política
Luiz Carlos Azedo: O poder civil e os jabutis
“As exonerações em massa na Casa Civil, que tendem a se reproduzir em outras pastas, eram esperadas. Os cargos comissionados serão ocupados por quem venceu as eleições”
O sucesso de Jair Bolsonaro depende muito mais do poder civil do que do grupo de militares que cercam o presidente da República. Para ser mais claro, a médio e longo prazos, não é a retórica ideológica nem o esculacho da oposição que garantirão esse êxito, mas o desempenho dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro. Os generais terão um papel importante, principalmente para o governo não sair do próprio eixo, como parece acontecer no Itamaraty, mas isso dependerá também de suas concepções de gestão. Vamos por partes.
Paulo Guedes encontra uma casa arrumada do ponto de vista financeiro, não foi à toa que trouxe importantes integrantes da equipe econômica anterior para o time que montou, ainda que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ontem, tenha levantado dúvidas sobre a movimentação financeira do governo no último mês. Na máquina federal, a correria para fazer empenhos e efetuar pagamentos em atraso no último mês do ano fiscal é normal. O problema do governo é outro: o deficit fiscal. Não há possibilidade de retomar o crescimento e enfrentar o desemprego em massa sem a reforma da Previdência.
Ninguém se iluda, há um alinhamento político favorável ao sucesso da nova equipe econômica. Como defendeu Guedes, o “projeto liberal democrata” de Bolsonaro não vive o dilema de quem pega o violino com a mão esquerda e toca com a direita. “A aliança de centro-direita, entre conservadores, em princípios e costumes, e liberais na economia”, como definiu Guedes, é robusta, porque conta com o apoio da maioria da população. Enfrentará resistência das corporações, inclusive militar, mas o maior perigo é a recidiva do patrimonialismo dos que vivem à custa das rendas e benesses do Estado. Eles aparecem onde menos se espera.
Abrir a economia, privatizar as estatais, controlar gastos, reformar o Estado, desregulamentar, simplificar e reduzir impostos e descentralizar os recursos para estados e municípios não são um “estelionato eleitoral”. O governo foi eleito com essa pauta. Se vai dar certo é outra história, mas, desta vez, as chances realmente são maiores. E as políticas sociais? Bolsonaro somente prometeu prioridade para o ensino fundamental e a saúde das crianças, o resto vai jogar no colo dos estados e municípios. É a receita da Escola de Chicago, aplicada na Alemanha, no Japão e no Chile. No fim da guerra, com seus países em ruínas, alemães e japoneses estavam comendo ratos; no Chile de Pinochet, era chumbo mesmo. No Brasil, num cenário completamente diferente, o sucesso do projeto será um novo “case”.
Corrupção e violência
A outra perna do poder civil está no Ministério da Justiça, que nunca concentrou tanto poder e instrumentos de atuação como agora. Combate à corrupção e ao crime organizado são bandeiras de Bolsonaro sob a responsabilidade de Sérgio Moro, que também encontrou a casa arrumada, em particular, o recém-criado Sistema Unificado de Segurança Pública. Como levou para sua equipe os principais parceiros da Operação Lava-Jato, Moro também partirá de um patamar mais elevado no combate à corrupção.
A estratégia de endurecimento das penas e a política de liberação da compra de armas pelos cidadãos, condizentes com o discurso de Bolsonaro, garantem amplo apoio popular ao novo governo, mas têm eficácia duvidosa quanto aos presídios e às mortes violentas. Há estudos realizados no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos sobre isso. Na Califórnia, essa política fez explodirem a população carcerária e os gastos com manutenção de presídios. Em Nova York, ao contrário do que muitos imaginam, o que baixou os índices de violência foi a legalização do aborto, com a progressiva redução da população de risco, e não a política de “tolerância zero”.
E os militares? Essa é outra história. Se trabalharem com a centralização e a verticalização da gestão, como é da cultura mais tradicional de nossas Forças Armadas, de inspiração francesa e alemã, vão burocratizar e paralisar a administração. Ao contrário, se adotarem como método a coordenação e a cooperação, a grande influência norte-americana junto aos oficiais que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, vão ajudar o governo a melhorar sua performance administrativa e capacidade operacional.
Houve uma gritaria grande por causa das exonerações em massa na Casa Civil, que tende a se reproduzir em outras pastas, principalmente dos cargos comissionados. O ministro Onyx Lorenzoni justificou a decisão como uma necessidade de alinhamento com a nova política do governo. Os petistas já haviam sido desalojados com a saída da presidente Dilma Rousseff, exceto àqueles que aderem a qualquer governo. O estrilo da oposição não faz sentido, porque é até uma questão de respeito à vontade das urnas ocupar esses cargos com quem venceu as eleições. O ministro, porém, vai descobrir o que é um jabuti em cima da árvore. Como se sabe, jabuti não sobe em árvore, alguém pôs ele lá, como na velha fábula.
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Alon Feuerwerker: Radicalização ideológica de Bolsonaro previne corrosão política enquanto a economia não reage
Todo poder político trabalha, antes de tudo, para perpetuar-se. Frases como “eles têm projeto de poder, nós temos projeto de país” servem para consumir papel e tinta (literais ou eletrônicos) mas não têm significado real no mundo da política. Um atributo notável de Jair Bolsonaro é a transparência: a alternância com a esquerda não está mesmo nos planos.
Era (e foi) esperado que esse apego viesse embalado como do mais alto interesse nacional. Tanto eficaz será a comunicação de qualquer líder e governo quanto mais o interesse particular for apresentado, e aceito, como interesse geral. Também por isso o governo Bolsonaro começou bem a disputa da comunicação. O “Brasil acima de tudo” continua funcionando.
Governar é decidir, e também saber comunicar a decisão. Quem pede moderação e conciliação no discurso bolsonarista pede que o novo regime abra mão de sua principal fonte de poder: a convicção popular, alimentada por anos, de que a solução para os principais problemas do país reside na eliminação de um pedaço da política. Ou da própria sociedade.
É esperado que os operadores encarregados de aprovar as coisas no Congresso peçam alívio no discurso. Também parece ser o sentimento dos estrategistas, quase todos militares. O problema? Quando propõem a conciliação, governos nascidos de batalhas políticas radicalizadas acabam passando a ideia de fraqueza. A última vítima disso foi Dilma Rousseff.
O poder é permanentemente rondado por quem deseja tomar o lugar. No caso de Jair Bolsonaro o perigo imediato não está na esquerda, isolada e por enquanto dividida. Vem da eleitoralmente pulverizada mas socialmente sempre influente direita não bolsonarista. É quem melhor personifica no Brasil o dito globalismo, besta-fera do bolsonarismo.
É uma corrente que está apenas à espera de as coisas começarem a dar errado para se apresentar como a solução à mão. Exemplos: 1) O PSDB oferecer-se para entrar no governo Collor, 2) o “ministério ético” do próprio Collor, 3) a nomeação de Fernando Henrique ministro da Fazenda de Itamar e 4) Dilma entregar a Michel Temer a articulação política na crise.
O único caso em que isso “deu certo” foi o terceiro, ao custo de Itamar abrir mão do poder real, concessão necessária para não ser derrubado. Na prática o governo Fernando Henrique Cardoso começou não em janeiro de 1995, mas em maio de 1993. Apesar das tentativas de manter viva a ideia de ter havido um governo Itamar Franco até o final de 1994.
Qual o desafio imediato de Bolsonaro? Inverter rapidamente as expectativas econômicas para impedir o surgimento de uma bolha de frustração que drene seu prestígio popular antes de o governo apresentar resultados. O instrumento à disposição é manter a luta ideológica bem aquecida e tentar despertar o chamado “instinto animal” do empresariado.
Jair Bolsonaro assume em condições bastante razoáveis. Inflação controlada, PIB em (lenta) recuperação, apoio maciço no empresariado e (potencialmente) no Congresso, imprensa ou favorável ou não radicalmente hostil, oposição entretida em disputas internas (coisa normal depois de derrota), Forças Armadas a favor e atuando como poder moderador.
Mas, como se diz, uma hora o governo precisará entregar a mercadoria. A economia precisa reagir, até porque a ideia é substituir progressivamente as proteções estatais ao povão por oportunidades que a economia privada oferecerá a esse povão. E quando esse despertar econômico é tentado mais pelo lado do investimento que do consumo o prêmio costuma demorar mais.
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Não há registro no Brasil de Congresso Nacional que tenha criado problemas para governos que largam com amplo apoio na elite. Fernando Collor tinha uma base formal estreitíssima e não teve a menor dificuldade para aprovar o enxugamento temporário de liquidez que quando ele caiu em desgraça se transformou no “sequestro da poupança". Recordar é viver.
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O governo Bolsonaro oferece uma grande oportunidade para o jornalismo. Acabou o tempo em que bastava se indignar e seguir a cartilha das causas pré-definidas como “do bem”. A coisa agora vai exigir mais sofisticação, pois o novo poder se apresenta com uma ideologia estruturada. Para criticar, antes de tudo é preciso entender o que outro está dizendo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Luiz Carlos Azedo: O governo da ordem
“Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade”
Para não chover no molhado, direi que o momento mais simbólico da posse de Jair Bolsonaro foi aquele em que passou em revista a Guarda Presidencial, como comandante supremo das Forças Armadas, depois de jurar a Constituição. Foi o único instante em que não sorriu; com o cenho franzido, ao contrário, chorou. Como velho repórter, se tivesse oportunidade, perguntaria o que passou pela sua cabeça naquele primeiro e breve momento de “solidão do poder”. Bolsonaro sabe que jamais chegaria à Presidência a não ser pelo voto.
Como os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão, seu vice-presidente, e Augusto Heleno, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, faz parte de uma geração que optou pela carreira militar quando o Exército ainda era a via de acesso ao Palácio do Planalto, mas teve essa ambição política frustrada pela redemocratização do país, em 1985. Sua indisciplina acabou abortando a carreira militar. A opção pela política, porém, demonstrou-se a alternativa acertada. Ninguém exerce seis mandatos na Câmara impunemente. Por caminhos tortuosos, o capitão reformado enxergou na escuridão e agora é o presidente da República, depois de 30 anos de vida política.
Não foi à toa, portanto, que fez um discurso mais conciliador e apelou aos antigos colegas durante a sessão de posse no Congresso. Deixou muito claro que conta com o apoio do parlamento para aprovar as reformas e viabilizar o seu governo. No decorrer deste mês, esse discurso terá que ganhar forma nas articulações para as Mesas da Câmara e do Senado. O grande divisor de águas de seu governo será a aprovação da reforma da Previdência, sem ela estará condenado a uma espécie de feijão com arroz neoliberal, restringindo a eficácia das medidas econômicas que estão sendo elaboradas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Que ninguém se surpreenda se fizer uma composição de última hora em favor da reeleição de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, que tem afinidades programáticas e regionais com Guedes.
Além do apoio maciço de militares e cristãos, como gosta de ressaltar o professor da UnB Elimar Pinheiro, sociólogo e cientista político, a vitória de Bolsonaro tem um ingrediente antropológico, que as análises políticas de seus adversários e muitos analistas demoraram a captar: o apoio das famílias como instituição. Numa sociedade em que a desagregação da família unicelular patriarcal se transformou numa tragédia social por causa do desemprego, do crime organizado e dos péssimos serviços de saúde e educação, esse fenômeno emergiu na campanha eleitoral como uma espécie de força popular subterrânea, mobilizada por católicos e evangélicos. O discurso contra a corrupção e a violência trouxe o apoio da classe média.
O muro caiu
“Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”, conclamou Bolsonaro no discurso após a transmissão do cargo. Essa mobilização lhe dará meios de acuar um Congresso fragilizado pela Operação Lava-Jato: “A corrupção, os privilégios e as vantagens precisam acabar. Os favores politizados, partidarizados devem ficar no passado, para que o Governo e a economia sirvam de verdade a toda Nação”. Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade.
“Me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, bradou, para delírio de seus partidários. “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade”. O Brasil nunca foi socialista, o nosso gigantismo estatal é uma herança do nacional- desenvolvimentismo de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e, sobretudo, dos governos militares. Isso é o que menos importa. Bolsonaro jogou no colo da oposição, principalmente do PT, cujo envolvimento com a corrupção desmoralizou toda a esquerda, o esgotamento histórico do modelo socialista e a crise da socialdemocracia, como se o Muro de Berlim estivesse caindo novamente. Funciona, a esquerda brasileira ainda acha que o muro só havia caído na cabeça dos militantes do antigo PCB.
“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos, e da desconstrução da família. Vamos propor e implementar as reformas necessárias. Vamos ampliar infraestruturas, desburocratizar, simplificar, tirar a desconfiança e o peso do Governo sobre quem trabalha e quem produz”, promete.
Bolsonaro anuncia um governo da ordem: “Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares. Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade e da legítima defesa, e o nosso compromisso é valorizar e dar respaldo ao trabalho de todas as forças de segurança”.
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O Globo: Bolsonaro planeja decreto para ampliar posse de arma no Brasil
Pelo Twitter, ele disse que direito de ter arma em casa seria garantido a cidadãos sem antecedentes criminais
RIO — O presidente eleito, Jair Bolsonaro , planeja editar um decreto para facilitar a posse de armas no país. No Twitter, Bolsonaro disse que pretende garantir a posse de armas a quem não possui antecedentes criminais. A equipe de transição já está preparando o decreto, que está praticamente pronto e poderá ser editado a qualquer momento, a depender da decisão de Bolsonaro, segundo um dos responsáveis pela elaboração do texto.
