política

Luiz Carlos Azedo: Será o fim do patrimonialismo?

Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção

A emblemática privatização da Casa da Moeda, anunciada ontem pelo governo, vai muito além da desmobilização de seu patrimônio e concessão de serviços. É a joia mais antiga da coroa do nosso velho patrimonialismo. Fundada em 1694, em Salvador, por Dom Pedro II de Portugal, foi criada para cunhar moedas de ouro de circulação exclusiva no Brasil. Desde então, é responsável pela produção do meio circulante brasileiro e de outros produtos de segurança, como passaportes com chips e selos fiscais. O complexo industrial, localizado em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, por exemplo, é um dos maiores do gênero no mundo, com três fábricas da empresa (de cédulas, de moedas e gráfica); na antiga sede no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, inaugurada em 1868, hoje funciona o Arquivo Nacional.

Dois dias depois de anunciar a privatização da Eletrobras, uma gigante estatal com receita de R$ 60,7 bilhões e 24 mil empregados — com 13 subsidiárias, 178 empresas e 223 usinas hidrelétricas —, o governo anunciou um Programa de Parcerias de Investimento (PPI) no qual 57 novos ativos foram disponibilizados, entre aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Segundo o ministro da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco, o objetivo é “enfrentar a questão do emprego e da renda”. O governo não sabe ainda quanto pretende arrecadar com os novos leilões, mas estima que representarão R$ 44 bilhões em investimentos. O objetivo é elevar as receitas num momento de arrecadação fraca e deficit fiscal de R$ 159 bilhões.

Na prática, foi anunciada ontem a decisão política de se desfazer do patrimônio, sem que tenham ficado muito claras as regras do jogo. Não houve uma prévia discussão no interior da equipe econômica da modelagem das privatizações. O modelo será selvagem, como aconteceu com o programa do primeiro-ministro russo Boris Yeltsin, ou cercado de garantias institucionais, como nas privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso? As duas experiências ocorreram na década de 1990 e servem de paradigma para investidores do mundo inteiro quando se trata de lidar com os chamados países emergentes.

O programa reabre a discussão sobre o patrimonialismo no Brasil. O conceito foi criado por Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, e adotado por alguns dos chamados intérpretes do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Victor Nunes Leal (Coronelismo: enxada e voto, 1948). Em 1978, o tema foi retomado com a reedição da obra de Raymundo Faoro Os donos do poder, a formação do patronato brasileiro (1958), que mostra as dificuldades em separar o patrimônio público dos bens privados para a construção de um Estado moderno, baseado no respeito aos preceitos legais.

Privatizações
A crise do Estado de bem-estar social na Europa e o chamado “Thatcherismo” coincidiram, no Brasil, com a crise do modelo nacional desenvolvimentista, que proporcionara o chamado “milagre brasileiro” no auge do regime militar. Após a vitória conservadora no Reino Unido, em 1979, a primeira-ministra Margaret Thatcher privatizou a maior parte do setor público, contra a opinião dos trabalhistas e a mobilização dos sindicatos, que acabaram derrotados depois de uma greve de mineiros que durou mais de um ano. Nos meios intelectuais, o debate sobre as privatizações emergiu como uma espécie de saída para a crise de financiamento do setor público e superação do patrimonialismo em meio à luta pela democratização do país. Mas morte de Tancredo Neves, em 1985, de certa forma, frustrou uma reforma liberal.

Agora, a Operação Lava-Jato repôs esse debate na ordem dia. A passagem do PT pelo poder, economicamente intervencionista e estatizante, exacerbou o fisiologismo, o clientelismo e o patrimonialismo. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder, mas seus aliados permaneceram no controle das estruturas de governo, a começar pelo PMDB, cujas práticas patrimonialistas dispensam apresentação. Doutrinariamente, caberia ao PSDB liderar a retomada do debate sobre as privatizações, mas o que está acontecendo é outra coisa. Foi o núcleo peemedebista ligado ao presidente Michel Temer que resolveu desatar o nó das privatizações.

Como se dará esse processo? Essa é a grande indagação no mercado, porque as regras não estão claras. Na Rússia, as privatizações selvagens de Yegor Gayder, ministro de Boris Yeltsin, transformaram burocratas comunistas em magnatas capitalistas da noite para o dia. Putin virou um novo czar da Rússia ao pôr ordem no processo, com apoio da classe média generalizada que surgiu da restauração capitalista. No Brasil, a recessão impediu a consolidação da chamada nova classe média, lançada ao desemprego e à falência, mas a retomada do crescimento pode viabilizar isso. É uma aposta para 2018 se a reforma do Estado avançar na administração direta e na Previdência e os investimentos vierem. Muitos desses investidores são africanos, árabes, russos e chineses, que gostam de jogo bruto. Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção e o mau uso do patrimônio do Estado. Ele pode ser abortado por privatizações a toque de caixa.


Miriam Leitão: Energia em choque

O governo anunciou ontem que vai privatizar a Eletrobras, mas, na área de energia, o que deu choque o dia inteiro foi o conflito com Minas Gerais em torno das usinas da Cemig. A pressão política é para que elas sejam devolvidas à estatal mineira, e a empresa quer que o dinheiro saia do BNDES. Essa é apenas uma das várias frentes de batalha entre a economia e a política.

A venda de ações da Eletrobras, que pode render R$ 20 bilhões e vai diluir a participação da União na estatal, vai no caminho oposto ao que se discutiu o dia inteiro em torno da Cemig. O caso foi criado pela MP 579, de Dilma Rousseff, que impôs às geradoras a renovação antecipada das concessões ou o seu fim na data contratual. O estado era governado pelo PSDB e não aceitou a imposição. Agora, na hora de cumprir o que foi determinado, Minas Gerais é governada pelo PT, partido autor da proposta que agora se contesta. Neste momento, contudo, que a Cemig está para perder as usinas, formou-se uma coalizão em favor da estatal mineira que tem integrantes de diversos partidos. Esse grupo tem pressionado para que não seja feito o leilão que está marcado para o dia 27 de setembro e no qual o governo espera arrecadar R$ 11 bi. O governo conta com os recursos desse leilão para atingir a meta de R$ 159 bilhões de déficit este ano.

