política
Eliane Cantanhêde: 'Mudar para quê? Mudar para quem'
O julgamento dessa quarta-feira do Habeas Corpus para evitar a prisão do ex-presidente Lula consolidou a percepção de um acordão para tentar “estancar a sangria” e salvar a pele não só de Lula, mas de todo o mundo político envolvido na Lava Jato. A “prova” desse acordão foi a aliança surpreendente, apesar de não inédita, entre três velhos adversários na corte: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.
Gilmar antecipou seu voto para voar de volta para Portugal e para pavimentar o caminho para Rosa Weber conceder o HC de Lula, dando-lhe o argumento de que não estava em jogo só um HC, mas um decisão de repercussão geral. Rosa é contra a tese de prisão em segunda instância, mas votou contra todos os HC de réus neste caso, com exceção de um, para seguir o entendimento da maioria do plenário em 2016. Derrotada, mas fiel à maioria.
Discretíssima, Rosa fez suspense até mesmo durante seu longo voto e só desfez esse suspense no finzinho da sua leitura. Contra Gilmar, ela considerou que o que estava sendo julgado era um HC concreto, específico, não a mudança geral da norma. Logo, prestigiou de novo o entendimento vigente da maioria.
Marco Aurélio e Lewandowski deram um pulo, mas era tarde demais. Como disse a presidente Carmen Lúcia, Rosa tinha sido claríssima contra o HC e a garantia de liberdade de Lula. Deixou, assim, um placar de 4 a 1 e a perspectiva de derrota de Lula.
“Mudar por quê? Mudar para quem?”. A dúvida manifestada por Luís Roberto Barroso resumiu a longa sessão de ontem e já vinha sendo repetida por Carmen Lúcia e pelo relator da Lava Jato, Edson Fachin, argumentando que o tribunal já votou três vezes a prisão em segunda instância, a última vez em 2016, e não houve fato novo nenhum que justifique uma revisão tão prematura.
A conclusão, sobretudo na subjetiva “sociedade”, seria de que o Supremo Tribunal Federal da República estaria mudando seu próprio entendimento para favorecer um único réu todo poderoso, ou seja, rendendo-se à força política de Lula e às pressões de seus aliados, que se autointitulam “de esquerda”.
Desse no que desse, porém, havia duas certezas dentro e fora do plenário do Supremo. A primeira é que qualquer resultado geraria fortes reações. A segunda é que a guerra para livrar Lula e os políticos da Lava Jato continua. E vai longe.
Luiz Carlos Azedo: A rosa e a náusea
Lula está inelegível, todas as tentativas de desmoralizar o juiz federal Sérgio Moro fracassaram. Esse é um sinal de que nenhum político enrolado na Operação Lava-Jato estará acima das leis
“Um inseto cava / Cava sem alarme / Perfurando a terra / Sem achar escape / Que fazer, exausto / Em país bloqueado / Enlace de noite / Raiz e minério? / Eis que o labirinto / (oh razão, mistério) / Presto se desata: / Em verde, sozinha / Antieuclidiana / uma orquídea forma-se.” Esse poema de Carlos Drummond de Andrade se chama Áporo, faz parte da coletânea de poemas A Rosa do Povo, publicada em 1945. São poesias marcadas pela II Guerra Mundial e o Estado Novo, mas que transcendem àquele momento e ao lirismo social da época.
Na Rosa do Povo, o indivíduo aparece fragmentado, perturbado por seus dilemas pessoais, mas engajado nas questões sociais. Drummond também brinca com as palavras, pois áporo, que denomina um inseto, também é usado na filosofia e na matemática como um problema sem solução, uma espécie de beco sem saída. É uma espécie de continuação de outro poema, intitulado a Flor e a náusea: “Não, o tempo não chegou de completa justiça / O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera / O tempo pobre, o poeta pobre / Fundem-se no mesmo impasse / Em vão me tento explicar, os muros são surdos / Sob a pele das palavras há cifras e códigos / O sol consola os doentes e não os renova / As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase / Uma flor nasceu na rua!”
O voto da ministra Rosa Weber no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi como a flor que nasceu no asfalto. Todas as pressões políticas sobre o Supremo Tribunal Federal, desde a Páscoa, convergiram para ela, cuja posição parece uma esquizofrenia jurídica para o cidadão comum. A ministra é a favor do princípio de que a prisão deve obedecer ao chamado “transitado em julgado” nas quatro instâncias do Judiciário, porém, como existe uma jurisprudência determinando a execução imediata da pena após a condenação em segunda instância, desde 2016 (quando se firmou esse entendimento na Corte), tem rejeitado todos os habeas corpus nesses casos, fiel ao decidido pela maioria dos seus colegas. Assim, recusou o habeas corpus de Lula. Não aceitou a tese de que a decisão era de repercussão geral, ou seja, que discutia-se o princípio e não o caso específico, tese também rechaçada em plenário pela presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia.
Foi um banho de água fria nos ministros liderados por Gilmar Mendes (que mudou seu posicionamento anterior), que esperavam a formação de uma nova maioria, contra a prisão de Lula, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com execução imediata da pena. Rosa Weber rechaçou a tese da defesa de que o Superior Tribunal de Justiça havia errado ao indeferir o pedido. Seguiu os votos dos ministros Edson Fachin, o relator, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e foi acompanhada por Luiz Lux, todos favoráveis à rejeição do habeas corpus. Gilmar Mendes havia proposto uma solução “intermediária”: a execução da pena se desse após condenação em terceira instância, ou seja, pelo STJ.
Lava-Jato
O ministro Dias Toffoli insistiu na tese de que a decisão deveria ter repercussão geral, mas já era voto vencido no julgamento; de igual maneira, Ricardo Lewandowski. Faltavam ainda votar os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, o decano da corte, ambos favoráveis ao habeas corpus. Havia hipótese de um pedido de vista, que interromperia novamente o julgamento, como tentavam articular os advogados de defesa, entre eles o ex-presidente da própria Corte Sepúlveda Pertence, o que não se concretizou. Ambos votaram a favor do habeas corpus. A tese de Toffoli era a mesma de Gilmar Mendes. Trocando em miúdos, a decisão da maioria do tribunal estava dependendo apenas do voto da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, que a defesa tentou embargar, sem sucesso. Cármen votou contra. Agora, a prisão de Lula é apenas uma questão de tempo. Sua defesa deve apresentar um novo recurso ao TRF-4. Somente após a rejeição desse recurso, o juiz federal Sérgio Moro, que condenou Lula na primeira instância da Justiça Federal, comunicada a decisão, poderá mandar a Polícia Federal prender o ex-presidente.
Lula está inelegível, todas as tentativas de desmoralizar o juiz federal Sérgio Moro fracassaram. Esse é um sinal de que nenhum político enrolado na Operação Lava-Jato estará acima das leis. “Façam completo silêncio, paralisem os negócios / Garanto que uma flor nasceu / Sua cor não se percebe / Suas pétalas não se abrem / Seu nome não está nos livros / É feia. Mas é realmente uma flor / Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde / E lentamente passo a mão nessa forma insegura / Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se / Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
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Merval Pereira: Maioria de um
Luiz Carlos Azedo: Depois do julgamento
Alguém já disse que os extremos se encontram. O problema é quando eles se juntam para desestabilizar o processo democrático. A história está cheia de exemplos dessa ordem
Nunca o Supremo Tribunal Federal (STF) motivou tantas manifestações populares e atos de protesto; normalmente, os alvos das mobilizações são o Congresso, em votações importantes, e o Executivo, em razão de medidas impopulares. É o julgamento de um polêmico pedido de habeas corpus preventivo, interrompido ao meio numa manobra prosaica — dois ministros alegaram que não poderiam perder o avião —, que provoca a radicalização do cenário político nacional, com manifestações em todo o país. Estão até sendo tomadas medidas para impedir o acesso de manifestantes à Praça dos Três Poderes.
O STF abriu exceção ao julgar o pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelo Tribunal Regional Federal das 4ª Região (TRF-4), com execução imediata da pena. É uma situação inédita na República, cuja tradição de não julgar integrantes da elite política em exercício de mandato, protelando os julgamentos até prescreverem, é secular. Esse histórico de impunidade começou a ser contrariado no julgamento do Mensalão. E estava sendo erradicado pela Operação Lava-Jato.
Ocorre que a delação premiada dos executivos da Odebrecht teve os efeitos da “Teoria do Caos”: uma pequena mudança no início de um evento qualquer pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. A amplitude da delação levou à formação de uma ampla coalizão de lideres políticos do governo e da oposição que operam nos bastidores, diretamente ou através de seus advogados, para interromper “a sangria” da Lava-Jato. A expressão é do líder do governo, Romero Jucá, em conversa gravada pelo ex-senador Sérgio Machado, que também fez delação premiada, e está causando a maior celeuma por que foi citada por certo personagem da série O mecanismo, de José Padilha, sucesso do canal de cinema a cabo Netflix. Lula meteu a carapuça e os petistas resolveram boicotar a série.
Mas voltemos ao tema do título. Não importa o poder de mobilização de um lado ou outro hoje e amanhã, o que interessa é o julgamento do habeas corpus, que colide com decisão anterior do Tribunal Superior de Justiça e a própria jurisprudência do Supremo, favorável à execução da pena após julgamento em segunda instância. Lula dispõe de um salvo-conduto que impede sua prisão, porque o julgamento foi interrompido.
Há três possibilidades. A primeira é um ministro pedir vista, o julgamento ser interrompido novamente, e Lula continuar solto, fazendo caravanas pelo país para protestar contra as decisões judiciais e forçar a barra para ser candidato a presidente da República. É quase uma chicana, mas é do jogo regimental. Lula está inelegível por causa da Lei da Ficha Limpa, uma emenda constitucional que não pode ser alterada pelo Supremo. Entretanto, a jurisprudência pode.
Segunda possibilidade: vamos supor que o habeas corpus seja negado. Acredita-se que essa decisão depende da ministra Rosa Weber, que discorda da jurisprudência mas tem tomado decisões respeitando o entendimento consagrado na Corte, até agora, quanto à execução da perna em segunda instância. Lula iria para a cadeia, o PT faria um grande esperneio, mas teria que arranjar outro candidato a presidente da República. Jair Bolsonaro (PSL-RJ) assumiria a liderança da disputa eleitoral, mas sem a polarização anterior, o que possibilita o surgimento de uma candidatura ao centro.
O terceiro cenário é a concessão do habeas corpus, o que implicaria na revisão da jurisprudência. O passo seguinte de Lula seria tentar o registro de sua candidatura em caráter provisório, enquanto aguarda a revisão da condenação criminal pelos tribunais superiores, ou seja, uma candidatura sub judice. Nesse caso, dificilmente surgirá uma alternativa ao centro, a polarização Lula versus Bolsonaro se consolidará.
Poder moderador
Alguém já disse que os extremos se encontram. O problema é quando eles se juntam para desestabilizar o processo democrático. A história está cheia de exemplos dessa ordem, na Europa e na América Latina. Aqui no Brasil já passamos por momentos dessa natureza. O STF foi inexoravelmente arrastado para o olho do furacão da crise ética. Bem ou mal, os políticos deram uma resposta à crise do governo Dilma Rousseff, que perdeu o controle da economia e sustentação do Congresso. Mesmo no caso das denúncias contra o presidente Michel Temer, que foram rejeitadas pela Câmara, a solução política não desestabilizou as instituições do país.
Agora, a situação é mais grave. Dependendo da decisão que tomar, o Supremo agravará o cenário de radicalização política. Há todo um debate sobre o princípio da presunção da inocência e o transitado em julgado, mas a verdade é que o julgamento em curso é casuístico demais. A Corte até aqui atuou como poder moderador e moralizador na crise. Agora, corre o risco de perder essa condição.
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Merval Pereira: A sociedade se mexe
Gaudêncio Torquato: A nova policromia social
Arnaldo Jordy: Quem quer justiça no Brasil?
A entrevista do juiz Sérgio Moro no programa Roda Vida, da TV Cultura, nesta segunda-feira, 26, não apenas bateu recordes de audiência e de comentários nas redes sociais, como serviu para relembrar aos brasileiros a importância da operação Lava Jato e do combate à corrupção sistêmica para o país. Essa chaga é responsável por desvios que chegam a 220 bilhões por ano, dinheiro que sai dos cofres públicos para os bolsos dos corruptos. Somente as operações escandalosas perpetradas na Petrobras e desvendadas pela Lava Jato causaram prejuízo de seis bilhões aos cofres da estatal.
O dilema que se coloca é muito claro: temos a opção de continuar a apoiar a Lava Jato para o bem do Brasil e a recuperação da sua imagem, ou concordamos que somos tolerantes a corrupção e iremos afundar cada vez mais na barbárie, no vale-tudo, no desprezo às leis e ao Judiciário. Nesse caso, vamos passar a achar normal que um gerente da Petrobras devolva 98 milhões de dólares após ser flagrado pelas investigações, ou que uma grande empreiteira como a Odebrecht tenha um departamento estruturado apenas para pagar propina, não só no Brasil, como também no exterior, onde suas operações fora da lei já foram responsáveis pela queda de um presidente, Pedro Pablo Kuczynski, do Peru, que renunciou após escândalo de compra de votos com dinheiro da empreiteira brasileira.
* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA
Luiz Carlos Azedo: Lembrai-vos de 1964
No dia primeiro de abril de 1964, as cidades brasileiras amanheceram com suas praças e ruas mais importantes ocupadas por soldados e tanques. Não era piada. Apoiado por importantes líderes políticos e pelos Estados Unidos, o golpe de Estado durou 21 anos. Somente com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, voltamos à democracia. Sempre é bom lembrar o que aconteceu naquele ano, assim como os militares lembram a tentativa de assalto ao poder dos comunistas em 1935. Nos dois episódios, Luís Carlos Prestes, o lendário líder do movimento tenentista que aderiu ao Cominter, teve grande protagonismo. Foram momentos de irracional radicalização política esquerda versus direita.
Por isso mesmo, é importante refletir à luz da história. Nunca os militares estiveram tão presentes na vida nacional. Seu protagonismo contrasta com o desprestígio, a incompetência e a má fama dos políticos. As Forças Armadas estão em todo lugar, prestando serviços à população na Amazônia, no Nordeste e, agora, no Sudeste, por causa da violência. Segundo as pesquisas, estão entre as instituições mais confiáveis e de maior prestígio do país, em meio à crise ética que afasta o Executivo e o Legislativo da maioria da sociedade. O Supremo Tribunal Federal (STF) está sendo arrastado para o redemoinho da radicalização política, devido ao pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Condenado a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, fosse um cidadão qualquer, já estaria a cumprir pena, mas não pode ser preso porque obteve um salvo-conduto do Supremo. A Corte interrompeu o julgamento do seu caso ao meio porque dois ministros estavam com passagem marcada e não queriam perder o avião. Será concluído na próxima quarta-feira.
Trancos e barrancos
O cenário não é mais grave porque o país saiu da recessão e as instituições, aos trancos e barrancos, ainda funcionam. O governo federal mantém certa capacidade de governança, tem base parlamentar majoritária no Congresso, mas não tem a menor chance de reverter os desgastes causados pelas denúncias contra seus integrantes, a mais recente no círculo de amigos mais próximos do presidente Michel Temer. Caso a investigação resulte em nova denúncia contra o presidente da República, devido à proximidade das eleições, estará criado um quadro de grande instabilidade política. Ainda mais diante da radicalização do processo eleitoral, que ameaça descambar para a violência política, tal o fanatismo dos partidários do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), homem assumidamente de extrema-direita, e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que insiste em manter sua candidatura, mesmo sabendo que a Lei da Ficha Limpa o impede de concorrer à Presidência.
Só não vê quem não quer. Estão sendo criadas as condições para uma intervenção militar, que seria aplaudida por parcela expressiva da maioria da população. Alguns dirão: o golpe de 1964 foi resultado da guerra fria e da intervenção do imperialismo norte-americano. Não, apesar disso, o golpe era evitável. O país tinha eleições marcadas para 1965 e Juscelino Kubitschek era franco favorito na disputa, mas a esquerda considerava sua volta ao poder um retrocesso. O problema não eram os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, ou de Minas, Magalhães Pinto, que articularam o golpe. Prestes articulava a candidatura de Jango à reeleição, era uma saída golpista para a crise política. O marechal Castelo Branco deu o golpe primeiro.
“A verdade é filha do poder. Nós, militares, nunca fomos intrusos na história”, disse certa vez o ex-ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, aos 94 anos. O general liderou a retirada em ordem do poder e a volta dos militares aos quartéis, onde permanecem. Até agora, em meio à crise ética, os militares estão demonstrando mais compromisso com a Constituição de 1988 do que a maioria dos nossos políticos. Oxalá o Supremo não decepcione a sociedade.
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Míriam Leitão: O dia que inventou a noite
Falsificadores de passado inventam virtudes para a ditadura de 64
Mario Sergio Cortella: Páscoa, comunismo, política e democracia no #ProgramaDiferente
Filósofo, escritor, professor e doutor em Educação, Mario Sergio Cortella fala com exclusividade ao #ProgramaDiferente sobre a Páscoa, a relação entre os princípios da religião e do comunismo, o atual momento da democracia e a crise política no Brasil. Assista.
Luiz Carlos Azedo: Tiros na noite
O escritor norte-americano Dashiell Hammett (Maryland, 27 de maio de 1894; Nova York, 10 de janeiro de 1961) abandonou a escola com 14 anos e passou a trabalhar como mensageiro, entregador de jornal, escriturário, apontador de mão de obra e estivador na Filadélfia e Baltimore, até completar 20 anos, quando foi trabalhar na Agência Pinkerton de detetives. Em 1918, alistou-se no Corpo de Ambulâncias do Exército; voltou tuberculoso da guerra, tentou retomar a antiga profissão de detetive, mas acabou escritor de histórias policiais. Entre um porre e outro, foi o criador do noir americano, o gênero literário que surgiu nas revistas e jornais populares, a partir de contos e folhetins.
Autor de Seara vermelha (1929), O falcão maltês (1930), A chave de vidro (1930), Mulher no escuro (1933) e Continental OP (1945), Hammett trabalhou para o cinema em Hollywood. Na década de 1930, conheceu Lillian Hellman, jovem escritora e líder feminista, uma paixão até a morte. Ao lado de John dos Passos, Ernest Hemingway e Arthur Miller, entre outros intelectuais norte-americanos, destacou-se na luta contra o nazismo nos EUA, que somente entrou na II Guerra Mundial em 1941, após o ataque japonês a Peal Harbor, no Havaí. Hammett se alistou novamente e serviu como sargento do exército americano.
Homem de esquerda, o escritor foi vítima da “caça às bruxas” promovida pelo senador Joseph McCarthy no início da década de 1950. Não colaborou com a comissão que investigava atividades supostamente subversivas na indústria cinematográfica, foi preso e incluído na lista que impedia os artistas de trabalharem em Hollywood. Hammett morreu doente e frustrado, mas deixou uma legião de seguidores.
“Estava imóvel — os olhos amarelos acinzentados sonhadores —, quando ouviu o grito. Era um grito de mulher, agudo e estridente de terror. Spade estava atravessando a porta quando ouviu o tiro. Era um tiro de revólver, amplificado, reverberando pelas paredes e pelos tetos”, seus contos inspiram cenas recorrentes no cinema, como no clássico Um tiro na noite, de Brian de Palma, de 1981.
O sonoplasta Jack Terry (John Travolta) prepara a trilha sonora de um filme B sobre assassinatos em uma universidade. Na gravação de um áudio, em local ermo, salva a mocinha (Nancy Allen) de um acidente automobilístico. Ao resgatá-la, Jack descobre que ela estava em companhia do governador George McRyan (John Hoffmeister), um dos candidatos à Presidência dos EUA. Depois do incidente, na conferência do material sonoro, constata que o acidente pode ter sido um crime encomendado; percebe que o som do estouro do pneu, na verdade, era de um tiro de revólver.
Lava-Jato
Depois da revelação de que a família do ministro relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, sofreu ameaças, os tiros disparados contra o ônibus da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fornecem ingredientes de um thriller policial às eleições presidenciais. Só foram descobertos por causa dos buracos de bala. Os tiros precisam ser investigados, tal qual nas histórias noir.
Condenado em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, Lula desafia a Justiça e força a barra para manter a candidatura a presidente da República, com uma retórica de radicalização política no gogó e um salvo-conduto do Supremo Tribunal Federal nas mãos, enquanto aguarda a conclusão do julgamento de seu polêmico pedido de habeas corpus pela Corte, suspenso porque dois ministros não poderiam perder o avião. Seu adversário, Jair Bolsonaro (PSL), como já reiteramos, com discurso truculento e reacionário, retroalimenta a radicalização. É um ambiente que começa a sair do controle, como a segurança pública no Rio de Janeiro.
No Brasil, até agora, não houve atentados ou mortes na Operação Lava-Jato. Aparentemente, todos os envolvidos são pessoas de índole pacífica. Nem um pouco parecida com a dos responsáveis pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSol), há duas semanas, executada com quatro tiros na cabeça, logo após sair de uma reunião de mulheres negras, supostamente uma resposta à intervenção federal na segurança pública daquele estado.
Na Itália, a Operação Mãos Limpas, deflagrada em fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Alberto Trivulzio), em dois anos, resultou em 2.993 mandados de prisão e 6.059 pessoas sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros. Mas houve 12 suicídios e os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino foram assassinados pela máfia.
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