"Por decreto pretendemos garantir a POSSE de arma de fogo para o cidadão sem antecedentes criminais, bem como tornar seu registo definitivo", escreveu o presidente na rede social.
Segundo o auxiliar, a ideia do decreto é "flexibilizar (as regras) no que for possível dentro da lei" para ampliar os casos em que são permitidos a posse de arma. A explicação é que a generalização do posse de armas para quem não tem pendências legais é uma promessa de campanha. Portanto, não haveria surpresas no anúncio do presidente eleito. A medida atenderia a um pedido de parte da população que se sentiria mais segura com a possibilidade de ter uma arma.
- Se é uma promessa de campanha, ele tem que cumprir - disse um dos auxiliares de Bolsonaro.
A posse é diferente do porte de armas. De acordo com a lei, a posse é a autorização de manter a arma apenas no interior da casa ou no local de trabalho do proprietário, desde que seja o responsável legal pelo estabelecimento. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho, e é proibido, exceto para membros das Forças Armadas, polícias, guardas, agentes penitenciários e empresas de segurança privada, entre outros.
O Estatuto do Desarmamento prevê requisitos para que o civil adquira arma de fogo — como não ter antecedentes criminais, não responder a inquérito policial ou processo criminal, comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica. Determina também que é preciso "declarar a efetiva necessidade". O mesmo requisito consta do decreto, baixado em 2004, que regulamenta o estatuto.
Hoje, a Polícia Federal faz uma análise para verificar se o interessado tem de fato necessidade de ter a arma. Os defensores da extinção do Estatuto do Desarmamento sempre reclamaram de uma postura supostamente enviesada da PF de negar os pedidos alegando que a "efetiva necessidade" não estaria comprovada.
A ideia é retirar esse poder de análise da PF, deixando claro que basta o interessado atender aos critérios objetivos de documentação para ter direito à posse de arma.
Não será a primeira vez que regras de controle de arma de fogo são modificadas por decreto presidencial. O presidente Michel Temer fez uma série de mudanças, na base de decretos e portarias, na regulamentação do Estatuto do Desarmamento . Ele ampliou de três para cinco anos o prazo de validade da posse de arma de fogo. Por meio do decreto, a medida não precisa ser discutida pelo Congresso e começa a valer após a publicação no Diário Oficial.
Agora, Bolsonaro promete conceder registro definitivo. A medida não foi detalhada pelo futuro presidente. Mas pode significar que, uma vez obtida a posse de arma, não será mais necessário apresentar periodicamente as comprovações exigidas, como de habilidade técnica, aptidão psicológica e antecedentes criminais.
Ricardo Noblat: Bolsonaro em dívida com Temer
Para não começar do zero
Por tê-la usado como principal bandeira de sua campanha à presidência da República, seria de imaginar que o presidente eleito Jair Bolsonaro dispusesse de ideias bem concebidas para enfrentar a violência que matou quase 63 mil brasileiros em 2016, quando o país pela primeira vez na história superou o patamar de 30 homicídios por cada 100 mil habitantes. Ou Bolsonaro ou pelo menos quem ele escalasse para cuidar da segurança pública no seu governo.
Não parece ter sido o caso. Não foi o caso. A princípio, Bolsonaro e o ex-juiz Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, se limitarão a adotar o pacote de segurança pública lançado, ontem, pelo presidente Michel Temer. Foi o que admitiu o general Guilherme Teóphilo de Oliveira, braço direito de Moro: “É. Não podemos pegar agora e querer começar tudo do zero, não. A gente tem que aproveitar isso aí”. Do zero? E nada havia sido pensado?
“Agora é tentar dar continuidade e fazer os aperfeiçoamentos que nós achemos necessários”, explicou o general. O “Plano Nacional de Segurança Pública”, legado por Temer a Bolsonaro e Moro, é o quinto a ser lançado desde 2000 quando Fernando Henrique Cardoso ainda presidia o país. O desafio de Bolsonaro é tirar do papel mais do que o pouco que dele saiu até aqui. O combate à violência e a retomada do crescimento econômico definirão a sorte do próximo governo.
Lição a pais de garotos
Sem privilégios
A caminho do Brasil para assistir à posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, traz com ele a mulher, Sara, e também Yair, seu filho de 23 anos, estudante da Universidade Habraica de Jerusalém.
Antes de embarcar, Benjamin divulgou uma nota onde afirma que todas as despesas do filho durante a viagem, inclusive a passagem, serão pagas pela família. As despesas de Sara correrão por conta do tesouro de Israel como manda a lei.
Filho de chefe de Estado, por lá, mas não só em Israel, não pode dar-se ao luxo de viajar a custa do contribuinte. De resto, o clã Netanyahu já enfrenta uma série de problemas para ter que arranjar mais um.
Sara responde a processo por uso indevido de fundos do Estado para pagar por refeições. Benjamim, por ter embolsado cerca de 1,018 milhão de reais em presentes de luxo que recebeu, mas não declarou.
O Estado de S. Paulo: Verba pública a partidos aumentou quase 500% em 20 anos
Criado na década de 1990, Fundo Partidário prevê repasse de R$ 927,7 milhões às siglas em 2019
Caio Sartori, de O Estado de S. Paulo
O dinheiro público destinado aos partidos políticos cresceu quase 500% desde 1996. O Fundo Partidário, que atingirá montante próximo a R$ 1 bilhão no próximo ano, foi engordado nas últimas décadas ao mesmo tempo em que o número de siglas no País se multiplicava. Em 2019, 30 partidos ganharam nas urnas o direito de terem representação na Câmara dos Deputados, batendo mais um recorde. Há 23 anos eram 19 legendas com assento no Congresso.
Previsto em R$ 927,7 milhões para o próximo ano, o fundo foi criado em meados dos anos 1990 para financiar os custos administrativos das legendas. É abastecido com dotações orçamentárias – aprovadas pelos próprios deputados e senadores – e multas eleitorais aplicadas aos mesmos partidos.
Câmara dos Deputados
Reforma política aprovada em 2017 pelo Congresso mudou regras de acesso ao fundo partidário Foto: Daniel Teixeira/Estadão
O acesso a recursos públicos do Fundo Partidário é um dos elementos que impulsionou a criação de novas siglas no Brasil nos últimos anos. A fiscalização dos gastos pelo Tribunal Superior Eleitoral ocorre com bastante atraso e a análise das prestações de contas já mostrou que a reserva financia despesas que vão de viagens de jatinho até contas pessoais de dirigentes dos partidos.
Após o Congresso aprovar em 2017 a criação de um fundo eleitoral bilionário (R$ 1,7 bilhão), as siglas foram autorizadas este ano a utilizar recursos do Fundo Partidário nas eleições. Na prática, os fundos de dinheiro público compensaram a ausência dos recursos empresariais nas campanhas – proibidos em decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2015.
No ano que vem, as siglas que não superaram a chamada cláusula de barreira nas últimas eleições não terão direito a receber o dinheiro – o que pode significar a extinção destas legendas. Foi por isso que algumas já anunciaram que vão se fundir. É o caso do Patriota com o PRP, do PCdoB com o PPL e do Podemos, que superou a cláusula, com o PHS.
Em valores corrigidos, o ápice do gasto público com financiamento partidário ocorreu em 2015, no início do segundo mandato da petista Dilma Rousseff, quando passou por um aumento grande em relação ao ano anterior e atingiu o equivalente a R$ 1 bilhão nos dias de hoje. O mesmo fenômeno de crescimento considerável ocorreu em 2011, outro ano que sucedeu eleições gerais.
De 1996 para cá, o aumento tem sido constante ano a ano, com a exceção de poucos períodos — que normalmente vêm depois de anos com grandes acréscimos financeiros, como 2015. O valor caiu, por exemplo, em 2016 e 2017, até voltar a crescer neste ano e no próximo. No acumulado, cresceu cerca de 470%.
Esse acréscimo, porém, foi acompanhado por uma desconcentração dos recursos em razão da fragmentação partidária cada vez maior da Câmara. Em 1996, os cinco partidos com maior porcentual do fundo representavam 82,7% do montante. Hoje, equivalem à metade: 41%.
Em 2019, a distribuição dos recursos vai marcar a saída do MDB da lista de legendas mais beneficiadas pelo fundo. Está na sexta colocação da lista, com R$ 52,8 milhões. Resultado diferente do PT e do PSDB, que, mesmo com resultados decepcionantes em comparação com o histórico que vinham registrando, se mantiveram nas três primeiras colocações.
“Ajustamos nossas despesas à nova realidade e enxugamos a estrutura. Temos um projeto de autofinanciamento para não dependermos exclusivamente do fundo”, disse o presidente do MDB, Romero Jucá. O projeto, segundo ele, será aplicado ano que vem nas esferas nacional, estaduais e municipais.
Entre as principais legendas do País, o Novo é o único que não utiliza o Fundo Partidário. Registrado em agosto de 2015, o Novo diz que arrecada cerca de R$ 800 mil mensais de aproximadamente 30 mil filiados. Num ano cheio, isso equivale R$ 9,6 milhões, valor inferior aos R$ 27,6 milhões a que a legenda teria direito a partir do ano que vem.
“As eleições mostraram que, mesmo sem o fundo, temos condições de participar do jogo. A ideia é manter essa estratégia e provocar uma mudança de cultura”, afirmou Moisés Jardim, presidente do Novo, descartando a possibilidade de o partido passar a aceitar o dinheiro público do fundo.
O PSL do presidente eleito, Jair Bolsonaro, será o maior beneficiário a partir de janeiro, com cerca de R$ 110 milhões ao longo do ano. Os partidos recebem valores calculados a partir da votação que obtiveram para a Câmara dos Deputados, incluindo votos nominais e em legenda, que compõem 95% do total distribuído. Os outros 5% são divididos igualmente entre as siglas que superaram cláusula de barreira nas eleições.
Apesar de ter feito a maior bancada para a próxima legislatura, com 56 eleitos, o PT perdeu para o PSL em número de votos para a Câmara, já que a eleição proporcional segue critérios mais complexos. Nesse contexto, o PSL receberá a maior fatia por ter vários ‘campeões’ de votos, como Eduardo Bolsonaro e Joice Hasselmann, os dois candidatos mais votados do País, ambos por São Paulo. O PT terá, ao longo do ano, R$ 96,6 milhões, quase R$ 15 milhões a menos que o partido de Bolsonaro.
Para o professor da FGV Marco Antônio Teixeira, o fundo é mal visto pela sociedade num contexto de crise de representação dos partidos e crise econômica. “Essa visão obviamente advém sobretudo do fato de a sociedade não ver um retorno dos partidos em prol do interesse público.”
Fragmentação diminui concentração de recursos
A distribuição do dinheiro do fundo passou a ser mais pulverizada ao longo dos anos, acompanhando a própria fragmentação partidária no Legislativo brasileiro. Em 1996, quando 19 partidos tinham cadeiras na Casa, os cinco com maior porcentual do fundo representavam 82,7% do montante, número hoje reduzido pela metade.
O MDB, por exemplo, recebia naquele ano mais de 22% do dinheiro, quase um quarto do total. Em 2019, a fatia não chegará a 6%, fruto da baixa votação que obteve para a Câmara. Para além da crise dos partidos tradicionais, a diminuição se explica pela mudança na correlação de forças no parlamento brasileiro. Mais fragmentado a cada eleição, o Congresso da nova legislatura diminuiu ainda mais o abismo antes existente entre os grandes e os pequenos.
Isso não se deu por meio de um mero fortalecimento de legendas menores que já existiam, e sim a partir do surgimento de novas siglas, especialmente na década de 2010. Partidos como o PSD, dissidência do DEM, o PROS e o Solidariedade já surgiram com bancadas robustas ao herdar parlamentares que aproveitaram uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, na teoria, apenas regulamentava condições para migração partidária. Na prática, porém, ela incentivou a criação de novas legendas, já que os parlamentares não seriam punidos se aderissem a novas siglas.
“Se esses 41% (de concentração nos cinco mais ricos) significassem que o sistema se democratizou mais, com partidos mais competitivos e mais debates de ideias, estaria tranquilo. Mas o que aconteceu foi que tivemos uma multiplicação de partidos”, disse Marco Antônio Teixeira, da FGV.
O grande fenômeno surgido com as eleições de 2018, porém, é a ascensão do PSL ao status de partido grande. Antes nanico e pouco conhecido do eleitorado, a legenda à qual Jair Bolsonaro se filiou para concorrer à Presidência terá dinheiro para se estruturar. A sigla foi, por anos, uma das que se enquadram na categoria de ‘partido negócio’, sem muitos holofotes. A partir de 2019, roubará o espaço – o dinheiro – que já foi de PT e MDB.
Deutsche Welle: Brasil, um país do passado
No Brasil, está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição. Seus representantes preferem Silas Malafaia a Immanuel Kant. Os ataques miram o próprio esclarecimento, escreve o colunista Philipp Lichterbeck.
É sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple algo de perspectivas diferentes. Quem deixa o Brasil nos dias de hoje deve se preocupar. O país está caminhando rumo ao passado.
No Brasil, pode ser que isso seja algo menos perceptível, porque as pessoas estão expostas ao moinho cotidiano de informações. Mas, de fora, estas formam um mosaico assustador. Atualmente, estou em viagem pelo Caribe – e o Brasil que se vê a partir daqui é de dar medo.
Na história, já houve momentos frequentes de regresso. Jared Diamond os descreve bem em seu livro Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Motivos que contribuem para o fracasso são, entre outros, destruição do meio ambiente, negação de fatos, fanatismo religioso. Assim como nos tempos da Inquisição, quando o conhecimento em si já era suficiente para tornar alguém suspeito de blasfêmia.
No Brasil atual, não se grita "herege!", mas "comunismo!". É a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico em si: comunismo!
Tudo isso são conquistas que não são questionadas em sociedades progressistas. O Brasil de hoje não as quer mais.
Porém, a própria acusação de comunismo é um anacronismo. Como se hoje houvesse um forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Está na moda um anti-intelectualismo horrendo, "alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento", segundo dizia o escritor Isaac Asimov. Ouvi uma anedota de um pai brasileiro que tirou o filho da escola porque não queria que ele aprendesse sobre o cubismo. O pai alegou que o filho não precisa saber nada sobre Cuba, que isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é verdade. O pior é que bem que poderia ser.
A essência da ciência é o discernimento. Mas os novos inquisidores amam vídeos com títulos como "Feliciano destrói argumentos e bancada LGBT". Destruir, acabar, detonar, desmoralizar – são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento.
Os inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques Rousseau, querem Olavo de Carvalho. Não querem Chico Mendes, querem a "musa do veneno" (imagino que seja para ingerir ainda mais agrotóxicos).
Dá para imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de fanático como exemplo: para o nada. Os sinais de alerta estão acesos em toda parte.
O desmatamento da Floresta Amazônica teve neste ano o seu maior aumento em uma década: 8 mil quilômetros quadrados foram destruídos entre 2017 e 2018. Mas consórcios de mineradoras e o agronegócio pressionam por uma maior abertura da floresta.
Jair Bolsonaro quer realizar seus desejos. O próximo presidente não acredita que a seca crescente no Sudeste do Brasil poderia ter algo a ver com a ausência de formação de nuvens sobre as áreas desmatadas. E ele não acredita nas mudanças climáticas. Para ele, ambientalistas são subversivos.
Existe um consenso entre os cientistas conhecedores do assunto no mundo inteiro: dizem que a Terra está se aquecendo drasticamente por causa das emissões de dióxido de carbono do ser humano e que isso terá consequências catastróficas. Mas Bolsonaro, igual a Trump, prefere não ouvi-los. Prefere ignorar o problema.
Para o próximo ministro brasileiro do Exterior, Ernesto Araújo, o aquecimento global é até um complô marxista internacional. Ele age como se tivesse alguma noção de pesquisas sobre o clima. É exatamente esse o problema: a ignorância no Brasil de hoje conta mais do que o conhecimento. O Brasil prefere acreditar num diplomata de terceira categoria do que no Instituto Potsdam de Pesquisa sobre o Impacto Climático, que estuda seriamente o tema há trinta anos.
Araújo, aliás, também diz que o sexo entre heterossexuais ou comer carne vermelha são comportamentos que estão sendo "criminalizados". Ele fala sério. Ao mesmo tempo, o Tinder bomba no Brasil. E, segundo o IBGE, há 220 milhões de cabeças de gado nos pastos do país. Mas não importa. O extremista Araújo não se interessa por fatos, mas pela disseminação de crenças. Para Jared Diamond, isso é um comportamento caraterístico de sociedades que fracassam.
Obviamente, está claríssimo que a restrição do pensamento começa na escola. Por isso, os novos inquisidores se concentram especialmente nela. A "Escola Sem Partido" tenta fazer exatamente isso. Leandro Karnal, uma das cabeças mais inteligentes do Brasil, com razão descreve a ideia como "asneira sem tamanho".
A Escola Sem Partido foi idealizada por pessoas sem noção de pedagogia, formação e educação. Eles querem reprimir o conhecimento e a discussão.
Karl Marx é ensinado em qualquer faculdade de economia séria do mundo, porque ele foi um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo. E o fez de uma forma genial. Mas os novos inquisidores do Brasil não querem Marx. Acham que o contato com a obra dele transformaria qualquer estudante em marxista convicto. Acreditam que o próprio saber é nocivo – igual aos inquisidores. E, como bons inquisidores, exortam à denúncia de mestres e professores. A obra 1984, de George Orwell, está se tornando realidade no Brasil em 2018.
É possível estender longamente a lista com exemplos do regresso do país: a influência cada vez maior das igrejas evangélicas, que fazem negócios com a credulidade e a esperança de pessoas pobres. A demonização das artes (exposições nunca abrem por medo dos extremistas, e artistas como Wagner Schwartz são ameaçados de morte por uma performance que foi um sucesso na Europa). Há uma negação paranoica de modelos alternativos de família. Existe a tentativa de reescrever a história e transformar torturadores em heróis. Há a tentativa de introduzir o criacionismo. Tomás de Torquemada em vez de Charles Darwin.
E, como se fosse uma sátira, no Brasil de 2018 há a homenagem a um pseudocientista na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, que defende a teoria de que a Terra seria plana, ou "convexa", e não redonda. A moção de congratulação concedida ao pesquisador foi proposta pelo presidente da AL e aprovada por unanimidade pelos parlamentares.
Brasil, um país do passado.
Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
Luiz Carlos Azedo: A língua do índio
“O Brasil tem cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional”
Um grito de guerra virou bordão no Centro Cultural da CCBB, onde funciona a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro: “Selva!” É um cumprimento militar adotado em todas as unidades vinculadas ao Comando Militar da Amazônia (CMA), espalhadas em 62 localidades e envolvendo seis estados e partes do Maranhão e do Tocantins. A saudação simboliza a integração entre oficiais e a tropa formada por caboclos, mamelucos e índios.
Um vídeo produzido pelo próprio Exército brasileiro, nos confins da Amazônia, ilustra a mística: mostra meia dúzia de soldados-índios de diversas etnias se apresentando em sua língua nativa, mas fazendo a saudação em português que virou bom dia e boa noite também no Palácio do Planalto, entre funcionários do governo que fazem parte da mobília do poder e aguardam os novos chefes. A origem da saudação é a Oração do Guerreiro da Serva, de autoria do tenente-coronel Humberto Leal, que vive em Petrópolis, a Cidade Imperial. “Dai-nos hoje da floresta:/A sobriedade para persistir;/A paciência para emboscar;/A perseverança para sobreviver;/A astúcia para dissimular;/A fé para resistir e vencer. /E dai-nos também, Senhor, /A esperança e a certeza do retorno”, diz o principal trecho da oração, que resume o treinamento dos batalhões especiais de selva.
Em São Gabriel da Cachoeira (AM) ou no 5º Pelotão de Fronteira de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, na divisa com a Venezuela e a Colômbia, os soldados índios das etnias tucano, inhangatú, aruac e yanomami são maioria na tropa. Entretanto, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, quando Comandante Militar da Amazônia, notabilizou-se pela crítica à política indigenista tradicional e anteviu a possibilidade de conflitos na região, por causa da Venezuela e da Guiana, entre outros pontos da fronteira. Esse é o xis da polêmica sobre a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, uma das maiores terras indígenas do país, com 1.743.089 hectares e 1.000 quilômetros de perímetro. O nióbio é só um pretexto. Mais da metade da área é constituída por vegetação de cerrado, lá chamado de “lavrado”, e uma região montanhosa cujo topo é monte Roraima, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. É impossível, porém, guarnecer a região sem o apoio dos índios.
Recentemente, o Departamento de Estado norte-americano pressionou o governo brasileiro para que mandasse tropas para Guiana, temendo uma invasão venezuelana do país vizinho, o que foi rechaçado pelo governo Temer. Nesse aspecto, o futuro ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional tem razão: a política do governo Bolsonaro vai aumentar a tensão na fronteira com os venezuelanos. A dúvida é se mandaremos nossos soldados-índios para Guiana.
Inganhatú
O Brasil tem atualmente cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional, ou 109,6 milhões de hectares. A maior parte — 108 milhões de hectares — está na chamada Amazônia Legal, que abrange os estados de Tocantins, Mato Grosso, Maranhão, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Acre e Amazonas. Quase 27% do território amazônico hoje é ocupado por terras indígenas, sendo que 46,37% de Roraima correspondem a essas áreas. Isso se tornou o grande pomo da discórdia por causa do choque com arrozeiros, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros que atuam ilegalmente nas reservas.
Esse choque agora tende a se acentuar, porque o responsável nomeado para responder pelo licenciamento ambiental e as políticas de reforma agrária é o atual presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia. Ele vai assumir funções que hoje cabem à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Fundação Palmares, que serão esvaziadas. Sai de baixo. É bom lembrar que as tribos indígenas de hoje são as que resistiram à escravidão e ao extermínio.
» Vídeo de soldados índios: https://www.youtube.com/watch?v=XiimXLxJL-w
E a língua do índio? A música Tu Tu Tu Tu Tu Tupi, de Hélio Ziskind, virou roteiro de um vídeo que faz muito sucesso nas redes sociais. Diz a letra: “Todo mundo tem/um pouco de índio/dentro de si/dentro de si/Todo mundo fala/língua de índio/Tupi Guarani/Tupi Guarani/E o velho cacique já dizia/tem coisas que a gente sabe/e não sabe que sabia/e ô e ô/O índio andou pelo Brasil/deu nome pra tudo que ele viu”. Deu mesmo: jabuticaba, caju, maracujá, pipoca, mandioca, abacaxi, tamanduá, urubu, jaburu, jararaca, jiboia, tatu, arara, tucano, araponga, piranha, perereca, sagui, jabuti, jacaré, Maranhão, Maceió, Macapá, Marajó, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Jundiaí, Morumbi, Curitiba, Parati, Tatuapé (caminho do tatu).
Não é o caso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, descendente de italianos e alemães, mas a maioria dos brasileiros tem sangue indígena. Vem daí a simpatia por eles. Mas índio Um dos mitos fundadores do Exército Brasileiro é o índio potiguar Antônio Felipe Camarão (poty, na língua tupi). Em Glicério (SP), onde nasceu o presidente eleito, até meados do século 19 falava-se inhangatú, a língua geral paulista disseminada pelos bandeirantes pelo país afora. Cerca de 73,31% dos 29,9 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça do Cachorro, onde as Forças Armadas mantêm várias unidades, falam o tucano, o baníua e, principalmente, o nheengatu ( a língua geral da Amazônia, também de origem tupi), que mantém o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes etnias , como os barés, os arapaços, os baniuas, os werekena.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-lingua-do-indio/
Bruno Boghossian: Para caciques, Bolsonaro precisará fazer reforma ministerial no 1º ano
Pedido de cargos mostra que chip da política continua funcionando como antes em Brasília
Na terça-feira (11), um deputado parou o futuro ministro OnyxLorenzoni (Casa Civil) para fazer um pedido. Apresentou o nome do filho para uma secretaria do novo governo. Horas depois, Tereza Cristina (Agricultura) foi abordada por um colega do DEM que perguntava se havia espaço em sua pasta para um nome técnico de sua confiança.
Embora Jair Bolsonaro tenha ficado relativamente livre da pressão dos partidos na escolha dos principais cargos de sua gestão, o chip da política continua funcionando como antes. A cobrança por vagas no segundo escalão é feita às claras.
Os políticos mais calejados dão um voto de confiança ao próximo governo, mas alguns consideram praticamente inevitável uma reforma na Esplanada dos Ministérios já no primeiro ano de mandato. Para eles, a dificuldade para aprovar pautas amargas no Congresso deve obrigar o presidente eleito a dividir poder com os partidos.
Bolsonaro completou esta semana um ciclo de encontros com as bancadas que devem apoiar parte de sua agenda. O gesto de aproximação foi bem recebido e abriu os canais de articulação política para 2019, mas se traduziu em pouco apoio formal.
Ainda há sinais escassos de como o fluxo de poder funcionará. Deputados e senadores conhecem o valor de seus votos para o governo. O Planalto, por outro lado, sabe que tem tinta na caneta para fazer nomeações e liberar verbas para as bases eleitorais desses congressistas.
Se os dois lados não se encaixarem naturalmente, haverá uma queda de braço. Ou Bolsonaro forçará a troca do chip, ou precisará instalar em seu governo um software compatível com os políticos de sempre.
Em 1990, Fernando Collor montou um ministério a seu gosto. Cortou 10 pastas e escolheu titulares de sua confiança, quase sem consultar os partidos. Em abril de 1992, fragilizado, foi obrigado a fazer uma grande reforma, cedendo espaço aos velhos caciques. O acordo deu ao presidente uma sobrevida de oito meses, mas não o salvou do impeachment.
Luiz Carlos Azedo: A tropa de assalto
“A velha política é muito resiliente, a montagem do novo governo começa a mostrar padrões tradicionais”
Ao emergir do chamado baixo clero da Câmara e chegar ao poder, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, confirmou a tese de que a Presidência da República não é apenas um querer, é destino. Fez uma campanha eleitoral disruptiva e antissistêmica, que derrotou os maiores partidos do país, falando o que maioria dos eleitores queria ouvir. A desmoralização dos políticos pela Operação Lava-Jato e uma facada na barriga que quase o matou, entre outros fatores que estão no terreno da fortuna, não lhe tiram o mérito de político sagaz, que soube agarrar a oportunidade com as duas mãos. Isso é o que Maquiavel chamou de virtù.
O “mito”, porém, está diante da uma realidade inescapável: governar é uma atividade essencialmente política, na qual a fortuna e a virtù se correlacionam; quando mudam as circunstâncias, certos atributos positivos viram negativos. Além disso, a velha política é muito resiliente, contraria a retórica dos que acham que tudo mudará na marra. Não é por outra razão que a montagem do novo governo começa a mostrar padrões tradicionais, entre os quais, o de que a tropa de assalto não serve para a ocupação.
O primeiro a ficar de fora do governo foi o senador capixaba Magno Malta (PRB-ES), que recusou o convite para ser vice de Bolsonaro, mas foi um baluarte de sua campanha. Perdeu a reeleição no Espírito Santo e esperava ter uma vaga na equipe ministerial. Acabou surpreendido pela indicação da pastora Damares Alves, sua ex-assessora parlamentar, para a pasta de Direitos Humanos, Família e Direitos da Mulher. Magno não foi sequer consultado, a advogada teve apoio da bancada evangélica e da ala de mulheres bolsonaristas da Câmara.
Outro comandante da tropa de assalto corre risco de não tomar posse. É Onyx Lorenzoni, o coordenador da equipe de transição e futuro ministro da Casa Civil, que começou a ser fritado pelos militares do governo e pelo próprio Bolsonaro, cujos comentários podem ser interpretados como uma sugestão para o auxiliar cair fora. Na quarta-feira, o presidente eleito disse que vai “usar a caneta” se houver “denúncia robusta” contra o futuro ministro da Casa Civil. Na sexta, Onyx perdeu a cabeça e abandonou uma coletiva. O ministro é alvo de denúncias de executivos da J&F de que teria recebido um repasse de R$ 100 mil por meio de caixa dois em 2012. O fato está sendo apurado pela Procuradoria-Geral da República por determinação do ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF).
Onyx já assumiu o caso e pediu desculpas, mas não deu informações sobre suposto recebimento de outros R$ 100 mil. Conforme os delatores da J&F, o repasse foi feito em 30 de agosto de 2012 em dinheiro vivo. É, por isso, que o futuro ministro está na frigideira. O chefe de cozinha é o vice-presidente Hamilton Mourão: “Uma vez que seja comprovado que houve a ilicitude, é óbvio que o ministro Onyx terá de se retirar do governo, mas, por enquanto, é uma investigação e ele prossegue aí com as tarefas dele. Nada mais do que isso”, disse o general ferrabrás, ao comentar o mesmo assunto.
Em família
Nada é mais constrangedor, porém, do que o caso de Fabrício Queiroz, ex-assessor do deputado estadual e senador eleito pelo PSL Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente eleito. Ele foi exonerado do gabinete do deputado em 15 de outubro deste ano. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda, apontou movimentações bancárias suspeitas na conta de Queiroz de mais de R$ 1,2 milhão, entre 1º de janeiro de 2016 e 31 de janeiro de 2017. O relatório faz parte da Operação Furna da Onça, que prendeu 10 deputados estaduais no Rio e investiga 75 servidores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
Fabrício Queiroz era motorista de Flávio Bolsonaro e ganhava R$ 23 mil mensais. Uma das operações era um depósito de R$ 24 mil na conta da futura primeira-dama, Michelle de Paula Bolsonaro, supostamente em pagamento de um empréstimo. “Não foram R$ 24 mil, foram R$ 40 mil. Se o Coaf quiser retroagir um pouquinho mais, vai chegar nos R$ 40 mil”, afirmou Jair Bolsonaro, em defesa da mulher. Segundo o presidente eleito, foram 10 cheques de R$ 4 mil.
Outra parte do relatório do Coaf revela saques em espécie no total de R$ 324.774, e R$ 41.930 em cheques compensados. Além disso, o Coaf identificou um grande volume de depósitos e saques inferiores a R$ 10 mil, o que, segundo o relatório, seria para dificultar a identificação da origem e do destino do dinheiro. Nathalia Melo de Queiroz, 29 anos, foi funcionária de Flávio Bolsonaro entre 2007 e 2016; depois, foi nomeada para o cargo de secretária parlamentar de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Recebeu do pai R$ 84 mil. Além de Nathalia, a mulher de Fabrício, Márcia Oliveira de Aguiar, e outra filha dele, Evelyn Melo de Queiroz, trabalharam no gabinete de Flávio. No total, sete assessores fizeram depósitos na conta de Queiroz.
Nathalia foi exonerada do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados em 15 de outubro, mesmo dia em que o pai dela deixou o gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O episódio queima o filme do senador eleito pelo Rio de Janeiro, que chega ao Senado confrontando o ex-presidente da Casa Renan Calheiros (PMDB-AL), velha raposa política, que já empossou três presidentes da República como presidente do Congresso e sobreviveu a todos. Dos filhos de Bolsonaro, Flávio Bolsonaro é o mais experiente e articulado; passa a mão na cabeça do ex-assessor: “Ele me relatou uma história bastante plausível. Garantiu-me que não teria nenhuma ilegalidade nas suas movimentações”. As investigações sobre Queiroz, titular da “caixinha”, mostrarão o que houve.
Em tempo – Vou tirar uma semana de descanso.
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Pedro Doria: O Facebook e os ‘gilets jaunes’
Movimento francês mostra que o impacto do Facebook na política mundial é profundo
O movimento francês dos “gilets jaunes”, coletes amarelos, representa a terrível constatação de que o impacto do Facebook na política mundial não só é profundo como, talvez, insolúvel sem uma reformulação profunda do sistema. Porque o que alimentou a agressividade dos protestos franceses foram justamente as mudanças feitas pela rede social, no início do ano, para impedir manipulação política.
Mudanças que faziam sentido.
A avaliação de executivos e engenheiros do Facebook era de que a rede havia se tornado demasiadamente focada no noticiário e se afastado do objetivo principal, promover encontros entre pessoas. De quebra, porque as notícias compartilhadas eram as de títulos mais exuberantes – ou sensacionalistas –, traziam para dentro da plataforma o fantasma da distorção ideológica, quando não fake news generalizadas.
A solução proposta foi mudar o algoritmo com dois objetivos. O primeiro, priorizar noticiário que fosse local em detrimento do nacional. Mais da sua cidade e do seu bairro. Depois, a turma decidiu promover mais postagens de família, amigos e grupos, incentivando conversas entre pessoas conhecidas, diminuindo o alcance de gente famosa – fossem jornalistas, fossem artistas, ou mesmo marcas.
No papel, tinha toda a lógica do mundo. O software que rege aquilo que nos chega via Facebook calibraria o conteúdo que vemos para nos afastar das armadilhas e ódios da política.
Na França, a prática foi justamente o contrário. Porque, também no início do ano, e esse processo foi detalhadamente reconstruído pelo BuzzFeed News, começavam a pipocar pela rede social, em todo o país, grupos que logo foram apelidados Groupe Colère. Coléricos. Raivosos. Lá, pessoas de cada cidade se encontravam online para reclamar do que não aguentavam mais.
E as mudanças implementadas pelo Facebook fizeram com que esses grupos, por serem iminentemente locais, fossem apresentados a mais e mais pessoas. O algoritmo, literalmente, atiçou um naco da população a se juntar a grupos nos quais a raiva era estimulada. A mudança antipolarização do Facebook provocou os mais violentos protestos em Paris desde 1968.
“Como amplificador e radicalizador da cólera popular”, escreveu o influente jornalista Frederic Filloux, “o Facebook demonstrou seu grau de toxicidade para o processo democrático”. Filloux escreve, em conjunto com o ex-presidente da Apple francesa Jean-Louis Gassée, uma influente newsletter lida em todo o Vale do Silício – Monday Note. Porque estava em Paris, entende política francesa e é respeitado no Vale, seu artigo desta segunda-feira teve imensa repercussão.
Como teve imensa repercussão o pacote de e-mails internos do Facebook tornados públicos, na quarta-feira, pelo Parlamento britânico.
Num deles, um executivo defende o uso de um truque para que o app da rede tire informação sobre ligações feitas em celulares Android. Sua equipe havia descoberto como fazê-lo sem informar ao dono do aparelho. “Pode ser um problema de relações públicas”, diz, mas a informação ajudaria a compreender mais as redes de amizade dos usuários. E essa é informação preciosa para quem faz dinheiro mapeando o comportamento de cada indivíduo.
Noutra mensagem, esta do próprio Mark Zuckerberg, ele é bastante claro: “Pode ser bom para o mundo, mas só é bom para nós se as pessoas estiverem gerando conteúdo dentro do Facebook”.
Tudo certo: é uma empresa privada cujo objetivo é crescer. E dribla uns limites éticos quando necessário. Mas é preciso fazer uma pergunta: “A ira do mundo estaria nas ruas sem o Facebook?”.
Fernando Henrique Cardoso: Um novo caminho
Há espaço para propostas que juntem modernidade e realismo, sem extremismos
A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já estava em decomposição. Há muitos cacos espalhados e há a necessidade de reconstrução. Ela será feita pelo próximo governo? É cedo para dizer.
O sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas são maiores. Antes, o óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que sustentavam o poder, sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de reconstruir o que desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando pelo PT, sem eximir o MDB e tampouco o PSDB e os demais. Na sua maioria, os "partidos" são sopas de letras, e não agremiações baseadas em objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.
Visto em retrospectiva, é compreensível que um sistema partidário sem atuação na base da sociedade se desmonte com aplausos populares. Os mais pobres encontram nas igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na Igreja Católica e em outras religiões – recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a sensação de que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O eleitorado, contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo "novo", inespecífico, poderia regenerar a vida pública.
Não foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta conhecer mais de perto a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias carentes de quase tudo para perceber que pedaços importantes do território vivem sob o domínio do crime organizado, violência que não se limita a essas populações, pois alcança partes significativas da população urbana e rural.
Inútil imaginar outros motivos para a vitória "da direita". Não foi uma direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais como repulsa a um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo foi parar em mãos mais conservadoras, e mesmo de segmentos abertamente reacionários, não pelas propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles simbolizaram: a ordem e a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia, venceu o sentimento de que é preciso pôr ordem nas coisas, para estancar a violência e a corrupção e tentar retornar a algum tipo de coesão social e nacional.
Enganam-se os que pensam que "o fascismo" venceu. Enganam-se tanto quanto os que veem o "comunismo" por todos os lados. Essa polarização marcou a pugna política em outra época de antes da 2.ª Grande Guerra, ao fim da qual foi substituída pela polarização entre capitalismo liberal e socialismo.
Os problemas básicos do País continuarão a atazanar o povo e o novo governo. Este não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia "direitista", mas por sua capacidade, ou não, de retomar o crescimento, diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar as escolas e os hospitais, e assim por diante.
Com isso não quero justificar a "direita", dizendo que se for capaz de bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a “esquerda”, quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a votar contra tudo o que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente conta: quais os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos valores democráticos e para a prosperidade do País.
As mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são inúmeras e profundas. Pode-se mesmo falar numa nova "era", a da conectividade. Se houve quem escrevesse "cogito ergo sum" (penso, logo existo), como fez Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é saber que "sinto, logo existo", em nossa época, sem que essas duas afirmativas desapareçam, é preciso adicionar: "Estou conectado, logo existo". Vivemos a era da informática, das comunicações e da inteligência artificial, que sustentam o processo produtivo e formam redes entre as pessoas.
As novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar os desafios coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a dificuldade de gerar empregos, a propagação instantânea das fake news, a formação de ondas de opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam um compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem de instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.
As questões centrais da vida política não se resumem, no mundo atual, à luta entre esquerda e direita. No passado o espectro político correspondia a situações de classe, interpretadas por ideologias claras, assumidas por partidos. Na sociedade contemporânea, com a facilidade de relacionamento e comunicação entre as pessoas, os valores e a palavra voltaram a ter peso para mobilizar politicamente. Isso abre brechas para um novo populismo e uma exacerbação do personalismo. O desafio está em recriar a democracia. O que chamo de um centro radical começa por uma mensagem que envolva os interesses e sentimentos das pessoas. E essa mensagem, para ser contemporânea, não deve estancar num palavreado "de direita" nem "de esquerda". Deve, a despeito das divergências de classe que persistem, buscar o interesse comum capaz de cimentar a sociedade. O País não se unirá com o ódio e a intransigência cultural existentes em alguns setores do futuro governo.
Há espaço para propostas que juntem a modernidade ao realismo e, sem extremismos, abram um caminho para o que é novo na era atual. Esse percurso deve incorporar a liberdade, especialmente a de as pessoas participarem da deliberação dos assuntos públicos, e a igualdade de oportunidades que reduzam a pobreza. E há de ver na solidariedade um valor. Só juntos poderemos mais.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República