política
Luiz Carlos Azedo: Os limites da União
O poder centralizador da União se manteve como herança do regime militar. Vem daí o desequilíbrio na relação entre os entes federados
O pacto federativo é assim chamado porque pressupõe, digamos, uma grande aliança nacional e acordos entre os estados e a União. Não é uma coisa simples. Muito sangue já correu no Brasil por causa disso. A Revolução Pernambucana, por exemplo, que completará 200 anos no próximo dia 6 de março, foi provocada pela insatisfação popular causada pela Corte de D. João VI, desde sua chegada ao Brasil, em 1808. A ocupação dos cargos públicos pelos apaniguados portugueses e os impostos e tributos criados por D. João VI causaram a revolução, que fechou o ciclo das revoltas do período colonial e, de certa forma, precipitou a Independência, pois seu caráter era emancipacionista.
Os pernambucanos sofreram grande influência das ideias iluministas, que se opunham à monarquias absolutas, a partir da Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade eram as bandeiras dos revoltosos. A crise econômica provocada pela queda das exportações de açúcar, consequência da guerra na Europa, foi agravada pela seca de 1816, que aumentou a fome e a miséria no sertão pernambucano. Seus revolucionários, liderados por Domingos José Martins, com apoio de Frei Caneca e Antônio Carlos de Andrada e Silva, queriam a independência, a República e uma Constituição. Mas foram duramente reprimidos e a revolta acabou esmagada.
A centralização política sempre foi submetida à prova. No Império, na Confederação do Equador (1824), uma espécie de repeteco da Revolução Pernambucana; na Cabanagem (1835 a 1840), no Pará; na Balaiada (1838 a 1841), no Maranhão; na Sabinada (1837 a 1838), na Bahia; na Guerra dos Farrapos (1835 a 1845), no Rio Grande do Sul e Santa Catarina; e na Revolta dos Malês (1835), uma rebelião de escravos muçulmanos em Salvador. Durante a República, pela revolta de Canudos, pelo movimento tenentista e, principalmente pela Revolução de 1930. O golpe militar de 1964 também teve elementos de esgarçamento das relações entre os estados e União, mas a influência da Guerra Fria e da radicalização política dela decorrente fizeram toda diferença.
Talvez a grande singularidade de hoje, em relação às situações anteriores, seja o fato de que o atual pacto federativo não se baseia apenas na relação entre a União e as oligarquias regionais, embora essa característica também dela faça parte. Na Constituinte de 1987, houve um pacto do Estado com sociedade em bases democráticas. O poder dos governadores acabou mitigado pela emancipação dos municípios, que passaram a ser considerados entes federados. Em contrapartida, o poder centralizador da União se manteve como herança do regime militar. Vem daí um desequilíbrio na relação entre os entes federados que foi exacerbado durante os governos Lula e Dilma. Como? Via desonerações fiscais (principalmente dos tributos compartilhados) e transferência seletiva de recursos para estados e municípios controlados pelos petistas e seus aliados.
Descompressão
O impeachment da presidente Dilma Rousseff funcionou como uma espécie de válvula de descompressão nessa relação com os governadores, que agora buscam jogar nas costas da União toda a responsabilidade pela crise fiscal. Tentam se aproveitar da fraqueza do governo Temer, numa hora em que o equilíbrio das contas públicas é o único caminho viável para o controle da inflação e a retomada do crescimento. Dos nove estados com folha salarial acima do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas três realmente estão em situação de calamidade: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estão sem condições de pagar servidores e aposentados. Mato Grosso do Sul, Paraíba, Goiás, Paraná, Roraima e o Distrito Federal ainda podem segurar a onda se voltarem atrás na farra dos aumentos salariais.
Os demais estados apresentam situação fiscal sob controle, mas também tentam tirar vantagem da negociação do governo federal com os estados quebrados, principalmente a negociação com o Rio de Janeiro.Vários estados ingressaram com ações no Supremo Tribunal Federal (STF), que deu um prazo de 60 dias para que o governo federal chegasse a um acordo com os governadores que mitigasse os efeitos da crise sobre as finanças estaduais. O acordo foi feito e o Congresso aprovou uma lei dando um prazo de mais 20 anos para que os Estados quitassem a dívida que já tinha sido renegociada pela União, suspendendo o pagamento das parcelas mensais até o fim de 2016. O pagamento das prestações será retomado neste mês, com elevação gradual de 5,26 pontos percentuais até 2018. Foram ampliados também os prazos de créditos dos estados com o BNDES. O acordo vale R$ 26 bilhões (R$ 20 bilhões com o Tesouro e R$ 6 bilhões com o BNDES). Quem pagará essa conta? Todos nós!
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo
Luiz Carlos Azedo: A “convulsão social”
O sujeito atende o celular: “Fora, Temer!” A mulher pergunta: “Vamos à praia?” Ele responde: “Só se for de manhã; à tarde, vou trabalhar!” Ela se despede: “Ok, Diretas já!”.
Virou mantra nos artigos e entrevistas dos viúvos do impeachment da presidente Dilma Rousseff a tese de que o país caminha para uma “convulsão social”, por culpa do governo de Michel Temer, que estaria destruindo todos os avanços econômicos e direitos sociais do país, como se a atual gestão fosse de fato responsável pela recessão e o desemprego em massa e não os desatinos petistas. A tese surgiu nas análises catastrofistas dos intelectuais, mas virou mais uma narrativa política a partir do momento em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa mensagem de ano-novo gravada em vídeo, oficializou esse discurso do quanto pior, melhor.
A crise dos estados e, agora, dos municípios — em muitos deles, os cofres foram esvaziados de vez na campanha eleitoral —, supostamente corroboraria a tese. Foi alimentada ao longo de anos de afrouxamento da responsabilidade fiscal, mas agora virou um dos fatores da tal “convulsão social”. Nos estados e municípios, mesmo com toda a roubalheira e a queda de arrecadação, a principal causa da crise fiscal são dois fatores que se retroalimentam: o aumento da folha salarial e o deficit previdenciário. Poderosas corporações, com seu poder de pressão focado nos próprios privilégios e não nas políticas públicas, agora se mobilizam contra os ajustes e pressionam prefeitos e governadores a apresentarem a conta para a União. É uma maneira de socializar o prejuízo, à custa dos contribuintes. Como a União não tem obrigação nem recursos suficientes para resolver o problema, o governo Temer é responsabilizado pela situação e chantageado pelo risco de “convulsão social”.
Sindicatos e organizações populares, como a CUT e a União Nacional dos Estudantes (UNE), controlados pelo PT e pelo PCdoB, respectivamente, e outros partidos contrários aos ajustes, financiam e organizam manifestações que quase sempre resultam em confrontos com a polícia e muitas depredações. As regras do jogo democrático não são respeitadas nos protestos. Pichações, destruição de patrimônio público e privado, invasões de repartições públicas e de casas legislativas são frequentes; a polícia acaba reagindo de forma indiscriminada, com bombas de efeito moral, lacrimogêneas, gás de pimenta e cassetetes. São situações que se repetem, nas quais as lideranças parecem querer que algo mais grave aconteça, como a morte de um manifestante nos confrontos. Assim, a tese da “convulsão social” ganharia uma bandeira nacional ensanguentada.
A recessão e o desemprego, obviamente, ampliam as tensões sociais. O crescimento da população de rua, do número de “noiados” e dos crimes contra o patrimônio e contra a vida, também. A crise fiscal agrava os problemas sociais, é verdade, por falta de recursos para as políticas compensatórias. Tudo isso entra no balaio da tese de que o Brasil caminha inexoravelmente para a ingovernabilidade. Seu ingrediente mais novo é a superlotação dos presídios, nos quais explodiu a violência. O presidente Michel Temer, fleumático como sempre, foi infeliz na primeira declaração sobre os massacres de Manaus (AM) e Rio Branco (RR). Seu ministro da Justiça, Alexandre Moraes, não ficou atrás. Há, porém, um evidente exagero ao atribuir ao atual governo a responsabilidade pela superlotação dos presídios.
A guerra nas prisões decorre da luta travada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), dos traficantes paulistas, pelo controle das rotas de transporte de cocaína na fronteira do Paraguai, tomadas do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e no Rio Solimões, controladas pela Família do Norte, do Amazonas. Talvez o acordo de paz entre o governo da Colômbia e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) tenha mais a ver com o confronto do que a superlotação dos presídios, que cria um ambiente favorável ao ajuste de contas, mas não é sua causa. Os presídios brasileiros sempre foram uma vergonha nacional.
Virou piada
A tese de que o governo Temer é a causa de iminente “convulsão social” é falsa. Decorre, na melhor das hipóteses, de uma visão voluntarista, que aposta numa mudança brusca da correlação de forças a favor das forças afastadas do poder pelo impeachment da ex-presidente Dilma, embora as eleições municipais tenham apontado exatamente o contrário. Na pior, é apenas um discurso oportunista de quem foge da autocrítica em relação aos próprios erros. Na verdade, uma narrativa que mira a sobrevivência nas eleições de 2018.
A tese da “convulsão social” é complementada pela palavra de ordem “Diretas já!”, que qualquer político com mandato sabe que é inconstitucional, porque implicaria na cassação de mandatos de senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais. Seria como convidar o peru para uma ceia depois do Natal. A eleição direta para presidente da República é prevista apenas em caso de cassação da chapa eleita, antes de completados dois anos da eleição. Depois disso, a eleição é indireta, pelo Congresso. A palavra de ordem, porém, virou uma espécie de saudação carioca. O sujeito atende o celular: “Fora, Temer!” A mulher pergunta: “Vamos à praia?” Ele responde: “Só se for de manhã; à tarde, vou trabalhar!” Ela se despede: “Ok, Diretas já!”. Com o calor da lascar, ninguém quer saber de passeata.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Pedro Del Picchia: Soares fez província imperial virar nação orgulhosamente europeia
Não seria despropositado dizer que o moderno Portugal nasceu não propriamente com a Revolução dos Cravos, em 1974, mas no ano seguinte, quando Mário Soares convocou uma das maiores manifestações realizadas em Lisboa.
Aquele dia marcaria o início do fim da tentação totalitária que animava, por um lado, os jovens oficiais das Forças Armadas; de outro, o Partido Comunista; e, por fim, mas com menos intensidade, os nostálgicos do salazarismo.
Os primeiros sonhavam com um regime autoritário progressista; os segundos, com um Estado soviético; e os terceiros, aproveitando-se da ameaça "vermelha", com a volta da ditadura que dominara o país de 1926 a 1974.
Foi nesse quadro que Mário Soares apresentou o "socialismo em liberdade", em oposição aos comunistas e à extrema-direita. "Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata".
Até a situação política chegar a esse ponto de confrontação, Portugal vivera os 15 meses mais vibrantes da história do país no século 20.
Tudo começara numa alvorada de abril de 74, em que um grupo de oficiais das Forças Armadas, contrariados com os rumos insanos da guerra colonial, mandara para o exílio o ditador Marcello Caetano.
Caetano era herdeiro ideológico e sucessor político de António de Oliveira Salazar, que erigira os contornos do chamado "Estado Novo" na longínqua década de 1930, inspirado nos exemplos de Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros nos primórdios da ditadura, em 1932. Oito anos antes, a 7 de dezembro de 1924, nascera em Lisboa o homem que poria fim ao seu legado: Mário Alberto Nobre Lopes Soares.
Seu pai, o educador João Lopes Soares, fora ministro da República e era dono do renomado Colégio Moderno, na capital. Opôs-se ao salazarismo até o fim da vida. Em casa e na escola, Mário aprendeu a odiar a ditadura.
Na faculdade tornou-se comunista, chegando a pertencer ao PCP. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em 1951 e em Direito em 1957, sempre pela Universidade de Lisboa. Foi advogado, professor, jornalista e escritor.
Participou de todos os movimentos de oposição a Salazar, e depois, a Marcello Caetano, e chegou a ser candidato a deputado em 1961, em eleições fajutas que a ditadura promovia e que a oposição eventualmente conseguia entrar.
EXÍLIO
Por sua militância implacável, Soares foi preso 12 vezes pela Pide —a temível polícia política lusitana, treinada pela Gestapo— e chegou a ser torturado. Azucrinou tanto o regime que foi enviado por Salazar a São Tomé, na África.
Seis meses depois, o ditador adoece e é substituído por Marcello Caetano. O motivo da punição extremada fora a investigação provando que o general Humberto Delgado foi assassinado na Espanha pelos esbirros da Pide.
Dissidente do regime, Delgado concorrera à Presidência contra o candidato de Salazar, fora perseguido e se exilara no Brasil. Tentava voltar clandestinamente a Portugal quando, na Espanha, foi alcançado pela polícia política.
Em São Tomé, o socialista escreve o primeiro tomo de seu livro de memórias, "Portugal Ameaçado", ao qual se seguirá, já na década de 70, "Portugal Amordaçado", lançado em Paris às vésperas da Revolução dos Cravos.
Perdoado pelo governo, deixa a ilha africana no final de 1968 e organiza a participação de grupos oposicionistas nas eleições de 1969, quando o país vive um clima de esperança com os acenos liberalizantes do novo governante.
Mais uma vez, porém, as trevas prevalecem e Marcello Caetano volta a apertar os ferrolhos da repressão, entoando a velha ladainha salazarista do "nós ou o comunismo" que faz sucesso no Ocidente em tempo de Guerra Fria.
A Soares resta o caminho do exílio. Parte com a mulher, a atriz Maria Barroso, e os dois filhos para Paris, onde foi professor universitário. Graças aos recursos da família, nunca lhe faltou dinheiro para poder se dedicar à política.
A esta altura suas ideias estão consolidadas. É socialista. Defende a democracia e a liberdade. Aceita o marxismo como método de análise histórica e econômica, mas abomina os regimes da União Soviética e dos seus satélites.
Vem dessa época a piada colhida no Partido Socialista francês e que repetiria tantas vezes: "Os comunistas não estão à nossa esquerda. Estão a leste".
15.jun.1975/AFP | ||
Em foto de 1975, Soares se encontra com o líder do Partido Social-Democrata alemão, Willy Brandt |
Aproxima-se dos líderes europeus da Internacional Socialista, do alemão Willy Brandt ao sueco Olof Palme, e em 19 de abril de 1973 cria o Partido Socialista, numa reunião na cidade alemã de Bad Münstenreifel.
Na plataforma da nova agremiação dois pontos se destacam: restauração da democracia e independência das colônias. Portugal mantinha, então, o maior domínio colonial do planeta: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, na África; Goa e Macau, na Ásia; Timor-Leste, na Oceania.
ARTICULAÇÕES PARA O GOVERNO
Um ano depois, a 28 de abril, retorna como herói a Portugal. Desembarca de trem, aclamado na Santa Apolônia, em Lisboa, que representará para ele o que foi a Estação Finlândia para Lênin.
Só que desta vez o menchevique ganhará a parada. Encontra-se imediatamente com o general António de Spínola, oposicionista conservador guindado ao comando da nação pelos oficiais militares que não sabiam direito o que fazer.
Logo se torna ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Provisório da Revolução dos Cravos. No cargo cumpre um dos pontos fundamentais do programa do seu PS, a independência de todas as colônias.
O segundo ponto —a construção de um regime democrático estável— ainda demandará muita luta e será na adversidade que Mário Soares se transformará no líder político mais notável da história de Portugal no século 20.
25.mai.1975/AFP | ||
Mário Soares visita fazenda do líder socialista francês François Mitterand em Latche, em maio de 1975 |
Entre 74 e 76, Portugal terá seis governos provisórios, todos com premiês militares, e três presidentes, também militares e legitimados pelas armas, não pelo voto: António de Spínola, Costa Gomes e Ramalho Eanes (este depois confirmado nas urnas).
Foram tempos de grandes comoções sociais, com reforma agrária, ocupações de terras e indústrias, nacionalizações de bancos, radicalização na universidade. A revolução estava nas ruas e os governos adernavam desordenadamente à esquerda.
Nesse cenário destacavam-se três personagens: Álvaro Cunhal, dirigente inconteste do Partido Comunista; Vasco Gonçalves, coronel e primeiro-ministro do 4º e do 5º governos provisórios (os mais esquerdistas do período); e Otelo Saraiva de Carvalho, major e ponta de lança da extrema-esquerda militar.
Coube a Mário Soares dar combate aos três ao mesmo tempo para repor o país nos trilhos da democracia representativa que almejava.
Alvaro Cunhal, confessaria Soares, foi um dos homens que mais o impressionou na juventude por sua determinação antisalazarista e pela coragem de trocar uma confortável carreira universitária pela ação clandestina no Partido Comunista.
Preso por muitos anos, Cunhal empreendeu uma fuga espetacular e reentrou em Portugal no rastro da marcha do MFA para liderar os comunistas. A aversão de Soares ao modelo socialista totalitário afastou-o de Cunhal já nos anos 60.
Mas a divergência ganha fôro de ruptura no dia 1º de maio de 1975. Um ano após a Revolução, Mário Soares, ministro, é impedido de subir ao palanque das comemorações pela tropa de choque do PCP.
21.abr.1975/AFP | ||
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975 |
Este é o episódio que o fará convocar o povo às ruas naquele 19 de julho que marcará o início do declínio inexorável do PCP (até hoje uma força política de pouca expressão no país).
Afinal, a eleição para a Assembleia Constituinte, pouco antes, em 25 de abril de 1975, já conferira uma importante maioria relativa aos socialistas (38%). Mário Soares contaria mais tarde como foi o choque derradeiro com Cunhal:
"Ele estava eufórico e me diz: 'Nós e os rapazes (era assim que chamava aos homens do MFA) vamos para a frente. Vocês, socialistas, podem fazer um grande bocado do caminho conosco. Ou vêm ou são dizimados'. Eu não tinha grandes ilusões sobre o Partido Comunista, mas nunca me tinha passado pela cabeça que quisesse reproduzir em Portugal de 1974 a Revolução Russa de 1917."
A história mostrou que o juízo de Soares era correto. Enquanto no resto da Europa Ocidental os PCs faziam uma profunda revisão de conceitos, os comunistas locais trabalhavam para criar um estado soviético em Portugal —um desvario total sob a sombra da Otan e os olhares vigilantes dos EUA, no auge da Guerra Fria.
O fato é que os comunistas quase leva Portugal à guerra civil. Altura em que Soares bate às portas das embaixadas britânica e americana para pedir apoio em caso de confito. "Julguei algumas vezes que a guerra era inevitável".
Enquanto o líder do PS articulava as forças democráticas no campo civil, dois outros personagens que seriam fundamentais para os destinos da nação portuguesa operavam nas entranhas do MFA: os majores Vasco Lourenço e Melo Antunes.
Eles criam o Grupo dos Nove —por serem nove membros do Conselho da Revolução que assinam um documento de fundo socialista, mas com vigorosa defesa da solução democrática.
Começa aí, no mais alto organismo do MFA, a derrocada —mais adiante definitiva— da ala da esquerda militar representada por Vasco Gonçalves (aliado dos comunistas) e Otelo Saraiva de Carvalho (da extrema-esquerda).
O GOVERNO
Um ano depois, sob a égide da nova Constituição ± progressista e democrática ±, o PS obtém retumbante vitória nas eleições legislativas que levarão Mário Soares ao cargo de primeiro-ministro do 1ë e do 2ë Governos Constitucionais da República Portuguesa (76-78).
A faina principal agora é arrumar as finanças e reerguer a economia. Com o fim da espoliação das colônias, a desorganização administrativa, as nacionalizações desordenadas e as greves sem fim, Portugal está quebrado.
E lá vai Soares aos EUA apelar ao FMI. É do FMI e da Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia, à qual Portugal aderiria em 86) que virão os recursos para a reconstrução econômica. Com austeridade, estrutura um Estado capitalista e previdenciário nos padrões clássicos da social-democracia europeia.
Desde então, o embate político dá-se fundamentalmente entre forças de centro-esquerda, leia-se Partido Socialista, e o centro-direita.
Nesse contexto, ganhando e perdendo eleições, Soares foi mais uma vez primeiro-ministro entre 83 e 85 até surpreender o país em 1986, lançando-se candidato à Presidência da República quando sua popularidade está no fundo do poço.
Enfrenta dois candidatos de esquerda e um adversário de direita amplamente favorito, o ex-primeiro-ministro Freitas do Amaral.
21.jan.2006/AFP | ||
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos |
Passa para o segundo turno raspando com modestos 25% dos votos contra 46% de Amaral. A centro-direita festeja antecipadamente, certo de que os comunistas (21% nas eleições) darão, enfim, o troco a Soares.
Não contavam que no dia seguinte ao primeiro turno, o taciturno Álvaro Cunhal reentraria em cena com a palavra de ordem: "Derrotar Freitas do Amaral". O velho comunista salva a carreira política de Soares.
Na chefia do Estado, Mário Soares, com seu jeito bonachão e firmeza de atitudes, transforma-se no líder mais popular do Portugal democrático, reelegendo-se em 1991 com mais de 70% dos votos no primeiro turno.
Dos três adversários, o que pontuou mais teve 14%. Terminou o segundo mandato presidencial em 1996 no ápice do seu prestígio e assumiu o comando direto da Fundação Mário Soares.
FRACASSO
Aos 81 anos comete talvez seu maior equívoco político, lançando-se novamente candidato à Presidência no pleito de 2006. Sofre uma derrota vexatória ao obter escassos 14,3% dos votos.
O conservador Aníbal Cavaco Silva vence no primeiro turno, com 50,6%. Admitiria mais tarde não ter seguido o sábio conselho da família: "de que era melhor que eu ficasse em casa".
Patrícia de Melo Moreira - 30.nov.2014/AFP | ||
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014 |
Desde então, Soares dedicou-se à sua Fundação, à participação como membro de júris e comissões, portuguesas e internacionais, até que com o advento da crise econômica europeia desdobrou-se em palestras e entrevistas contra a austeridade imposta pela UE (leia-se Alemanha) e FMI a países à beira da insolvência —Portugal incluído.
Afirmando que a Europa "está à beira do precipício", apelou, em junho de 2012, ao povo português para se opor firmemente ao plano de austeridade do "governo de centro-direita", chegando a elogiar as greves. Nessa cruzada, não poupou críticas à chanceler alemã Angela Merkel que —dizem nos bastidores— detestava.
Em "Um político assume-se", de 2011, fez uma espécie de balanço de sua vida em que, em meio ao relato de sucessos e desencantos, conclui com uma afirmação de esperança nos destinos da humanidade e reafirma sua crença no socialismo democrático.
Jamais perdeu o bom humor que o acompanharia até o fim. Afinal, não poderia viver de mau humor alguém que moldou o período mais virtuoso da moderna história de Portugal.
Alguém que transformou a "província imperial" de Salazar —arcaica e sem graça, isolada e cruel— numa nação democrática, desenvolvida, alegre e culta, orgulhosamente europeia. De certa forma, Mário Soares é o pai dessa pátria.
* PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor. Foi correspondente da Folha em Roma de 1978 a 1981.
Fonte: http://m.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1847975-soares-fez-provincia-imperial-virar-nacao-orgulhosamente-europeia.shtml?mobile
Luiz Carlos Azedo: A doença de Baumol
Aqui mesmo no Brasil, nos melhores hospitais e nas melhores escolas privadas, há inúmeros exemplos que poderiam ser adotados na rede pública
A doença de Baumol é o nome dado pelos economistas ao aumento das despesas com saúde e educação num mundo em que os custos de produção caem vertiginosamente graças ao aumento da produtividade. Essa “doença de custos” foi diagnosticada pela primeira vez em 1966, pelos economistas William J. Baumol e William Bowen, e até hoje não se encontrou uma cura efetiva para elas, seja no setor público, seja no privado. No Brasil, porém, os resultados são o colapso do sistema de saúde e a péssima qualidade de ensino.
Na discussão sobre a nova Lei do Teto dos Gastos Públicos, a maior reação contrária partiu das corporações ligadas aos dois setores, principalmente sanitaristas e professores. Como a discussão acaba sempre instrumentalizada pelos partidos, o viés do debate foi pautado pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Ou seja, o assunto virou trincheira da turma que acha que a antecipação das eleições vai resolver todos os problemas do país, sem considerar os riscos que isso teria, uma vez que viola o calendário estabelecido pela Constituição.
Apesar de ter mais de 50 anos, a hipótese de Baumol e Bowen está mais do que comprovada: as despesas com saúde e educação aumentaram de forma consistente em todo o mundo, enquanto os custos da produção desabaram com a revolução tecnológica. Honorários médicos, planos de saúde e despesas com o Sistema Único de Saúde, por exemplo, sobem mais do que a inflação. As despesas com educação também. Como são serviços que exigem trabalho humano personalizado, não podem ser automatizados na atividade-fim.
O crescimento da produtividade geralmente está associado ao resultado obtido pela hora trabalhada. Na indústria, de um modo geral, isso se traduz na automação da produção de bens, como os carros, por exemplo. Ninguém pode automatizar o atendimento aos pacientes ou aos alunos em sala de aula. Mesmo que se reduza a duração das consultas ou se aumente o número de alunos por sala de aula, há um limite rígido para a produtividade. O pensamento e a atenção não podem ser automatizados, mesmo à distância.
Também aqui no Brasil, esse fenômeno está por trás do crescimento das despesas com Saúde e Educação. O problema é a qualidade dos serviços, que deixa muito mais a desejar. Essa é a grande questão a ser discutida. É preciso melhorar a qualidade do atendimento à saúde e do ensino, já que não é possível impedir que os custos continuem aumentando. Mas, para isso, é preciso enfrentar uma outra questão: o corporativismo.
Orçamento
Vejamos o Orçamento da União de 2017. Saúde e Educação, ao contrário do que se dizia nas manifestações contra a nova Lei do Teto dos Gastos Públicos, terão valores maiores que os registrados neste ano. O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2017 (PLOA) entregue ao Congresso Nacional prevê despesas de R$ 110,2 bilhões, um valor 7,20% maior que o de 2016 e 6,06% acima do mínimo que o governo é obrigado por lei a desembolsar.
Para a Educação, a proposta é um orçamento de R$ 62,5 bilhões. Essa cifra é 2% maior que a de 2016 e 21,36% superior ao mínimo que o governo é obrigado pela Constituição a investir na área. Com os demais gastos em Educação, classificados como transferências de salário-educação e outras despesas, o orçamento total da área sobe para R$ 111,3 bilhões. Comparado ao ano passado, é 10,42% maior.
Com esses recursos, é possível melhorar. Em vários países, muitas alternativas de gestão adotadas no setor privado estão sendo utilizadas com sucesso no setor público. Aqui mesmo no Brasil, nos melhores hospitais e nas melhores escolas privadas, há inúmeros exemplos que poderiam ser adotados na rede pública, mas aparentemente não há um grande interesse nisso, porque as políticas públicas foram capturadas por grandes interesses privados.
Reduzir custos onde isso significa diminuir os lucros de fornecedores e prestadores de serviços não é uma tarefa fácil, ainda mais se isso tem a ver com financiamento de campanha ou apoio eleitoral propriamente dito. Além disso, professores e médicos reagem imediatamente quando as inovações e mudanças atingem seus interesses corporativos. Como? Cruzando os braços.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Luiz Carlos Azedo: A herança maldita
Um dos fatores de instabilidade do processo político, muito maior do que a impopularidade do presidente Temer, é a morosidade da Justiça
O governo Temer herdou de Dilma Rousseff uma herança pesada, a começar pelo desgaste político dele próprio, que não goza de popularidade e enfrenta uma oposição encarniçada, que não prima pela honestidade no discurso e, em alguns casos, pela propriamente dita. É uma herança maldita, para usar uma expressão cunhada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para maldizer seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Primeiramente, como diria o Odorico Paraguaçu — o impagável personagem criado por Dias Gomes e personificado por Paulo Gracindo —, Temer herdou a Operação Lava-Jato, que pode levar o ex-presidente Lula para a cadeia, como outros petistas e seus aliados, mas agora ronda o miolo do atual governo e ameaça boa parte da elite política do país. Essa é a variável mais imponderável.
Segundo (vamos deixar o Odorico de lado), enfrenta a maior recessão da história do país, resultado, de um lado, da roubalheira na Petrobras e seu “capitalismo de laços”; de outro, do experimentalismo irresponsável da “nova matriz econômica” (eufemismo de um projeto de capitalismo de estado nacional-desenvolvimentista) da ex-presidente Dilma Rousseff. Estamos com uma brutal taxa de desemprego e somente agora a inflação cedeu. A curto prazo não teremos reversão desse quadro.
Terceiro, uma base política muito heterogênea, da qual fazem parte as forças de centro-direita que apoiavam o governo anterior, a começar pelo PMDB, e as de centro-esquerda que protagonizaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Essa base é ampla para garantir a estabilidade do governo, mas rasa demais para aprovar reformas profundas. Além disso, em parte, padece dos velhos males do fisiologismo e do patrimonialismo que caracterizam a política tradicional brasileira, o que dificulta o ajuste fiscal.
Resumidamente, essa é a herança maldita com a qual teremos que conviver até 2018, quando haverá eleições gerais, conforme o calendário estabelecido pela Constituição brasileira. O tempo é curto para enfrentar os desafios do presente, e o futuro, incerto, principalmente por causa do julgamento das contas de campanha da chapa Dilma-Temer.
A tutela
Um dos fatores de instabilidade do processo político, muito maior do que a impopularidade do presidente Temer, é a morosidade da Justiça. Tudo bem que decorre do acúmulo de processos, mas é um problema político grave. O devagar-quase-parando do Supremo Tribunal Federal (STF), que julga parlamentares e ministros; do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os governadores; e do TSE, que aprecia as contas de campanha, na medida em que aumenta o estoque de políticos enrolados na Justiça, tutela os demais Poderes e desequilibra as relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Essa questão tende a agravar a instabilidade política no decorrer do ano, no qual os desdobramentos das delações premiadas de Emílio e Marcelo Odebrecht prometem fortes emoções políticas. Os tribunais não julgam, não separam o joio do trigo, não põem na cadeia quem merece, não livram a cara de quem não tem culpa no cartório. Com isso, o bloco dos que querem mudar as regras do jogo para garantir a impunidade no Congresso só aumenta. É inevitável, a não ser que os julgamentos ocorram.
Deixemos de lado a Lava-Jato. Vejamos o caso das contas de campanha de Dilma Rousseff. Até o flanelinha do estacionamento que separa a Câmara do STF sabe que já estão comprovados o uso de caixa dois da Odebrecht e a lavagem de dinheiro na campanha da petista. O que não sabe é se Michel Temer será condenado também ou se suas contas serão apartadas e aprovadas.
Caso o julgamento tivesse ocorrido, Temer estaria menos vulnerável ou já estaríamos com um novo presidente eleito pelo voto direto. Como não ocorreu (é a tal história, se vovó tivesse barba, era vovô), caso seja condenado como Dilma, teremos uma inédita eleição indireta no Congresso e muita “balbúrdia”, como diria o sociólogo Luiz Werneck Vianna. Quem tira partido dessa situação? O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já é réu em cinco processos, a maioria em Curitiba. Jararaca criada, o petista agora prega abertamente a antecipação das eleições gerais, com o argumento de que Temer não tem legitimidade para governar nem o Congresso para fazer reformas. Lula finge que a herança maldita não é sua também, só de Dilma. Quer ser absolvido da Lava-Jato pelas urnas.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/
Luiz Carlos Azedo: Propina made in Brazil
A casa caiu no Brasil e ainda vai cair nos 12 países envolvidos, pelo menos naqueles que têm imprensa livre e eleições democráticas
A Odebrecht admitiu ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos ter pago propina a funcionários do governo, a representantes desses funcionários e a partidos políticos de 12 países entre 2001 e 2016; a Braskem, subsidiária da empreiteira, também reconheceu o pagamento de US$ 250 milhões em subornos de 2006 a 2014. As informações constam do acordo de leniência assinado pelas duas empresas com a Suíça e os Estados Unidos, em decorrência da Operação Lava-Jato, no “maior caso de suborno internacional na história”. Mais de 100 projetos, em Angola, Argentina, Brasil, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala, México, Moçambique, Panamá, Peru e Venezuela, estão sendo investigados. Era uma espécie de “internacional da propina”.
O acordo foi divulgado ontem pelo Departamento de Justiça norte-americano, enquanto no Brasil ainda corria em segredo. A Odebrecht pagou aproximadamente US$ 788 milhões em suborno a funcionários do governo, lobistas e partidos político com o objetivo de vencer negócios nesses países, diz o departamento. Somente no Brasil, a Odebrecht admite o pagamento de cerca de US$ 349 milhões (R$ 1,16 bilhão) em propinas, entre os anos de 2003 e 2016. Ainda de acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a Braskem, que também firmou acordo de leniência com os EUA e com a Suíça, admitiu ter pago US$ 250 milhões em propina entre 2006 e 2014 no Brasil.
Segundo o Departamento de Estado, em troca, a Braskem recebeu tarifas preferenciais da Petrobras pela compra de matérias-primas utilizadas pela empresa; contratos com a Petrobras; e legislação favorável e programas governamentais que reduziram os passivos tributários da empresa no Brasil. Em nota, as autoridades brasileiras confirmaram que a força-tarefa da Operação Lava-Jato no Ministério Público Federal (MPF) no Paraná, em conjunto com o grupo de trabalho da Lava-Jato que atua junto ao Procurador-Geral da República, em 1º de dezembro passado, também firmou acordo de leniência com a Odebrecht S.A., holding do grupo Odebrecht, que se responsabilizou por atos ilícitos praticados em benefício das empresas pertencentes a esse grupo econômico. Com a mesma finalidade, o MPF firmou acordo de leniência autônomo também com a Braskem S.A. no dia 14 passado. Em consequência, todos os executivos das empresas que estavam presos foram libertados, com exceção de seu ex-presidente Marcelo Odebrecht.
Os acordos foram homologados pela Câmara de Combate à Corrupção do MPF, mas ainda serão submetidos aos juízos competentes, entre eles o da 13ª Vara Federal de Curitiba. “Nos dois acordos, as empresas revelaram e se comprometeram a revelar fatos ilícitos apurados em investigação interna, praticados na Petrobras e em outras esferas de poder, envolvendo agentes políticos de governos federal, estaduais, municipais e estrangeiros. Tais ilícitos, no âmbito do grupo Odebrecht, eram realizados com o apoio do setor de operações estruturadas, que teve suas atividades denunciadas pela Operação Lava-Jato”, destaca o MPF.
O outro lado da moeda é o compromisso de as empresas fornecerem informações e documentos relacionados às práticas ilícitas, ou seja, entregarem os políticos e agentes públicos envolvidos no esquema, nos diversos países. “A cooperação das empresas com as investigações em curso foi essencial para revelar os ilícitos praticados por empresas, agentes públicos e políticos no âmbito interno e internacional.” É aí que casa caiu no Brasil e ainda vai cair nos países envolvidos, pelo menos naqueles que ainda têm imprensa livre e eleições democráticas.
Paradigma
A Braskem se comprometeu a pagar R$ 3,1 bilhões na assinatura do acordo, dos quais R$ 2,3 bilhões ao Brasil, para fins de ressarcimento das vítimas. Já a Odebrecht se obrigou a pagar o equivalente a R$ 3,8 bilhões, dos quais aproximadamente R$ 3 bilhões também serão destinados ao Brasil, para ressarcir vítimas. Com a atualização dos valores, a Odebrecht pagará, por exemplo, R$ 8,5 bilhões, o que corresponde a aproximadamente US$ 2,5 bilhões. Segundo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, “embora seu principal objetivo seja apurar condutas ilícitas e expandir as investigações, a leniência permite também às empresas signatárias, que agora passam a atuar ao lado da lei, sanear os seus passivos e retomar a capacidade de investir, contribuindo para a preservação dos empregos e a retomada da atividade econômica”.
Há duas dimensões a se considerar nessa afirmação do procurador: primeiro, é o desmantelamento da rede de financiamento dos partidos políticos envolvidos no esquema; segundo, a refundação da Odebrecht e da Brasken, que se comprometem a adotar as boas práticas de governança corporativa, o que pode representar uma mudança de paradigma na relação entre os governos e as empreiteiras do país.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Luiz Carlos Azedo: Acabou a blindagem
Maia liderou a rebelião da base governista, com o líder do governo na Câmara, André Moura (PSC-SE), no gabinete de Meirelles, fingindo que negociava
O forte do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não é a paixão ideológica, é o cálculo político. Foi esse atributo que levou o ex-senador Jorge Bornhausen a ungi-lo muito jovem seu sucessor na presidência do partido, anos atrás, numa tentativa de renovação precoce da legenda, que acabou voltando ao controle do veterano senador Agripino Maia (DEM-RN). Ontem, friamente, após articular a aprovação da renegociação das dívidas dos estados e do Distrito Federal com a União, sem as necessárias contrapartidas, Maia liquidou com a blindagem da equipe econômica do ministro Henrique Meirelles: “Não dá para o pessoal da Fazenda, do mercado financeiro, que tem um coração que não bate com a emoção, ganhar tudo”, disparou.
Foram 296 votos a favor, 12 contrários e três abstenções. A proposta aprovada aumenta em até 20 anos o prazo para o pagamento de dívidas de estados e do Distrito Federal com a União. Aos estados que enfrentam crises financeiras mais graves, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o texto permite que o pagamento das dívidas seja suspenso por até três anos. Sem as contrapartidas defendidas por Meirelles: o aumento da contribuição previdenciária de servidores estaduais, a proibição da criação de cargos e o congelamento de salários.
Foi para o espaço o acordo duramente negociado pelo líder do governo, Aloysio Nunes (PSDB-SP), e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, no Senado. Como o acordo resultou numa alteração do projeto que havia sido aprovado pelos deputados, foi preciso essa nova votação na Câmara. Maia liderou a rebelião da base governista, com o líder do governo na Câmara, André Moura (PSC-SE), no gabinete de Meirelles, fingindo que negociava uma saída boa para a equipe econômica. “Os técnicos da Fazenda sempre querem mais, sempre querem um arrocho maior. Só que a crise que o país vive não foi vista nem na Primeira Guerra Mundial”, justificou Maia.
Em plenário, houve uma espécie de casamento do cachorro com a porca: o relator do projeto, Espiridião Amin (PP-SC), fez um acordo com o líder do PT, Afonso Florence (BA), que liderava a obstrução, para garantir a aprovação do texto sem as contrapartidas. Depois da votação, o líder André Moura, que andava sumido do plenário e enrolava Meirelles, apareceu para minimizar a situação: “Eu estava no Ministério da Fazenda negociando. Por isso, não estive na discussão da proposta. Não dá para estar em dois lugares ao mesmo tempo, não sou onipresente”, justificou. Moura argumentou que o projeto não significa uma derrota do Ministério da Fazenda, mas será para os estados se eles não aproveitarem a renegociação para equilibrar as contas. Ou seja, lavou as mãos.
Reeleição
Há dois aspectos importantes a serem considerados. O primeiro é o ambiente na Câmara, cada vez mais pantanoso, por causa da Operação Lava-Jato. Há uma espécie de salve-se quem puder na base governista, desde a saída do ex-ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima, situação agravada pelo fato de o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, ter sido bastante chamuscado pela delação premiada do ex-diretor da Odebrecht Cláudio Melo Filho. O segundo é a recessão econômica e a crise nos estados, que fazem aumentar a pressão dos governadores sobre os deputados federais, que disputarão eleições em 2018. São forças gravitacionais, digamos, que vão influenciar fortemente o comportamento das bancadas daqui para frente, contra as quais o Palácio do Planalto pouco pode fazer em matéria de exigir sacrifícios.
Outro aspecto relevante é o comportamento do próprio Maia, que pleiteia a reeleição e rearticula as forças que o apoiam na disputa passada, contra Rogério Rosso (PSD-DF). Maia fez aliança com o PT, com o PCdoB e com a antiga oposição (PSDB, PSB e PPS) contra os partidos do chamado Centrão, o bloco informal constituído por 13 legendas da base aliada do governo Michel Temer, liderado por PP, PSD, PR, SD e PTB. A disputa ameaça cindir a ampla base do governo na Câmara e já impediu que o novo ministro da Secretaria de Governo, Antônio Imbassahy (PSDB-BA), fosse nomeado para o cargo.
“Queremos ver se fazemos uma confluência máxima entre os partidos do grupo para não dar trombada”, disse o líder do PTB, Jovair Arantes (GO), que pretende disputar a Presidência da Câmara. Também é candidato o líder do PSD, Rogério Rosso (DF), que já disputou a vaga para o mandato-tampão neste ano, mas foi derrotado por Maia. A situação do presidente Temer na contenda é delicada, pois sua interferência pode implodir a base. O resultado da votação de hoje foi um grito de independência de Maia. Pode ficar somente nisso, mas pode ter outros significados, à medida que a crise ética avance em direção ao Palácio do Planalto. O presidente da Câmara é o sucessor legal de Temer nas interinidades.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Luiz Carlos Azedo: Política fora da lei
Como punir os políticos que comandavam o esquema e não punir os que dele se beneficiaram sem o saber?
A Procuradoria-Geral da República (PGR) protocolou ontem 800 depoimentos de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht que negociaram suas delações premiadas no âmbito da Operação Lava-Jato. Eles serão ouvidos, novamente, por juízes designados pelo ministro Teori Zavascki, relator do caso no Supremo Tribunal Federal(STF), para que as citadas delações sejam aceitas. Até lá, tudo está em segredo de Justiça. Pelo teor dos vazamentos, porém, quase toda a elite política do país está enrolada na Lava-Jato, como naquele samba famoso do Bezerra da Silva: “Se gritar pega ladrão…”
Desde o julgamento do mensalão, sabia-se que o sistema de financiamento da política e dos políticos no Brasil estava em aberta contradição com a Constituição de 1988. Seguia uma tradição na qual o que distinguia um político honesto de um desonesto era a formação de patrimônio e o enriquecimento ilícito com recursos públicos, e não a utilização de caixa dois, prática mais ou menos generalizada. O dinheiro do caixa dois, porém, na maioria dos casos, tinha origem ilícita, principalmente no desvio de recursos públicos mediante o superfaturamento ou a não execução de obras e serviços públicos.
Esse padrão de financiamento não tinha sustentabilidade legal, mas isso não foi levado em conta, porque havia um pacto corrupto entre o mundo político e o mundo empresarial, beneficiado por contratos e privilégios governamentais. Ocorre que os órgãos de controle da União, responsáveis por zelar pela legitimidade dos meios empregados na política, pouco a pouco foram desvendando os vasos comunicantes do sistema, o que culminou na Operação Lava-Jato. Nesse particular, a autonomia concedida à Polícia Federal, à Receita Federal e ao Ministério Público pela Constituição de 1988 revelou-se um instrumento muito eficaz. Os órgãos de controle do Estado passaram a ter um papel decisivo para que o problema fosse enfrentado. As delações premiadas da Odebrecht são desdobramentos das investigações que tiveram início com a simples suspeita de lavagem de dinheiro em um posto de gasolina de Brasília.
Desnudou-se não somente o maior esquema de corrupção do mundo, mas também um modelo de financiamento político e de acumulação de capital incompatíveis com o Estado de direito democrático. Quase todo o establishment político, a rigor, operava fora da lei. Aí está o maior problema da crise ética, pois isso revela um frágil equilíbrio entre a manutenção da ordem democrática e o funcionamento de suas instituições, a começar pelo Congresso. Como desfazer esse nó? Como punir os políticos que comandavam o esquema e não punir os que dele se beneficiaram sem o saber? Para a opinião pública, o juízo está feito. É só cantar o refrão do Bezerra: “não fica um, meu irmão!”. Para o devido processo legal, porém, é preciso provar a existência de caixa dois e o dolo. É aí que entra o Supremo Tribunal Federal (STF) como o desatador de nós.
Campanha
Por exemplo, o depoimento de Marcelo Odebrecht descreveria uma doação ilegal de cerca de R$ 30 milhões para a coligação “Com a Força do Povo”, que reelegeu Dilma Rousseff e Michel Temer. O valor representa cerca de 10% do total arrecadado oficialmente pela campanha. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já haveria provas de que o marqueteiro de Dilma, João Santana, teria recebido R$ 21,5 milhões do caixa dois da Odebrecht. A reprovação de suas contas pode levar à cassação do mandato do presidente Temer, a não ser que a contabilidade de campanha do então vice-presidente seja desmembrada.
Ontem, o juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava-Jato na primeira instância, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e mais oito pessoas na Operação Lava-Jato. A denúncia envolve a compra de um terreno para a construção da nova sede do Instituto Lula e um imóvel vizinho ao apartamento do ex-presidente, em São Bernardo do Campo. Lula é réu em mais três processos relacionados à mesma operação e está sendo investigado em outros quatro. Não é à toa que se queixa de perseguições políticas.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Ricardo Noblat: A Temer, o que lhe cabe fazer
“Todos sabiam que o apartamento pertencia a Lula.” José Afonso Pinheiro Ex-zelador do Condomínio Solares, em Guarujá.
Políticos que usaram dinheiro de caixa dois não deveriam escapar impunes da Lava-Jato. Caixa dois é crime. Ou infração eleitoral.
Uma coisa ou outra merece ser castigada. Mas não é justo que se puna quem se valeu de caixa dois apenas para se eleger como se punirá quem enriqueceu à custa dele, ou quem retribuiu o caixa dois com contratos públicos superfaturados ou não, ou quem recebeu propina.
DEVE SER VERDADE o que foi contado em delações à Lava-Jato sobre a participação de Michel Temer em esquemas de arrecadação de recursos para o PMDB, partido presidido por ele nos últimos 13 anos. Nenhum partido por aqui enfrenta eleições somente com dinheiro do Fundo Partidário. Não porque o dinheiro seja pouco, mas porque os gastos são grandes.
VIOLA-SE A LEI quando se aceita dinheiro de caixa dois. Pois bem: todos os partidos, absolutamente todos; quase todos os políticos, sempre ou em algum momento de suas vidas, receberam dinheiro de caixa dois. E omitiram da Justiça as despesas pagas com ele. A ex-ministra Marina Silva (Rede) jura que jamais aceitou um tostão de caixa dois. Definitivamente, o reino de Marina não é deste mundo.
A SEREM DENUNCIADOS e punidos como deveriam os filhos do caixa dois, não sobraria nenhum. Seria um dos maiores julgamentos coletivos da História — 513 deputados federais, 81 senadores, fora ministros, ex-ministros, governadores e ex-governadores. Sem falar dos doadores do dinheiro, na maioria empresários, mas nem todos interessados em fazer negócios desonestos.
ESTAMOS DISPOSTOS a enfrentar tamanho desafio? Que por suas apocalípticas dimensões não chegaria a bom termo em data que a vista alcança? Se estamos, adiante! E seja o que Deus quiser. Haveria outra saída? No quadro atual de dirigentes do país, não sei quem reuniria liderança e credibilidade para propor alguma. Propor e ser escutado. Todos são suspeitos.
OS GOVERNOS DO PT apostaram no “nós contra eles”. O impeachment de Dilma aumentou a polarização. A herança deixada por ela é demasiadamente pesada para ser administrada por um presidente legítimo, mas carente de apoio popular. Está, pois, nas mãos de Sérgio Moro e dos procuradores a seu serviço estabelecer ou não uma alternativa ao juízo final.
TEMER RECONHECE QUE pediu dinheiro para financiar campanhas do seu partido, mas jura que todo ele foi declarado à Justiça. Caso se prove que parte não foi, Temer será obrigado a encontrar quem responda por isso. José Yunes, seu assessor especial, pediu as contas. Os picos de pressão arterial sofridos ultimamente pelo ministro Eliseu Padilha poderão tirá-lo do governo em breve.
NADA DE GRAVE, por ora, ameaça encurtar o mandato de Temer. O diligente ministro Gilmar Mendes cuidará para que o julgamento das contas de campanha de Dilma e de Temer pela Justiça Eleitoral não leve o país a conhecer um terceiro presidente da República no curto período de um ano e, dessa vez, eleito por deputados e senadores como manda a Constituição.
A ELEIÇÃO DIRETA DE um novo presidente só seria possível com o apoio de três quintos dos votos do Congresso. À parte 63% dos brasileiros, segundo o Datafolha, e a oposição ao governo, ninguém mais quer eleição direta, já. Quem seria capaz de vencê-la prometendo fazer o que tantos esperam e desejam que Temer faça por eles? (Saio de férias por duas semanas. Saúde e paz para todos.)
Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br
Luiz Carlos Azedo: A corda bamba
Por que a situação de Temer não é igual à de Dilma? Porque não perdeu o apoio do stablishment do país, principalmente de sua base parlamentar
O governo do presidente Michel Temer chega ao fim de 2016 na corda bamba. Arca com o desgaste causado pela recessão e pelo desemprego, que é fruto dos desatinos da “nova matriz econômica” dos governos Lula e Dilma, e também pela adoção de medidas impopulares no ajuste fiscal, como a PEC do Teto dos Gastos e a proposta de reforma da Previdência. O maior complicador, porém, é a Operação Lava-Jato: Temer foi quem mais saiu desgastado com as delações premiadas de Marcelo e Emílio Odebrecht e dos executivos da maior empreiteira do país.
A última pesquisa do CNI-Ibope (apurada entre 1º e 4 de dezembro) não capturou todo o desgaste causado pelas citações a Temer nos depoimentos: o número dos que avaliam o governo como ruim ou péssimo subiu de 39%, em junho, para 46% em dezembro. Os que desaprovam a maneira de governar do presidente aumentaram de 55% para 64%. Apenas 13% consideram o governo ótimo ou bom, mesmo percentual registrado em junho. Em setembro, era de 14%. Naquele mês, 12% dos entrevistados não quiseram ou não souberam avaliar o governo. Esse número caiu para 6%. Ou seja, a popularidade do governo deve ser menor ainda.
Por que a situação de Temer não é igual à de Dilma? Porque não perdeu o apoio do stablishment do país, principalmente de sua base parlamentar, ao contrário da petista, cuja derrota começou exatamente porque perdeu a disputa pela presidência da Câmara, ao apoiar a candidatura do petista Arlindo Chinaglia (SP) contra Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Experiente parlamentar, pois exerceu a presidência da Câmara por três vezes, Temer sabe que não pode entrar em bola dividida pra perder. No momento, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) é um polêmico candidato à reeleição na Câmara e há mais dois nomes pleiteando o seu lugar: os líderes do PTB, Jovair Arantes (GO), e do PSD, Rogério Rosso (DF).
Na tumultuada eleição de Maia, em razão do afastamento de Eduardo Cunha do comando da Casa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o grande operador do Palácio do Planalto foi o ex-ministro Geddel Vieira Lima, que até hoje não foi substituído na Secretaria de Governo. Seu substituto temporário nas articulações políticas é o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, que acaba de sair chamuscado da delação premiada do ex-diretor da Odebrecht Cláudio Melo Filho. Qualquer que seja sua interferência no processo, será interpretada como orientação de Temer.
Há que se considerar que o novo presidente da Câmara será o sucessor imediato de Temer, caso o presidente da República seja impedido, o que torna mais tensa a disputa. O processo de cassação da chapa Dilma-Temer, impetrado pelo PSDB, ganhou mais densidade com a comprovação de irregularidades pelos investigadores da Polícia Federal, da Receita Federal e do Ministério Público. Caso o processo não seja desmembrado, a cassação da chapa implicaria na convocação de eleições indiretas, na qual o presidente da Câmara é um grande eleitor, se não for ele próprio candidato. Ou seja, Temer enfrenta um grande estresse político na sua retaguarda. Em contrapartida, a sucessão de Renan Calheiros (PMDB-AL) no Senado parece tranquila. O candidato natural do PMDB é o líder da bancada, Eunício de Oliveira (CE), que sempre foi um bom articulador, mas não raro aparece uma candidatura de oposição. Se a bancada do PMDB se dividir, pode haver surpresas na eleição.
Juízes e militares
Apesar da grande mobilidade social, na sociedade brasileira, a magistratura e os militares têm características de castas, embora sejam também vias de ascensão social, principalmente depois da Constituição de 1988. Nem de longe, porém, se parecem as milenares castas indianas: os brahmin, que são os sacerdotes e letrados; os kshatriya, os guerreiros; os vaishas, os comerciantes; e os shudrasdra, camponeses, artesãos e operários. A principal característica da casta é a endogamia, a transmissão hereditária de um estilo de vida, que frequentemente inclui a profissão. É nesse sentido que estamos falando.
O que sustenta a corda bamba de Temer, de um lado, são as Forças Armadas, que se mantiveram até agora rigorosamente de acordo com as suas atribuições profissionais, ao contrário do que aconteceu em todas as outras crises políticas da nossa história republicana anterior à redemocratização. De outro, a atuação moderadora do Supremo Tribunal Federal (STF), que às vezes é errática e intempestiva, devido à forte pressão da jovem magistratura e da sociedade, que apoiam maciçamente a Operação Lava-Jato. São sintomas, porém, de grande mudança de comportamento e de confiança na democracia e não na própria força. Mas é um equilíbrio frágil: se esticarem demais, a corda arrebenta; se afrouxarem, balança ainda mais.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Luiz Carlos Azedo: A crise na vida banal
A crise fiscal não é fruto somente da ampliação dos gastos sociais em consequência da Constituição de 1988, como muitos afirmam
Um dos efeitos mais deletérios da crise ética são os seus efeitos sobre a vida banal. Nosso “capitalismo de laços”, na sua face mais abjeta, foi desnudado pela Operação Lava-Jato: um pacto corrupto entre a elite política e as grandes empreiteiras do país para saquear os cofres públicos. Mas o fenômeno se reproduz também em relação às políticas públicas capturadas por grandes interesses privados na saúde, na educação, na segurança pública e na mobilidade urbana — os setores dos quais depende o cotidiano dos cidadãos.
É nesse contexto que devemos examinar a aprovação da PEC do teto dos gastos sociais. A crise fiscal não é fruto somente da ampliação dos gastos sociais em consequência da Constituição de 1988, como muitos afirmam. Além dos escândalos investigados pela Lava-Jato, há que se examinar a qualidade desses gastos. Até que ponto se consomem mais recursos com a própria burocracia e com o superfaturamento de insumos e serviços, para favorecer grandes grupos privados, em detrimento do atendimento direto ao cidadão?
Ao contrário do que muitos afirmam, o teto dos gastos não significará a redução automática dos recursos da saúde e da educação, essa é uma narrativa falsa, pois a lei limitará os gastos em geral e imporá escolhas mais racionais, ou seja, uma disputa política no debate do Orçamento da União. A crise de financiamento do Estado de bem-estar social é mundial, em razão das aceleradas mudanças na estrutura produtiva e da globalização, e gera um grande desconforto social. No Brasil, porém, esse desconforto foi exacerbado pela recessão econômica e pela crise ética.
As políticas públicas foram capturadas pelos grandes interesses econômicos e a chamada vida banal foi ignorada pelo poder público, principalmente nas periferias das grandes cidades. Essa é a verdade mais dolorosa. A mais forte reação ao necessário ajuste fiscal parte das corporações, embora não se possa ignorar a insatisfação dos setores verdadeiramente prejudicados pela péssima qualidade dos serviços.
A oposição atribui ao presidente Temer a responsabilidade pela recessão, como se nada tivesse a ver, por exemplo, com o corte de R$ 69 bilhões no Orçamento de 2015, no governo Dilma Rousseff. Os maiores ajustes foram efetuados nos ministérios das Cidades (R$ 17,2 bilhões), da Saúde (R$ 1,7 bilhão), da Educação (R$ 9,4 bilhões) e dos Transportes (R$ 5,7 bilhões). Ou seja, o maior impacto foi na chamada vida banal.
O outro lado da moeda da “focalização” dos gastos sociais nos mais pobres, que se traduziu durante os governos Lula e Dilma na transferência direta de renda para aproximadamente 13 milhões de famílias, foi o sucateamento das políticas “universalistas”. Saúde, educação, transportes e segurança pública ficaram em segundo plano; a prioridade foi expandir o consumo via endividamento do Estado e das famílias. Resultado: a vida melhorou temporariamente dentro de casa, mas se degradou da porta para fora. As eleições municipais foram eloquentes quanto a isso.
Há que se rediscutir a relação entre o SUS e os estabelecimentos privados, a hegemonia do lobby rodoviário nas políticas de transportes, o impacto da bolha imobiliária na qualidade de vida das cidades e a expansão do ensino em função da acumulação privada e não da necessidade de formação de mão de obra. No andar de baixo, traficantes e milícias controlam a vida banal, enquanto as gangues de colarinho branco cuidam do andar de cima. Com a recessão e o desemprego, a pressão social sobre os serviços e a violência aumentaram. A crise nas administrações locais agrava a situação: são elas que arcam com a maior parte dessas demandas sociais.
Vandalismo
Em circunstâncias normais, haveria um grande debate na sociedade sobre a necessidade de reinventar o Estado brasileiro, ajustando-o à realidade da economia, e de trocar privilégios por igualdade de oportunidades, com oferta de serviços essenciais de qualidade. A recessão e a crise ética, porém, turvam a discussão. O conflito em torno da distribuição dos recursos públicos é mascarado e instrumentalizado. As cenas de vandalismo ocorridas ontem em Brasília são um bom exemplo. De um lado, o reflexo inequívoco da insatisfação social; de outro, a radicalização política que a crise ética favorece.
O mesmo fenômeno tende a se reproduzir no debate sobre a Previdência. A necessidade da reforma é inequívoca, para sobrevivência do sistema, o que exige acabar com os privilégios. Mas a mudança significa também lançar aos ombros dos segurados os custos de todos os desatinos e falcatruas, o que inevitavelmente gera revolta. Encontrar um ponto de equilíbrio não é uma tarefa fácil, ainda mais num cenário politicamente deteriorado como o atual, no qual a elite política está mais preocupada com a própria sobrevivência e impunidade.
O ajuste fiscal e a reforma da Previdência são agendas estruturantes. O presidente Temer dispõe ainda de base parlamentar para aprovar essas reformas, mas a pressão social tende a aumentar e, com ela, a instabilidade política. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal, nesse cenário, manter o equilíbrio institucional. Para isso, porém, precisa começar a julgar os processos da Lava-Jato.
Luiz Carlos Azedo: Jornalista, colunista do Correio Braziliense e Diretor Geral FAP.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Luiz Carlos Azedo: O que fazer?
O país andará na corda bamba (a pinguela já era) até as eleições de 2018, com todos os grandes partidos sangrando, inclusive o PSDB
O país vive a maior crise política de sua história republicana, com a diferença de que ainda não ocorreu uma revolução, como a de 1930, ou um golpe de Estado, como em 1964. Estamos enfrentando a situação num ambiente democrático, embora uma parcela dos protagonistas da crise insistam na narrativa do golpe parlamentar para fugir à própria responsabilidade sobre o que está acontecendo. Não foi de uma hora para outra, mas a delação premiada do executivo da Odebrecht Cláudio Mello Filho, cujo teor vazou no fim de semana, desnudou um modelo de acumulação de capital e reprodução política que atenta contra o Estado de direito democrático. Esse é o xis da questão.
Uma só das delações — de 77 que serão feitas, as mais importantes de Emílio e Marcelo Odebrecht, os donos da maior empreiteira do país, não vieram à luz — sistematizou o funcionamento do nosso “capitalismo de laços”, com apoio da elite política do país, para promover a maior transferência de renda possível do Estado para empresas que atuavam nos setores mais dinâmicos da nossa economia urbana — complexo petroquímico, energia, indústria automotiva e construção pesada. Deixa claro também o mecanismo utilizado para emendar a Constituição e modificar as leis com objetivo de favorecer e garantir privilégios a essas empresas: a propina para os políticos, que garantiria a reprodução dos mandatos e o enriquecimento pessoal. Outro mecanismo de transferência de renda do Estado para os interesses privados, no caso os representantes de velhas e novas oligarquias. Segundo o relato de Cláudio Mello, 52 políticos receberam cerca de R$ 90 milhões em pagamentos de propinas, caixa dois e doações legais entre 2006 e 2014. É muita grana.
No vértice desse sistema de poder estava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o país de 2003 a 2010, cujo partido foi protagonista de uma espécie de divisão de trabalho entre as empreiteiras e os políticos, estabelecendo as regras do jogo. R$ 17 milhões daquele montante foram pagos a parlamentares em troca da aprovação de matérias que favoreceram a Odebrecht, mas há que se considerar as outras empreiteiras, montadoras de automóveis e empresas periféricas que atuavam no processo, inclusive do agronegócio. Seria má-fé ou ingenuidade acreditar que tudo começou no governo Lula, mas com certeza foi nele que o esquema atingiu a quase “perfeição”, acabando com o cada um por si e Deus por todos no Congresso. Um grupo restrito de políticos aliados, com controle da pauta de votações e das maiores bancadas, comandava a farra.
Também somente a ingenuidade ou a má-fé exclui a ex-presidente Dilma Rousseff, com sua caneta cheia de tinta, do processo. O modus operandi político após a saída de Lula não funcionaria sem sua omissão; além disso, foi desse esquema que veio o dinheiro de suas campanhas milionárias de 2010 e 2014. Dilma não foi citada na delação do executivo, mas nas investigações sobre sua campanha eleitoral já há elementos que comprovam a vinculação do esquema com seu projeto político, haja vista as investigações sobre a atuação de João Santana e da mulher, Mônica Moura, nas eleições. As denúncias contra o presidente Michel Temer e integrantes de seu estado-maior, de parte de Cláudio Mello Filho, apenas corroboram que o esquema supostamente continuou funcionando, mesmo depois do governo Lula.
A propósito, vale destacar que a narrativa nacionalista da defesa do petróleo e da engenharia nacional, utilizada para tentar barrar a Operação Lava-Jato, era parte integrante de um projeto político que, ideologicamente, apostou no “capitalismo de Estado” como via de desenvolvimento e projeção política mundial. Um ambiente internacional favorável, do ponto de vista econômico, e as relações políticas do PT no plano internacional serviram para azeitar negócios no exterior, de onde parte da propina também saiu, graças a financiamentos do BNDES e relações políticas com regimes autoritários ou corruptos. Entre 2003 e 2015, Lula realizou 150 viagens pela América Latina, quase sempre acompanhado um diretor da Odebrecht, hoje um dos delatores do esquema: Alexandrino Alencar. Mantinha relações incestuosas com a Odebrecht e outras empreiteiras.
O colapso
O que fazer diante de tudo isso? Esse é o dilema que o país vive. A cassação do mandato de Dilma Rousseff pelo Congresso não arrefeceu a crise econômica, muito menos zerou a crise ética. Foi a saída encontrada pelo establishment e a oposição para salvar o país da completa bancarrota. As novas denúncias e as manobras para encerrar a Operação Lava-Jato, que fracassaram, desgastaram muito o Palácio do Planalto. Além disso, a crise econômica não arrefeceu, porque se trata do colapso de um modelo de acumulação perverso, tecido ao longo de décadas, sob o olhar cúmplice de uma alta burocracia federal acomodada em seus privilégios. Temer não está livre de ter o mandato cassado no julgamento da campanha de Dilma, mas isso não resolveria a crise, pois haveria uma eleição indireta por um Congresso desmoralizado.
A Constituição não permite a antecipação das eleições nem a convocação de uma Constituinte. A fleuma de Temer e sua base política é que garantem a sobrevivência do governo, tão impopular quanto o de Dilma. O país andará na corda bamba (a pinguela já era) até as eleições de 2018, com todos os grandes partidos sangrando, inclusive o PSDB. Que o seja, para garantir a democracia.
*Luiz Carlos Azedo: Jornalista, colunista do Correio Braziliense e Diretor Geral FAP.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br