra libertária, ação e reação conviventes, irmãs no extremo da conduta política, embora se apresentem como adversárias. A terceira minoria moderada pode e deve vencer as outras duas e trazer para o seu lado a maioria desprezada”. Diante do cenário de radicalização política e incertezas eleitorais que estamos vivendo, nada mais atual!
O divórcio
O secular divórcio entre a União e a sociedade permanece. Somente não é mais grave porque a maioria da sociedade preza a democracia e não endossa as narrativas de desestabilização, seja à esquerda ou à direita. Esse divórcio se reflete também no pacto federativo, acirra desigualdades e idiossincrasias regionais, esgarça a relação entre os entes federados. Basta examinar as contas da União de 2017. A arrecadação líquida do governo federal, depois das transferências de receitas para Estados e municípios, terminou 2017 com um aumento de 2,5%, em termos reais, na comparação com 2016.
O ex-secretário da Receita Everardo Maciel, em artigo publicado na sexta-feira, no Valor Econômico, destaca que estados e municípios registraram superavit primário de R$ 7,5 bilhões em 2017, de acordo com dados do Banco Central divulgados quinta-feira, ante uma previsão de deficit de R$ 1,1 bilhão. O governo controlou as despesas, que caíram 1% em relação a 2016, em termos reais, mas o deficit primário do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) ficou em R$ 118,4 bilhões, abaixo da meta de R$ 159 bilhões prevista em lei. Maciel indaga: “por que razão o setor público vai passar de um deficit primário de R$ 110,6 bilhões, registrado em 2017, para um deficit de R$ 161,3 bilhões, que é a meta fiscal definida em lei para este ano? Como isso será feito?”
Estados e municípios, com a exceção dos que já entraram em colapso, investem mais e melhor do que a União e têm mais responsabilidade com o equilíbrio fiscal porque não podem fechar o ano no vermelho, ao passo que o governo federal pretende aumentar o rombo nas contas públicas em R$ 50 bilhões. “Além da generosa meta fiscal, o governo está autorizado, constitucionalmente, a aumentar os seus gastos deste ano em R$ 89 bilhões”, destaca Maciel. É obvio que essa “folga” existe para facilitar a vida da base do governo nas eleições, em vez de aproveitar a reforma ministerial para cortar na própria carne.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-gastos-da-uniao/
Luiz Carlos Azedo: O espírito das leis
O Supremo é o guardião da Constituição, com poder de intervir em atos do Poder Executivo ou em relação a leis aprovadas pelo Legislativo que contrariarem a Carta Magna
Um dos pais do Estado moderno, para Montesquieu havia três tipos de governos: o republicano, “aquele no qual todo o povo, ou pelo menos uma parte dele, detém o poder supremo”; o monárquico, no qual “governa uma só pessoa, de acordo com leis fixas e estabelecidas”; e o despótico, em que “um só arrasta tudo e a todos com sua vontade e caprichos, sem leis ou freios”. Essa definição existe desde 1748, quando foi publicada em Genebra, em dois volumes, a sua obra O espírito das leis, sem o nome do autor, porque havia sido proibida na França. Dois anos depois, a proibição foi suspensa e a obra virou um verdadeiro best-seller, com 22 edições em 15 meses.
A referência a Montesquieu, que sofreu forte influência de Aristóteles e John Locke, vem a propósito da narrativa petista sobre o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e dos ataques do líder petista ao Judiciário. Seu comportamento é típico de um candidato a déspota, como o descrito no início desta prosa, e não de um réu injustiçado. O grande objetivo de Montesquieu foi garantir a liberdade política e tornar impossível o despotismo, através de uma separação de poderes ampla e absoluta: “Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares”.
Ontem, ao reabrir os trabalhos do Judiciário, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, na presença do presidente Michel Temer e dos presidentes da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, senador Eunício Oliveira (MDB-CE), reafirmou o velho princípio de separação de poderes e aproveitou para responder aos ataques de Lula: “Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar reformar a decisão judicial pelos meios legais e pelos juízos competentes. O que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la. Justiça individual fora do direito não é justiça, senão vingança ou ato de força pessoal.”
Carmem Lúcia fez a ressalva de que a Justiça também não está acima do bem e do mal: “O Judiciário aplica a Constituição e a lei. Não é a Justiça ideal, é a humana, posta à disposição de cada cidadão para garantir a paz. Paz que é o contínuo dos homens e das instituições. Se não houver um juiz a proteger a lei para os nossos adversos, não haverá um para nos proteger no que acreditamos ser o nosso direito”.
Lava-Jato
Essa questão nos remete aos debates da elaboração da Constituição norte-americana, protagonizados por Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, origem do “americanismo”, que hoje influencia fortemente a magistratura brasileira. Eles escreveram 85 artigos para O federalista, publicados sob o pseudônimo Publiu, em Nova York, entre outubro de 1787 e maio de 1788, dos quais cinco foram dedicados ao Judiciário. Uma das inovações dos federalistas foi a introdução do princípio de que a Suprema Corte é a guardiã da Constituição, com poder de intervir em atos do Poder Executivo e/ou em relação a leis aprovadas pelo Legislativo, quando estas contrariarem a Carta Magna. Esse é o principal contrapeso para garantir a democracia contra os excessos do Executivo e eventuais maiorias parlamentares.
Nesse aspecto, foi importante também o posicionamento da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, num momento em que se arma uma coalizão no Executivo e no Legislativo para acabar com a Operação Lava-Jato: “O Ministério Público tem agido e pretende continuar a agir com o propósito de buscar resolutividade, para que a Justiça seja bem distribuída; para que haja o cumprimento da sentença criminal após o duplo grau de jurisdição, que evita impunidade; para defender a dignidade humana, de modo a erradicar a escravidão moderna, a discriminação que causa infelicidade, e para assegurar acesso à educação, à saúde e a serviços públicos de qualidade.”
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-espirito-das-leis-2/
José Casado: ‘Queridos companheiros’
Lula lamentou não poder reencontrar velhos amigos no fim de semana em Adis Abeba, líderes de dinastias cleptocratas que sustentam longevas ditaduras
Sem passaporte, Lula não pôde encontrar “companheiros” ditadores na África. Horas depois de ser condenado a mais de 12 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, estava pronto para atravessar o Atlântico e participar de uma reunião sobre... a luta contra a corrupção. A viagem de dez mil quilômetros à Etiópia (14 horas em voo direto) foi abortada pela Justiça na sexta-feira. “Vejam que absurdo” — contou em video na página do PT. “Eu estava com a mala pronta, quando recebi um recado em casa: um juiz bloqueou o meu passaporte.”
Protestou: “Nós vivemos um momento de ditadura de uma parcela do Poder Judiciário, sobretudo o Poder Judiciário que cuida de uma coisa chamada Operação Lava-Jato, que vocês já devem ter ouvido falar aí na África.” Lula iria à cúpula da União Africana em Adis Abeba, capital de um país onde o “estado de emergência” é decreto recorrente, e a opinião pública não pode ser expressa nem em particular.
Queixou-se por não poder estar com “o querido companheiro” Hailemariam Desalegn, primeiro-ministro etíope, cuja polícia matou mil opositores nos últimos 16 meses e recolheu outros 21 mil a “campos de reabilitação” — informa a Human Rights Watch em relatório deste mês.
Organismo comunitário, a União Africana foi erguida nos anos 90 pelo falecido ditador líbio Muamar Kadafi, na época isolado porque patrocinava atentados como o da bomba num avião da Pan Am, que espalhou 270 cadáveres sobre uma vila da Escócia. Kadafi apoiou Lula na campanha de 2002, segundo o ex-ministro Antonio Palocci, preso em Curitiba. Eleito, Lula foi a Trípoli. A visita a Kadafi para “negócios” , como definiu, está contada em livro dos repórteres Leonêncio Nossa e Eduardo Scolese.
A viagem do ex-presidente à Etiópia foi organizada pelo “companheiro e querido irmão” José Graziano, a quem elegeu diretor da FAO, braço da ONU para a agricultura. Graziano foi ministro do Fome Zero. Bom projeto, o Fome Zero logo virou peça de marketing político no exterior em 2003. Morreu de inanição governamental, estimulada pela má vontade do PT, então focado nos “negócios” do caso Mensalão. Graziano inscreveu o antigo chefe num debate sobre fome com o “querido Obasanjo”, evento da cúpula africana sobre a luta contra a corrupção. Presidente da Nigéria (1999 a 2007), Olusegun Obasanjo recentemente foi declarado “avô da corrupção” pela Câmara de seu país, que constatou o sumiço de parte dos investimentos (US$ 16 bilhões) em projetos de energia.
Outros “companheiros” que Lula pretendia encontrar para “um abraço fraternal” eram Denis Nguesso (do Congo), Teodoro Obiang (da Guiné Equatorial), e Ali Bongo (do Gabão). O trio lidera dinastias cleptocratas que sustentam longevas ditaduras na África.
Os Nguesso colecionam 66 imóveis de luxo na França, segundo o Tribunal de Paris. Os Obiang escondiam uma conta bancária em Washington cujo saldo era quatro vezes e meia superior ao valor do patrimônio imobiliário da rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Os Bongo foram apanhados em transferências diretas de US$ 130 milhões do Tesouro do Gabão para suas contas privadas no Citibank, em Nova York.
Sem passaporte, Lula não pode reencontrar os velhos amigos, no fim de semana em Adis Abeba, para explicar-lhes a sentença a 12 anos de prisão e porque ainda é réu em outros seis processos por corrupção.
O Estado de S. Paulo: A esquerda e o esquerdismo
Os verdadeiros partidos de esquerda são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa
Se o brasileiro que se considera de centro não tem ainda uma candidatura presidencial que represente seus ideais mais caros, como constatamos neste espaço no domingo retrasado (ver Um vazio a ser preenchido), o eleitor que defende os ideais da esquerda democrática tampouco tem melhor sorte.
Não há hoje, na ampla oferta de candidatos e partidos do chamado campo “progressista” que almejam o poder, nenhum que rejeite toda e qualquer ditadura, que preze a Constituição e que consiga superar seus limites ideológicos radicais para se apresentar como governante de todos os brasileiros, e não apenas da patota. Ao contrário, os partidos mais proeminentes entre os que se dizem de esquerda fazem campanha sistemática contra as instituições democráticas, como se estas fossem instrumentos de uma guerra política das “elites” contra o “povo”. Segundo esse ponto de vista, nenhuma derrota política que essa turma tenha sofrido ou venha a sofrer é aceitável, pois só pode ser resultado de um complô contra os interesses do “povo” – de quem o PT, o PSOL e quejandos se consideram os únicos e legítimos intérpretes. Afinal, sua teoria e prática conseguem ser ainda mais vazias que a da desusada luta de classes.
O caso do PT é o mais óbvio. A insurgência do partido contra as instituições não começou agora, em razão das vicissitudes judiciais de seu poderoso chefão, Lula da Silva, mas há muito tempo, praticamente desde a sua fundação. Quando o PT estava na oposição, não houve um único presidente da República contra o qual o partido não tenha feito campanha pelo impeachment. Uma vez no poder, o PT tratou de desmoralizar a política institucional, ao remunerar parlamentares em troca de votos e ao financiar partidos associados e a si mesmo com dinheiro desviado de estatais. De volta à oposição, por força do impedimento da presidente Dilma Rousseff, o PT seguiu em sua campanha de desmoralização das leis e da democracia, ao enxergar golpistas no Congresso e até no Supremo Tribunal Federal e ao deixar de reconhecer os crimes fiscais cometidos pelo “poste” inventado por Lula da Silva. Portanto, não constitui nenhuma novidade o fato de que o PT esteja a mobilizar mundos e fundos para não apenas jurar a inocência de seu padrinho, mas principalmente para atacar, de roldão, todo o arcabouço institucional brasileiro – Congresso, Judiciário e imprensa livre.
Diante disso, pode-se imaginar a frustração do eleitor que é de esquerda, mas não compactua com o “esquerdismo”, que, no léxico leninista, conforme lembrou Luiz Sérgio Henriques em artigo a propósito da hostilidade do PT à democracia (A difícil identidade do petismo, 21/1, pág. A2), designa um comportamento infantil, que tende a ver o mundo pela óptica do radicalismo, sem o menor espaço para a negociação.
Os verdadeiros partidos de esquerda – não os “esquerdistas” – são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa. Não é possível se considerar genuinamente de esquerda – o que inclui não apenas fazer a crítica ao sistema capitalista, mas também defender de modo intransigente as liberdades políticas e civis – e apoiar ao mesmo tempo ditaduras como a da Venezuela, como fazem oficialmente o PT e o PSOL.
Ademais, como salientou Luiz Sérgio Henriques em seu artigo, os partidos esquerdistas hoje no Brasil são reféns do culto à personalidade, alçando Lula da Silva à categoria de santo e impedindo, dessa maneira, a renovação de sua liderança. O resultado é a transformação do PT em mera barricada atrás da qual Lula pretende se proteger da Justiça.
A julgar pelo que dizem os capas pretas do petismo, nada disso vai mudar. O ex-prefeito Fernando Haddad, coordenador da campanha de Lula, por exemplo, disse ao Estado que “a esquerda vai ter que se repensar” a partir de 2019, mas se negou a reconhecer os erros do partido, atribuindo-os ao “sistema”, e reafirmou que “o lulismo vai sobreviver ao Lula por força de sua liderança”. Ou seja, a principal força política e eleitoral da autointitulada “esquerda” no País continuará refém do pensamento autoritário e excludente que tão bem caracteriza o demiurgo petista.