política
Luiz Carlos Azedo: Dualidade de poderes
“Grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade venezuelana já não aceita o governo de Maduro”
O presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Juan Guaidó, que é o líder da oposição, se declarou ontem presidente interino do país, diante de gigantesca manifestação popular em Caracas: “Na condição de presidente da Assembleia Nacional, ante Deus, a Venezuela, em respeito a meus colegas deputados, juro assumir formalmente as competências do Executivo nacional como presidente interino da Venezuela. Para conseguir o fim da usurpação, um governo de transição e ter eleições livres.”
Guaidó foi imediatamente reconhecido presidente por Estados Unidos, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Guatemala, além do Brasil. O Itamaraty emitiu uma nota oficial na qual “reconhece o Senhor Juan Guaidó como presidente encarregado da Venezuela”, além de anunciar que “apoiará política e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem”. O presidente Nicolás Maduro, considerado um ditador pelo Grupo de Lima e pelos Estados Unidos, porém, não pretende deixar o cargo: “Aqui não se rende ninguém, aqui não foge ninguém. Aqui vamos à carga. Aqui vamos ao combate. E aqui vamos à vitória da paz, da vida, da democracia”. Maduro acusa o presidente Donald Trump de liderar um complô contra o regime chavista e rompeu relações com os Estados Unidos, dando um prazo de 72 horas para os diplomatas norte-americanos deixarem a Venezuela.
A tragédia social venezuelana, com a emigração em massa, já vem de alguns anos. A fome fez os venezuelanos perderem, em média, 11 quilos no ano passado. Já são 12 trimestres seguidos de recessão. Entre 2013 e 2017, o PIB venezuelano teve queda de 37%. O Fundo Monetário Internacional prevê que caia mais 15% neste ano. Com a hiperinflação, essa é uma linha de força da crise contra a qual Maduro nada pode fazer. O colapso do modelo de capitalismo de Estado venezuelano, mesmo com tanto petróleo, não pode ser superado sem um consenso social e político em torno de reformas de caráter liberal na economia. A linha adotada por Maduro, na direção de aprofundar a socialização do país, não tem respaldo político na sociedade nem pode se sustentar apenas no apoio da Rússia, da China e de Cuba.
Os artifícios usados por Maduro para se perpetuar no poder, fraudando eleições, aparentemente se esgotaram. Um sinal de sua fraqueza é o fato de que até agora não conseguiu fechar a Assembleia Nacional, que desafia seu poder. As grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade já não aceita o governo de Maduro. Pela sua própria natureza, tal situação não pode ser estável. A sociedade necessita de uma nova concentração de poder, que pode se dar por duas vias: a renúncia de Maduro e um pacto com os militares para transitar à democracia, ou o fechamento da Assembleia Nacional e a implantação de uma ditadura aberta, com prisões em massa. Os militares bolivarianos apoiam Maduro porque controlam a maioria dos ministérios e das empresas estatais.
Mudança de postura
O modelo clássico de dualidade de poderes é a Revolução Inglesa (1625-1688) do século XVII, na qual o poder real, apoiado pelos aristocratas e bispos, se opunha à burguesia e aos fidalgos das províncias reunidos no Parlamento presbiteriano londrino. A longa luta entre esses dois polos de poder resultou numa guerra civil, numa ditadura e numa revolução democrática. Enquanto Londres e Oxford rivalizavam como centro de poder, surgiu uma terceira força, o Exército de Cromwell, que estabeleceu uma ditadura pretoriana. Com sua morte, nova dualidade de poderes se estabeleceu. Carlos II (1660 – 1685) foi proclamado rei da Inglaterra com poderes limitados. O parlamento se dividiu em dois grupos: os Whigs, que eram contra o rei e ligados à burguesia, e os Tories, defensores feudais e ligados à antiga aristocracia.
Com a morte de Carlos II, seu irmão Jaime II assumiu o governo, mas quis restaurar o absolutismo e o catolicismo, e acabou com o habeas corpus, proteção à prisão sem motivo legal. O parlamento não tolerou esse comportamento e convocou Maria Stuart, filha de Jaime II e esposa de Guilherme de Orange, para ser a rainha. Essa foi a Revolução Gloriosa. Guilherme se tornou rei e assinou a Declaração dos Direitos, que concedia amplos poderes ao Parlamento e vigora até hoje. Ao longo da história, esse tipo de dualidade de poderes se repetiu em vários países, em momentos diferentes, como na Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolução Russa (1917-1921).
Ninguém sabe ainda o que vai acontecer com a Venezuela, mas a sua situação política se alterou radicalmente com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Maduro perdeu seu principal aliado no subcontinente, o Brasil, bem antes disso, com o impeachment de Dilma Rousseff. O governo de Michel Temer já havia tomado distância regulamentar de Maduro, mas não havia assumido uma postura de alinhamento automático com os Estados Unidos nem o apoio escancarado à oposição venezuelana, embora as pressões norte-americanas para uma postura mais agressiva já existissem, a ponto de o Departamento de Estado pedir ao governo brasileiro que mandasse tropas para a Guiana, temendo uma invasão do Exército venezuelano no país vizinho, em razão de uma disputa de fronteiras.
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Luiz Carlos Azedo: Seis minutos
“Bolsonaro procurou desfazer a repercussão internacional negativa gerada por decisões recentes de seu governo sobre o meio ambiente”
O esperado discurso do presidente Jair Bolsonaro em Davos, na Suíça, para um seleto grupo de empresários e políticos, foi uma espécie de copo pela metade, gelado. De um lado, sinalizou o que investidores gostariam de ouvir em termos de direção a ser seguida pelo país; de outro, decepcionou-os por não apresentar propostas concretas de reformas, o que deixou uma impressão de superficialidade. Bolsonaro poderia ter roubado a cena em Davos, diante da ausência de peso-pesados da política mundial, como os presidentes Donald Trump (EUA), Xi Jinping (China), Emmanuel Macron (França), Vladimir Putin (Rússia) e os primeiros-ministros Theresa May (Reino Unido) e Ram Nath Kovind (Índia).
A opção pelo feijão com arroz não deixa de ser positiva, se levarmos em conta, por exemplo, a política externa anunciada no discurso de posse do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja presença no Fórum Econômico Mundial foi ofuscada pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Justiça). Bolsonaro leu um discurso no qual falou de segurança, preservação ambiental e desenvolvimento, redução de impostos, respeito aos contratos, privatizações, ajuste fiscal, reforma da Organização Mundial de Comércio (OMC).
Para não deixar de lado a retórica da campanha eleitoral, o presidente brasileiro criticou o bolivarianismo e defendeu a propriedade privada, a família e os “verdadeiros direitos humanos”. Anunciou a meta bastante exequível de colocar o Brasil entre os 50 melhores países para se investir e a necessidade de educação voltada aos desafios da “quarta revolução industrial”. Apenas três líderes do chamado G7 participarão da reunião de Davos: o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe; a chanceler alemã, Angela Merkel; e o premiê italiano, Giuseppe Conte.
Bolsonaro procurou desfazer a repercussão internacional negativa gerada por decisões recentes de seu governo sobre o meio ambiente. Durante o discurso, enfatizou que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente e que o governo quer compatibilizar preservação e biodiversidade com avanço econômico. Disse que a agricultura ocupa somente 9% do território brasileiro, e a pecuária, menos de 20%. “Hoje, 30% do Brasil são florestas. Então, nós damos, sim, exemplo para o mundo. O que pudermos aperfeiçoar, o faremos. Nós pretendemos estar sintonizados com o mundo na busca da diminuição de CO2 e na preservação do meio ambiente”, declarou, após ser questionado pelo fundador e presidente do Fórum, Klaus Schwab. Depois, em reunião com investidores, confirmou que o Brasil permanecerá no Acordo de Paris sobre o clima. Além de destacar a intenção de ampliar a abertura comercial e a integração à economia mundial, Bolsonaro ressaltou a intenção de combater a corrupção, frisando o papel nesse sentido do ex-juiz Sergio Moro, no Ministério da Justiça.
Relações perigosas
No Brasil, porém, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República, está na frigideira, por causa do ex-assessor Fabrício Queiroz. Raimunda Veras Magalhães, mãe do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, aparece em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) como uma das pessoas que fizeram depósitos para o ex-motorista do então deputado estadual. Ela depositou R$ 4,6 mil na conta de Fabrício, de um salário líquido de R$ 5.124,62 na Alerj.
A mãe de Adriano foi assessora da liderança do Partido Progressista (PP), ao qual Flávio Bolsonaro era filiado. Ela deixou o cargo quando o deputado se filiou ao PSC. Em 29 de junho de 2016, Raimunda voltou à Alerj, desta vez no gabinete de Flávio, sendo exonerada somente em novembro do ano passado. A mulher de Adriano, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, também trabalhou no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, com o mesmo salário da sogra.
O problema é o ex-capitão do Bope, que está foragido. Uma força-tarefa do Ministério Público e da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu ontem cinco suspeitos de integrar uma milícia envolvida em grilagem de terra. Entre eles, estão um major da PM e um tenente reformado, além de Adriano. Mais oito pessoas são procuradas, duas estão entre os suspeitos do caso Marielle Franco, a vereadora do Psol assassinada no Rio de Janeiro no ano passado, e seu assessor Anderson Gomes.
As investigações se baseiam em escutas telefônicas e relatos recebidos pelo Disque Denúncia. Segundo a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), algumas pessoas presas também integram o “escritório do crime”, grupo de assassinos de aluguel investigado pela morte de Marielle Franco e Anderson Gomes. “A gente não descarta a participação no crime de Marielle Franco, mas não podemos afirmar isso neste momento. Essa operação não visou prender pessoas relacionadas ao crime da Marielle e Anderson. Se chegarmos à conclusão de que eles têm participação, aí, vamos trabalhar no inquérito relativo a esse crime”, afirmou Simone.
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Luiz Carlos Azedo: A confiança no Brasil
“Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil”
O presidente Jair Bolsonaro, ontem, em Davos, numa entrevista quebra-queixo para jornalistas brasileiros, disse que sua passagem pelo Fórum Econômico Mundial tem objetivo de restabelecer a confiança dos agentes econômicos no Brasil. “Queremos mostrar, via nossos ministros, que o Brasil está tomando medidas para que o mundo restabeleça a confiança em nós, que os negócios voltem a florescer entre o Brasil e o mundo, sem o viés ideológico, que nós podemos ser um país seguro para investimentos. E, em especial, a questão do agronegócio, que é muito importante para nós, é a nossa commodity mais cara. Queremos ampliar esse tipo de comércio.”
O discurso de Bolsonaro foi discutido por sua equipe de governo, representada em Davos pelos ministros Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também integra a comitiva para Davos, enquanto o irmão senador, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), continua ardendo na fogueira do caso Queiroz aqui no Brasil. O Fórum Econômico Mundial começa hoje e vai até sexta-feira, com previsão de uma redução de crescimento mundial, segundo anunciou a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde.
Os indicadores de crescimento de 2018 apontam para uma retração da economia mundial, que pode resultar numa grande recessão se suas causas não forem revertidas. Disputas comerciais entre as maiores economias do mundo, dívidas e eventos climáticos extremos (olha o aquecimento global aí, gente!) são alguns dos principais riscos previstos. A China teve seu pior índice de crescimento em 28 anos: no ano passado, a expansão do PIB chinês foi de apenas 6,6%; em 2019, será de 6,3%. A expansão induzida pelos incentivos fiscais nos Estados Unidos está se esgotando: a taxa de crescimento do PIB será de 2,5% em 2019 e apenas 2%, em 2020. Na Europa, a projeção é de uma expansão de 2% em 2019. Para 2019 e 2020, o crescimento global previsto pela ONU é de 3%, abaixo da taxa de 3,1% em 2018.
Trauma
É nesse cenário de “preocupações sobre a sustentabilidade do crescimento econômico global diante dos crescentes desafios financeiros, sociais e ambientais”, segundo o secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, que Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil, uma vez que a imagem do Brasil nunca esteve tão desgastada. Desde a crise do governo Dilma, com a narrativa do golpe, o PT faz uma campanha no exterior no sentido de desacreditar a democracia brasileira, com relativo êxito junto à imprensa internacional e a formadores de opinião. Mesmo com uma vitória por ampla margem também no exterior, a eleição de Bolsonaro corroborou a tese, que é falsa. O Brasil vive num regime democrático, ainda que o novo governo seja conservador e com forte presença dos militares.
O trauma do impeachment foi neutralizado pela estabilização da economia, com o governo Michel Temer, mas o fantasma da corrupção política permaneceu. Para os agentes econômicos, o novo governo sinalizou mudanças no sentido do combate à corrupção e da segurança jurídica, simbolizadas pela presença do ex-juiz da Operação Lava-Jato Sérgio Moro no Ministério da Justiça, e de uma guinada ultraliberal na economia, protagonizada pelo ministro Paulo Guedes. O problema é que não se muda uma imagem do dia para a noite, apenas com discursos. O que os investidores querem saber é se o governo vai enxugar a máquina pública, e o Congresso, aprovar a reforma da Previdência.
Nesse sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro general a ocupar a Presidência desde a saída do presidente João Batista Figueiredo, em 1985, deu uma ajuda a Bolsonaro em Davos, ao anunciar que os militares terão de cortar na carne com a reforma da Previdência, aumentando o tempo de contribuição de 30 para 35 anos. Até novembro de 2018, o deficit no sistema de aposentadorias e pensões dos militares chegou a R$ 40 bilhões, um aumento de quase 13% em relação ao mesmo período de 2017. O presidente em exercício também falou sobre o caso Queiroz, comentando o envolvimento do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Mourão pôs panos quentes no assunto: “Acho que, para o governo, não chega nele, apesar do sobrenome e do senador. Agora, o senador é que está exposto na mídia realmente, e o Flávio é uma pessoa muito boa, eu gosto muito dele”.
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Luiz Carlos Azedo: A montanha mágica
“A luta dentro do governo se parece com a disputa entre o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, personagens de Thomas Mann”
Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes, entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans Castorp.
Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance também reflete esse embate de ideias com o irmão.
O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício, vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em 1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.
Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.
Onde está a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa.
Disputa política
De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania), Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da República.
A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com sinais trocados.
A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por causa do Brexit, também cancelou a participação.
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Luiz Carlos Azedo: O caso Queiroz
“O STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade”
Ródion Ramanovich Raskolnikov é um ex-estudante que vive na miséria, em minúsculo apartamento em São Petersburgo. Acredita que está destinado a grandes ações, mas a miséria o impede de atingir todo o seu potencial. Por essa razão, conclui que nada seria moralmente errado se o objetivo fosse nobre. Isso o leva a matar uma velha que empresta a juros altíssimos e maltrata a sua irmã mais nova. Após assassinar a mulher, Raskolnikov entra em crise existencial, tem delírios febris.
Porfiry Petrovich, um dos responsáveis pela investigação do assassinato, confronta Raskolnikov diversas vezes, nunca revelando se ele é ou não suspeito do crime. A tensão abala ainda mais o comportamento do eex-studante, o que leva Porfiry a acusá-lo informalmente. Mesmo sem provas concretas contra ele, atormentado pelos remorsos, Raskolnikov acaba confessando. O protagonista de Crime e Castigo, o grande romance do escritor e jornalista russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866 (ou seja, não tem nada a ver com “marxismo cultural”), é um arquétipo perseguido por todos os grandes autores de romances policiais. O livro é um grande ensaio filosófico, psicológico e social. Dostoiévski explora o lado psicológico e existencial de seus personagens de forma excepcional, no contexto de uma Rússia autocrática, moralista e culturalmente atrasada.
Anulação de provas
O caso do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz é dostoievskiano. Amigo da família Bolsonaro, era homem de confiança do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSC), ex-deputado estadual fluminense. Ninguém sabe exatamente o que ele fez, além das declarações estapafúrdias para explicar sua movimentação financeira e a dancinha no hospital em que se internou para tratar de um câncer no intestino na virada do ano. Seu jogo de gato e rato com o Ministério Público seria apenas mais uma chicana de bons advogados para protelar o trabalho da Justiça. E inspiração para piadas, máscaras e fantasias que divertem os foliões no carnaval carioca.