A bancada mineira propõe que a Cemig pague pela renovação das concessões de quatro hidrelétricas — São Simão, Miranda, Jaguara e Volta Grande — mas a equipe econômica acha que a estatal mineira não tem as garantias suficientes para fazer frente a um valor tão alto. A empresa não consegue apresentar uma proposta estruturada e tem pedido que o BNDES lidere um pool de bancos para emprestar à Cemig.

Existem outras frentes de problemas entre a política e a economia. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) se indispôs com o governo após o veto a várias emendas feitas à Proposta de Lei Orçamentária. O ministro Dyogo Oliveira vai hoje à CMO explicar as razões dos vetos, muitos causados pelo fato de as propostas dos parlamentares terem sido sobre atribuições do executivo. O governo tenta também negociar o salvamento da proposta do Refis, oferecendo o adiamento do prazo de adesão e tentando a reformulação da proposta para evitar o relatório que transformou a renegociação de dívida num perdão dos devedores. Há, além disso, as divisões internas que agravam potenciais conflitos, como no caso da MP 777, que muda a taxa de juros de longo prazo, cobrada pelo BNDES.

O governo está fragilizado politicamente e os parlamentares que votaram para derrotar o pedido de investigação sabem que o presidente depende deles, principalmente diante da potencial ameaça de um novo pedido de investigação. A crise fiscal aumenta a dependência do governo de medidas que passam pelo Congresso. A maioria absoluta das propostas precisa da aprovação dos parlamentares. O governo tem que aprovar a nova meta para 2017, enviar o Orçamento de 2018, depende da aprovação de um projeto do Refis que signifique arrecadação e não doação de recursos a devedores, conta com os recursos do leilão das hidrelétricas mineiras para a meta de 2017. Tudo isso gera atrito entre a equipe econômica do governo e os políticos da base partidária.

Esses conflitos em torno de medidas específicas, e projetos que precisam apenas de maioria simples, servirão de testes para se saber se haverá chance de votação da reforma da Previdência. O risco é votar uma reforma desfigurada. Mas agora o perigo mais imediato é que nessas escaramuças na área fiscal seja difícil atingir-se a meta deste ano. Se o governo Temer ceder à bancada mineira no leilão das usinas, que eram da Cemig, a meta correrá perigo de não ser atingida. Além disso, aumentará a contradição com a decisão anunciada ontem sobre a Eletrobras. Diante de um problema parecido, de perda de ativos da Eletrobras, o governo vai fazer uma oferta primária de ações ao mercado, perdendo o controle da estatal, para que a empresa tenha recursos para pagar ao Tesouro e assim ter de volta as usinas. Não pode fazer o oposto e ajudar a Cemig a manter seus ativos à custa de recursos emprestados por bancos públicos.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Um partido pra chamar de meu

O PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão

A dialética do processo político brasileiro, digamos assim, será ditada por duas tendências que se fortalecem na medida em nos aproximarmos da eleição: o enfraquecimento do governo Temer, de um lado, e o surgimento de candidaturas mais ou menos competitivas de outro. Duas já estão postas: a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a de Jair Bolsonaro (PSC). A única alternativa possível para o presidente Temer reverter essa tendência e não ficar isolado e moribundo no fim de seu mandato é apoiar uma candidatura forte o suficiente para reagrupar sua base e gerar uma nova expectativa de poder.

Essa é a operação em curso no Palácio do Planalto, mas passa por uma definição do PSDB em relação ao candidato da legenda, que hoje se digladia em torno de dois nomes: o governador Geraldo Alckmin, que seria o candidato natural, e o prefeito de São Paulo, João Doria, que entrou em campanha aberta, atropelando o seu criador político. Como o PSDB é uma variável sobre a qual Temer não tem controle, o presidente e os aliados começaram a meter a colher na luta interna dos tucanos, o que pode não ser uma boa ideia, mas nada impede que dê certo. Essa é a magia da política.

Em razão do poderio político e econômico do governo de São Paulo, o governador paulista ocupa o vértice de um sistema de poder controlado pelos tucanos, que passa pela estrutura partidária, mas é ancorado nos governadores, senadores, deputados federais e prefeitos da legenda. Por essa razão, como nas eleições de 2006, quando o senador José Serra (PSDB-SP) foi preterido, será muito difícil deslocar a candidatura de Geraldo Alckmin, ainda mais porque as alternativas que lhe restariam seria disputar uma vaga ao Senado ou ficar no cargo até o fim do mandato. Ocorre que a candidatura que empolga os aliados do PSDB no governo Temer é a de Doria.

Essa é a questão por trás da polêmica sobre o recente programa do partido, que ensaiou uma autocrítica em relação à Operação Lava-Jato e certa posição de apoio crítico ao governo Temer, cuja frase síntese é “O PSDB errou”. O eixo político do programa foi a crítica ao “Presidencialismo de cooptação”. O resto é detalhe.

No período imediatamente anterior à elaboração do programa, houve a votação do pedido de afastamento de Temer para a investigação da denúncia contra o presidente da República, que rachou a bancada do PSDB. Logo após, um caloroso encontro do presidente Temer com Doria, em São Paulo, sem a presença de Alckmin. Depois, uma afetuosa conversa de Doria com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e a acalorada visita a Salvador, a convite do prefeito ACM Neto (DEM), na qual o prefeito paulista transformou a ovada que levou de um manifestante numa fortificante gemada política.

Novo bloco
A movimentação do prefeito Doria sinalizou para Temer e seus aliados do DEM a possibilidade de se antecipar à convenção do PSDB e iniciar as articulações para fazer de Doria o grande candidato de centro democrático, num movimento no qual a ala tucana que apoia o governo ameaça deixar o partido, da mesma forma como estão trocando o PSB pelo DEM os políticos dessa legenda que apoiam o governo.

Há duas alternativas: a primeira é a incorporação de Doria e todos os dissidentes pelo DEM; a segunda, o surgimento de um novo partido, que teria Doria como candidato, aproveitando a estrutura de um dos partidos aliados. Há vários, de médios a pequenos, à esquerda e à direita do PSDB, à disposição das manobras de Temer. Para Doria, poderia ser a melhor alternativa para não desconstruir a imagem de representante do novo na política, com o puro e simples ingresso no PMDB. Além disso, pode funcionar como um xeque-mate no alto tucanato.

Tudo isso ocorre em meio a uma reforma política feita sobre medida para mudar deixando tudo como está. Trata-se de mais uma faceta do nosso “transformismo” político, no qual recentemente o PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa parece que pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão.

O fenômeno é característico de processos políticos nos quais os partidos se descolam das bases eleitorais e buscam se reposicionar com objetivo de manter ou voltar ao poder. Com o colapso de certas utopias e a formação de uma classe dirigente que detém o domínio político do Estado, não importam suas mazelas, as lideranças moderadas e conservadoras buscam absorver os quadros mais ativos de grupos aliados e, eventualmente, até antigos adversários.

 


Fernando Gabeira: Conta de nunca chegar 

Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro. Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.

Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal, lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”. Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20 bilhões em 2017 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.

Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem alguns bilhões para financiar suas campanhas.

Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.

As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$ 500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e penduricalhos.

Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?

Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos, em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país. Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.

O grande problema da necessária austeridade é o próprio governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.

Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata. Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.

Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga. Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados. A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em 2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.

Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é dividido.

Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que salários tão altos, tantos penduricalhos?

No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso, tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso: teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.

O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade de serviços públicos deveria vir do universo político.

Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.

 


Luiz Carlos Azedo: A memética da Lava-Jato

Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos

Para quem gosta de analogias para explicar o que está acontecendo no mundo da política, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade, do israelense Yuval Noah Harari (L&PM), é um prato cheio. Uma das pérolas do livro é a referência à tese neodarwiniana de que, além dos genes replicadores das espécies responsáveis pela evolução orgânica da Terra, existiria um replicador responsável pela transmissão de informações culturais de uma geração para a outra: os “memes”.

Com base nela, alguns estudiosos já tratam a cultura como uma espécie de epidemia infecciosa, provocada por um parasita mental, sendo os homens seus hospedeiros voluntários. Harari entra nessa seara para explicar o que poderíamos classificar de “pós-fim da história”. Explico: quando acabou a União Soviética e o Leste europeu derivou de volta ao capitalismo, graças a um artigo de Francis Fukuyama (célebre economista e filósofo americano de origem japonesa, que foi um dos ideólogos de Ronald Reagan), que depois virou livro, a velha tese do “fim da História” de Hegel ressurgiu das cinzas. Harari vai além: defende que a História não é feita pelos e para os humanos.

Segundo ele, não há provas disso. O fio condutor do seu livro é a saga de uma das seis espécies de humanos que habitavam a Terra há 100 mil anos, os sapiens, que exterminaram os neandertais. Mas, entretanto, a História não atuaria em prol dos humanos. Ela não seria fruto de decisões de seus governantes e líderes, mas dos tais “memes”: “Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que o seu hospedeiro se encontra”. Da mesma forma, as ideias culturais viveriam dentro da mente dos humanos. “Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando.”

A tese exposta por Harari é perturbadora e nos remete aos conflitos religiosos e raciais e à crise humanitária do Mediterrâneo, berço da nossa civilização. Desde o fatídico 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas de Nova York, as cidades mais cosmopolitas do mundo deixaram de ser lugares seguros para morar, trabalhar e visitar. “Uma ideia cultural — tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra — pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha.”

Narrativas
A memética é uma polêmica abordagem antropológica: “Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos. Essa forma de abordagem é tratada como um amadorismo pela academia, que considera essa analogia muito tacanha. Mas, com a mais fina ironia, Harari situa o pós-modernismo acadêmico como uma espécie de irmão gêmeo da memética, pois seus defensores falam que os discursos, como os blocos construtores de cultura, também se propagam sozinhos. O nacionalismo e a guerra seriam frutos desse fenômeno. A pós-verdade estaria ainda mais associada aos “memes” com suas “narrativas”.

Mas o que isso tem a ver com a crise ética, política e econômica que estamos vivendo? Ora, muita coisa. Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos. Além da reprodução biológica facilmente constatável pelos velhos sobrenomes de batismo das oligarquias — a genealogia começa no Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre —, a cultura do desvio de dinheiro público e do caixa dois tornou-se tão dominante na política que os investigados na Operação Lava-Jato, mesmo sabendo das quebras de sigilo bancário, das escutas telefônicas, das buscas e apreensões e prisões, não conseguem viver sem maços de dinheiro vivo guardados nos armários, caixas de joias, viagens de jatinho e contas bancárias milionárias.

A Operação Lava-Jato desencadeou uma espécie de guerra de “memes” entre políticos, magistrados, promotores, delegados, auditores e advogados, no qual duas grandes correntes se digladiam, uma quer nos livrar dos “memes” da corrupção, outra tenta nos salvar dos “memes” do autoritarismo. E bilhões de reais deixam de ser gastos em saúde e educação. Outra vez, a tese do Harari: a História não leva em conta a vida dos indivíduos. Bom domingo!


José Antonio Segatto: Política e representação

Os problemas do voto proporcional poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples. Mais uma vez, como tem ocorrido invariavelmente em todos os momentos de crise, a reforma política é aventada como panaceia para todos os problemas do sistema de representação e gestão política do País. Em suas diferentes versões, tanto em sentido estrito (mudanças na legislação eleitoral e de regulação partidária) como lato (alterações na forma de governo), seria condição indispensável para conformar o sistema político à governabilidade e à democracia. Uma das medidas primordiais seria a substituição do voto proporcional pelo majoritário/distrital para a eleição de deputados federais e estaduais.

Seus defensores justificam que seria a melhor maneira de aproximar os eleitores da política – a delimitação espacial das circunscrições eleitorais avizinharia representados e representantes, facilitando a cobrança de uns e forçando a prestação de contas de outros. Além disso, tornaria os pleitos menos custosos, eliminaria as deformações do sistema proporcional, em que o eleitor não tem controle de seu voto, e, o que mais importa, diminuiria a quantidade de partidos, excluindo mesmo as minorias e/ou as pequenas legendas, convertendo a governabilidade em algo mais exequível.

Essas razões que embasam as proposições em prol do sufrágio majoritário/distrital podem ser objetadas em muitos de seus aspectos: 1) a divisão das atuais circunscrições eleitorais (Estados) em unidades bem menores, correspondentes à quantidade de representantes nos Parlamentos, coloca o problema da delimitação de suas fronteiras pelo número de eleitores e a diferença entre os pleitos (federais e estaduais), com quantuns diversos de representantes; os critérios para o redesenho dos distritos podem implicar ordenações arbitrárias de privilegiamento de interesses locais ou regionais e oligárquicos. 2) As eleições majoritárias uninominais, ao eleger candidatos por maioria simples, eliminam minorias (mesmo que expressivas), tendem a resultar em governos unitários e subtraem atribuições dos partidos políticos, fomentando o personalismo. 3) A tese de que aproxima os cidadãos de seus representantes por meio da defesa de interesses locais é falaciosa; os atributos de um deputado federal é o de legislar e tratar de questões nacionais, e não de demandas particularistas ou regionais – o risco que se corre é o de conceber vereadores federais (ou estaduais) ou despachantes paroquiais. 4) É duvidosa a alegação de que o sistema de voto distrital diminui os custos das campanhas; os dados revelam que as eleições majoritárias, mesmo que limitadas espacialmente, são sempre mais caras que as proporcionais. 5) O argumento segundo o qual as eleições por distritos menores amplificariam a eficácia parlamentar e potencializariam a representação contém forte teor ideológico, pois, ao contrário, a probabilidade de gerar correspondência assimétrica entre os votos e a representação é bem mais elevada nos pleitos majoritários do que nos proporcionais – exemplos disso são os sistemas eleitorais distritais norte-americano, inglês, francês e outros.

Seria possível enumerar outros problemas do voto distrital/majoritário e suas impropriedades para a representação política democrática. Acredito, entretanto, que os já enumerados são suficientes para apontar que o sistema de eleições proporcionais, embora imperfeito, tem se mostrado mais equitativo para representar a soberania popular, conforme indicam as experiências – mesmo as propostas híbridas, mescla do voto majoritário uninominal com proporcional de lista fechada, como o sistema distrital misto, não revogam suas vicissitudes.

Ademais, as facções políticas que pregam como imperioso o voto majoritário/distrital o apresentam como uma grande novidade e remédio para os muitos males da política brasileira. Esquecem-se, como que numa amnésia histórica, de que tal tipo de sistemática eleitoral foi utilizada por um longo período no País – obviamente que em outras circunstâncias e/ou época –, no Império e na República, desde meados do século 19 até 1930. Seus resultados não foram nem um pouco promissores – atendeu cabalmente aos propósitos do domínio oligárquico e coronelista e às conveniências políticas de uma elite parcamente democrática.

Substituindo o sistema distrital, o de voto proporcional de lista aberta em circunscrições (distritos) equivalentes aos entes nacionais (Estados) vem sendo praticado há mais de sete décadas e, ao longo desse período, sofreu alterações diversas. É inegável que, não obstante certos aperfeiçoamentos, contém ainda muitas imperfeições. Por exemplo: o fato de o eleitor votar em fulano e, com frequência, eleger sicrano, votar no candidato do partido x e eleger o postulante do y (nas coligações); o constante encarecimento das campanhas e as interferências do poder econômico em seu financiamento; entre outras resultantes indesejáveis.

Esses problemas, entretanto, poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples como a proibição de coligações nas eleições proporcionais e/ou sua substituição pelo mecanismo de federações partidárias; a troca da lista aberta pela lista fechada flexível, estabelecida em prévias eleitorais partidárias, etc. A estas poderiam ser vinculadas a fixação de uma cláusula de barreira para que o partido tenha direito ao funcionamento legislativo, acesso ao fundo partidário e ao horário eleitoral gratuito; de um fundo para financiamento público de campanhas eleitorais; a correção da desproporção de representação entre os Estados na Câmara e no Senado; etc. Tais medidas, indubitavelmente, seriam providenciais para salvaguardar a operacionalidade dos mecanismos de representação política e da soberania popular, afora regular o processo democrático, dando-lhe maior previsibilidade e legitimidade.

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp

 

 


Luiz Carlos Azedo: Descida da ladeira

Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado, a sucessão de 2018 vai para a rua.

É bom o Palácio do Planalto verificar os freios, porque começou a descida de uma sinuosa ladeira, que pode ser suave se o trem não descarrilar numa das curvas que nos levam às eleições de 2018. Ontem, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o governo não tem os votos mínimos para aprovar a reforma da Previdência no plenário. Defende a reforma, mas a prioridade dos integrantes da base do governo, depois de salvarem o presidente Michel Temer do afastamento, é cuidar da própria eleição. “Hoje, nós não temos voto para aprová-la, e eu estou deixando bem claro isso entre os líderes”, disse.

A reforma precisa de 308 votos dos 513 deputados para ser aprovada no plenário da Câmara. O relatório do deputado Arthur Maia (PPS-BA), apesar de amplamente negociado e com consistência técnica, nunca teve apoio suficiente para ser aprovado. Estava chegando perto disso quando foi anunciada a delação premiada do empresário Joesley Batista, que gravou Temer numa conversa no Palácio do Jaburu e descarrilou, para usar a linguagem ferroviária. A prioridade do governo mudou, passou a ser salvar o presidente da República à custa da negociação de cargos no governo e distribuição de verbas para a banda mais fisiológica do Congresso.

Passado o sufoco, o Palácio do Planalto deparou-se com uma nova realidade. A eleição de 2018 está logo ali para os deputados. Eles voltaram do recesso assustados com o desgaste político causado pela votação que rejeitou a denúncia do Ministério Público contra Michel Temer e mudaram de prioridade: em vez de reformas necessárias, que consideram impopulares, mudanças nas regras do jogo das eleições para garantir seus mandatos. Como? Com o “distritão”, que dispensa o voto de legenda e maiores composições partidárias, e o “fundão” de R$ 3,6 bilhões, com o qual poderão formar seus exércitos eleitorais, já que os partidos estão cada vez mais desgastados e com lideranças queimadas. Não é à toa que muitos senadores acompanham com lupa a reforma, pois concorrerão à Câmara e não ao Senado, por falta de apoio para disputar eleições majoritárias.

Maia registrou a insatisfação da base do governo após uma reunião com os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira, além de deputados líderes de bancada na Câmara. A pauta foi o desajuste fiscal do governo, que havia hasteado a bandeira da austeridade e aprovado a Lei de Teto de Gastos, sobre a qual ainda repousa a credibilidade da equipe econômica. Politicamente correto, o presidente da Câmara destacou a importância da reforma: “A mais estruturante, a mais definitiva, aliás, a única definitiva”.

Não será fácil garantir os votos porque a maioria dos deputados está de olho mesmo na reforma política, com seu “fundão” de R$ 3,6 bilhões para gastar nas eleições. A comissão especial da Câmara que analisou a reforma política concluiu ontem a votação do relatório, que agora seguirá para análise do plenário. Emenda à Constituição, a proposta também deve passar por dois turnos e obter em cada um o apoio mínimo de 308 dos 513 deputados. Se for aprovada, seguirá para o Senado. Essa é a prioridade, que promete ainda algum barulho, porque a repulsa da sociedade aos políticos só aumentou. É que as mudanças para valerem nas eleições de 2018 precisam ser aprovadas na Câmara e no Senado até 7 de outubro. E esse trem tem preferência de tráfego.

Sucessão
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado (Meirelles anunciou ontem a necessidade de o Congresso aumentar a meta de deficit para R$ 159 bilhões neste ano e no próximo), a sucessão de 2018 vai para a rua. Tucanos se bicam no ninho com dois candidatos paulistas, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria. Ambos estão em campanha aberta para atrair o PMDB e o DEM como aliados. As chances de alguém voar do ninho para outra legenda não é pequena.
Lula já pôs a caravana na rua faz tempo, mas sua campanha é híbrida: trata-se de uma blindagem contra a Operação Lava-Jato e, ao mesmo tempo, uma alternativa de poder. À sombra de Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad se movimenta para ser o “regra três” ou virar vice de Ciro Gomes (PDT), o que parece ser o plano B do ex-presidente da República se for impedido de disputar as eleições pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. Hoje, quem polariza com Lula é Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que ocupa o espaço do chamado “partido da ordem” com um discurso de extrema-direita. À esquerda, Marina Silva tenta domar a Rede e recuperar o espaço que ocupava há duas eleições. Álvaro Dias, do Podemos, já está em campanha, e outra estrela do Senado, o senador Cristovam Buarque (DF), colocou o seu nome à disposição do PPS para disputar a Presidência.


Luiz Carlos Azedo: A revoada dos perus

O “distritão” seria um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”

A aprovação do chamado “distritão” (depois explico) e do fundo de financiamento eleitoral de R$ 3,6 bilhões pela comissão especial que discute a reforma política na Câmara pode despertar forças que estavam adormecidas desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a começar pelo movimento Vem Pra Rua, que convocou manifestação de protesto para 27 de agosto intitulada “Marcha Contra a Impunidade”, em todo o país. A reação às duas propostas é tão forte que alguns políticos já estão se descolando da reforma, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que criticou os dois projetos.

Na Câmara, a reação de grande número de deputados parece uma revoada de perus às vésperas da ceia de Natal, para voltar à analogia avícola. Todos os deputados que se sentiram ameaçados pelo “distritão” (sistema no qual são eleitos os deputados mais votados, independentemente da votação de sua legenda) estão contra a mudança. São em número suficiente para barrar a emenda constitucional que viabilizaria a medida. O “distritão” é um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”, digamos assim.

O novo sistema está sendo criado para viabilizar a reeleição dos atuais deputados e blindar os políticos enrolados na Operação Lava-Jato. Não é o caso aqui, mas seria um bom exercício checar a lista de votação das eleições passadas e verificar quem hoje manteria o mandato e quem o perderia. No caso de São Paulo, por exemplo, seriam beneficiados os 70 mais votados; de Minas, os primeiros 53; do Distrito Federal, oito. Os votos nos demais candidatos da legenda seriam desprezados, o que mudaria completamente as características da Câmara, que bem ou mal representa hoje 100% do nosso eleitorado.

Deve-se ao diplomata e jurista Assis Brasil a criação do atual sistema proporcional, idealizado em 1932, mas somente sacramentado na Constituinte de 1945. Fundador do Partido Libertador, com Raul Pilla, só apoiou a Revolução de 1930 porque Getúlio Vargas havia se comprometido a aceitar o voto secreto. “Menino, todo homem tem seu preço. O venal se deixa comprar por dinheiro. O meu preço é o Código Eleitoral. E como vale mais a pena ladrar dentro de casa do que fora dela, aceito o ministério”, disse, ao justificar sua breve passagem pelo Ministério da Agricultura no Governo Provisório, ao qual renunciou em protesto pelo empastelamento do Diário Carioca.

Na sua obra Democracia representativa: do voto e do modo de votar, Assis Brasil antevia uma “máquina de votar”, o que seria hoje a nossa urna eletrônica. No sistema proporcional, cada estado (ou distrito eleitoral) elege um determinado número de representantes de acordo com sua população. O objetivo do sistema proporcional é garantir um grau de correspondência entre votos e cadeiras recebidas pelos partidos em uma eleição. Por exemplo, um partido que tenha recebido 15% dos votos teria direito a cerca de 15% das cadeiras. Nesse sistema, o partido apresenta uma lista de candidatos para as eleições; a distribuição das cadeiras é feita de acordo com os votos dados em cada lista.

Mas há outros métodos, como o voto distrital clássico, no qual o estado seria dividido em vários distritos, e cada distrito elegeria um deputado por maioria simples, isto é, 50% dos votos mais um. Assim, o candidato mais votado é eleito. E o distrital misto, uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Neste caso, os eleitores têm dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Já os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado.

“Fulanização”

O sistema proporcional teve como objetivo viabilizar a existência dos partidos, num país que emergia do Estado Novo e cuja tradição de “fulanizar” a política é tão velha como o costume de comer castanhas e perus na ceia de Natal. Essa cultura vem das primeiras câmaras municipais, que surgiram a partir de 1532. Eram compostas por 3 ou 4 vereadores, denominados “homens-bons”, geralmente grandes proprietários de terras. Escravos, judeus, estrangeiros, mulheres e degredados não podiam se tornar vereadores.

Essa “fulanização” era mais do que presente na época da Constituinte de 1945, na qual um mito político deixava o poder, Vargas, e outro era libertado da prisão, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, de mãos dadas pelo “queremismo” (Constituinte com Getúlio), que fracassou. No século passado, ambos foram “reencarnações” do nosso velho sebastianismo, movimento místico secular que surgiu após a morte do rei português D. Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Como não possuía herdeiros, o trono de Portugal ficou sob o controle do rei Filipe II, da Espanha.

Como o corpo de D. Sebastião nunca foi encontrado, o sebastianismo se traduziu na esperança da vinda de um salvador, em meio à inconformidade e ao sentimento de insatisfação com a situação política da época, mesmo que para isso acontecer fosse necessário um verdadeiro milagre, como a ressurreição do rei morto. No Brasil, o sebastianismo influenciou movimentos populares desde o Rio Grande do Sul até o Norte do país, sendo representado como alegoria nas folias de reis, principalmente no Nordeste. Não é exagero dizer que o “distritão” leva água para esse moinho.

 


Marco Aurélio Nogueira: À beira do precipício

A ideia de “bom governo” vem dos gregos e dos princípios platônicos de Bem, Justiça, Temperança, Prudência e Fortaleza. Tem um ineliminável conteúdo ético. Governa-se para o bem de todos, de modo justo e correto, sem excessos ou privilégios, tendo em vista o fortalecimento e o progresso da comunidade.

Por derivação, o “bom governo” está dotado de atributos decisivos. Para se realizar, precisa de apoio parlamentar, representatividade social e assessoria técnica qualificada. Precisa, também, de quem o comande e coordene, seja em termos institucionais, seja em termos de liderança ou autoridade pessoal. Carece, portanto, de uma institucionalidade equilibrada, respeitada pelos governados, e tanto quanto possível de uma liderança política que possa expressar, perante o povo, as virtudes que cimentam uma comunidade.

Um “bom governo”, porém, não é sinônimo de bom governante: este pode ser bondoso, puro, honesto e bem-intencionado, mas seu governo ser péssimo. Um tirano estraga um governo que poderia ser bom, mas um bom governo pode atenuar a tirania e eventualmente expeli-la. É preciso ver o conjunto, as articulações. Uma boa Presidência não é igual a um bom presidente.

Se olharmos as coisas brasileiras por esse ângulo, o que vemos se aproxima do horror. Falta-nos quase tudo. A vida moderna, com sua voracidade e sua turbulência, minou nossos fundamentos por um lado, ao passo que a classe política, os partidos e o sistema político fizeram o mesmo pelo lado oposto. Em um vórtice de sobressaltos e desacertos, reduziu-se drasticamente a qualidade ética, técnica, discursiva, intelectual, da política, que hoje rasteja perante o país, numa busca desesperada por reconhecimento e legitimidade.

Sejamos francos: chegamos à beira do precipício. A política já não mais responde. Lateja como um coração enfartado. Claro, nem tudo é política, a vida pulsa com intensidade às vezes até explosiva, segue em frente. Nem tudo é política e a política não é tudo. Mas, sem ela, falta a presilha para fechar o colar, fica tudo meio solto, desgovernado, as pérolas saltam fora e esparramam pelo chão.

Seria então a hora dos setores mais lúcidos da sociedade fazerem alguma coisa. Como permitir que as coisas sigam nessa toada, insistindo em nos empurrar para o precipício?

Aí, você olha para a esquerda, para o centro e para a direita, para o Estado e a sociedade, para as universidades e as associações da sociedade civil, para trabalhadores e empresários, para ONGs e sindicatos, e constata que nada acontece. Há uma letargia solta no ar, misturada com indignação geral e o vozerio mouco da contestação, torta e inoperante. Onde estão os líderes, os pensadores, os organizadores, os que buscam saídas e anunciam novos tempos? Para onde ir? Quais as saídas?

A Câmara dos Deputados mergulhou na mediocridade. Vive hoje de manobras para se livrar da Lava Jato e chantagear o Executivo. Não se sabe quantos são os parlamentares que perdem o sono só para cogitarem da própria reeleição, mas suspeita-se que o número seja grande. São eles que lutam por uma “reforma política” que beira a obscenidade, que não só traz de volta a figura questionadíssima do “distritão”, que mata a proporcionalidade e dá força desproporcional aos mais conhecidos, como também propõe um Fundo Especial, dito para a “defesa da democracia”, mas na verdade concebido exclusivamente para bancar campanhas eleitorais. É uma facada no Erário Público de alguns bilhões de reais, a serem devidamente pagos pelos cidadãos. O objetivo é substituir o que os candidatos deveriam fazer diuturnamente — qual seja, procurar os eleitores e conquistá-los para que os ajudem em suas campanhas — pelas facilidades do financiamento estatal, que em tese permitiria que eleitores fossem seduzidos pelo marketing eleitoral. Uma imoralidade, que não ajuda a que se criem partidos, correntes de opinião, nichos de vida política.

O problema da política só pode ser resolvido mediante um novo pacto entre povo e políticos: o povo se dispondo a apoiar (com votos e dinheiro) os bons partidos e seus parlamentares, com a garantia mínima de que receberá em troca algo de substantivo em vez de promessas vãs, trejeitos apelativos e manifestações posticas de indignação e combatividade. O pacto vigente esgarçou.

Não dá para continuar assim. É um risco grande demais.

As sirenes dispararam, como se estivéssemos na iminência de um bombardeiro aéreo. Mas poucos ouvem. Os que deveriam agir fingem-se de mortos, repetem caminhos dantes trilhados, temem o que possa ter cheiro de novo, seguem pragmaticamente em frente sem se darem conta de que caminham para um buraco mais fundo. O panorama visto da janela de casa já fornece todos os indícios de que está em marcha um comprometimento não consciente do futuro. O mote “esgotou-se o modelo, precisamos fazer alguma coisa” reflete a exasperação, mas não é o que melhor aconselha.

Como mudanças sérias não estão à vista e terão de ser costuradas, o jeito é aprender a viver no risco e tentar manejá-lo com um mínimo de sensatez. Buscar pontes e coordenações de novo tipo, dosar energias, rever atitudes e convicções, calibrar o discurso, catar os cacos do que sobrou, desradicalizar e despolarizar, valorizar convergências e entendimentos. Há iniciativas ganhando corpo, grupos tentando se articular. Ainda não se sabe bem em torno de quais estratégias, com quais programas e com quais lideranças que “fulanizem” e deem fisionomia ao processo. Mas algo se move e em algum momento produzirá resultados.

A crise não se deve ao governo em sentido estrito, ao Poder Executivo. Michel Temer, seu ministério e suas práticas merecem toda a crítica que lhe têm sido feita. Por mais que existam em seu interior pessoas ilibadas e bons propósitos, o conjunto da obra é ruim, muito ruim. Não nos ajuda antever algo risonho à frente. Mas é inócuo ficar gritando contra sua “ilegitimidade”, seu espírito “golpista” ou seu “reformismo de direita”, coisas que de resto são discutíveis. Ele é só parte do problema, e não a parte principal. A crise envolve tudo o que respira na política nacional: parlamentares, juízes, procuradores, partidos, sindicatos, intelectuais, ativistas.

É esse conjunto — ou seja, “nós” — que precisa ser responsabilizado e que deveria se responsabilizar a si próprio, saindo das respectivas zonas de conforto em que repousam seus inúmeros pedaços.

 


Perdas e ganhos: Temer-Dodge na noite do Jaburu

Quem ganha, quem perde? Na base desta questão, bem ao estilo do noticiário político e das colunas de bastidores do começo dos anos 70, (quando ingressei no Jornal do Brasil, via sucursal de Salvador), giram nesta semana, de agosto de 2017, as avaliações sobre o mais recente, polêmico e surpreendente fato produzido no ninho de espantos e assombrações em que vai se transformando o palácio presidencial do Jaburu, em Brasília: o encontro na calada da noite, fora de agenda, entre o atual mandatário, Michel Temer, e a procuradora de Justiça, Raquel Dodge, escolhida para assumir, mês que vem, o comando da Procuradoria Geral da República – um dos postos mais cruciais e sensíveis no esforço para investigar, julgar e punir corruptos e corruptores no País - ; no lugar de Rodrigo Janot, que se despede entre tiros e flechadas. À favor e contra.

Anos depois, quando assumi a chefia da sucursal da VEJA para a Bahia e Sergipe, circulava na sede da mais importante revista semanal brasileira, em São Paulo, uma expressão bem própria para definir, a partir dos signos da comunicação e do poder, as perdas e danos nas biografias de personagens envolvidos em escândalos ou situações constrangedoras, decorrentes de passos em falso deste tipo, envolvendo ministros, figurões de alto coturno do serviço público, togados da justiça, parlamentares e governantes: “Subiu para baixo”.

No caso do presidente Temer – séria e profundamente enrolado, jurídica e moralmente, nos efeitos devastadores da conversa gravada pelo empresário Joesley Batista nos desvãos do mesmo palácio, recentemente – as dúvidas são maiores e fica mais difícil uma avaliação mais segura de qualquer analista, as perdas e ganhos neste episódio. Salvo, evidentemente, os arautos de encomenda da corte, ou os que ainda acreditam em Papai Noel, ou pensam que “o céu é perto”, como ouvia minha saudosa mãe dizer desde a infância, nas barrancas do São Francisco, o rio da minha aldeia.

Anda tão baixo o conceito do mandatário na avaliação da sociedade (as pesquisas de opinião deixam isso cada dia mais evidente), que fica quase impossível saber quanto o encontro desta semana, na noite do Jaburu, pode ter contribuído para fazer descer ainda mais o reduzido índice de prestígio e a escassa credibilidade do principal ocupante do palácio cercado de dúvidas e suspeitas.

Quanto à harvardiana Raquel Dodge, ungida pelo mandatário para ocupar o lugar de Janot – eleito inimigo número um pelo próprio presidente apanhado em flagrante delito criminal em pleno exercício do mandato, segundo denúncia da PGR barrada temporariamente pela Câmara- , o estrago é indubitavelmente devastador. No caso desta desgraçada tentativa de demonstração de controle e poder (que se pretendia manter submersa na sombra palaciana, sabe-se lá a conselho de quem), cabe com perfeição a constatação do conceito jornalístico citado no segundo parágrafo deste artigo: a futura chefe da PGR “subiu para baixo”. A conferir.

Mas, diga-se a bem da verdade, não há apenas perdedores, a exemplo dos dois principais personagens citados, que se meteram desgraçadamente nesta historia nada exemplar para a já combalida vida republicana nos dias que correm no Brasil. Há. Igualmente, meritórios vencedores neste caso.

O maior deles, a imprensa livre e democrática que felizmente ainda se pratica por estas bandas de baixo da linha do Equador. Trocando em miúdos, não se trata aqui de mera conquista conceitual ou retórica, mas envolve, igualmente, personagens de carne e osso, profissionais que merecem referência, destaque e aplausos. Prêmios também, quem sabe?

Por exemplo: o cinegrafista Wilson de Souza, da TV Globo. É dele o registro do flagrante implacável desta semana, na terça-feira, 8. As lentes potentes da câmera, sob seu atento e ágil comando, focalizou com notável nitidez (dá até para ver o número da placa) o estacionamento do carro oficial nas imediações do corredor arborizado (passarela?) da entrada do Jaburu. Do automóvel, desce a futura procuradora geral da República. Passos apressados, de quem parece estar fugindo de olhos curiosos ou perguntas incômodas, ela caminha para o encontro com Michel Temer, o mandatário inimigo de Janot, às 22 horas.

As imagens vistas na noite seguinte, no Jornal Nacional, são dessas de entendimento imediato e impacto fulminante. Dispensam comentários ou explicações. Principalmente aquelas, saídas apressadamente da cachola de assessores oficiais, jornalista chapa branca ou conselheiros palacianos que imaginam ser a sociedade brasileira formada por idiotas ou “abestalhados”, para usar o linguajar dos soteropolitanos. Ainda assim, tanto o Planalto quanto a procuradora afirmam, oficialmente, que o encontro noturno na residência presidencial foi só para uma conversa sobre a posse da futura chefe da PGR, marcada para daqui a quase 40 dias.

Aqui, mais uma vez, entra em campo o jornalismo preocupado com “Sua Excelência, o Fato”, no dizer de Charles de Gaulle, que Ulysses Guimarães gostava de repetir. A incansável e atenta repórter Andréia Sadi revelou, em seu blog, do G1, que houve pelo menos mais um assunto tratado no encontro: “Temer fez para Raquel Dodge um relato dos motivos que o levaram a pedir a suspeição do procurador geral Rodrigo Janot, ao Supremo, na terça, e seu embasamento jurídico”.

Além disso, a jornalista conta ainda, “que o presidente quer que Raquel Dodge tome posse no Palácio do Planalto como gesto simbólico da reaproximação institucional do Executivo com o Ministério Público”. E o mandatário quer, também, a solenidade de posse realizada de manhã cedo, porque na tarde do mesmo dia ele tem viagem marcada para os Estados Unidos, onde discursará na cerimônia de abertura da Assembleia Geral anual da ONU.

Eis mais um episódio da crítica realidade da política e do exercício do poder no Brasil, a cobrir de razão os historiadores e pensadores que identificam e apontam a histórica e profunda ligação entre a pólvora e a imprensa. No caso deste estranho encontro Temer - Dodge, tem muita pólvora e fumaça no meio. Mas o mérito maior, até aqui, é do jornalismo na busca da verdade. Viva!

Por Vitor Hugo Soares, jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta.

 

 

 


Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos

Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.

No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Depois do golpe

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

 


Hubert Alquéres: Centrão, de coadjuvante a protagonista

Desde a redemocratização, o Centrão sempre esteve no poder, mas em papel de coadjuvante. Fernando Henrique Cardoso e Lula, com enormes diferenças, contaram com as forças do atraso em nome da governabilidade. Mas sem transformá-las em principal núcleo de sua base de sustentação.

Com a vitória no Congresso do “Fica Temer”, a constelação de siglas partidárias que formam essa massa gelatinosa adquiriu status de protagonista. Chegou ao núcleo duro do poder, em condomínio com o PMDB, com quem tem identidades nos métodos e na forma de se fazer política.

A assunção do Centrão altera os polos da dualidade estabelecida no governo Temer. Desde o início havia um lado renovador, expresso na equipe econômica, em quadros como Pedro Parente e mesmo em políticos antenados com a modernidade como José Serra e Mendonça Filho.

Havia também o lado arcaico constituído por partidos e políticos formados e forjados em práticas patrimonialistas. Velhos camaradas como Geddel Vieira Lima, Romero Jucá, Moreira Franco, Eliseu Padilha.

Michel Temer é originário desse campo. Por circunstâncias, se compôs com o polo reformista.

Os dois blocos não deixaram de existir, bem como os seus conflitos. O que muda de figurino é a opção do presidente pelo atraso como forma de administrar o contencioso em sua base de sustentação.

Até a delação da JBS, Temer vislumbrava a possibilidade de entrar para a história como um presidente reformista, condottieri da travessia para 2018. Daí nasceu a agenda da reforma, a autoridade da equipe econômica e a escolha do PSDB como principal aliado. Quanto mais seu grupo era atingido, mais força ele transferia para os tucanos, pois necessitava deles para manter a pinguela.

Se antes a preocupação era com a imagem com a qual entraria na história, com a denúncia do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, passou a ser pela sobrevivência. Às favas a história e a opinião pública. Com esse espírito foi a guerra no Congresso, tendo o Centrão como principal estaca de sustentação.

Em grande medida, a escolha se deu por falta de opção. Com o escândalo que o vitimou, perdeu apoios no PSB, PPS e PSDB. Seu aliado preferencial entrou em barafunda com o enrosco do seu presidente licenciado Aécio Neves.

O PSDB saiu da votação dividido, não confiável aos olhos do governo, e queimado com seus eleitores que não aceitam suas dubiedades éticas. Ainda teve de pagar o mico do parecer do tucano mineiro Paulo Abi-Ackel, à favor de Temer. Tudo isso para, mais cedo ou mais tarde, ser alvo da “reacomodação de forças” no interior do governo.

Sim, os tucanos são os grandes perdedores desse imbróglio, com suas vísceras expostas à opinião pública. Divididos, ou não, continuarão no governo, mas com status rebaixado, como coadjuvantes. E com a autoestima de seus militantes esgarçada.

A decepção de peessedebistas históricos com as dubiedades do alto tucanato fica patente em carta dos economistas Edmar Bacha, Elena Landau, Gustavo Franco e Luiz Roberto Cunha ao senador Tasso Jereissati: “Infelizmente, incapaz até agora de se dissociar de um governo manchado pela corrupção institucionalizada que herdou do PT, o PSDB tem optado por deixar vazio o centro político ético de que o país tanto precisa”.

A hegemonia no interior do condomínio governista sai das mãos das forças comprometidas com a austeridade fiscal, com os fundamentos macroeconômicos e com as reformas e vai para setores acostumados à gastança, que só entendem a linguagem da liberação de verbas e cargos.

Essas forças podem até dar uma base sólida a Temer para enfrentar novas denúncias, o que não pode ser confundido com a necessária estabilidade para levar as reformas adiante. Mesmo uma reforma da previdência extremamente desidratada, limitada à idade mínima, encontrará resistência em uma base que se move exclusivamente em função de interesses clientelistas e fisiológicos.

A dependência do Centrão põe em riscos ganhos da política econômica, compromete o equilíbrio das contas públicas e alimenta desconfianças do mercado de que Temer fará novas concessões populistas às corporações para preservar o seu mandato.

A equipe econômica fica tensionada pela compulsão da base de fazer bondades com o erário público. Há um exemplo emblemático: a expectativa era obter R$ 13 bilhões com a MP do Refis/2017, mas a arrecadação deve ficar em R$ 500 milhões se for aprovado o parecer do deputado Newton Cardoso Jr (PMDB-MG), que atendeu a pleitos de empresários da indústria e do agronegócio.

De concessão em concessão o governo perde seu ímpeto reformista, deixa de lado qualquer veleidade modernizante.

O Centrão estava órfão e recolhido ao fundo do palco desde a cassação do seu líder Eduardo Cunha. Com a delação de Wesley Batista vislumbrou a oportunidade de voltar ao primeiro plano, cerrando fileira em torno de Temer. Assumiram o papel de Pit Bull do Temerismo por saber que é dando que se recebe. E já estão recebendo.

 

* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo