política
Marco Aurélio Nogueira: Oliveiros Ferreira, uma ausência sentida
Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor
Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo
Nos momentos mais agudos de crise e confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.
Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), que faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta. Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las, transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.
Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor. Trabalhou também como professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.
Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.
Em seu pensamento, a teoria social, as relações internacionais, a História e a política mantinham-se sempre articuladas. Estava convencido de que não pode haver teoria política sem Sociologia, o “nacional” é sempre parte do “global” e os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se
Hoje, o intelectual poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista ‘prostituiu’ o Estado e suas instituições
dão”, da “densidade e do volume dos grupos sociais” que se relacionam e lutam entre si.
Em momentos de crise como o que enfrentamos hoje, a teorização de Oliveiros é esclarecedora. A dominação política não se reduz a posses materiais e uso da força. Domina quem exerce uma “direção intelectual e moral” (Gramsci), ou seja, unifica pensamento e vida prática, emoções, valores e interesses, de modo a soldar “as experiências de vida num projeto votado a transformar o mundo, ou a conservá-lo aparentemente como tal”, escreveu Oliveiros.
Assim ele chegava ao Estado, o ente que organiza, define uma ordem normativa, garante a soberania. O Estado, para ele, era unidade de decisão e ação, mas também um “espaço” onde as classes sociais lutavam para se tornar dirigentes, ou seja, um lócus de disputa hegemônica, no qual venciam os que conseguissem elaborar uma concepção do mundo que alcançasse o “grande número” e neutralizasse os adversários.
Oliveiros foi um unitarista preocupado em ver o Estado como articulador da sociedade, defensor de seu território e de seu patrimônio. Pensou a política a partir desse registro, sem nunca aceitar que em nome da unidade estatal (ou do “amor pela Pátria”) se aniquilassem as diversidades regionais, a cultura e a democracia.
Para ele, no Brasil, as classes sociais não souberam unir politicamente o País e sobrecarregaram o Estado. Passamos a viver sob a sombra ameaçadora de ditaduras e guinadas autoritárias. Com isso, um pedaço da estrutura estatal – os “militares” – terminou por agir com maior desenvoltura política, como Oliveiros salientou no livro Os elos partidos (2007).
Após a democratização dos anos 1980, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e o País enveredou por trilhas inquietantes. Piorou com a eleição, em 2018, de um governo que age sem responsabilidade, limites e escrúpulos. Oliveiros poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista “prostituiu” o Estado e suas instituições. A política deixou de fixar grandes objetivos nacionais com que alimentar os órgãos do Estado e, por meio deles, chegar à população. Oliveiros estaria atento aos fatos, mobilizando sua “dialética da Ordem” para analisar o que muda e como pode mudar a realidade.
Hoje, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional: a organização autônoma da sociedade e a articulação entre Estado e vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro”.
Oliveiros ajudou-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos. Foi uma referência para jornalistas e cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais sem esquemas atrofiadores. Sua ausência faz uma falta danada.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,oliveiros-ferreira-uma-ausencia-sentida,70003876927
Luiz Carlos Azedo: O indiciamento de Bolsonaro
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense / Estado de Minas
Antes mesmo de ser indiciado pela CPI do Senado que investiga a atuação do governo durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19), o presidente Jair Bolsonaro sentiu o golpe. No cercadinho do Palácio da Alvorada, onde manda seus recados por meio de apoiadores e da imprensa, chamou de “bandido” o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que pretende lhe imputar 11 crimes, sendo três gravíssimos: homicídio, crime contra a humanidade e genocídio. “O que nós gastamos com auxílio emergencial foi o equivalente a 13 anos de Bolsa Família. Tem cara que critica ainda. O Renan me chama de homicida. Um bandido daquele. Bandido é elogio para ele. O Renan está achando que eu não vou dormir porque está me chamando de homicida, está de sacanagem”, estrilou.
No cronograma da CPI, o relatório será apresentado na terça e votado na quarta-feira, o que promete uma semana quente no Senado. A tropa de choque do governo deve se mobilizar para barrar o relatório, que proporá o indiciamento da cadeia de comando do governo no auge da pandemia, ou seja, entre outros, do então ministro da Casa Civil, general Braga Netto, hoje ministro da Defesa; do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do seu ex-secretário-executivo Élcio Franco, aquele da faca ensanguentada na lapela — além do presidente Bolsonaro e dos supostos integrantes do chamado “gabinete paralelo”, o que inclui seus filhos Flávio, senador; Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador carioca; o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); o deputado Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro da Cidadania; e os médicos Paolo Zanotto e Nise Yamaguchi.
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais. Existe uma maioria robusta para aprovação de um relatório consistente; dificilmente, porém, haverá maioria para a imputação do crime de genocídio a Bolsonaro. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por exemplo, defende o foco na cadeia de comando e o indiciamento apenas naqueles crimes sobre os quais há provas irrefutáveis. Delegado de Polícia Civil, tem experiência no ramo. A CPI não é um tribunal, é uma comissão de inquérito; seu relatório será remetido a diversas esferas, da Justiça de primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF); do Tribunal de Contas da União (TCU) à Procuradoria-Geral da República (PGR), da Receita Federal à Polícia Federal.
Genocídio
“O que passa na cabeça do Renan Calheiros naquela CPI? Eu vi que… O que passa na cabeça dele com esse indiciamento? Esse indiciamento, para o mundo todo, vai que eu sou homicida. Eu não vi nenhum chefe de Estado ser acusado de homicida no Brasil por causa da pandemia. E olha que eu dei dinheiro para todos eles (governadores)”, disse Bolsonaro, traindo o temor de que essa venha a se tornar a maior dor de cabeça de sua vida. Uma coisa é responder às acusações na Presidência, outra é ter que fazê-lo, caso não seja reeleito, na planície, como simples cidadão.
São acusações pesadas: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; genocídio de indígenas; crime contra a humanidade; crime de responsabilidade, por violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo; e homicídio comissivo por omissão no enfrentamento da pandemia. Como o relatório da CPI será acolhido no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda? Criado pelo Tratado de Roma, em 1998, o órgão ligado à ONU foi ratificado por 66 países, entre os quais o Brasil. A imagem internacional de Bolsonaro é péssima.
A Corte tem competência para julgar os chamados crimes contra a humanidade, assim como os crimes de guerra, de genocídio e de agressão. O Estatuto define genocídio como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Crime contra a humanidade é “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque” (por exemplo, “práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas”).
Luiz Carlos Azedo: A culpa é da Petrobras
Bolsonaro ameaçou privatizar a empresa, um velho projeto do ministro da Economia, Paulo Guedes, que pode ganhar apoio popular por causa dos preços dos combustíveis
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Entrevistado por uma rádio evangélica do Recife, ontem, o presidente Jair Bolsonaro deu a sua maior e mais polêmica cartada para a reeleição até agora: a proposta de privatização da Petrobras. Dogma imexível da política brasileira, o tema teve um papel decisivo na derrota do candidato tucano Geraldo Alckmin à Presidência em 2006, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja reeleição estava em risco por causa do escândalo do mensalão. Governador de São Paulo e pré-candidato, Alckmin (PS- DB), em entrevista ao Canal Livre, da Band, dissera ser favorável às privatizações de estatais brasileiras, desde que o processo fosse amplamente fiscalizado e embasado por um marco regulatório robusto.
“Inúmeras áreas da Petrobras que não são o core (núcleo do negócio), o centro, objetivo principal, tudo isso pode ser privatizado. E se tivermos um bom marco regulatório, você pode até no futuro privatizar tudo, sem nenhum problema”, disse à época. Alckmin passou o resto da campanha tentando se desdizer, porque o marqueteiro de Lula, João Santana, transformou a questão num divisor de águas da eleição. Não havia o escândalo do “Petrolão”, que viria à tona com a Operação Lava-Jato, e, grande ironia, resultaria nas prisões de João Santana e de Lula.
A Petrobras é o maior símbolo do nosso modelo nacional desenvolvimentista. Sua criação resultou de uma campanha popular que representou o auge do nacionalismo na história republicana e contou com forte apoio dos militares. Um dos presidentes da empresa durante o regime militar, o general Ernesto Geisel, viria a suceder o general Emílio Médici na Presidência da República. As origens da Petrobras remontam à segunda metade da década de 1940. No Congresso formado em 1945, conservador, a maioria procurava apagar os traços autoritários do Estado Novo e revogar a legislação nacionalista do período.
No início de 1947, Eurico Dutra designou uma comissão para rever as leis existentes à luz da nova Constituição e definir as diretrizes para a exploração do petróleo. O anteprojeto do chamado Estatuto do Petróleo desagradou dos nacionalistas, que defendiam o monopólio estatal integral, aos grandes trustes. A reação nacionalista começou no Clube Militar e ganhou corpo com a criação do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo, que lançou a Campanha do Petróleo, com slogan “O petróleo é nosso”, em 1948, obtendo forte apoio de trabalhistas e comunistas. Dutra desistiu do Estatuto e optou pela construção das refinarias estatais de Mataripe (BA) e de Cubatão (SP), a construção do oleoduto Santos-São Paulo e a aquisição de uma frota nacional de petroleiros.
Eleito em 1950, Getúlio Vargas voltou ao poder no ano seguinte. Em dezembro, mandou ao Congresso o projeto de criação da “Petróleo Brasileiro S.A.”, a Petrobras, empresa de economia mista com controle majoritário da União. Curiosamente, não estabelecia o monopólio estatal. Entretanto, outro projeto, apresentado pelo deputado Eusébio Rocha, estabelecia o rígido monopólio estatal, vedando a participação estrangeira. Duas concessões foram feitas: as autorizações de funcionamento das refinarias privadas já existentes e a participação de empresas particulares, inclusive estrangeiras, na distribuição dos derivados de petróleo. Em 3 de outubro de 1953, depois de intensa mobilização popular, Vargas sancionou a Lei no 2.004, criando a Petróleo Brasileiro S. A – Petrobras.
Velho projeto
O tom com que Bolsonaro ameaçou privatizar a Petrobras foi de desabafo, mas esse é um velho projeto do ministro da Economia, Paulo Guedes, que pode ganhar apoio popular na atual conjuntura da economia: a alta de preços de combustíveis alavanca a inflação e a Petrobras não tem recursos para investir na exploração do pré-sal, ficando de fora dos leilões de poços de petróleo, além de não conseguir produzir diesel e gasolina suficientes para abastecer o mercado brasileiro.
“É muito fácil: aumentou a gasolina, culpa do Bolsonaro. Já tenho vontade de privatizar a Petrobras. Tenho vontade. Vou ver com a equipe econômica o que a gente pode fazer. O que acontece? Não posso controlar, melhor direcionar o preço, mas, quando aumenta, a culpa é minha apesar de ter zerado imposto federal”, disse o presidente da República. A repercussão das declarações no mercado foi imediata: no Ibovespa, principal índice da B3 (Bolsa de Valores de São Paulo), as ações da Petrobras chegaram a ter alta de 1,82% (ordiná- rias) e 1,99% (preferenciais).
Luiz Carlos Azedo: Escorregão na pauta ética
Reduzir o poder dos procuradores e contingenciar a autonomia do Ministério Público é um sonho de consumo dos políticos enrolados na Justiça
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Autor da Proposta de Emenda à Constituição 005-a, de 2021, que trata da composição do Conselho Nacional do Ministério Público, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) atravessou a rua para escorregar numa casca de banana. O pior é que pode arrastar na queda o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar da zona de conforto em que se encontra nas pesquisas de opinião. Se tem uma coisa que ainda pode atrapalhar a volta do PT ao poder, na garupa de Lula, é a pauta ética, um cavalo encilhado para levar ao segundo turno um candidato de centro, uma vez que essa bandeira saiu das mãos do presidente Jair Bolsonaro e está ao léu.
O CNMP é o órgão responsável por julgar procuradores e promotores. Nos últimos anos, por causa da Operação Lava-Jato, foi cenário de embates entre os procuradores da força-tarefa de Curitiba e os “garantistas” do mundo jurídico, uma ampla frente de advogados, juristas, magistrados e até procuradores preocupados com os dribles a mais dos chamados “tenentes de toga”, na expressão do cientista político Luiz Werneck Vianna. Chefe da força-tarefa de Curitiba e líder lavajatista, ao lado do então juiz federal Sergio Moro, Deltan Dallagnol chegou a ser punido com pena de censura por ter feito um post dizendo, antes das eleições para a Presidência do Senado, em 2019, que se Renan Calheiros vencesse a disputa, dificilmente o Brasil veria a aprovação de uma reforma contra a corrupção.
“Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não tem (sic) coragem de votar na luz do dia”, afirmou, no auge do apoio popular à Lava-Jato. Deltan também foi condenado a indenizar o senador alagoano, que hoje é o relator da CPI da Covid, em R$ 40 mil. Antes disso, já havia sido punido com uma advertência por ter criticado ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, o processo administrativo disciplinar de Deltan, pelo controverso PowerPoint de apresentação de denúncia que colocava o ex-presidente Lula no centro de uma organização criminosa, foi adiado 42 vezes antes de ser julgado e acabou prescrevendo.
A proposta aprovada pela comissão especial da Câmara propõe a redistribuição de vagas do CNMP. A Câmara e o Senado passarão a indicar quatro conselheiros, sendo um deles o vice-presidente, e outro, o corregedor. Outro ponto polêmico do texto permite que membros do conselho revisem atos funcionais de procuradores e promotores. Hoje, os membros do Ministério Público podem ser punidos pelo órgão, mas seus atos só podem ser modificados por decisão judicial. Na composição atual, o MP tem oito de 14 membros na corte — três membros do MP dos estados, quatro do MP da União e o procurador-geral da República, que preside o CNMP.
Pacto perverso
O projeto pôs em pé de guerra os “tenentes de toga”. Na sexta-feira, oito subprocuradores-gerais da República divulgaram manifesto contra a PEC, caracterizada como um “sombrio instrumento de opressão e intimidação de seus membros”. Ontem, foram realizadas manifestações em todo o país. Mais de 3 mil integrantes do Ministério Público assinaram documento que pede a rejeição integral da emenda à Constituição.
“A proposta de assento aos próprios ministros dos tribunais superiores no Conselho Nacional do Ministério Público desvirtua as funções dos ministros de tais tribunais, pois a eles confere ‘superpoderes’ de atuação natural jurisdicional nas cortes em que atuam, de conselheiros no CNJ e também no CNMP, em evidente desequilíbrio do sistema de justiça, com violação do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) previsto pelo Poder Originário Constituinte”, afirmam.
Reduzir o poder dos procuradores e contingenciar a autonomia do Ministério Público é um sonho de consumo dos políticos enrolados na Justiça. Está em linha com as recentes mudanças na legislação sobre improbidade administrativa, patrocinada pelo Centrão, sob a liderança do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). Sua aliança com o PT na agenda contra a Lava-Jato foi uma jogada de mestre. Eleitoralmente, porém, com o perdão do trocadilho, esse pacto perverso pode ser uma roubada.
Luiz Carlos Azedo: Terrivelmente boicotado
Grupo de senadores tem defendido que Bolsonaro desista da indicação de Mendonça e escolha outro nome para o STF
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (igreja evangélica pentecostal), acusou os ministros da Casa Civil, Ciro Nogueira, da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, e das Comunicações, Fábio Faria, de boicotarem a indicação do ex-ministro da Justiça e ex-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU) André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (STF). Aliado de Jair Bolsonaro, desde o fim de semana Malafaia vinha ameaçando denunciar os ministros. Mendonça é pastor da igreja presbiteriana Esperança, em Brasília. Indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF é uma promessa de campanha do presidente da República.
Para aumentar o desconforto de Mendonça, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, ontem, arquivou o mandado de segurança requerido pelos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Podemos-GO), para impor ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que pautasse a sabatina de Mendonça. Nunca um candidato ao STF passou por tanto desconforto no Senado. Alcolumbre recebeu a indicação em julho do ano passado e a mantém na gaveta, apesar de todas as pressões, por razões que ainda não são de todo conhecidas.
Sabe-se que o ex-presidente do Senado está insatisfeito com Bolsonaro desde as eleições passadas, quando seu irmão, Josiel Alcolumbre, seu primeiro suplente no Senado, perdeu a disputa para a Prefeitura de Macapá. Mesmo com o apoio do então prefeito Clécio Luís (sem partido) e do governador do Amapá, Waldez Góes (PDT), foi derrotado pelo médico Dr. Furlan (Cidadania), ex-deputado apoiado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede). Alcolumbre atribuiu a derrota à demora do governo federal em restabelecer a energia no Amapá, que sofreu um “apagão” às vésperas das eleições.
Plano B
Há mais coisas entre o paraíso e o Senado, porém. Um grupo de senadores tem defendido a tese de que Bolsonaro deveria desistir da indicação e escolher outro nome para a vaga de Marco Aurélio Mello, que se aposentou. Preferem o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, que teria amplo apoio, inclusive na oposição. Alagoano e adventista, Martins foi um dos nomes que chegou a ser considerado por Bolsonaro, porque contaria com a simpatia do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), aliado do Palácio do Planalto, e também de parlamentares do MDB, partido com a maior bancada no Senado — principalmente o senador Renan Calheiros (AL), seu conterrâneo, relator da CPI da Covid.
Uma das críticas de Malafaia a Ciro Nogueira deve-se ao fato de ter se aproximado de Calheiros, “o cara que quer destruir Bolsonaro por interesses políticos”, segundo o líder religioso. No domingo, no Guarujá (SP), Bolsonaro perdeu a paciência com Alcolumbre: “Quem não está permitindo a sabatina é o Davi Alcolumbre (…) Teve tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não quer o André Mendonça. Quem pode não querer é o plenário do Senado, não é ele. Ele pode votar contra. Agora, o que ele está fazendo não se faz. A indicação é minha”, disse.
“Se ele quer indicar alguém para o Supremo, pode indicar dois. Ele se candidata a presidente no ano que vem e, no primeiro semestre de 2023, tem duas vagas para o Supremo”, desafiou Bolsonaro. É muita ironia: a indicação de um ministro para o STF por ser evangélico é fruto de uma mentalidade teocrática, isto é, de uma concepção religiosa de Estado, porém, a não realização da sabatina monstra claramente que as regras do jogo laico estão prevalecendo no Congresso. Os ministros citados por Malafaia — Ciro Nogueira, Flávia Arruda e Fábio Faria — são os principais operadores políticos do governo. Bolsonaro não tem força para demitir esses três sem desarticular completamente sua base parlamentar.
Luiz Carlos Azedo: As almas mortas e a montanha
Milhões de pacientes passaram pelas enfermarias. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas?
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
“Diga- me, mãezinha, têm morrido camponeses seus? — Nem me fale paizinho — dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. — E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar como se estivessem vivos.”
No livro Almas mortas, o escritor ucraniano Nikolai Gogol ironiza a servidão russa na época do czar Pedro, o Grande, que resolveu cobrar impostos sobre todas as almas. Cobrava até de quem não era católico, apesar de não ser nada religioso. Os proprietários de terras eram obrigados a pagar os impostos pelo número de servos, inclusive os que haviam morrido. Pável Ivánovitich Tchítchicov, o personagem central do romance, resolve ganhar dinheiro com isso.
Charmoso, educado, sagaz e boa pinta, usa de convencimento para enganar pequenos proprietários. Aproveita-se da burocracia russa ineficiente, e do regime de servidão e da miséria, para hipotecar almas como se todas estivessem vivas e, com isso, obter lucro. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, essas almas mortas passarão a fazer parte do seu patrimônio.
O plano de Tchitchicov é simples. Ao comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos proprietários. Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Certos aspectos da pandemia de covid-19 aqui no Brasil lembram o romance de Gogol.
Ultrapassamos a marca de 600 mil mortes por covid-19, mantendo, porém, uma média de 500 óbitos por dia. Na sexta-feira, quando atingimos esse patamar, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu uma entrevista coletiva minimizando o fato, para destacar que: (1) o governo está empenhado em viabilizar a terceira dose da vacina contra a covid-19 e (2) um número muito maior de pessoas diagnosticadas com a doença se recuperou. De fato, cerca de 20,6 milhões de pessoas tiveram covid-19 e sobreviveram; no momento, 285.032 estão enfermas.
O trauma coletivo
A forma burocrática da entrevista e a falta de empatia do ministro estão em linha com a política sanitária do governo federal. Contaminado na viagem do presidente Jair Bolsonaro à ONU, mesmo sem sintomas, teve que fazer três semanas de quarentena em Nova York, para voltar ao Brasil. Sua desastrosa atuação durante a pandemia também está sendo investigada pela CPI do Senado. Os senadores deverão concluir seus trabalhos nas próximas semanas e, segundo o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), as consequências serão inquéritos civis e criminais, a serem conduzidos pelo Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU). O relator proporá a demissão do ministro Queiroga e/ou a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, por crime de responsabilidade. Estamos no Brasil, a um ano das eleições, e o nosso país, como dizia o maestro Antônio Carlos Jobim, não é para principiantes: nada de demissão nem impeachment.
Nossa realidade vai além das obras de ficção. Muita incompetência e espertezas macabras foram desnudadas pela CPI da Saúde, porém, nada se aproxima tanto da história de Gogol como o caso macabro da Prevent Sênior, empresa que se especializou no atendimento de idosos, em cuja estratégia de tratamento, além do “kit cloroquina”, nos casos graves, segundo denúncias de médicos e pacientes, os “cuidados paliativos” seriam uma espécie de eutanásia não consentida, para dizer o mínimo. O trauma coletivo da pandemia no Brasil é irreversível, principalmente para os familiares e amigos desses 600 mil mortos por covid-19.
Graças ao SUS, milhões de pacientes passaram pelas enfermarias dos hospitais, alguns com longas internações. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas? O escritor alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira, ao descrever as polêmicas entre pacientes num sanatório de Davos, nos Alpes suíços, fez um mosaico do que estava acontecendo na Europa à beira da I Guerra Mundial. N’A montanha mágica, a tuberculose muda a noção de tempo durante a internação, enquanto a vida segue o curso trágico da História e médicos charlatães oferecem aos ricos pacientes falsas opções de cura. Naquela época não existia a penicilina; hoje, temos também as vacinas contra a covid-19.
Brasileiro quer mais mulheres na política, aponta pesquisa Ipsos
Apesar da baixa representatividade, País é o que mais defende participação feminina
Davi Medeiros, O Estado de S.Paulo
Números do Congresso confirmam o que um olhar já revela: embora sejam maioria entre a população, as mulheres têm cerca de 15% de representação política nas duas Casas legislativas, ocupando 12 das 81 cadeiras do Senado e 77 das 513 na Câmara. Para sete em cada dez brasileiros, no entanto, isso não deveria ser assim. O Brasil é o país que mais defende a participação feminina na política, segundo levantamento global feito pelo Instituto Ipsos.
Para chegar a esta conclusão, os pesquisadores fizeram a mesma pergunta em 28 países: O mundo seria um lugar melhor, mais pacífico e bem-sucedido se mais mulheres estivessem no poder? A média global dos que responderam que sim é de 54%. Depois do Brasil, primeiro lugar no ranking com taxa de 70%, Peru e Colômbia empatam na segunda colocação. Ambos os países, porém, têm maior participação feminina na política que o Brasil. No Peru as mulheres são 40% do Parlamento, e na Colômbia, 19,7%.
Homens e mulheres responderam de forma parecida ao levantamento. Em todos os países, as entrevistadas apresentaram maiores taxas de concordância à questão que os homens. A diferença foi de 12 pontos porcentuais na média global, e 10 no Brasil.
Na pesquisa, online, foram ouvidos 19 mil entrevistados entre 16 e 74 anos, em todos os continentes. Os dados foram colhidos entre 23 de julho e 6 de agosto deste ano. A margem de erro para o Brasil é de 3,5 pontos porcentuais, para mais e para menos.
Embora o ímpeto seja culpar o eleitor, a disparidade começa antes do dia da eleição. Dados da plataforma 72 horas, que analisa a distribuição de recursos financeiros para campanhas, mostram que candidaturas de mulheres receberam 30% dos valores repassados pelos partidos em 2020. O valor foi apenas o suficiente para cumprir a lei que naquela eleição definia o repasse mínimo de 30% do fundo especial de financiamento de campanha para mulheres. https://datawrapper.dwcdn.net/3yzjT/6/
Segundo a especialista em financiamento de campanhas Fefa Costa, co-idealizadora da plataforma 72 horas, no ano passado observou-se um número muito baixo de representatividade feminina em todos os partidos. Muitas legendas nem chegaram a respeitar a cota, como é o caso do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), que destinou 17% dos recursos a candidaturas femininas. “O ideal seria que houvesse paridade. Precisamos falar de 50 a 50”, afirmou. “30% já é muito pouco perto da nossa real condição, e, mesmo assim, boa parte dos partidos não cumpre.”
Bônus. Proposta aprovada pelo Congresso em setembro deve contribuir para transformar esse cenário. A norma, promulgada no último dia 28, prevê um “bônus” financeiro para os partidos que mais conseguirem votos em candidatos negros e mulheres, o que já provocou uma “corrida” dos partidos para aumentar o número de candidaturas desses grupos.
“Claro que todo avanço para a igualdade de gênero e racial é visto com bons olhos, mas é preciso entender o que acontece na prática”, avaliou Fefa. O mérito da proposta, segundo ela, é incentivar os partidos a impulsionarem candidaturas destes segmentos, conferindo mais visibilidade a lideranças que querem fazer parte do processo político, mas que carecem de apoio das legendas para ganhar relevância. “O ponto mais importante é se haverá transparência para que a sociedade e os próprios candidatos tenham meios para fiscalizar os recursos, saber se (a regra) é aplicada da maneira correta”.
A pesquisa do Instituto Ipsos chancela o interesse da população nesse tema, disse Helio Gastaldi, porta-voz da empresa no País. Ele afirmou que o “ambiente beligerante” da política brasileira não passa despercebido pela população, que valoriza a lógica parlamentar de busca pelo consenso. “O levantamento permite inferir que a maioria das pessoas não concorda com a hostilidade reservada às mulheres nos espaços de poder”, diz.
“Vemos mulheres sendo tratadas de maneira agressiva. Pessoas que, em vez de debater a pauta que se apresenta, tentam desqualificar o interlocutor, no caso a mulher, e enfraquecer seus argumentos”, acrescentou Gastaldi. Exemplo disso aconteceu durante sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no mês passado, quando a senadora Simone Tebet (MDB-MS) foi chamada de “totalmente descontrolada” pelo depoente Wagner Rosário, ministro da Controladoria-Geral da União (CGU).
Quando acontecem longe das câmeras, casos como o da senadora Simone podem ser denunciados aos canais do Ministério Público Eleitoral de cada Estado. No âmbito da Câmara, as queixas também podem ser apresentadas à Procuradoria da Mulher da Câmara dos Deputados. O órgão não recebe apenas denúncias de violência política, mas de não cumprimento das leis perante casos de violência doméstica e familiar.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brasileiro-quer-mais-mulher-na-politica-aponta-pesquisa-ipsos,70003860977
Luiz Carlos Azedo: Diga ao povo que saio
Há um rosário de decisões de Guedes que o beneficiaram financeiramente, sem que tivesse que fazer uma nova aplicação em sua conta no exterior
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Tem coisas no Brasil difíceis de entender. Por exemplo: Dom Pedro I, que proclamou a Independência, é homenageado com uma das menores ruas do Centro Histórico do Rio de Janeiro, nossa capital de 1763 até 1960, quando a sede do governo foi transferida para Brasília. Começa na Praça Tiradentes, ao lado do Teatro Carlos Gomes, e termina na Rua do Senado, com 141 endereços, 112 residências, 24 estabelecimentos comerciais, três prédios inacabados e 227 moradores, com uma renda média de R$ 1,143. Dependendo do prédio, o preço de um apartamento varia de R$ 3 mil a R$ 8 mil o metro quadrado.
Como já começamos a contagem regressiva para o Bicentenário da Independência, vale o desagravo. Essa lembrança veio em razão do trocadilho do título da coluna com a decisão de Pedro I de não regressar a Lisboa, contrariando as ordens das Cortes Portuguesas, em 9 de janeiro de 1822: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto. Digam ao povo que fico”. O Dia do Fico, referência à frase célebre, foi uma preparação para a proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822.
Havia muita ambição e esperteza embarcadas naquela rebeldia. Liderar a Independência era a única maneira de manter o Brasil sob controle da Casa de Bragança — com ela, a monarquia, o regime escravocrata, o tráfico de negros escravizados e o projeto de reunificação da Coroa, que levaria Dom Pedro I a abdicar do trono em 7 de abril de 1831 e voltar para Portugal para lutar pelo trono para a filha primogênita Maria da Glória. Em contrapartida, herdamos a integridade territorial e o Estado brasileiro, com suas principais instituições. Não foi pouca coisa.
Ambição e esperteza é o que não faltam nas altas esferas do poder. Por exemplo, não conseguia entender a longa permanência do ministro da Economia, Paulo Guedes, no comando da pasta. A vida toda foi um economista ultraliberal. Na campanha eleitoral, fez a cabeça do presidente Jair Bolsonaro e virou o Posto Ipiranga da economia, com apoio do mercado financeiro, para fazer as reformas liberais, entre elas a tributária e a administrativa. Com o passar do tempo, não fez as reformas e fracassou. Nossa economia registra uma brutal desvalorização do real, inflação alta, desemprego em massa e estagnação
econômica. Outros liberais, diante da guinada populista iminente do governo Bolsonaro, já teriam entregado o cargo, como alguns fizeram em sua equipe.
Agora já sabemos a explicação para o “Fico” do ministro da Economia: enquanto o povo come osso, Guedes ganha muito dinheiro com a crise, porque a desvalorização do real engorda suas economias em dólar, que ontem fechou a R$ 5,48. A conta de Guedes num paraíso fiscal no exterior foi revelada, no último fim de semana, pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ). O Ministério da Economia informou que toda a atuação privada de Paulo Guedes foi “devidamente declarada à Receita Federal, Comissão de Ética Pública e aos demais órgãos competentes”, mas há controvérsias. Eticamente, ganhar dinheiro com a desvalorização do real é incompatível com o cargo de ministro da Economia. No popular, é muita cara de pau.
Imposto de Renda
Por essa razão, Guedes foi convocado a dar esclarecimentos à Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara, e convidado também pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado a explicar a existência de sua empresa offshore, que não paga imposto no Brasil. Guedes abriu a empresa em 2014, ou seja, no ano da reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff. O horizonte econômico era de recessão e aumento da inflação. Até aí, tudo bem — toda vida ganhou dinheiro no mercado financeiro. Em 2016, porém, o governo criou facilidades para que todos repatriassem os recursos enviados para o exterior, mas Guedes não encerrou suas operações com a offshore. Deixou o dinheiro lá fora, no paraíso fiscal, mesmo depois de virar ministro da Economia.
Há um rosário de decisões de Guedes que o beneficiaram financeiramente, sem que tivesse que fazer uma nova aplicação em sua conta no exterior. O artigo 5o do Código de Conduta do setor público veda “investimento em bens cujo valor e cotação pode ser afetado por sua decisão”. Quando nada, o câmbio sempre será atingido por declarações ou atos do ministro da Economia, bem como do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que também tem conta numa offshore no exterior. É uma “não conformidade”.
Tudo isso acontece num momento crucial para o governo, que está em dificuldades para financiar o chamado Auxílio Brasil, programa de transferência de renda que Bolsonaro quer aprovar, para substituir o Bolsa Família. O problema é que o governo não tem dinheiro, tenta viabilizar o projeto com recursos do Imposto de Renda, que pretende modificar com esse objetivo, deixando de fora as contas offshore, é claro. O jabuti no IR, porém, subiu no telhado. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), já mandou recado de que não vai misturar alhos com bugalhos.
Alberto Aggio: O Gramsci que conhecemos e o que ele inspirou
Teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”
Gramsci é, no Brasil, um autor bastante conhecido e com um número estável de leitores. A primeira edição dos Cadernos do cárcere é da década de 1960 e foi reeditada no final da década seguinte, num contexto de luta contra a ditadura. Uma nova edição dos Cadernos, que mescla a edição temática dos anos sessenta com a edição crítica publicada na Itália a partir de 1975, veio à luz nos últimos anos do século passado, com vários dos seus volumes já reimpressos.
Há tempos registra-se uma difusa assimilação do pensamento gramsciano. As teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo”, “americanismo” e outros. O pertencimento de Gramsci à história do marxismo e do comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido, mas não generalizadamente, como um pensador político original. Desde o final da década de 1970, a progressiva difusão do pensamento gramsciano contribuiu e alimentou um novo “programa de ação” para a esquerda brasileira: organizar a luta contra o autoritarismo.
Além de Gramsci, outros pensadores animaram esse movimento, como Norberto Bobbio, Hannah Arendt e Jürgen Habermas. Mas foi com Gramsci que se instituiu no universo de reflexão da esquerda as temáticas e as visões críticas da história brasileira a partir de uma perspectiva de longa duração. Com a difusão e a assimilação de Gramsci se começa a pensar o Brasil tomando como referência a Alemanha e a Itália, países que não chegaram à ordem burguesa por meio do percurso revolucionário francês. Por meio das referências gramscianas, passa-se a reconhecer que o país era “ocidental” e que se havia estruturado como um país moderno pela via autoritária, sobretudo a partir de 1964. Isso requeria da esquerda uma nova leitura da democracia. Sem ela, a esquerda não seria capaz de se tornar um ator relevante na luta contra o autoritarismo e lhe faltaria uma “grande política” que pudesse guiá-la numa nova situação democrática.
Naquele contexto, o Gramsci que conheceríamos não seria aquele da luta operária, mas o Gramsci inspirador de uma luta política geral, cuja tradução política se exprimia na ideia de que, para combater o autoritarismo, era necessário “fazer política” e construir alianças que objetivassem a conquista da democracia. O Gramsci dos intelectuais, da hegemonia e da guerra de posição se encontrava então em campo aberto, em diálogo com outras correntes de pensamento, em particular as liberais, jogando a esquerda para dentro do debate público sobre as questões do pluralismo como horizonte político-cultural: um diálogo a que nem a esquerda nem os liberais estavam acostumados. Em síntese, a difusão das ideias de Gramsci contribuiu para amadurecer na esquerda brasileira uma perspectiva crítica a respeito da sua história precedente, de forte matriz golpista e autoritária, pouco afeita aos temas decorrentes da política democrática.
No contexto de luta pela democracia no Brasil, o mais importante ensaio de corte gramsciano foi, sem dúvida, “A democracia como valor universal”, de Carlos Nelson Coutinho (1979), que representou um marco divisório na cultura política da esquerda brasileira, sobretudo no que diz respeito à revalorização da democracia. O ensaio tem muitos méritos e foi extremamente influente. Embora Carlos Nelson Coutinho valorizasse temáticas como a “ampliação do Estado”, ajudando a esquerda a compreender a natureza “ocidental” da sociedade brasileira, entendia que não se deveria cogitar nenhuma “leitura mais complexa” do conceito gramsciano de revolução passiva.
No ensaio de 1979, as formulações a respeito da realidade brasileira aparecem inteiramente subordinadas ao enfoque leninista, assim sintetizada no subtítulo do seu segundo item: “o caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prussiana”. A ênfase não era irrelevante nem foi esporádica. Em diversos textos posteriores, Carlos Nelson Coutinho se empenhou em definir a transição brasileira à modernidade capitalista identificando revolução passiva a uma “contrarrevolução prolongada” (a expressão é de Florestan Fernandes), por definição reativa à mudança social (registre-se aqui que a categoria da via prussiana já havia sido mobilizada para interpretação da formação social brasileira em Liberalismo e sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna, em 1976).
Este é um tema importante na discussão sobre Gramsci no Brasil: se admitirmos que o conceito de “via prussiana” descreve uma situação histórica na qual está anulada a possibilidade do ator da antítese ao capitalismo de assumir, pela política, um papel afirmativo no processo de modernização capitalista, a pergunta que emerge naturalmente é se a categoria de “revolução passiva”, elaborada por Gramsci, pode ser compreendida no sentido de se admitir um novo protagonismo do ator da antítese no interior do processo de modernização capitalista.
Luiz Werneck Vianna, em seu livro Revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil (1997), responde afirmativamente a esta pergunta, esclarecendo que na revolução passiva se pode desenvolver a ação de um ator que represente uma “antítese vigorosa” e empenhe de maneira intransigente todas as suas potencialidades (p. 78). A revolução passiva, como critério de interpretação de processos históricos, é útil ao ator que se invista da representação de portador das mudanças, “capacitando-o, a partir de uma adequada avaliação das circunstâncias que bloqueiam seu sucesso imediato e fulminante, a disputar a hegemonia numa longa ‘guerra de posições’, e a dirigir o seu empenho no sentido de um transformismo ‘de registro positivo’, assim desorganizando molecularmente a hegemonia dominante, ao tempo em que procura dar vida àquela que deve sucedê-la”. […] “A exploração do transformismo de ‘registro positivo’ é indicada em processos societais novos na sociedade brasileira, muito especialmente depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80” (p. 9). A revolução passiva é, portanto, um critério de interpretação “que poderia servi-lo no sentido de mudar a chave da direção do transformismo: de negativo para positivo”. Graças a esse conceito, Gramsci cria “a possibilidade de uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ de tipo francês”.
Como se sabe, a história brasileira nunca protagonizou uma revolução de tipo “jacobino”. As grandes transformações históricas do país foram moleculares ou caracterizadas por uma “dialética sem síntese”, no interior da qual os elementos de novidade e de modernidade foram introduzidos, no mais das vezes, por grupos sociais anteriormente contrários à modernização. Os ciclos da longa “revolução passiva á brasileira” (L. W. Vianna) vão da fundação do Estado Nacional até o recente processo de democratização vivido pelo país, passando pelo período Vargas, pela democracia de 1946 e pelo autoritarismo das décadas de 1960 e 1970. Neste longo período histórico, o Estado assume o papel de agente modernizador e condutor das transformações históricas, em geral sem a participação da sociedade civil, estabelecendo a lógica de conservar-mudando. Essa lógica faz com que as transformações históricas no Brasil ocorram sem abalos violentos, o que ajuda a conservar a precedente hegemonia dos grupos sociais mais atrasados.
Nos dias que correm, contrariando as enormes esperanças, os governos do PT, desde 2002, não se constituíram numa alternativa ao longo processo da “revolução passiva à brasileira”. Ao contrário, no governo, o PT conduziu a modernização associando-se às elites agrárias e industriais, abrigando-as no seio de um enorme Estado, inteiramente dependente do Poder Executivo. O alargamento do poder de consumo das classes populares fez parte dessa estratégia e a figura de Lula passou a ser essencial a esse tipo de transformismo. Manteve-se o dirigismo estatal, o patrimonialismo e o corporativismo ao invés de se estabelecer um nexo renovador entre democracia, autonomia, mercado e bem-estar.
Nascido do moderno parque industrial paulista, isto é, da face americanista mais visível do país, o PT no governo foi derivando progressivamente para a velha tradição ibérica de supremacia do Estado sobre a sociedade que havia marcado a história brasileira. O PT é, como já se disse, uma monografia particular do Brasil, articulada por uma síntese de americanismo e iberismo, na qual o Estado continua a contrapor-se à sociedade civil, controlando molecularmente as transformações, obedecendo à lógica do conservar-mudando e impedindo consequentemente o desenvolvimento autônomo da sociedade civil.
Mudar as relações entre a sociedade civil e o Estado e fazer com que a mudança dirija a conservação não significa adotar uma espécie de antirrevolução passiva, instalando um processo de rupturas de corte jacobino. Transformar o caráter recessivo da “revolução passiva à brasileira” demanda a construção de uma cultura política republicana, que contribua para a geração de uma sociedade civil autônoma, capaz de associar-se politicamente para a condução dos destinos do país. É esse o desafio que está colocado: buscar, com realismo, as balizas e os parâmetros de uma grande reforma da política, de caráter republicano, que reverta os termos da atual modalidade de “revolução passiva à brasileira” e ao mesmo tempo recomponha a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a democracia política.
O pensamento de Gramsci apresenta-se hoje no Brasil essencialmente por meio de uma disjuntiva. De um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”. De outro lado, temos o Gramsci como expressão da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática no interior da perspectiva de “rovesciare” a longa revolução passiva à brasileira, de marca autoritária e excludente, e lhe dar finalmente outro direcionamento.
Essa perspectiva implica compreender que Gramsci se descolou da sua originária demarcação revolucionária, distanciando-se assim de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. De outro lado, a perspectiva de um “outro Gramsci” se desdobrou gradativamente em “outros Gramsci”, mantendo-os, contudo, no universo diversificado da noção de “representação”, agora num duplo sentido: representação de classe, com o fora anteriormente, e portanto numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, representação como conservação e difusão de um imaginário revolucionário, no qual se quer resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.
(Esse texto é a versão em português do artigo publicado no L’Unità (07.12. 2015), e corresponde à súmula da palestra proferida na Fondazione Istituto Gramsci de Roma, em 25,11.2015. Em português foi publicado em Política Democrática, n. 44, Brasília: FAP, 2016, p. 40-44 e também em AGGIO, A. Itinerários para uma esquerda democrática. Brasília: Verbena/FAP, 2018, p. 165-171)
Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/
Luiz Carlos Azedo: A desagregação do centro para uma terceira via
É cada vez mais difícil o surgimento da chamada terceira via, uma candidatura que unifique o centro político
Todas as pesquisas confirmam o cenário de polarização para as eleições presidenciais de 2022, entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), favorito na disputa, em torno de 40% de intenções de votos, e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), cuja reeleição está cada vez mais difícil, com teto nos 30% dos votos. O governador de São Paulo, João Doria, não sai da faixa dos 3% de intenções de votos, como candidato do PSDB. Se o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, fosse o candidato do PSDB, também não haveria grande modificação.
O candidato de oposição que aparece com melhor pontuação é o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT), que se mantém em terceiro lugar, variando de 5% a 11%, dependendo da pesquisa. Entretanto, o pedetista não consegue ampliar suas alianças ao centro. A estagnação nas pesquisas eleitorais dificulta a vida de Doria, na medida em que o gaúcho Eduardo Leite corre na mesma faixa, o que aumenta o isolamento interno do governador paulista nas prévias do PSDB.
É cada vez mais difícil o surgimento da chamada terceira via, uma candidatura que unifique o centro político. A fragmentação é muito grande. No primeiro cenário, com Doria, pontuam, nas pesquisas, José Luiz Datena (PSL), com 4%; Henrique Mandetta (DEM), 3%; Rodrigo Pacheco (DEM), 2%; Aldo Rebelo (sem partido) e Alessandro Vieira (Cidadania), com 1% cada. No segundo cenário, com Leite como candidato do PSDB, Mandetta tem 3%;
Datena, 2%; Pacheco, Aldo e Alessandro, 1%. Esses cenários não podem ser engessados — estamos a um ano das eleições. Entretanto, mostram grande descolamento dos partidos de centro de suas bases eleitorais tradicionais.
A novidade no quadro partidário é a anunciada fusão do DEM com o PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu, mas, depois, rompeu. Com a fusão, passarão a se chamar União Brasil, com o número 44, escolhas feitas com base em pesquisas qualitativas. Será o maior partido da Câmara, com 81 deputados, o que garante para a nova legenda R$ 320 milhões de fundo eleitoral e R$ 138 milhões de fundo partidário. A nova legenda tem, ainda, sete senadores, quatro governadores e 554 prefeitos. Entretanto, não consegue alavancar seus pré-candidatos: Mandetta tem apenas 3% de intenção de votos, e Pacheco varia entre 1% e 2%, dependendo da sondagem.
Expectativas
O PSDB vive um momento de grande divisão interna. De certa forma, a disputa entre os tucanos paralisa os demais atores políticos de centro, que aguardam a escolha do candidato da legenda. Quem quer que seja o escolhido, terá dificuldade para unificar o partido. Além disso, os aliados tradicionais também estão se colocando como alternativa, com seus próprios candidatos. O PSDB deixou de ser uma força agregadora do centro. Quem vencer as prévias precisará fazer um grande esforço para reconstruir suas alianças tradicionais.
Outro ator importante na construção de uma alternativa de centro é o PSD, de Gilberto Kassab, que assedia o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Kassab atraiu para a legenda o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que ensaia disputar o governo fluminense, e o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, que pretende voltar ao Palácio dos Bandeirantes. Com habilidade, Kassab trabalhou nos últimos anos para reunir 35 deputados, 11 senadores, dois governadores e 654 prefeitos.
Entretanto, o PSD corre o risco de ficar na mesma situação do MDB, que não tem, até agora, um projeto de candidatura própria, embora a senadora Simone Tebet (MS) pleiteie a vaga e o ex-presidente Michel Temer tenha voltado à ribalta. O MDB tem 16 senadores, 34 deputados, três governadores e 784 prefeitos. Tanto o PSD quanto o MDB podem derivar para a candidatura de Lula, o que aumentaria as suas chances de vencer no primeiro turno. O petista anda trabalhando nos bastidores para montar seus palanques regionais e não desistiu de suas velhas alianças, inclusive com o Centrão.
Cristiano Romero: A mais difícil e a mais urgente das reformas
Todos querem mudança tributária há trinta anos
Cristiano Romero / valor Econômico
Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sepultaram a possibilidade de aprovação da reforma tributária nesta legislatura, mas inovaram ao indicar que o tema, por bem ou por mal, será apreciado até dezembro. Como ocorreu nos últimos 30 anos, a reforma institucional mais demandada pelos agentes econômicos _ inclusive, os contribuintes pessoas físicas _ pode não sair do papel. E a razão é uma só: é impossível conciliar todos os interesses envolvidos nesse tema.
Razões para justificar mudanças no regime tributário brasileiro não faltam. O sistema taxa mais o consumo do que a renda, na contramão das economias avançadas. No 8º país que mais concentra renda no planeta, onde existem mais de 50 milhões de pessoas miseráveis (dependentes de programas de transferência de renda para sobreviver) e a maioria da população é pobre, essa regra ajuda a perpetuar uma de nossas maiores chagas.
Trata-se de uma “brasileirice” sem tamanho, típica de uma sociedade dilacerada pela cultura escravagista por mais de 500 anos: neste imenso pedaço de terra abençoado, mas esquecido por Deus, os pobres pagam mais imposto que os ricos. E isso ocorre porque, por razões óbvias, essa parcela da população consome mais, isto é, despende fatia maior de sua renda com bens de consumo e, quando a maré permite, serviços.
Incidem sobre o consumo três tributos _ o ICMS (estadual) e dois federais (PIS e Cofins) _, todos sobre a mesma base de cálculo, o faturamento das empresas que vendem os produtos. As alíquotas do ICMS são as mais elevadas. No caso de serviços como telefonia e energia, superam o patamar de 40%! Não nos esqueçamos do IPI, imposto que incide sobre a produção de bens industriais.
As “brasileirices” (sinônimo de jabuticaba) que condenam este país a não ser nação não param por aí. Neste território riquíssimo em recursos naturais onde vive um dos maiores contingentes de cidadãos pobres do mundo, indivíduos de classe média e os ricos podem deduzir, da base de cálculo do Imposto de Renda, tudo _ isso mesmo, tudo _ o que gastam em hospitais particulares e planos de saúde, inclusive, no exterior.
PRESIDENTES DA CÂMARA E DO SENADO
O raciocínio por trás dessa maldade é o seguinte: como a Constituição de 1988 assegura, a todos os viventes nesta extensão de terra no hemisfério sul da Terra, acesso universal a serviços públicos de saúde, é razoável que os transeuntes tenham o direito de requerer dedução das despesas que tiverem com serviços particulares de saúde. O cinismo _ uma “brasileirice” da qual ninguém fala, do mesmo quilate das férias de dois meses de juízes e procuradores _ chega ao paroxismo quando os defensores da vilania alegam que “a dedução é um direito, uma vez que o sistema de saúde estatal ainda não consegue atender a toda a demanda.
Se alguém tem alguma dúvida de por que o país a que chamamos de Brasil não dá certo, não precisa ir muito longe. Como os pobres não têm dinheiro para serem atendidos em hospitais particulares, eles não têm direito a deduzir nada da base de cálculo do Imposto de Renda. Os cínicos, neste momento da tertúlia, rompem qualquer fronteira do bom senso civilizacional: “Ora, pobres não pagam Imposto de Renda, logo, eles não precisam deduzir os gastos com saúde”.
Era só o que faltava: o sonho dos pobres no Brasil, agora, é pagar Imposto de Renda! Na verdade, eles já pagam, pois, já é obrigado a isso quem percebe pouco mais de R$ 2 mil por mês. Em termos menos edulcorados, o que esse sistema injusto e concentrador de renda faz é tirar bilhões de reais que deveriam financiar a saúde pública, que segundo a Carta Magna é para todos, inclusive, estrangeiros que estejam de passagem pelo país, e transferi-los para hospitais particulares e grandes empresas de planos de saúde.
Mesmo tendo consciência de que o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ter uma gestão melhor, deveríamos considerar nas duras críticas que fazemos ao serviço público o fato de que o próprio Estado abre mão de bilhões de reais para beneficiar meia dúzia de grupos de interesse específico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam-se mais importantes do que achavam antes do conflito. Essa constatação mudou tudo. Logo, viram que, para sua economia crescer na velocidade desejada, eles precisavam de uma matéria-prima _ petróleo (energia) _ que eles possuíam, mas não na quantidade necessária.
Ora, o jeito foi sair pelo mundo em busca de fornecedores “confiáveis”_ um dos principais, a Venezuela, que, até o início deste século, fornecia 20% do petróleo consumido pelos Estados Unidos. A fome americana por óleo era tanta que moldou a geopolítica mundial a partir dali. Internamente, a decisão foi desonerar o preço do combustível consumido por empresas e famílias americanas, afinal, o país precisava crescer. Taxar excessivamente a gasolina para financiar o Estado, como fizeram outros grandes produtores de petróleo (México, Venezuela, Nigéria, Arábia Saudita), seria contraproducente: aumentaria a presença do governo na atividade econômica, tornando-o ineficiente por definição; estimularia a corrupção; desestimularia o desenvolvimento de outros setores; por fim, diminuiria a produtividade, uma vez que não haveria, de forma geral, incentivos para o desenvolvimento de uma economia dinâmica.
Quando achou que tinha chegado a sua hora de reluzir na economia mundial, depois de se deitar em berço esplêndido por quatro séculos e meio, a Ilha de Vera Cruz também não tinha petróleo suficiente. Mas, o que se viu desde então foi a taxação sempre elevada dos combustíveis. Como facilitar o crescimento da atividade?
Em entrevista à Maria Fernanda Delmas, diretora de redação do Valor, Lira e Pacheco expuseram o drama infindável da reforma que não se realiza. “É óbvio que a reforma tributária guarda uma série de divergências. É sem dúvida a proposta com maior dificuldade de conciliação, de entendimento do que é bom para o país”, disse Pacheco.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-mais-dificil-e-a-mais-urgente-das-reformas.ghtml
Luiz Carlos Azedo: O espetáculo na pandemia
Líderes da CPI precisam levar em conta as mudanças de cenário e não perder o foco e evitar um carnaval midiático
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ninguém tem dúvida de que a CPI da Covid no Senado tornou-se o epicentro da disputa política entre governo e oposição na conjuntura marcada pelo novo coronavírus. Entretanto, a pandemia está sendo domada, na medida em que a vacinação avança, enquanto o desemprego e a alta da inflação, dos juros e da cotação do dólar começam a ser os fatores de maior repercussão na vida da população. Ou seja, a urgência política está mudando e a comissão começa a perder o protagonismo que tinha, apesar de o elevado número de óbitos por covid-19 ter se tornado um trauma que enluta mais de 600 mil famílias. É muita gente.
O depoimento do empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, ontem, na CPI, ilustra a nova situação, na sequência das espantosas revelações da advogada Bruna Morato, na terça-feira, cujo relato da rotina de ameaças a médicos da operadora de saúde Prevent Senior durante a pandemia foi estarrecedor. Enquanto Morato denunciou a falta de autonomia dos profissionais, a exigência da prescrição de remédios ineficazes e o envolvimento da empresa em um “pacto” com o chamado “gabinete paralelo” do Palácio do Planalto, Hang fez de seu depoimento um case de marketing político e comercial ao confrontar a CPI, porque sustentou as posições negacionistas de Jair Bolsonaro e seus apoiadores, e ainda aproveitou para fazer propaganda de sua cadeia de lojas de departamentos.
Segundo o relator da CPI, senador Renan Calheiros(MDB-AL), Hang orientava o presidente sobre condutas para o enfrentamento da pandemia e fazia parte do chamado “gabinete paralelo”, supostamente o estado-maior da política de enfrentamento da pandemia executada pelo Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello. A grande contradição de seu depoimento foi o fato de não ter questionado o atestado de óbito de sua mãe, que morreu de covid-19, quando estava sob os cuidados da Prevent Sênior — a informação não consta como causa mortis no documento. O empresário admitiu que autorizou a utilização do chamado kit covid durante o tratamento, porém atribuiu a subnotificação a um erro do plantonista e não à intenção de omitir o fato da opinião pública.
Outras prioridades
Mais importante do que o conteúdo do depoimento, porém, foi o circo armado pelo “velho da Havan” e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na própria CPI, cuja sessão foi das mais tumultuadas. Hang foi evasivo e driblou perguntas feitas pelos senadores sobre a operadora de saúde Prevent Senior, o que irritou o presidente da comissão, senador Omar Azis (PSD- AM), e o chamado grupo dos sete, formado por senadores de oposição e independentes. A maior utilidade do depoimento foi revelar que a atuação de empresários bolsonaristas na pandemia, a estratégia adotada pela Prevent Sênior e a política de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde estavam em linha com o propósito de Bolsonaro de manter a economia funcionando a qualquer custo, mesmo que o preço a pagar fosse o alto número de óbitos, como acabou acontecendo.
A chamada “sociedade do espetáculo” é considerada uma forma perversa de ser da sociedade de consumo. Trata-se da multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum. É um fenômeno contemporâneo, que vem sendo estudado há mais de 50 anos, cuja característica principal é a transformação das relações entre as pessoas em imagens e espetáculo, como acontece nas redes sociais. Não existe mais um limite entre a realidade e o espetáculo.
É aí que os líderes da CPI precisam levar em conta as mudanças de cenário e tomar cuidado para não perderem o foco. O objetivo da comissão não é promover um carnaval midiático, no qual os critérios de verdade e validade acabam diluídos pela retórica do conflito político, como aconteceu na sessão de ontem. Talvez seja a hora de os integrantes da CPI priorizarem a elaboração de um relatório robusto, no qual os responsáveis pela tragédia humanitária em que se converteu a pandemia sejam apontados com rigor, bem como os crimes cometidos, devidamente tipificados e comprovados. Ou seja, é preciso partir para os “finalmentes”.