Ontem, porém, o caso Queiroz ganhou uma dimensão surpreendente. O ministro do STF Luiz Fux determinou a suspensão das investigações sobre Fabrício, atendendo pedido de Flávio Bolsonaro, que não é investigado. A decisão não significa a suspensão permanente da investigação ou a definição sobre em qual instância o processo deverá tramitar. Apenas interrompe a investigação, até que o ministro Marco Aurélio Mello analise o caso e decida se será aplicada a regra do foro privilegiado.
Em maio do ano passado, o STF decidiu restringir as regras do foro privilegiado. Após a decisão, passam a ser julgados pelo Supremo apenas deputados federais e senadores suspeitos de atos praticados durante o mandato e por crimes que tenham relação com o cargo. Ou seja, com base na jurisprudência vigente, a investigação contra o ex-assessor não obrigaria que o processo tramitasse no STF.
Queiroz é investigado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro depois que o Coaf identificou movimentações financeiras consideradas atípicas em suas contas. No pedido, Flávio Bolsonaro também quer anular essas investigações, com o argumento de que as informações colhidas pelo Coaf estariam protegidas pelo sigilo bancário e fiscal e só poderiam ser obtidas pelo Ministério Público com base em decisão judicial. Sua ação aparentemente tem o objetivo de blindar Queiroz, mas pode ser um tiro pela culatra.
Qualquer político com cancha em Brasília sabe que o STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade, não é um passeio pela longa Avenida Nevsky. Ao contrário, as últimas legislaturas foram generosas em situações nas quais o Congresso teve suas atribuições invadidas e seus caciques se viram de joelhos perante o Supremo. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ), por exemplo, foi afastado do cargo e está preso até hoje. Também não é um bom cartão de visitas para quem está chegando ao Senado, principalmente em meio a disputas pelo poder, porque significa uma vaga na bancada dos políticos reféns dos próprios colegas por questões de natureza ética.
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Luiz Carlos Azedo: Meia-volta, volver!
“A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria”
O encontro do presidente Jair Bolsonaro com o presidente da Argentina, Mauricio Macri, serviu para reposicionar o novo governo em relação ao Mercosul. Foi uma espécie de “meia-volta, volver!”, depois das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, logo após as eleições, de que as relações comerciais do Brasil com os vizinhos do Cone Sul não eram uma prioridade. Guedes chegou a contextualizar o comentário de maneira a desdizer seu significado, mas foi preciso o encontro de ontem para que as coisas ficassem realmente mais claras, principalmente para os vizinhos. Bolsonaro e Macri acertaram trabalhar conjuntamente para fortalecer o bloco sul-americano. O ministro Paulo Guedes, nas conversas com os argentinos, procurou desfazer a imagem de que estava de costas para o Mercosul. A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria.
Isso significa que tudo ficará como dantes? Não, diplomatas do Brasil e Argentina discutiram mudanças nas regras do Mercosul que proíbem os países-membros de negociarem separadamente acordos de livre comércio com outros países. No caso brasileiro, Bolsonaro quer enxugar os encargos do Mercosul, reduzir tarifas e burocracia. Abre-se a possibilidade de avanços nas conversas com a União Europeia. Além disso, Paraguai e o Uruguai desejam fazer seus acordos bilaterais. O patinho feio do Mercosul é a Venezuela, que foi outro assunto abordado no encontro. Nesse caso, a afinação entre Bolsonaro e Macri é total: ambos pretendem endurecer o jogo ainda mais com o presidente do país vizinho, Nicolás Maduro, que assumiu novo mandato de seis anos e é considerado um ditador pela maioria dos países do continente.
Macri foi o mais enfático nos ataques a Maduro. Ressaltou que Argentina e Brasil reconhecem apenas a Assembleia Nacional da Venezuela, que é comandada pela oposição e considera Maduro um usurpador. “Reafirmamos nossa condenação à ditadura de Nicolás Maduro. Não aceitamos esse escárnio com a democracia, e, menos ainda, a tentativa de vitimização de quem na verdade é o algoz”, disse Macri. Bolsonaro foi mais comedido em relação a Maduro, mas reiterou que Brasil e Argentina jogarão juntos no caso da Venezuela: “Nossa cooperação na questão da Venezuela é o exemplo mais claro do momento. As conversas de hoje (ontem) com o presidente Macri só fazem reforçar minha convicção de que o relacionamento entre Brasil e Argentina seguirá avançando no rumo certo: o rumo da democracia, da liberdade, da segurança e do desenvolvimento”, disse.
Recessão
O fato de o Brasil e a Argentina terem governos ultraliberais tem um peso específico no continente, mas há uma variável imponderável: ao contrário de Bolsonaro, que acabou de assumir o governo, Macri está terminando seu mandato, em meio a um tremendo fracasso econômico. Os preços na Argentina subiram 2,6% em dezembro, com inflação anual de 2018 em 47,6%, a maior desde 1991. A meta de inflação de 23% em 2019, já considerada muito alta, dificilmente será alcançada, num ano de eleições presidenciais, nas quais Macri ainda pretende disputar a reeleição.
Com os preços descontrolados, o Banco Central argentino fez um ajuste duríssimo, com juros de até 70% e retirada de pesos do mercado. O dólar estabilizou em 37 pesos, mas a economia está em recessão: 2,5% em 2018; previsão de 2%, em 2019. Macri terá dificuldades para manter esse ajuste, quando nada porque os salários sofreram uma perda de poder de compra próxima a 10%, a maior desde 2002. Até o FMI prevê dificuldades para manter o ajuste, cujas projeções apontam que somente em 2024 os argentinos conseguirão recuperar o nível de vida de 2017. Será difícil para Macri resistir às pressões dos sindicatos por aumentos de salários e manter o acordo feito com o FMI.
À deriva
A propósito, a Inglaterra nunca esteve tão à deriva. Conservadores britânicos e unionistas da Irlanda do Norte salvaram a primeira-ministra Theresa May, derrotando por apenas 19 votos a moção de desconfiança apresentada pelos trabalhistas para evitar que o líder da oposição, Jeremy Corbyn, a substituísse, depois de a maioria esmagadora do parlamento do Reino Unido ter rejeitado o acordo de saída da União Europeia. O Brexit continua um salto no escuro, porque a primeira-ministra ainda não tem um plano B.
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Luiz Carlos Azedo: O lugar errado
“Battisti escolheu o país errado para se refugiar: a Bolívia, cujo presidente, Evo Morales, que compareceu à posse de Jair Bolsonaro, despachou-o direto para a Itália, sem apelação”
Depois de 26 anos foragido, o ex-terrorista e escritor Cesare Battisti foi preso na Bolívia e levado diretamente de Santa Cruz de la Sierra para Roma. Deverá cumprir pena de prisão perpétua, condenado pela Justiça italiana como responsável por quatro assassinatos naquele país, entre 1977 e 1979. Battisti integrava a organização Proletários Armados Pelo Comunismo, um dos grupos terroristas da extrema-esquerda italiana à época. O primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, agradeceu a Jair Bolsonaro pela cooperação da Polícia Federal para a captura de Battisti, mas fez um acordo com o presidente boliviano Evo Morales para evitar que o italiano não viesse antes para o Brasil.
Battisti tem um filho com uma brasileira, com quem se casou, o que poderia dar margem a novas disputas judiciais. A captura somente foi possível porque houve troca de dados de inteligência entre as polícias brasileira, italiana, e boliviana. Condenado desde 1993, Battisti nunca se entregou à Justiça italiana. A Corte de Apelações de Milão condenou Battisti à prisão perpétua por quatro “homicídios agravados”, praticados entre 1978 e 1979, contra um guarda carcerário, um agente de polícia, um militante neofascista e um joalheiro de Milão (o filho do joalheiro ficou paraplégico, depois de também ser atingido).
Em 2001, Battisti refugiou-se na França, conseguindo até se naturalizar, mas a decisão foi anulada, a pedido das autoridades italianas. Quando a França decidiu extraditá-lo, em 2005, fugiu para o Brasil, onde foi preso em 2007. Sua aposta de que teria cobertura no governo Lula fazia sentido. Em 2009, o então ministro da Justiça Tarso Genro concedeu-lhe o absurdo status de refugiado político, baseado no “fundado temor de perseguição por opinião política”.
Afrontada, a Justiça italiana recorreu ao Supremo, mas o status de refugiado político não permitiu o seguimento de qualquer pedido, o que dividiu a Corte brasileira. Mesmo assim, os ministros decidiram pela extradição, pelo placar de 5 votos a 4, mas facultaram a decisão ao presidente Lula, que confirmou as expectativas de Battisti e negou a extradição.
Em 2013, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou Battisti por falsificação de documento, o que reabriu a possibilidade de extradição. Após o impeachment de Dilma Rousseff, em 2017, Battisti tentou fugir para a Bolívia, foi preso pela PF, mas teve a prisão relaxada. Em dezembro de 2018, ministro Luiz Fux mandou prendê-lo e abriu caminho para a extradição. No dia seguinte, o presidente Michel Temer autorizou a extradição, mas Battisti já estava na clandestinidade. A Polícia federal realizou 30 operações para prendê-lo, sem sucesso.
Desta vez, porém, Battisti escolheu o país errado para se refugiar: a Bolívia, cujo presidente, Evo Morales, que compareceu à posse de Jair Bolsonaro, mandou prendê-lo e despachou-o direto para a Itália, sem apelação. Por ironia, desde a morte de Ernesto Che Guevara, em 8 de outubro de 1967, a Bolívia não é um bom lugar para se esconder. Se houvesse atravessado a fronteira com a Venezuela, Battisti teria mais sorte. Agora, será escritor na cadeia.
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Alon Feuerwerker: A fisiologia do poder acaba se impondo. Com seus inevitáveis traços tribais
Não acredite na sinceridade do governante quando diz que a existência de uma oposição forte e a alternância são essenciais para as coisas andarem bem. É cascata. Todo líder deseja eliminar os oponentes ou cooptar (uma forma de eliminação), e perpetuar no poder ele e/ou o grupo.
Daí que, por exemplo, a higidez da assim chamada democracia representativa dependa não principalmente dos códigos escritos, mas de algum equilíbrio de forças. Se estiver suficientemente forte, o governante - qualquer um - dará, no popular, uma banana para os tais códigos.
E do que depende essa força? Principalmente da capacidade de impor o medo. Mas a eficácia da ameaça de punição será maior quanto mais apetitoso é o prêmio por se submeter. Por isso, no poder líderes cuidam de recompensar a tribo.
"Política não fisiológica” é um oxímoro. A política é o exercício da fisiologia que mantem vivo o organismo das relações de poder.
Se o primeiro ministério de Luiz Inácio Lula da Silva premiou essencialmente o PT, o gabinete inaugural de Jair Bolsonaro tampouco obedece, para espanto de alguns, a fantasia do “critério técnico”. Leis da natureza são teimosas.
A equipe do governo sustenta-se essencialmente em quatro partidos: o PEM (Partido da Economia de Mercado), o PM (Partido dos Militares), o POC (Partido do Olavo de Carvalho) e o PLJ (Partido da Lava Jato). Siglas que mesmo não registradas no TSE ajudaram a construir o desfecho eleitoral.
Há também tribos não tão contempladas quantitativamente, mas ainda assim essenciais. O PA (Partido do Agronegócio) e o PE (Partido dos Evangélicos). Na extrema periferia do sistema, políticos não “puros” mas sortudos, sobreviventes da caça à política.
As legendas informais têm as características dos seus irmãos formais. Têm chefes, regras internas, programa. E uma disciplina a seguir, e portanto a ser imposta. Se não se investe energia para manter o edifício organizado, a tendência natural é desorganizar.
Uma diferença aparente de Bolsonaro para Lula é que este só tinha, a rigor, um partido para premiar. Mas se a coisa for olhada mais de perto fica claro que não era bem assim. O PT organizou-se como um partido de tendências, e o presidente precisou/decidiu contemplá-las todas.
As melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Algumas frutas despedaçam-se, outras caem no caminho. Isso não é problema. Onde está o xis da questão? Na capacidade de o presidente mediar os conflitos para uma resultante boa.
Aí é que mora o perigo. Que solução Jair Bolsonaro providenciará para o conflito entre os evangélicos e o agronegócio (e outros ramos do empresariado) em torno da mudança ou não da embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém? Uma hora o presidente vai ter de resolver.
Como fazer os políticos votar uma reforma da previdência que possa ser vendida ao público como justa e ao mesmo tempo preservar, ao menos em parte, as condições privilegiadas dos segmentos da burocracia estatal decisivos para a eleição do atual presidente da República?
A lista só vai crescer com o passar do tempo. Um dia alguém disse que o presidente dos Estados Unidos talvez se achasse o sujeito mais poderoso da Terra, mas não passava mesmo era de um guarda de trânsito. Organizando um tráfego mais ou menos caótico, mas um guarda de trânsito.
E tudo feito de um jeito de que possa ser explicado.
*
Solavancos são normais, mas a quantidade virou notícia neste início de governo. O primeiro impulso é dizer que as pessoas são incompetentes. Competência e incompetência são parâmetros algo subjetivos. Para objetivar, precisa complementar. Competência para fazer o quê?
Talvez o ruído esteja em outro lugar. Talvez as pessoas tenham sido escaladas não na melhor posição para cada uma delas. Faça você mesmo o teste. Simule um roque (o do xadrez) nas posições no Planalto. É uma simulação interessante. Em alguns casos, divertida.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Dom Odilo P. Scherer: Política a serviço da paz
Essa é a mensagem do papa Francisco a todos os governantes e altas autoridades mundiais
No dia 1.º de janeiro passado, enquanto no Brasil tomavam posse o novo presidente da República e os governadores dos Estados, o papa Francisco lembrava no Vaticano que “a boa política está a serviço da paz”. Não foi mensagem dirigida especificamente aos governantes brasileiros, embora também eles estivessem incluídos entre os destinatários. Todos os anos, em 1.º de janeiro, o pontífice envia uma mensagem em favor da paz a todos os governantes e altas autoridades dos povos e das organizações internacionais.
O foco da mensagem deste ano é a “boa política”, verdadeiro desafio para todos os governantes. A mensagem leva a refletir sobre os grandes objetivos da política, que nem sempre apareceram claramente nos programas e nas prioridades dos que assumem um mandato. Será que os grandes objetivos da política são a vitória do partido, a afirmação da ideologia e dos interesses dos vencedores e a repressão dos não alinhados com eles?
A boa política, à qual o papa se refere, deve contribuir efetivamente para manter e consolidar a paz em todos os sentidos, ou para restabelecê-la onde ela estiver faltando, ou em situação de risco. Com o poeta Charles Péguy, Francisco lembra que a paz é como uma flor frágil, que procura desabrochar entre as pedras da violência... A paz, de fato, está ameaçada sempre que se busca o poder a todo custo, mesmo com meios injustos, violência e desonestidades.
O papa Paulo VI exortava, em plena guerra fria, que é dever de cada pessoa levar a sério a política nos seus diversos níveis - local, regional, nacional e mundial - em defesa da liberdade e do esforço comum para a realização do bem da cidade, da nação e da humanidade (encíclica Octogesima Adveniens, 1971, 46).
Vícios na política podem torná-la odiosa e desacreditada, incapaz de promover a paz. A política pode ser comprometida pela incapacidade e o despreparo do governante, pela falta de prudência, discernimento sereno e equilíbrio sadio. Certos vícios na condução da vida política enfraquecem o convívio democrático, envergonham a vida pública e põem em risco a paz social.
Entre esses vícios, o papa menciona as múltiplas formas de corrupção e enriquecimento ilícito mediante a apropriação de bens públicos, a negação do direito, a falta de respeito às regras estabelecidas e o recurso arbitrário à força - “por razões de Estado” - para a afirmação no poder. Mas também são expressões de má política o fomento da xenofobia e do racismo, a insensibilidade diante dos sofrimentos dos pobres e dos refugiados, a exploração irresponsável dos recursos naturais para o lucro fácil. Entre as formas de política viciada contam-se também as que se destinam a perenizar privilégios questionáveis ou injustos, ou sustentam regimes na base do medo e da violência. O recurso à guerra, para impor as próprias razões a outros povos, é expressão abominável de política e agride diretamente a paz.
Políticas viciadas precisam ser superadas com políticas boas, que tenham no seu centro a pessoa humana e sua inalienável dignidade, promovam consensos para medidas sociais, econômicas e culturais em benefício de toda a população e tenham uma atenção privilegiada para com as camadas sociais mais vulneráveis. O bem comum deve ser o grande objetivo de políticas sábias, voltadas para as necessidades básicas do povo humilde e pobre, mais do que para a consolidação de vantagens de quem já vive em situação privilegiada. Não é sábia nem prudente, e desencadeia conflitos sociais, a política que se volta, sobretudo, para os interesses de quem já é forte e privilegiado.
Os eleitores votam esperando que o escolhido faça a coisa certa, uma vez chegado ao poder. É impensável que alguém vote intencionalmente para eleger um mau governante. Espera-se que os governantes sirvam ao seu povo, protejam a população e trabalhem de forma abnegada para proporcionar condições de convivência digna e um futuro bom para todos. A boa política é, pois, um dever inerente ao mandato, uma responsabilidade e um desfio permanente para quem governa.
Boa política é aquela que consegue conciliar o necessário desenvolvimento econômico com a demanda por justiça e solidariedade social. Os fechamentos nacionalistas podem ser uma tentação fácil para conquistar consensos e apoios, mas eles são prejudiciais à edificação da verdadeira fraternidade, tão necessária no mundo globalizado. Fechar-se aos migrantes e refugiados é privá-los de esperança e das forças necessárias para superarem os sofrimentos que carregam.
A política não deve ser inspirada em motivações mesquinhas e particularistas, mas em ideais e valores elevados, como a dignidade humana, a equidade, a justiça, a solidariedade social. Essas motivações e esses valores elevados oferecem base sólida para governantes e governados, para quem apoia o governo e quem está na oposição. Sustentada e orientada por esses ideais e propósitos, a boa política será, na prática, a arte do possível numa sociedade pluralista e complexa.
O papa Francisco não deixou de incluir entre as boas políticas duas questões cruciais, indispensáveis para a verdadeira paz: o cuidado do meio ambiente, para manter boa e habitável a “casa comum” de toda a comunidade humana, e a atenção especial às novas gerações. Crianças e jovens serão herdeiros do patrimônio social e cultural que hoje construímos. Que não sejam vítimas de nossas más políticas! Eles têm o direito de alimentar seu sonho e sua esperança.
Só nos resta, pois, desejar ao novo presidente e aos demais Poderes da República, como também a todas as forças políticas, sociais, econômicas e culturais, um período de boa política para que o nosso país fortaleça as bases para a verdadeira paz.
Sonhar nunca é demais.
*DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Luiz Carlos Azedo: A passagem de comando
“Manifestações recentes dos comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, sobre a reforma da Previdência revelam um ativismo político preocupante”
De todas as solenidades já realizadas no governo Bolsonaro, com exceção da posse do próprio presidente da República, talvez nenhuma outra mereça mais atenção como a passagem de comando da Força Terrestre, hoje, no Clube do Exército, ocasião em que o general Eduardo Villas Boas passará o bastão de comando do Exército para seu colega Edson Leal Pujol. Não deveria ser assim, mas é o que a realidade nos mostra, em razão da presença hegemônica de generais de quatro estrelas no novo ministério e do próprio papel que Villas Boas desempenhou nos últimos quatro anos, como discreto fiador do impeachment de Dilma Rousseff e, sabe-se agora, de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o processo eleitoral, entre as quais a manutenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cadeia.
Villas Boas encerra sua carreira militar em precárias condições físicas, em razão de uma grave doença degenerativa, mas em pleno gozo de suas faculdades mentais. O que parecia ser um fator de desgaste e enfraquecimento de sua liderança, a deterioração de sua saúde, que o levou à cadeira de rodas, com o passar do tempo, aliada ao esforço de se fazer presente nos momentos mais importantes, se comunicar diariamente com a tropa e a sociedade pelas redes sociais e se manter em permanente diálogo com as principais autoridades do país, acabou aumentando o seu carisma na tropa e lhe reservou um lugar de honra na galeria de líderes militares reconhecidos e respeitados pela sociedade.
Por duas vezes, teve a História do país nas mãos. A primeira, durante a campanha do impeachment, quando impediu que a então presidente Dilma Rousseff decretasse o estado de sítio para reprimir a oposição; a segunda, mais recentemente, durante a campanha eleitoral, em pelo menos dois episódios que poderiam ter gerado insubordinação nos quartéis, o habeas corpus concedido ao ex-presidente Lula e a facada em Jair Bolsonaro. Nos bastidores da crise econômica, ética e política que o país enfrentou, reiterou o papel dos militares na manutenção da estabilidade, da legalidade e da legitimidade, bem como a defesa da Constituição Federal.
Entretanto, a história ainda julgará as consequências de sua intervenção no episódio do julgamento do habeas corpus de Lula, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 3 de abril do ano passado, quando deixou os bastidores para se manifestar publicamente sobre aquele momento político nas redes sociais: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, escreveu no Twitter oficial de comandante do Exército brasileiro. Depois, completou: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Ovo da serpente
Essas declarações foram repudiadas pelo decano do Supremo, Celso de Mello, que comparou Villas Boas a Floriano Peixoto, o segundo presidente da República, que ficou conhecido como “marechal de ferro” por governar em regime de estado de sítio. Em seu voto a favor da concessão do habeas corpus, que acabou rejeitado pela maioria, o ministro disse que as declarações eram “claramente infringentes do princípio da separação de poderes” e pareciam “prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional”.
“A nossa própria experiência histórica revela-nos — e também nos adverte — que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente (República de Weimar), descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que desrespeitam a autoridade suprema da Constituição e das leis da República!”, disse Celso de Mello, que completou: “As intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais”.
O general Leal Pujol, o mais antigo do Alto-Comando, assumirá o Exército num contexto completamente diferente. Entretanto, manifestações recentes dos demais comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, sobre a reforma da Previdência, revelam um ativismo político preocupante, nem tanto pela defesa de privilégios, mas porque sinalizam certa tutela sobre o próprio governo e demais poderes, a partir de interesses corporativos. Historicamente, esse costuma ser o primeiro degrau da anarquia nas Forças Armadas.
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Valor Econômico: Derrotados nas eleições tentam manter influência no jogo político
Por Amália Safatle, do Valor Econômico
O escritor e jornalista britânico George Orwell dizia que a história é contada pelos vencedores. Ouvir os perdedores, no entanto, ajuda a compreender o fim de um ciclo no Brasil, que varreu nomes históricos (ao menos temporariamente), levou a uma renovação de 53% na Câmara e de 85% no Senado e inaugura, no período pós-eleições de 2018, um novo cenário político.
Na campanha eleitoral pautada pela rejeição a partidos, a políticos tradicionais e ao sistema vigente, venceu quem teve o menor descrédito e ocupou o vácuo de um centro que se esvaziou. Os perdedores foram, portanto, elemento definidor nos resultados das eleições, a começar da Presidência da República.
"Noventa milhões não votaram em [Jair] Bolsonaro, mas é preciso fazer um registro importante: 100 milhões não votaram no PT. Ou seja, o presidente foi eleito porque sua rejeição foi menor do que a petista", afirma o analista político Carlos Melo, professor do Insper. Octavio Amorim Neto, professor titular da Fundação Getulio Vargas do Rio, emenda: "No desabamento completo do centro político brasileiro, quem preencheu o vácuo foi Bolsonaro".
O fato de os perdedores estarem sem mandato não os tira do jogo a partir de agora. Alguns nomes, por meio de seus partidos e possíveis articulações e composições, funcionarão como peso e contrapeso, moldando as condições de governabilidade e a capacidade de sucesso do novo governo.
O jogo começará efetivamente no dia 1º, quando toma posse o novo Congresso. "Como teremos uma Câmara absolutamente fragmentária e um Senado que renovou 85%, haverá uma inexperiência brutal", afirma Ciro Gomes, candidato derrotado à Presidência da República pelo PDT e que integra o bloco de oposição. "Se fizermos um movimento competente, poderemos forçar Bolsonaro ao jogo democrático. Estimulá-lo, mas ao mesmo tempo garantir, se for necessário, a imposição desse jogo a ele. E é disso que nós estamos cuidando."
O "nós" incluía, até o mês passado, PSB, PCdoB, PDT e Rede, que conta com apenas um deputado, mas cinco senadores. Após a derrota acachapante de Marina Silva na eleição presidencial de 2018, o Rede, de futuro incerto, cogita uma fusão com o PPS, assunto que será tema de congresso do partido a ser realizado neste mês.
"Diante de riscos imediatos pela invocação que Bolsonaro faz contra questões muito importantes no processo político e civilizatório de qualquer nação, há necessidade de fazer uma oposição democrática", diz Marina. Para ela, trata-se de não sabotar ou torcer pelo "quanto pior, melhor". "Oposição contribui para o governo sendo oposição", resume.
Ciro diz que quer fazer oposição em outro plano. "Não em cima do desastre, porque o desastre não me ajuda. O desastre ajuda a fortalecer quem deu a Bolsonaro essa vitória, o PT." Ele afirma que aceitaria apoiar a reeleição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), desde que haja um compromisso com três agendas centrais: garantir a democracia, perseguir o interesse nacional e proteger os pobres, temas de um livro de sua autoria, que estava sendo finalizado em dezembro. "Quer dizer que Maia tem de romper com Bolsonaro? Não, [quem diria] isso é o PT! Achamos completamente legítimo que Maia dialogue com o presidente da República."
Marina Silva defende que não se deve ter uma ansiedade tóxica sobre quem comandará a oposição. "Não precisa ter um centro fixo para um partido, para uma liderança. Senão você enfraquece a própria ação", diz a professora e ex-candidata que retomou a rotina de aulas e palestras. Ela entende a frente como "um processo multicêntrico de contribuições", ou seja, "em alguns momentos haverá alguém que terá uma fala com maior legitimidade, e essa fala se intercalará com outras".
O governo assume sob uma situação econômica ainda adversa, já constrangido por suspeitas de desvios levantadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e diante de uma população ávida por saúde, emprego, combate à corrupção, segurança e educação, conforme pesquisa Ibope divulgada no mês passado. "Uma parcela da população votou em Bolsonaro porque deseja respostas rápidas. Se tivesse paciência, teria votado em Geraldo Alckmin [PSDB]", diz Melo.
Nesse contexto, Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora aposentada do Departamento de Ciência Política da USP, lembra que o presidente Bolsonaro formou seu ministério sem negociar com os partidos que o apoiam, cumprindo uma promessa de campanha. Cita estudos de Octavio Amorim Neto, segundo os quais governos compostos dessa maneira, independentemente da qualidade dos escolhidos, são mais frágeis e sujeitos a crise na medida em que não possuem uma base firme no Legislativo. "Foi o que aconteceu no final do governo João Goulart e durante o governo Fernando Collor, dois presidentes que não completaram seu mandato", afirma.
"No começo, governar assim é perfeitamente possível. Jânio Quadros fez isso, Fernando Collor fez isso. Mas, a partir de um certo momento, os presidentes vão sentindo a necessidade de uma integração maior com o poder político, com o Congresso Nacional", diz o veterano Edison Lobão (MDB-MA), que acumulou 32 anos de mandatos no Congresso, governou o Estado do Maranhão, foi ministro em dois governos, presidiu o Senado Federal - e não se reelegeu senador em outubro.
Em seu currículo consta também a Emenda Lobão, que restabeleceu as eleições diretas de governadores e senadores a partir de 1982, mas ele mesmo se absteve na votação das Diretas-Já para Presidência da República por considerar que "era necessário haver mais segurança na consolidação do processo". Hoje, diante da gestão Bolsonaro, Lobão questiona: "Quero saber até que ponto o presidente conduzirá o governo com essa linha de atuação".
O professor de relações internacionais da USP José Augusto Guilhon-Albuquerque considera que será necessário articular uma coalizão estável em torno de um programa mínimo de objetivos. "Bolsonaro já está aprendendo a fazer política politiqueira, dificilmente fará as reformas vitais e terá de negociar no dia a dia, com um alto custo e aumento da insatisfação popular."
Para o cientista político, a indignação do povo continuará a piorar, porque é praticamente impossível para o novo governo resolver problemas essenciais que atingem de imediato o homem comum e só podem apresentar resultados a longo prazo. Guilhon diz não acreditar que haverá lua de mel.
"Não esqueçamos que o desgaste de Dilma [Rousseff] começou na noite da apuração e só foi aumentando até a posse."
Segundo pesquisa do Datafolha, no entanto, 65% dos entrevistados acham que a situação econômica do Brasil vai melhorar nos próximos meses, ante apenas 23% que diziam isso no levantamento anterior, de agosto de 2018. É o mais alto índice de uma série histórica que começa em 1997, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Segundo pesquisa CNI/Ibope, a expectativa de 64% dos brasileiros é de que governo Bolsonaro será ótimo ou bom. Desse percentual, 39% dizem acreditar que a futura administração será ótima e 25%, boa. Para 18%, o governo será regular; para 4%, ruim; e para outros 10%, péssimo.
Sobre o apoio formal do MDB ao governo eleito, Lobão diz que o partido tem sido parte do equilíbrio democrático e trabalha pela governabilidade. "Dependendo do convite que possa vir, não se furtará a ajudar o governo que chega com ideias, em muitos casos, parecidas com as do partido." Já o correligionário Eunício Oliveira (MDB-CE), que ocupa a presidência do Senado e também não se elegeu, preferiu não conceder entrevista. Um interlocutor afirmou, no entanto, que Eunício defendia que o MDB "se desgovernasse" por um tempo, para se afastar da imagem de "partido do governo", e então repense e se reestruture politicamente.
"Eunício está se reorganizando mentalmente para a política. E ainda não se desapegou das funções no Senado", disse a fonte. Enquanto isso, prossegue o interlocutor, Eunício deverá manter-se na função de tesoureiro do partido, tendo o senador Romero Jucá como presidente e o ex-presidente Michel Temer como presidente de honra. Será preciso ver, no entanto, os desdobramentos da Lava-Jato sobre integrantes do MDB, como Lobão, Temer e Jucá, ainda mais considerando a aprovação por comissão da Câmara, em dezembro, do fim do foro privilegiado para crimes comuns. Isso faz com que ministros, parlamentares, governadores e prefeitos possam ser processados na Justiça de primeira instância.
Sobre a Lava-Jato, Lobão afirma que em relação a ele "existem investigações, algumas arquivadas por absoluta falta de provas. E outras em curso. Se há uma delação, é preciso uma investigação para mostrar que a delação não procede". Dos seus 82 anos, diz que contribuirá com o partido como puder, oferecendo sua experiência por meio de aconselhamentos e opiniões. "Entendo que a política é exercida não apenas pelo detentor de mandatos eletivos, mas por quem tem vocação. Sairei do mandato, mas não da política."
Para Amorim Neto, não se pode esquecer a frase do historiador e sociólogo brasileiro Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951): "A história do Brasil é um museu de elite". Com isso, o professor da FGV quer dizer que as elites brasileiras não são totalmente superadas como no modelo europeu, em que a aristocracia é varrida do mapa e surgem novos atores. "Aqui, não. As velhas elites são preservadas de alguma maneira." Muita gente, principalmente de uma geração mais antiga, vai aposentar-se, mas, a seu ver, a capacidade de perdedores ressurgirem das cinzas dependerá muito do desempenho do governo federal e da situação dos políticos em seus respectivos Estados.
"Se, por exemplo, a gestão de Wilson Witzel [PSC-RJ, eleito governador do Rio] der errado rapidamente, não é impossível que eleitores voltem a sentir saudades do MDB, que teve Eduardo Paes como candidato derrotado à reeleição. Além disso, quadros relativamente novos, como os ex-senadores Lindbergh Farias [PT-RJ] e Vanessa Grazziotin [PCdoB-AM] têm mais chance de retornar", afirma Amorim.
Já Carlos Melo entende que se encerrou um ciclo, sem que o novo ainda tenha se consolidado. É possível que líderes como Romero Jucá, senador derrotado em Roraima, voltem a ganhar a eleição no seu Estado. "Regionalmente esses homens são capazes de se articular, dado o fracasso de seus sucessores. Jucá pode tornar a ser senador por causa do caciquismo regional. Mas voltará a ter a mesma mobilidade que tinha no Senado?"
Essa questão é, para o cientista político, uma incógnita, pois, por mais que tenha elementos para analisar como o senador pensa e age, Melo não faz ideia das características que o Senado terá daqui a quatro ou oito anos. "Gosto muito da frase 'Nada é, tudo flui', do [cientista político] Sérgio Abranches no livro 'A Era do Imprevisto'. As instituições estão se alterando, ficando muito diferentes em relação ao que esses atores aprenderam sobre elas. Estarão eles capacitados para voltar a atuar nessas instituições? Creio que não."
Melo lembra da acirrada eleição de 2014 entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) e compara com a situação em que esses políticos estão hoje. A ex-presidente da República, derrotada no próprio Estado, não conseguiu vaga para o Senado mineiro, enquanto Aécio teve de buscar um cargo de deputado federal para se proteger de denúncias com o foro privilegiado. Eram atores relevantes que "evaporaram" em apenas quatro anos.
De lá para cá houve fatos como Lava-Jato e impeachment, mas o professor do Insper atribui a velocidade da mudança, em grande parte, a transformações de caráter estrutural provocadas pela tecnologia digital. Passou a haver, de forma inédita, um uso massivo no campo político de canais como WhatsApp e redes sociais, eliminando intermediários, rompendo hierarquias e horizontalizando o poder, sem falar no peso da disseminação das notícias falsas.
Trata-se, a seu ver, de um fenômeno capaz de alterar instituições e configurações de liderança. Mais que fechar ciclos, essas mudanças provocam a necessidade de transição geracional. "Quem será o próximo líder do PT em dez anos? Não será Lula, e ninguém pode garantir que será [o candidato derrotado à Presidência Fernando] Haddad. Aliás, não se pode nem mesmo garantir que haverá PT nos próximos dez anos. Mas há dez anos você podia garantir que o PT continuaria existindo", afirma.
O professor ainda cita outros casos: Leonel Brizola, Mário Covas e Ulysses Guimarães eram políticos com grande ascendência sobre os seus liderados. "Hoje, Ciro não tem a ascendência sobre o PDT que o Brizola tinha. Alckmin não tem a ascendência sobre o PSDB que Covas tinha. Aliás, este é um dos motivos da crise política", avalia.
Para Cássio Cunha Lima (PSDB-PE), derrotado na reeleição ao Senado, os partidos em geral terão de se repensar porque perderam muita importância com as redes sociais. "Cada um com seu smartphone encontra seu nicho de pensamento e forma sua corrente política. Bolsonaro é presidente do Brasil ao largo dos partidos políticos. O partido político surgiu no século XIX a partir de pessoas com interesses, como os trabalhistas, convergindo ideias e temas. Hoje, as pessoas convergem pelas redes, e os partidos começam a ficar tontos nesse processo. O Congresso é analógico, mas a sociedade é digital", afirma o ex-senador, que a partir de 2019 pretende voltar a advogar e prestar consultoria nos temas de gestão de crise.
O Congresso fragmentado do ponto de vista partidário requererá grande trabalho de articulação para constituir maiorias em apoio às propostas do governo, na visão de Maria Hermínia. "A gestão da economia e da questão fiscal, central para o êxito do governo, exigirá muita coordenação e negociação política, sobretudo porque esse governo tem uma agenda de reformas econômicas bastante ambiciosa, muitas delas requerem reforma constitucional, de difícil execução simultânea mesmo para um ministro mais familiarizado com o Congresso ou com os meandros da administração pública", diz a cientista política.
O ponto mais sensível será a reforma da Previdência, crucial para o sucesso do governo estreante, como ressalta Argelina Figueiredo, doutora em ciência política pela Universidade de Chicago. "Reformar a Previdência é o que nós, cientistas políticos, chamamos de 'política politicamente inviável', porque afeta camadas muito grandes da sociedade e impõe algumas perdas para obter benefícios futuros."
Argelina diz acreditar em uma boa vontade inicial dos partidos opositores em relação ao novo governo, lembrando que eles nunca foram obstáculo a nenhum governo. "A oposição feita ao Collor, por exemplo, não chegou a paralisar o governo nem mesmo em relação à drástica medida do confisco da poupança. Embora determinado por Medida Provisória, o Congresso poderia, a rigor, ter barrado, e mesmo quem não participava do núcleo eleito foi minorando os efeitos do confisco sem tomar uma atitude radical."
Cunha Lima também diz acreditar que nos primeiros meses não haverá problemas de governabilidade. "A tradição brasileira é de absoluta boa vontade com os governos legitimados pelas urnas. Bolsonaro chega ao Palácio do Planalto com 57 milhões de votos e, num primeiro momento, ninguém vai brigar com essa decisão do eleitor", afirma.
Após conversas internas e com o presidente no fim de 2018, o PSDB procurou afastar as ambiguidades, depois de uma campanha eleitoral que bateu duramente no candidato Bolsonaro. "Não podemos errar, o partido tem que ter clareza na posição de contribuição com o próximo governo, até por uma questão de brasilidade e também do interesse majoritário dos nossos eleitores", afirma Antônio Imbassahy [PSDB-BA].
Derrotado na reeleição à Câmara, o deputado diz ainda não ter definido posição em relação às suas próximas atividades na vida pública. "Após o encontro que tivemos com Bolsonaro [em novembro], medimos as redes sociais e houve uma aceitação extraordinária, fenomenal, excelente. A população está nessa direção, de ajudar o cara, ajudar o país", afirma. Procurado pela reportagem, Geraldo Alckmin, presidente nacional do partido, disse que não concederia entrevista neste momento.
Para Cunha Lima, o esforço será para preservar o PSDB coeso. "Existe uma nova realidade na composição de forças partidárias com a eleição do governador João Doria [em São Paulo]. No momento em que ele é o grande vencedor do partido, precisa de um papel de maior destaque. A política, como na vida: quem ganha leva. E quem ganhou foi João Doria", afirma. "Agora, caberá a ele, como vencedor, ter a grandeza de saber conduzir essa vitória para agregar e somar com os tucanos fundadores do partido, que já deram contribuição muito grande. [A coesão] vai depender muito dele, da forma como conduzirá esse processo."
O senador diferencia o PSDB do histórico inimigo PT: "Não faremos uma oposição irracional, cega, como a que deverá ser feita pelo PT.
Igualmente não seremos base incondicional do governo como o PSL. Vamos formar blocos na Câmara e no Senado para construir cada vez mais nossa posição de centro, sobretudo no campo econômico, e discutir outros temas de caráter comportamental, de relação com a sociedade. O espírito será de colaboração", afirma. "Vai ficar, a meu ver, o PT isolado em uma posição mais extremada."
Ciro Gomes diz que o PT não está descartado da frente de oposição. Reconhece a força de uma sigla que tem 56 deputados e conta com boas lideranças livres de escândalos, como Olívio Dutra, Tarso Genro, Henrique Fontana e Miguel Rossetto. Mas o que não aceita é sua hegemonia. O ex-ministro, no entanto, é mais crítico do MDB: "Isso é uma quadrilha. Vai chantagear no atacado e dividir no particular. Quanto a Jarbas Vasconcelos [eleito senador], se bem conheço sua história, não acho razoável que vá se somar a uma agenda maluca de Bolsonaro. O Eunício Oliveira não vem. E Renan Calheiros está assim [faz zigue-zague com a mão], não entendeu nada e quer ser presidente do Senado com o beneplácito nosso e do Bolsonaro". Já Roberto Requião (MDB-PR), derrotado na reeleição ao Senado, deve compor o bloco de oposição.
Requião afirma que caberá a essa frente "fazer a crítica e tentar impedir barbaridades" do governo. Diz que poderia contribuir com ideias, mas se houvesse disposição ao diálogo. "Bolsonaro diz a mesma coisa há 27 anos. Como você pretende reeducá-lo? Que ideias ele aceita? Como acabar com o MST, em cruz de madeira ou câmara de gás?", pergunta. Requião diz acreditar que contradições vão se estabelecer na gestão Bolsonaro: "Temos oficiais do Exército brasileiro. Esses direitistas nacionalistas vão concordar com a venda da Eletrobras, da Petrobras? Vejo um governo ancorado em uma visão sionista-cristã, suportado em algumas igrejas evangélicas e malucos, aderindo aos EUA e esquecendo o mundo, a América Latina, o Mercosul, a China. Só vejo disparates."
O senador não descartaria o PT. "Sem o PT não sai uma frente, pela capacidade de mobilização e organização. A sigla tem quadros valorosos, embora grandes culpas também." E bate na tecla: "Mas a hegemonia burocrática do PT, jamais".
Ao defender algumas medidas petistas, diz que sofreu o efeito colateral do processo de derrocada. "Sou militante, não me arrependo de nada, o que fiz faria de novo mesmo sabendo que perderia a eleição", diz ele, contando que continuará fazendo política por meio da participação em conferências no país e exterior.
Em entrevista publicada no Valor no mês passado, Haddad disse ser difícil o PT ter um bloco monolítico de oposição. "Precisaremos ter a agilidade necessária para angariar apoio e evitar retrocessos drásticos. Talvez sejamos minoritários no Congresso sobre temas como a venda da Embraer, mas em relação a direitos civis, talvez sejamos majoritários."
Marina Silva vê a campanha eleitoral de 2014 - já turbinada por notícias falsas, as fake news, e dinheiro de corrupção - como o início do processo que culminou em Bolsonaro: "Em 2018, isso se aprofundou e os criadores [PT] acabaram tragados pela criatura. Por isso eu digo, não invente inimigos para derrotá-los. Ajude a ter amigos para poder ser conquistado ou conquistá-los".
Para Argelina Figueiredo, o que a oposição derrotada nestas eleições precisará fazer é recompor a centro-esquerda, da qual o PT, a seu ver, não poderá ser alijado. "A esquerda tem de ocupar esse centro, até porque há tempos já vinha se dirigindo para essa posição. A eleição de 2018 comprovou: enquanto a direita migrou radicalmente para o extremo, os votos de partidos mais à esquerda não estavam no extremo oposto", avalia.
A cientista diz acreditar que a oposição não precisa ter uma unidade de pensamento, mas sim uma ação concertada e com muito foco. "Não adianta ficar na crítica geral e superficial, é necessário atacar os pontos certos, para angariar algum apoio da população. Como se trata de um governo bem à direita, o papel da oposição será muito importante para colocar limites a certas ações", afirma.
Amorim Neto também vê como fundamental a oposição democrática centrista para evitar o que ocorreu na Venezuela, onde os centristas entraram em depressão e não apenas se tornaram minoritários, se retiraram da política. "O vácuo centrista deixa o campo político exclusivamente ocupado pela extrema-direita e pela extrema-esquerda, com os quais não há diálogo possível. Por isso, mesmo que seja pequena, a oposição centrista brasileira tem de se fazer relevante. E aí vai depender habilidade política e da capacidade de se sintonizar com os clamores da população, atendendo eleitores que estão dispostos a ouvir um discurso mais racional, baseado em fatos."
Isso inclui aprender a lidar com os novos instrumentos de comunicação via rede social, mas não só. Para promover essa reconexão, Argelina entende que a centro-esquerda precisará voltar a cultivar valores e bandeiras que vão além da inclusão social pelo consumo, tais como cidadania, igualdade de oportunidades e solidariedade - da mesma forma que a direita soube cultivar o valor do patriotismo. Além disso, diz ela, o PT terá de estimular a renovação das lideranças, diante de um grande perdedor de 2018, o ex-presidente Lula.
Mas o pêndulo da política é dinâmico. "Hoje, quem Bolsonaro chamar, vai [apoiá-lo], porque o poder é grande. Mas vai para fazer o que foi feito com a Dilma?", questiona Ciro Gomes. Ele lembra quando Dilma estava fazendo a "faxina" de um governo que havia herdado, no intuito de atacar os malfeitos.
"Disse naquela época que isso daria errado. Quando a pessoa acaba de se eleger, todo mundo se encolhe, contemporiza. Mas, na hora que tiver uma crisezinha e virar a esquina, essas unhas todas vêm na goela dela. Não deu outra. Não porque sou profeta, é porque é uma obviedade."
Nota Redação: na versão impressa, este texto foi publicado com o título A política dos perdedores
Alon Feuerwerker: Fazer o simples. O arroz com feijão do governo Bolsonaro no curto prazo. E o da oposição
Se você fosse chamado a opinar sobre os passos mais óbvios do governo e da oposição no curto prazo diria o quê? Eu diria que o governo:
1) Não pode se dar ao luxo de aparecer como derrotado na disputa das presidências da Câmara e do Senado. O presidente tem potencial maioria em cada uma das casas. Se a coisa desandar, antes de ser trágico será ridículo. O custo político de passar reformas vai subir exponencialmente. E será só o começo.
2) No que estiver ao alcance dele, o presidente precisa cuidar de se recuperar da nova cirurgia. A montagem do governo reuniu gente muito sedenta de protagonismo. Se com o presidente na ativa já se nota propensão centrífuga, sem ele por muito tempo seria forte o estímulo para exacerbar a confusão.
3) O governo precisa apresentar uma reforma da previdência que atenda o mercado e tenha viabilidade política. É possível no começo do governo aprovar alguma reforma da previdência crível ao mercado, mesmo sem distribuir cargos pelos partidos ou liberar verbas orçamentárias para as bases dos parlamentares. Lula fez isso em 2003.
4) Precisa mostrar alguma coordenação na comunicação. A comunicação oficial tem sido boa para manter a base social coesa e mobilizada, mas é também uma usina de pautas negativas. Não chega a ser problema maior no curto prazo, mas sempre cobra uma conta depois de certo tempo. Assim como no boxe, apanhar o tempo todo costuma ter consequências.
5) Precisa minimizar o ruído internacional. O governo brasileiro fala duro e parece subestimar o trabalho de explicar ao mundo por que sua política seria boa para o mundo. Segue a linha Trump. Vladimir Putin adotou a política do “big stick”. Xi Jinping apresenta os interesses da China como se fossem os do universo.
Já a oposição:
1) Não pode se deixar esmagar na composição das mesas da Câmara e do Senado. A repetição de 2015, que deu Eduardo Cunha e a exclusão do PT da mesa da Câmara, será um desastre. Também desastroso será a esquerda dar a impressão de estar associada ao bolsonarismo. O melhor para a oposição seriam composições institucionais nas duas casas.
2) Não pode se dispersar e perder a identidade na disputa das mesas do Congresso. Uma sucessão institucional permitiria à esquerda participar das mesas sem aparentar linha auxiliar do governo. Isso talvez não interesse ao governo. Mas os principais candidatos na Câmara e no Senado podem ter interesse nessa saída. Aliás, se o governo raciocinar talvez conclua que é bom para ele também.
3) Precisa ter proposta ou propostas alternativas para a reforma da previdência, com foco em setores privilegiados do Estado. A esquerda tem governadores desesperados por uma reforma da previdência que ajude a evitar a falência de seus estados. O governo vai explorar isso, então é preciso entrar no debate com alternativas.
4) Precisa elaborar crítica consistente e propor ações que se oponham à política externa e à política educacional do governo. Até agora a crítica a essas duas políticas resume-se ao “nossa, que absurdo”. Na educação, é preciso mostrar os caminhos para o ensino, especialmente o fundamental, melhorar muito e rapidamente.
5) Precisa de ideias sobre como enfrentar a crise da segurança pública. A atual doutrina de enfrentamento do crime desmoralizou-se porque não está funcionando. O governo elegeu-se também por ter ideias para resolver o problema. Quais são as ideias da oposição, além de continuar aplicando o que não está funcionando?
É como no futebol. Na dúvida, uma saída é tentar fazer o simples.
E você, acha o quê?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação