política
Merval Pereira: Civilização regressiva
Luiz Carlos Azedo: O regresso
Uma das características negativas do processo eleitoral em curso — sim, porque as pré-campanhas já começaram — é o caráter regressivo da polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), cujos discursos parecem sair das páginas dos jornais dos anos 1960. Se fosse apenas nostalgia, como alguns imaginam, não haveria nenhum risco para a sociedade. Mas acontece que são projetos de poder que se contrapõem radicalmente, ambos de vieses nacionalista e populista, um à direita e outro à esquerda. Ambos anacrônicos em relação às necessidades de integração do Brasil ao mundo globalizado, cosmopolita e democrático, principalmente à revolução digital em curso, mas perfeitamente factíveis se olharmos para o que está acontecendo na política mundial.
Numa cena típica dos anos de Guerra Fria, um ex-espião da antiga KGB (que pode ter sido agente duplo do MI6, o serviço secreto britânico) e sua filha sofreram um atentado com o gás nervoso novichok na cidade de Salisbury, na Inglaterra, o que provocou a mais séria crise diplomática entre Rússia e Ocidente desde a anexação da Crimeia, em 2014. Em solidariedade ao governo britânico, que expulsou 22 diplomatas russos, EUA, Canadá, Austrália, 23 países europeus e a Otan (aliança militar ocidental) também determinaram a saída de diplomatas russos de suas dependências.
A reação do governo britânico levou a que esses países expulsassem mais de 140 diplomatas russos em 48 horas. Às vésperas da Copa do Mundo, a Rússia corre o risco de reviver a crise das Olimpíadas de Moscou, que foram boicotadas pelos Estados Unidos e mais 59 países aliados, por causa da invasão do Afeganistão pela antiga União Soviética (hoje, são os americanos e seus aliados que andam por lá). Ainda bem que o histriônico presidente norte-americano Donald Trump e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-Un resolveram conversar. E o recém-eleito Vladimir Putin, o novo czar russo, resolveu tirar por menos a crise diplomática. Recentemente, arreganhou os dentes ao anunciar novos misseis balísticos intercontinentais inteligentes, capazes de despistar as defesas da Otan. É o preço a pagar.
O cenário reflete uma disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo deslocou-se do Atlântico para o Pacífico. No esforço de reformas que possibilitem a modernização da economia, os regimes autoritários da Ásia, liderados pela China e Cingapura, levam enorme vantagem em relação às potências tradicionais do Ocidente, onde a democracia representativa está em crise. A Rússia segue a mesma receita, enquanto França, Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha sofrem as consequências políticas do agravamento das desigualdades pela globalização. Em todos esse países, uma reação xenófoba alimenta a reação conservadora ao desemprego estrutural e à chegada de imigrantes do Norte da África e do Oriente Médio. O regresso não é um fenômeno isolado. Sua maior conquista foi a eleição de Trump. No Brasil, as eleições parecem não estar nem aí para esses problemas, como se nada tivessem a ver com o nosso futuro. Mas têm.
Judicialização
A judicialização da política também impressiona. Vejam as notícias de ontem: a família do relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, está ameaçada; a Segunda Turma do STF autorizou a prisão domiciliar do ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Jorge Picciani; o ministro Dias Toffoli autorizou o ex-senador Demóstenes Torres a disputar as eleições para o Senado, suspendendo sua inelegibilidade; e. também liberou para julgamento a ação que discute restrição ao foro privilegiado na Corte, o que pode jogar para a primeira instância os políticos envolvidos na Lava-jato. O foro por prerrogativa de função garante presidente, ministros, senadores e deputados federais serem julgados somente pelo Supremo. O julgamento depende de a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, pôr a ação na pauta da plenária. Essas decisões são música aos ouvidos dos políticos enrolados na Operação Lava-Jato.
Esse fenômeno da judicialização da política não é uma jabuticaba. Existe em razão da construção do Estado de bem-estar social após a II Guerra Mundial, que consagrou os direitos sociais com uma centralidade que rivaliza com os chamados direitos civis e a democracia representativa. As soluções políticas, no âmbito do Executivo ou do Legislativo, por essa razão, acabam gerando demandas na Justiça. No Brasil, os partidos de oposição são contumazes nesse tipo de recurso, dando ainda mais protagonismo ao Ministério Público e ao Judiciário. Agora, porém, a agenda é a crise ética, por causa da corrupção na política. Mudou-se a natureza da judicialização, que passou a ser um vetor decisivo nas eleições deste ano.
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Demétrio Magnoli: Marielle, um memorial impossível?
A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário
Os três PMs mortos no Rio num único dia, a quarta, 21 de março, os 30 assassinados em menos de três meses de 2018 e os 134 exterminados em 2017 são cadáveres anônimos, ao contrário de Marielle Franco. Longe das luzes e câmeras, estão também as 1.124 pessoas mortas pela polícia no ano passado, supostamente por resistência a intervenções policiais. A distinção entre a vereadora do PSOL e todos os demais tem sentido, pois a única vítima célebre foi, ao que tudo indica, alvo de um crime político. Mas o contraste entre luz e sombras também sinaliza a naturalização da barbárie que está em curso. É em nome de todos os mortos que seria preciso erguer um memorial a Marielle. Nunca, porém, uma estátua em mármore disponível para selfies de turistas ávidos por estilhaços da sofrida, folclórica “história dos nativos”.
“Tem que pagar por esse crime bárbaro”, disse o ministro Raul Jungmann, comprometendo a intervenção federal com a célere apuração dos nomes dos “executantes” e dos “mandantes”. Se a promessa for cumprida — especialmente na parte dos “mandantes”, sejam “de dentro ou de fora da polícia” — surgirá o esboço do memorial certo. Mas faltará ainda a substância: a separação radical entre o Estado e o crime organizado, por meio de uma profunda reforma da polícia. O passo decisivo depende menos de Jungmann ou do governo federal que da articulação dos partidos e da sociedade civil. O memorial jamais será erguido sem um consenso mínimo entre as principais forças políticas do Rio.
Uma campanha odienta nas redes sociais, estimulada por partidários de Jair Bolsonaro, almeja matar Marielle pela segunda vez, sugerindo uma associação entre a vereadora e o Comando Vermelho. No polo oposto, o PSOL e o PT reduzem a vítima à condição de cadáver útil, isto é, de um veículo inerte propício à difusão de discursos sectários. No lugar de alianças políticas em torno de metas comuns, os dois partidos entregam-se a um jogo de espelhismos que só interessa ao “bolsonarismo” — e, por extensão lógica, à facção bandida da polícia.
A narrativa psolista emana da ideia, caricatural e populista, de uma guerra entre o Estado e o “povo da favela”. No discurso de inúmeros porta-vozes do partido, Marielle é vítima da intervenção federal, que seria conivente com a polícia-bandida e as milícias. A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário — e, como consequência, desvia-se o foco das associações criminosas entre a polícia, as milícias e o narcotráfico. Chamemos isso de “imobilismo revolucionário”: no fundo, o PSOL está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não chegar ao poder, conduzindo o povo oprimido à redenção final.
A narrativa petista, por sua vez, emana da ideia do “golpe”. Dilma Rousseff: “o que aconteceu com a Marielle Franco faz parte de um dos atos deste golpe que desencadearam no Brasil desde 2016. Por que eu digo que faz parte? Porque o golpe não é um ato, o golpe é o processo.” Num ápice agônico de oportunismo, o PT pretende convencer-nos de que Marielle é Dilma e é Lula, de que os responsáveis pela execução da vereadora são o impeachment e a sentença condenatória do TRF-4. O discurso petista esconde, numa paisagem de brumas, o colapso da segurança pública no Rio e o fracasso da política das UPPs. Chamemos isso de “imobilismo eleitoreiro”: no fim, o PT está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não retornar ao Planalto.
A estátua em mármore, pontilhada por placas de metal exibindo palavras de ordem revolucionárias ou slogans eleitorais — isso é tudo que propõem o PSOL e o PT. Mas, desgraçadamente, os dois partidos são indispensáveis para a produção de um consenso democrático no Rio capaz de isolar a parcela da elite política associada ao crime.
“Crime organizado” distingue-se de criminalidade comum pela circunstância de que é um fruto da política. O crime se organiza quando agentes públicos estabelecem pactos de poder e negócios com facções criminosas. A força territorial do narcotráfico e das milícias atesta o grau de degradação da polícia, que deixou de ser um instrumento de manutenção da ordem pública para servir a diversos interesses privados em conflito. A intervenção federal restrita à segurança pública é insuficiente para restaurar a ordem. O nó precisa ser desatado na esfera política, por meio da unidade das forças democráticas em torno de um programa comum de reforma policial.
“Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”, gritam os militantes psolistas, sacrificando o diálogo no caldeirão fervente da ideologia. A intervenção federal não resolve, por si mesma, a questão do colapso da segurança pública, como sabem os chefes militares experimentados. Mas a rejeição do PSOL e do PT à política democrática condena o Rio a depositar suas esperanças no improvável sucesso da operação militar. Nada de memorial, uma estátua na praça e uma cova rasa para os mortos sem nome — é só isso que teremos?
* Demétrio Magnoli é sociólogo
Luiz Carlos Azedo: O “imprendível” Lula
O julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal (STF) é uma síntese das incertezas que o Brasil vive às vésperas das eleições deste ano, marcadas para outubro. Condenado, em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), Lula é inelegível em razão da Lei da Ficha Limpa (que somente pode ser alterada por emenda constitucional), mas trava uma batalha política para se livrar da execução imediata da pena no Supremo, que suspendeu o julgamento e lhe concedeu salvo-conduto que impede a prisão.
Para usar um neologismo inspirado na frase famosa do também sindicalista Antônio Rogério Magri, que foi ministro do Trabalho no governo Collor de Mello (“o salário do trabalhador é imexível”), o líder petista é o primeiro político condenado pela Operação Lava-Jato “imprendível” até que todo o processo transite em julgado nas quatro instâncias do Judiciário, revogando, na prática, a jurisprudência do próprio Supremo. A consequência imediata é que o ex-ministro da Fazenda de seu governo Antônio Palocci, que está preso, já entrou com pedido de habeas corpus com o mesmo teor no Supremo. Deverão seguir o mesmo caminho os ex-deputados André Vargas (PT-PR) e Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e provavelmente o ex-governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), entre outros condenados da Lava-Jato.
Na quinta-feira passada, Lula obteve uma inequívoca vitória no Supremo ao conseguir, por 7 a 4, que os ministros levassem a julgamento, contra o voto do relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, o pedido de habeas corpus preventivo para Lula, atropelando decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como já havia transcorrido mais de quatro horas de sessão e alguns ministros estavam com viagem marcada, o julgamento foi suspenso, como se interrompê-lo fosse a coisa mais trivial. A seguir, por 6 a 5, de afogadilho, os ministros decidiram conceder salvo-conduto para Lula não ser preso enquanto o julgamento não acaba. Agora, basta um ministro pedir vista para o julgamento permanecer inconcluso por longo período e Lula se safar da prisão, jogando por terra toda a jurisprudência da própria Corte.
Decisão do Supremo não se discute, cumpre-se. Essa é a regra de ouro da democracia, sem a qual vai embora seu principal pilar de sustentação, o poder moderador do Supremo. Entretanto, são favas contadas a rejeição do embargo de declaração dos advogados de Lula contra sua condenação pelos desembargadores federais de Porto Alegre; o ato contínuo seria o juiz federal Sérgio Moro determinar a execução imediata da pena. Já que o habeas corpus não foi ainda julgado, o mais sensato será Moro aguardar a decisão do Supremo. Mas vamos supor que não faça isso, que decida pela execução imediata da pena, como manda o rito da jurisprudência vigente, já que salvo-conduto não é habeas corpus? Estará criado um fato político com alto poder de corrosão da imagem do Supremo.
Incertezas
Há muito que a política deixou de ser o monopólio dos políticos, magistrados, diplomatas e militares. Também existe a política dos cidadãos, potencializada pelas redes sociais, um grande teatro virtual, muito mais agitado, movimentado e enganador do que o teatro da política tradicional, cujo palco principal é o Congresso, fórum principal da democracia representativa. A crise ética que o país enfrenta aprofundou o fosso entre a sociedade, que se articula pelas redes, e os partidos políticos, que operam no âmbito do Congresso. Pode ser que isso seja irreversível e, no futuro próximo, se consolide uma natural divisão de trabalho entre a formação da opinião pública, no âmbito das mídias e das redes sociais, e a sua tradução política e institucional pelos partidos no Congresso. Mas é um futuro ideal para a democracia representativa, não é o que acontece.
O divórcio entre a sociedade e o Congresso, por causa das redes sociais, pode se radicalizar ainda mais e se tornar uma ameaça à democracia, como estamos observando no mundo inteiro. Em princípio, não é ainda o nosso caso, já que nossos cidadãos e os partidos têm um encontro marcado nas próximas eleições. E porque o Supremo, mesmo aos trancos e barrancos perante a sociedade, vinha exercendo um papel moderador na crise ética. Entretanto, o julgamento de Lula pode subverter tudo isso, não por causa do habeas corpus, mas por causa de sua desafiadora candidatura a presidente da República, que sustenta nas ruas, como demonstrou com seu périplo pelo Rio Grande do Sul, iniciado no dia de seu julgamento. Lula não se coloca acima da lei, se coloca acima das instituições. Quem mais ganha com isso, porém, é Jair Bolsonaro (PSC-RJ).
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Beto Gerosa: Redes sociais precisam de um ombudsman
A sociedade, o mercado e a própria democracia sinalizam que sim, faz-se necessário algum mecanismo para corrigir o mau uso
Notícias falsas, campanhas digitais mentirosas: as redes sociais foram motivo de discussão já em dezembro de 2014. Em artigo que publiquei neste espaço, o título era uma provocação que se revelou premonitória: "As redes sociais precisam de um ombudsman?".
O texto, na época, alertava para o problema, mas apostava no papel dos usuários como poder regulador da rede. Uma reportagem de 2018 da BBC mostrou que a discussão era válida: perfis falsos foram usados no Orkut já na campanha de 2010 de Dilma Rousseff!
As notícias falsas não se espalham à toa pelas redes. As plataformas são construídas para criar fluxos de informações virais que criam a ilusão de uma atividade frenética, muitas vezes aceleradas por robôs e perfis falsos. "Para pessoas comuns, compartilhar é mais uma questão de construir a própria imagem na rede do que informar os outros. Informar é um objetivo do jornalismo, não de pessoas comuns", alerta Henry Jenkins, autor de "Cultura da Convergência".
Os recentes episódios envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco e a campanha difamatória que se seguiu são a prova de como notícias falsas atendem a uma demanda e têm poder de rápida propagação. São compartilhadas por pessoas comuns e fanáticos, aqueles que são "um ponto de exclamação ambulante", como define o escritor israelense Amós Oz. "Têm sempre uma resposta muito simples para tudo e que está acima de qualquer dúvida para eles".
Como mitigar o problema? A Alemanha aprovou uma lei contra a produção de notícias falsas. No Brasil, o TSE criou um conselho consultivo e um grupo para lidar com notícias falsas nas redes sociais no período eleitoral. Sites de checagem e imprensa confrontam os boatos com os fatos: não, Marielle não foi casada com traficante, não era envolvida com a bandidagem da Maré nem teve a filha aos 16.
A eleição de Donald Trump foi um marco do poder da influência das redes sociais, com a comprovada ação dos russos na produção e distribuição de notícias falsas que o favoreceram. Após tergiversar, o Facebook admitiu que a ferramenta foi usada pelos russos.
Para limpar a barra, Mark Zuckerberg alterou o algoritmo da plataforma e passou a privilegiar conteúdos de interação pessoal, deixando de exibir aqueles produzidos pelo jornalismo profissional. Esta medida só reforça a tendência de o usuário consumir cada vez mais conteúdo de sua bolha de afinidade. Puniu o remédio (o jornalismo) sem atacar a doença (as notícias falsas).
Reportagem do "The Observer" reforça a fragilidade da ferramenta ao revelar como um cientista de computação descobriu uma maneira de extrair perfis de 50 milhões de usuários do Facebook que foram usados pela Cambridge Analytica nas campanhas vitoriosas de Trump e do "brexit", no Reino Unido.
A asfixia da receita, porém, é ação, o "ombudsman" que incomoda. A Unilever ameaçou cortar US$ 3 bilhões de verbas publicitárias de plataformas, como o Facebook e YouTube, que divulgam conteúdo que associam a marca a mensagens de terrorismo, pedofilia e fake news.
Investigação sobre o vazamento dos perfis do Facebook fez cair as ações em US$ 49 bilhões em um dia. Zuckerberg entendeu o recado: vai limitar o uso das informações dos seus usuários. A partir do momento que esta algaravia editorial deixa de gerar lucros para as empresas que publicam e para aqueles que produzem material falso, aumentam as chances de mudança.
Voltando à pergunta de 2014, "As redes sociais precisam de um ombudsman?". Parece que a sociedade, o mercado e a própria democracia sinalizam que sim, precisaram, e precisam, de vários "ombudsmen" para corrigir seu mau uso.
Luiz Carlos Azedo: Mudanças de paradigmas
O desprezo da sociedade e o sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais ameaçam as instituições da democracia representativa
Uma das características do mundo em que vivemos é a mudança de paradigmas, ou seja, de modelo ou padrão. Há diferentes tipos de paradigmas — cartesiano, holístico, etc. —, ainda mais quando são abordados temas complexos. Na política, a maior mudança de paradigma em curso é a equiparação do fascismo ao comunismo como paradigmas autoritários e violentos, o que criou condições para a supremacia inequívoca das instituições liberal-democráticas nas sociedades ocidentais.
O problema é que esse tipo de ruptura não se resolve apenas no âmbito das elites pensantes, ou das instituições da democracia, passa também pela consciência dos cidadãos. Até a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, havia uma diferenciação clara entre os regimes fascistas e comunistas, que havia sido sedimentado pelo desfecho da II Guerra Mundial. Agora não há mais, em razão das revelações históricas sobre crimes cometidos por esses regimes e, também, pelo do fato de que os cidadãos do leste europeu fizeram uma opção pela democracia liberal.
É aí que se estabelece um novo paradoxo. Nas democracias do Ocidente, em que pese essa clara hegemonia das ideias liberais, existe um mal-estar generalizado da sociedade em relação às instituições políticas da democracia representativa. E uma espécie de recidiva de ideias autoritárias, não apenas na periferia, mas também em nações que foram protagonistas do status político alcançado após a II Guerra Mundial, entre as quais Alemanha, França e Estados Unidos. Esse fenômeno também ocorre nos países periféricos, com o agravante de que esses sofrem ainda mais as consequências do aumento das desigualdades com a globalização.
Entretanto, é erro imaginar que a universalização da democracia está dada. Na verdade, ao contrário, vem sendo ameaçada, seja pelo desprezo de parcela considerável da sociedade às instituições da democracia representativa, seja pelo sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais. Sem falar no terrorismo fundamentalista de inspiração religiosa, que não deve nunca ser subestimado.
Habeas corpus
É nesse contexto que o Brasil enfrenta as próprias contradições e mudanças de paradigmas. No momento, o palco dessa mudança no plano político é o Supremo Tribunal Federal (STF), cujo protagonismo em relação aos demais poderes em razão da Constituição de 1988 tornou-se inequívoco após a Operação Lava-Jato. Esse protagonismo, entretanto, parece que bateu no teto. Profundas divergências se instalaram na Corte, agravadas por um comportamento errático se considerarmos a sequência de suas decisões.
Uma dessas mudanças de paradigma na política brasileira é a questão da execução das penas para condenados em segunda instância, jurisprudência do Supremo que adotou um procedimento comum na maioria das democracias ocidentais, mas que contraria o princípio jurídica brasileiro de garantir o “transitado em julgado”, ou seja, a conclusão do julgamento em quatro instâncias, principalmente para crimes de colarinho branco. Num país de fortes tradições patrimonialistas de suas elites política e empresarial, essa jurisprudência é uma mudança de paradigma em relação ao histórico de impunidade dos poderosos.
Ontem, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram adiar para 4 de abril a conclusão do julgamento do habeas corpus preventivo de Luiz Inácio Lula da Silva, impetrado pela defesa com o objetivo de evitar a prisão do ex-presidente. Os ministros decidiram uma “questão preliminar” sobre a pertinência do julgamento. Por 7 votos a 4, admitiram julgar o habeas corpus. Mas, quando essa decisão foi tomada, havia transcorrido mais de quatro horas de sessão e o julgamento foi suspenso. Por isso, por 6 a 5, os ministros decidiram conceder salvo-conduto para Lula não ser preso enquanto não se conclui o julgamento no Supremo, mesmo que o embargo de declaração impetrado pela defesa do ex-presidente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região seja negado na próxima segunda-feira. Lula está condenado a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, com execução imediata da pena.
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Fernando Exman: Boeing e Embraer detalham proposta
José Nêumanne: Um tapetão para Lula
STF criará insegurança jurídica nociva à democracia se proibir prisão de Lula
Monica de Bolle : Azedume
A imagem do Brasil, hoje, é de país degradado pela corrupção e 'cupinizado' por um sistema político apodrecido
Nas palavras sábias de um amigo, a execução calculada de Marielle Franco e de Anderson Gomes no Rio de Janeiro há exatamente uma semana matou, de uma tacada, a vereadora e seu motorista, os fatos, e a civilidade política. A violência com fins políticos, modalidade recém-inaugurada no Brasil, as mentiras propagadas nas redes sociais, e a brutalidade dos comentários sobre o atentado somam-se aos aviltantes pronunciamentos de candidatos com aversão aos direitos humanos, aos insossos e desgastados presidenciáveis da chamada centro-direita, às propostas macroeconômicas fantasiosas da esquerda brasileira. Somam-se também à debilidade da retomada econômica que só o mercado festeja – o cidadão comum ainda pena para resgatar algum senso de segurança – e à visão nefanda de que o impeachment de Dilma mostrou que esse mesmo mercado tem o poder de remover governantes com pouca habilidade para gerir a economia do País.
O impeachment de coalizão – como na época chamei a remoção de Dilma com a preservação de seus direitos políticos contrariamente ao que diz a Constituição – foi por mim defendido por esse mesmo motivo: Dilma havia perdido a capacidade de gerir o País, e a funesta contabilidade criativa de seu governo levara a economia à beira da bancarrota. Confesso aqui sem medo algum de ser vilificada pelos autopresumidos destruidores de reputações que vivem de atacar os outros: já não tenho as mesmas convicções, ainda que continue a acreditar em meu relato sobre a condução devastadora da política econômica do governo Dilma no livro Como Matar a Borboleta Azul: Uma Crônica da Era Dilma.
Substituímos um governo péssimo na gestão econômica por outro tão marcado quanto o anterior pelas revelações da Lava Jato. A falta de escrúpulos estampada nas revelações do encontro de maio de 2017 na garagem do Jaburu enterrou de vez a reforma da Previdência, embora ela já estivesse na berlinda desde os primeiros dias do governo Temer, como disse em 2016. Afinal, o impeachment de coalizão e de conveniência não tinha como legitimar qualquer governo sucessor, por melhor que fosse sua agenda de transformação do País. Traduzo aí o sentimento de pelo menos algumas pessoas que vivem tanto no Brasil, quando fora dele. Mas, para alguns integrantes do mercado, essa é verdade, no mínimo, inconveniente – verdade azeda, corrosiva, pessimista. Verdade que atiça indignação, vituperações e ataques pessoais àqueles que a apontam. Denegrir é prática que se tornou ainda mais comum no Brasil desnorteado pós-impeachment. Rebater o argumento não interessa – interessa abater a pessoa para que se cale.
No meio dessa cacofonia, agora ampliada pelos assassinatos execráveis no Rio de Janeiro, poucos notam como é visto o florão da América fora de suas fronteiras. Trata-se não de indiferença ou descaso – antes ainda fosse assim. A imagem do Brasil, hoje, é de país degradado pela corrupção, “cupinizado” por sistema político apodrecido, violento e brutal, tão deploravelmente brutal. Ignorante de si, tenta o País emplacar o enredo do governo salva pátria, da retomada econômica cujo êxito se sobreporia à degeneração institucional e social em tão visível exibição. Quem vê de longe enxerga isso.
Alguém para por um momento para refletir porque membros do Parlamento Europeu proferiram palavras tão duras a respeito do Brasil? Alguém se dá conta de que na disputa pela atenção do governo americano na briga do aço nós estamos entre os últimos da fila? “Ah, mas que importa? O investimento estrangeiro continua a vir para cá, o mercado lá fora nos vê com bons olhos, portanto, que erro de análise!”, devem pensar os que com pouco precisam se preocupar, os 10% da população que detêm 55% da renda brasileira, segundo o último relatório World Inequality Report.
A recuperação vai ganhar força, a inflação vai continuar baixa, o desemprego vai continuar a cair, a intervenção militar no Rio vai dar conta do recado, os Estados quebrados vão se reerguer. Tudo vai se ajeitar, o Brasil vai eleger o reformista, o Brasil vai crescer, o Brasil vai voltar a ser respeitado, o Brasil será tratado como país sério, o Brasil é o futuro, eternamente.
“Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado”
É mesmo?
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Vera Magalhães: Aécio fora da eleição?
Gaudêncio Torquato: O povo não é uma abstração
O povo não é uma abstração. Está ali correndo para pegar o ônibus das 5, aboletando-se nos trens de periferia, aplaudindo e xingando nos estádios, grudado defronte às vitrines para ver lances do futebol, devorando churrascos gregos nas calçadas ou voltando, com o sol poente, dos campos e das roças para a cansada solidão de suas casas. As massas retratam a realidade de milhões de brasileiros que ainda se encontram à margem do processo de consumo, dando um duro danado, levantando prédios, construindo máquinas, moldando a anatomia do País.
Em nome do povo, desvios se fazem na cena institucional. Basta anotar exemplos. A reforma da Previdência deixou de ser aprovada por congressistas que enxergaram nela a retirada de direitos do trabalhador. Ora, é o contrário. É a favor do povo. Mais adiante, sem recursos, o aposentado poderá ver os proventos sumindo. O MP e o Judiciário, ao calor da crise, tomam decisões com o olhar nas ruas. Temem o clamor do povo. Mesmo que o casuísmo e a quebra da letra constitucional sejam constantes. Procuradores e juízes até parecem imperadores romanos decidindo sob o polegar da massa aprovando seus atos. A Tríade de Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário) desmorona.
Mas a verdadeira crise do nosso povo é a falta de casas, de comida, de emprego, de hospitais, de segurança, de lazer. Por isso, a crise política que bate bumbo nos meios de comunicação não comove as massas. Elas agem por impulso e o primeiro que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, encostado nas paredes do estômago. O imbróglio detonado, a partir das denúncias de escândalos é um caldo político que as massas contemplam de longe, por ser mais palatável às elites. Essa é a questão.
A engenharia política nacional é uma responsabilidade das vanguardas econômicas e políticas. As formas de cooptação social, a partir da conquista do voto, exprimem um pensamento que vem de cima. O povo, em suas extremas carências, tem dificuldades de exercer cidadania. Sua autonomia de decisão é escassa e tênues são suas vontades. Em consequência, submete-se, como entidade passiva, à demagogia dos discursos e a uma engenhosidade operacional que acaba sugando suas emoções. Mesmo com desconfiança em salvadores da pátria.
Quando se abre a portinha do lamaçal, começa-se a desvendar a identidade cultural da política brasileira. Há uma pequena rua, em Londres, cheia de lojinhas, que vendem os mesmos tecidos, dos mesmos padrões e, incrível, pelo mesmo preço. Nem um centavo a mais ou a menos. Um brasileiro foi ali pechinchar. Surpreendeu-se, quando o dono de uma das lojinhas recusou-se a vender o tecido. Ele vira o brasileiro sair de outra loja. Apontou: a sua loja é aquela. Naquela lojinha, cultiva-se a retidão, a lealdade, a honestidade. Um exemplo de cultura sem barganhas e emboscadas. Estamos anos luz distantes desse sonho.
Figuras que comandam o processo político dominam a cena política nacional há tempos. Não se vêem horizontes limpos. São velhos cenários e poucos atores desconhecidos. A peça até pode ser diferente, mas o fio condutor da trama é o mesmo e indica uma esganiçada luta pelo poder. O populismo aparece como arma de mistificação das massas e denúncias sobre uns e outros até podem gerar alto índice de abstenção, votos nulos e brancos. Mas a tão proclamada renovação política ainda vai ter de esperar. Não vai ocorrer este ano.
P. S. A morte da vereadora Marielle Franco adensa o fluxo do povo nas ruas, com forte impacto sobre a campanha eleitoral.
* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Luiz Carlos Azedo: Balas traiçoeiras
No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, estão começando a se enrolar nas próprias declarações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio de Janeiro. Jungmann resolveu segurar um fio desencapado ao dar explicações sobre as cápsulas das balas encontradas no local do crime, supostamente desviadas de um lote comprado pela Polícia Federal, que podem ter sido usadas exatamente para embaralhar as investigações e pôr na berlinda a Polícia Federal. Etchegoyen descartou de pronto a possibilidade de o crime ser uma retaliação à intervenção federal na segurança fluminense, quando também pode ser exatamente o contrário.
Todo crime deixa um rastro e tem uma motivação, é o beabá de qualquer investigação. A partir daí, o escritor noir tanto pode ter a trama de um mistério (quando ninguém sabe quem é o assassino), como pode construir o roteiro de um triller (quando todo mundo sabe, mas o mocinho, não). Em 1944, o escritor norte-americano Raymond Chandler, um dos craques dos romances policiais, escreveu um ensaio intitulado A simples arte de matar, que consta do primeiro volume de uma coletânea de contos de sua autoria, publicada pela L&PM. Nele explica o fascínio do herói noir.
“Nas ruas sórdidas da cidade grande, precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixa abater e que não tem medo. Neste tipo de história, o detetive deve ser esse homem. Ele é o herói; ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e, contudo, um homem fora do comum. (…) Se houvesse outros como ele, o mundo seria um lugar mais seguro para se viver, sem que com isso se tornasse desinteressante a ponto de não valer a pena viver nele.” É o perfil de seu personagem mais conhecido, o detetive durão Philip Marlowe.
Jungmann e Etchegoyen não têm perfil do herói noir. Os ministros não vão desvendar o mistério. Aliás, é mais provável que o submundo do crime no Rio de Janeiro conheça os assassinos e os mandantes do crime, como nos roteiros de suspense. Foi tudo muito planejado, muito profissional, não houve sequer simulação de latrocínio, que é padrão dos crimes de mando. Quem mandou matar, no contexto da intervenção, desafiou o interventor federal, general Braga Netto, e os dois ministros, que já entraram naquela fase em que é melhor não falar mais nada sobre o que aconteceu, até que se tenha uma resposta efetiva quanto à autoria do crime.
Longo caminho
Foi longo o caminho para se chegar aos romances policiais noir. Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, que Milan Kundera considera a cortina que se abriu para a realidade na Idade Média, foi escrito 1.500 anos depois de Satíricon, de Petrônio. Chandler publicou seu primeiro grande romance policial, O sono eterno, em 1939, aos 50 anos. Como outros escritores norte-americanos, foi soldado, jornalista, empresário e detetive, entre outras atividades. Seu mestre foi Dashiell Hammett, o autor de Falcão Maltês.
Chandler, como outros de seus colegas expulsos de Hollywood pelo macartismo, fez a crítica dos maus costumes políticos e da corrupção policial nos Estados Unidos. Não há pessoas boas e inocentes envolvidas no mundo do crime. E o herói noir não é um cara todo certinho. A diferença é que não vendeu a alma ao diabo. Ele também é um predador, que a cada passo calcula a vantagem de se aproximar da presa sem perder o elemento surpresa. No mundo animal, quando o perigo de ter sua presença notada já não supera a vantagem de chegar mais perto, o predador ataca. Esse é um mecanismo fisiológico que visa obter o máximo de chance de sucesso para qualquer tipo de terreno ou de presa.
No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva. Quanto mais perto chegar sem despertar suspeita, maior a chance de ser bem-sucedido na caçada. No livro Informações sobre a vítima (Companhia das Letras), o ex-delegado paulista Joaquim Nogueira conta a história de um policial movido pelo desejo de justiça, que investiga por conta própria o assassinato de um colega. Suas diligências rastreiam os propósitos secretos de uma dezena de suspeitos no submundo paulistano, entre os quais um padrasto estuprador, o traficante e sua mãe hipertensa, o bicheiro generoso, a escrivã sexy, para ao final descobrir que um amigo comum da vítima era o mandante do crime. Quase que também morre por causa disso.
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