política

José Aníbal: O inviável e inaceitável custo público do Brasil

A cada pesquisa de opinião pública, mais se consolida a percepção de que o brasileiro está insatisfeito com os políticos e as instituições mais diretamente relacionadas a eles: o governo, o parlamento e os partidos.

Mas não só com eles, como se pode inferir pelos índices registrados por outras organizações e personalidades ligadas ao Judiciário e ao Ministério Público.

O estado, tal qual o Brasil tem hoje, está em questão: ele custa à sociedade muito mais do que deveria e entrega muito menos do que dele se espera.

Precisamos todos encarar com maturidade e compromisso público questões centrais que fazem com que sejamos um país muito caro.

Não se trata apenas de falar do “custo Brasil” do qual tanto se queixam as empresas – muitas com razão, outras nem tanto. Significa esmiuçar as causas que tornam o Executivo pouco eficiente e licencioso sobre suas responsabilidades, o Legislativo dissociado do povo no seu dia a dia, o Judiciário, moroso e. todos, muito dispendiosos.

Nos três poderes da República, sobram motivos de reprovação para os serviços que o estado oferece aos cidadãos e situações que, no fim das contas, resultam em um país ainda muito desigual e injusto.

De cada 3 reais que o Brasil produz, cerca de 1 real vai para os cofres da União, dos governos estaduais e das prefeituras. O problema é menos essa proporção e mais como esses recursos são gastos.

Tomemos o governo federal como exemplo, sabendo que se repete, em maior ou menor proporção, nos demais entes federados.

Dentre todas as despesas feitas pelo governo central de janeiro a junho deste ano, 42,6% foram usadas para aposentadorias e pensões e 22,6% com o funcionalismo na ativa.

Enquanto isso, a margem de despesas discricionárias, que podem estimular o desempenho da economia e desenvolver melhor infraestrutura para o país, têm ficado restritas à faixa dos 15%, a despeito do déficit nominal de 56 bilhões de reais já registrados, segundo os dados do Tesouro Nacional compilados pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.

Essa situação fiscal pode ser resumida da seguinte forma: a leniência dos últimos anos com o avanço das despesas de custeio da máquina e a falta de coragem e responsabilidade para adequar as regras de aposentadoria à nova realidade demográfica e ter exclusivamente o INSS como sistema público de aposentadoria para todos os brasileiros, transformou o governo num mero repassador de salários e benefícios previdenciários.

Sem criar critérios mais adequados de avaliação das políticas públicas, do desempenho do funcionalismo e sem combater desperdícios e privilégios, consolidamos a imagem de um estado pesado, inchado e ineficiente. Isso precisa mudar o quanto antes!

Mas não é só o Executivo que peca pela ineficácia de suas responsabilidades. Legislativo, Judiciário, Ministério Público Federal e Defensoria Pública já custaram aos cofres públicos, no primeiro semestre, mais de 5,2 bilhões de reais. Toda essa dinheirama foi quase toda usada para pagamento de salários, aposentadorias e pensões, já que são instituições com baixa necessidade de investimentos.

Fossem órgãos mais eficientes, não seria uma aplicação de dinheiro do contribuinte tão custosa à sociedade.

A Justiça brasileira é das mais caras, morosas e desiguais entre as democracias ocidentais. Tanto o cidadão comum quanto as empresas amargam prejuízos pela demora na análise e definição de processos judiciais, sem falar da sensação de impunidade nas questões relativas à violência urbana e à sensação de insegurança da população.

Enquanto isso, mais de uma dezena de cortes estaduais registram milhares de casos de funcionários públicos que desrespeitam o teto constitucional de 33,8 mil reais, sob frágeis argumentos legais que não passam de subterfúgios para elevar os rendimentos de parcela ínfima e já privilegiada da sociedade.

Sem enfrentar com firmeza os ranços de patrimonialismo, corporativismo e clientelismo que insistem em adentrar as estranhas do estado, seguiremos deixando de aproveitar as potencialidades de um país continental, rico em recursos naturais e ainda com parcela significativa de população em idade economicamente ativa.

É preciso desatar o nó que nos remete ao atraso e construir efetivamente um projeto que proporcione mais oportunidades, prosperidade e bem-estar aos brasileiros.

 

 

 

 


Luiz Carlos Azedo: O abismo ao lado

A situação é mais ou menos como a de uma família que começa a vender tudo o que tem para pagar as dívidas, mas não reduz os gastos de forma a compatibilizá-los com a renda familiar

A divulgação do deficit primário das contas do governo dos últimos 12 meses (até julho) acendeu uma luz vermelha no mercado. O rombo é de R$ 183,7 bilhões, muito acima da nova meta fiscal que o governo pretende aprovar no Congresso, de R$ 159 bilhões. Segundo o Tesouro, o resultado negativo se deve à frustração de receitas na ordem de R$ 7,4 bilhões. O corte de R$ 3 bilhões na despesa mensal não foi o suficiente para compensar a perda de arrecadação menor, razão pela qual o resultado primário de julho ficou R$ 4,5 bilhões abaixo do programado. Diante desse quadro, resta ao Ministério da Fazenda mexer com as despesas obrigatórias, principalmente as da Previdência, para trazer os gastos do governo para dentro da meta prevista.

A aprovação da reforma da Previdência, porém, continua no telhado, porque a base governista vende caro o apoio ao presidente Michel Temer. Às voltas com uma reforma política polêmica, cujo objetivo é garantir a reeleição do maior número de deputados e senadores, o Congresso emite sinais de que começa a se descolar do Palácio do Planalto e a atuar com maior autonomia, de olho em 2018. Pelos corredores da Câmara, por exemplo, os deputados choramingam as promessas não cumpridas pelo governo, em troca de rejeição da denúncia contra Michel Temer. O clima tumultuado da sessão do Congresso de ontem mostra bem a qualidade do ar que se respira nas duas Casas.

É nesse cenário que todos esperam a segunda denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da República. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já avisou ao presidente Michel Temer que o ambiente na Câmara não é bom. Além de refugar a reforma da Previdência, parte da base começa a chantagear o Palácio do Planalto. Tudo indica que a denúncia virá na primeira quinzena de setembro, ou seja, no apagar das luzes do mandato de Janot. A não ser que o relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, ministro Édson Fachin, não homologue a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, enviada ontem ao STF.

De acordo com investigadores, Funaro trata das suspeitas de que o presidente teria cometido obstrução de Justiça. Para o Ministério Público Federal, o diálogo do presidente com Joesley Batista, um dos donos da JBS, mostraria a suposta concordância de Temer com o pagamento de propina ao ex-deputado Eduardo Cunha e ao próprio Funaro, para que eles não fechassem acordo de delação.

Os dois principais pilares de sustentação do governo Temer são a credibilidade da equipe econômica e a base parlamentar robusta. Ambos sofrem desgastes por causa da fricção política originada pela Lava-Jato. Entretanto, o maior problema do governo é a gravidade da crise social causada pelo desemprego, que chegou a 13% no segundo trimestre deste ano, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na semana passada. São 13,486 milhões de desempregados. O governo não sabe o que fazer com isso, pois a economia não cresce o suficiente para reduzir o índice de desemprego.

Investimentos
Todos os sinais são de que os investimentos privados estão com o freio de mão puxado e assim continuarão até o desfecho das eleições de 2018. A única possibilidade de mudança no cenário é a implementação do programa de privatizações do governo, que foi anunciado sem uma modelagem jurídica que dê segurança aos agentes econômicos. Passada a euforia inicial do mercado de ações, todos continuam com as barbas de molho. As previsões para o desempenho do Produto Interno Bruto do segundo trimestre aproximaram-se do 0%. O consumo das famílias fechará o ano com avanço de 0,9% e as exportações, de 0,7%.

A reação do governo é uma espécie de mais do mesmo: estimular o consumo das famílias do jeito que pode. Mas isso tem pouco impacto nos investimentos porque a capacidade ociosa das indústrias ainda é muito grande. O governo liberou R$ 42,8 bilhões das contas inativas do FGTS e vai lançar mão de R$ 16 bilhões do PIS-Pasep para aposentados com 65 anos (62 anos, no caso das mulheres), a fim de injetar mais dinheiro na economia. São quase R$ 60 bilhões, uma quantia nada desprezível. Mesmo assim, a economia deve continuar devagar. Qual é o problema? O governo promove reformas da economia sem fazer o dever de casa.

A situação é mais ou menos como a de uma família que começa a vender tudo o que tem para pagar as dívidas, mas não reduz os gastos de forma a compatibilizá-los com a renda familiar e, assim, sair do vermelho para o azul. Sem fazer um ajuste fiscal que corte na própria carne, o que inclui a Previdência e os gastos de custeio e pessoal do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, a venda dos ativos da União não vai resolver o problema das contas públicas. Será apenas um grande fim de festa, com muita ressaca no dia seguinte.


José Arthur Giannotti: 'Podemos sair da crise, mas não sairemos do século 20'

Filósofo é autor do recém-lançado 'Os Limites da Política - Uma Divergência'

Vítor Marques , O Estado de S. Paulo

A travessia até as eleições de 2018 será árdua e não se sabe até que ponto o atual governo implantará seu projeto. Mas a vantagem do presidente Michel Temer é que a oposição está enfraquecida. A análise é do filósofo e professor emérito da USP José Arthur Giannotti, 87. “A crise da esquerda é profunda”, afirmou Giannotti, em entrevista ao Aliás.

No momento em que os partidos estão em xeque, Giannotti lança novo livro que dialoga com autores clássicos e discute política a fundo. Os Limites da Política - Uma Divergência é, sobretudo, um debate em que Giannotti dá espaço ao também filósofo Luiz Damon Moutinho. Trata-se de uma versão revisitada e ampliada de sua obra anterior, A Política no Limite do Pensar (Cia. das Letras). Abaixo, os principais trechos da entrevista do filósofo.

Qual é o lugar da política neste momento em que predomina o discurso da apolítica?
A política está em todos os lugares. O problema todo está como lidamos ou fugimos dela.

Há saída para a crise política a curto prazo?
Não há. A crise é muito séria porque ela começa com uma crise de representação e depois ela se transforma em uma crise de Estado. Isto é, lembremos uma velha definição de Estado, a instituição que tem o monopólio da violência. Hoje nós já não temos o monopólio da violência. O narcotráfico, por exemplo, se expande, se internacionaliza, começa a organizar a produção, e então temos paralelos que se cruzam diante daquilo que seria o Estado nacional.

A Câmara barrou uma denúncia de corrupção contra o presidente Michel Temer, mas provavelmente teremos um governo sob investigação. O que isso significa?
Estamos com um Estado cujas decisões estão cada vez mais enfraquecidas e vamos ter justamente uma ‘pinguela’, como disse Fernando Henrique. Temos que chegar até a margem nadando. Não se sabe até que ponto o governo Temer vai poder realizar seu projeto. Nas condições antigas, já teríamos uma intervenção militar, mas felizmente isso não está acontecendo.

Nessas condições um governo tem força para sobreviver até 2018?
A grande vantagem do governo Temer é que a oposição está em crise. A crise da esquerda é profunda. Ela não tem como apresentar um projeto pela simples razão que a esquerda, ao se tornar populista, deixou de considerar como a riqueza é produzida e entra em crise sistematicamente. Pelo menos sabemos que, quando a crise financeira não é resolvida pela esquerda, ela vai ser resolvida na direita. E tudo tende a uma solução da nossa crise pela direita.

O senhor fala em uma crise profunda da esquerda. No caso brasileiro, uma eventual candidatura de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado na Lava Jato, atrapalha ou ajuda a esquerda?
Atrapalha, porque impede a esquerda de tomar consciência de suas tarefas atuais, de enfrentar o capitalismo tal como ele é não tal como ele foi pensado no século 19. Não adianta nada ter um racha no PT e ter o PSOL, porque aí você tem esquerdistas falantes e mais nada.

Como se explica esse crescimento de candidaturas como a do deputado Jair Bolsonaro com um discurso mais radical?
Não sabemos ao certo o que está acontecendo. Na dissolução dos partidos, vão aparecer pessoas isoladas que furam os partidos. Não podemos esquecer que a primeira vitória do Trump foi contra os republicanos. Quem vai aparecer não vai ser um filhote qualquer de um partido. Vai ser alguém que atravesse os partidos. Quando você não tem uma política que se expõe, a reação das pessoas também é confusa. O quadro é negro.

Como senhor vê partidos que buscam nomes fora da política?
Não adianta aparecerem novas figuras se elas não apresentarem diretrizes para que sejam resolvidas a crise de Estado e de representação. Se o Brasil ainda for seduzido por palavras ocas, ele se tornará um País inteiramente oco. O grande problema nosso é que isso pode acontecer. Nossa situação é muito dramática. As instituições estão funcionando, nós podemos sair da crise econômica, mas não sairemos do século 20. Não teremos um capitalismo realmente competitivo.

A adoção do parlamentarismo no Brasil pode ser uma solução?
Parlamentarismo ou não, o que importa é como vão funcionar os partidos e como os partidos vão encontrar suas identidades. Depois se for parlamentarismo ou não, vai depender dessa identidade partidária. Insisto: enquanto não tivemos uma esquerda renovada, não teremos uma direita renovada. Temos simplesmente uma renovação de esquerda que eu diria geriátrica.

Como o senhor avalia o movimento de partidos que tentam obstruir ou dificultar investigações da Lava Jato para salvar a classe política?
A Lava Jato nasceu de um pequeno processo de denúncia e de repente a denúncia se mostrou contra os maiores próceres do Estado brasileiro. Obviamente era previsto que a classe política iria reagir. A vantagem do grupo da Lava Jato, apesar das suas loucuras, é que teve uma ação política inicial. Em vez de fazer como a operação ‘Mãos Limpas’ na Itália, que metralhou todo o sistema político (ao mesmo tempo), (a Lava Jato) foi metralhando aqueles que estavam no Governo e ampliando. Chegou um momento que toda a classe política está contra a Lava Jato. Então é um momento decisivo dessa luta. Não sei quem vence, espero que seja o pessoal da Lava Jato.


Luiz Carlos Azedo: A riqueza pública

O valor dos nossos ativos é muito maior do que a dívida pública; administrá-los melhor poderia ajudar a resolver o problema do endividamento e, ao mesmo tempo, financiar o crescimento econômico

Sem preconceito, o governo Michel Temer virou um grande balcão de negócios. O seu novo programa de privatizações, que pretende se desfazer de 57 ativos, entre os quais a Casa da Moeda, a Eletrobras e a Reserva Nacional de Cobre (Renca), para citar os mais emblemáticos, pretende alienar boa parte da riqueza da União. Os argumentos a favor da decisão são verdadeiros: primeiro, o país não tem como financiar investimentos na modernização de nossa infraestrutura sem a venda de ativos e a entrega de serviços à exploração das empresas privadas; segundo, as empresas estatais e a gestão dos serviços públicos sempre estiveram a serviços dos partidos políticos, que miram seus próprios interesses e não os da sociedade. O problema é como isso será feito.

A necessidade de voltar a crescer e a impossibilidade de investir, com um Orçamento cujo deficit este ano será da ordem de R$ 159 bilhões, repôs o debate sobre as privatizações na ordem do dia. A tendência é a discussão reproduzir a velha polarização esquerda versus direita, ou seja, o embate entre um projeto nacional desenvolvimentista e o modelo neoliberal. É a mesma polêmica aberta nos anos 1980 por Margaret Tatcher, a primeira-ministra conservadora que reformou a economia britânica. E que pautou a discussão sobre as privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, na década seguinte. Será que vale a pena reprisar esse debate, que pautou as eleições presidenciais de 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014?

Os suecos Dag Detter e Stefan Fölster, autores do livro A riqueza pública das nações, põem o dedo na ferida quando afirmam que o centro da questão é a qualidade da governança dos ativos públicos. Segundo eles, “a malaise” da riqueza pública não é consequência da incompetência dos políticos, mas do fato de a administração de empresas e de serviços desviar o foco dos políticos de sua principal missão: promover o bem comum. O resto é consequência. Detter foi presidente da Stattum, a holding do governo sueco; Fölster, economista-chefe da Confederação das Empresas Suecas. Ambos foram protagonistas da mais bem-sucedida reforma do Estado da Europa.

No mundo inteiro, estão em crise o Estado de bem-estar social e o sistema de representação política. O problema é que isso pôs em risco a democracia. O dilema é o mesmo desde a velha crítica de Platão: enquanto os eleitores põem a satisfação imediata acima da prudência duradoura, a corrupção dos políticos é a via mais rápida de acesso ao poder. A ligação entre liberalismo econômico e democracia liberal nunca foi automática. Muito menos a globalização é sinônimo de avanço da democracia. A ideia de que a democracia é um credo universal associado ao capitalismo também é falsa. Há uma corrida mundial entre o Ocidente e o Oriente para reinventar o Estado, cujo objetivo é modernizar a economia e não, necessariamente, aperfeiçoar a democracia. Não se pode dizer, por exemplo, que os Estados Unidos (uma democracia liberal) estão se saindo melhor nessa corrida do que a China (uma ditadura comunista). Nesse mundo onde ambos disputam o controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico, qual será o lugar do Brasil?

Governança
A gestão da nossa riqueza pública estará no centro do debate eleitoral de 2018, cujos principais protagonistas, até agora, têm propostas retrógradas. A esquerda demoniza o uso de mecanismos de mercado para melhorar a situação do Estado. A direita demoniza o uso do Estado para lidar com as falhas do mercado. Enquanto isso, as empresas de tecnologia estão reinventando o mundo. A tese dos suecos é retirar a governança dos ativos públicos das mãos dos políticos e passá-los à gestão de profissionais gabaritados. Eles citam os exemplos da China, da Rússia e do Brasil, onde os políticos e uma burocracia ineficiente não conseguem tirar proveito dos próprios recursos disponíveis, que acabam por desaparecer. Esses ativos estão sendo dilapidados pelo patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo.

A criação de holdings para administrar os ativos públicos já é uma experiência bem-sucedida em vários países que enfrentaram o problema, como Finlândia, Áustria, Reino Unido e Suécia. Há dois exemplos: a Suécia adotou um modelo fragmentado, no qual os donos originais mantiveram seus ativos em várias holdings; a Finlândia optou por centralizar os ativos numa só holding. Em ambos os casos, a gestão foi confiada a profissionais de mercado, sem interferência política, com um modelo de gestão semelhante aos dos bancos centrais e dos fundos de pensão. O caso do Deutsche Bundespost da Alemanha é dos mais emblemáticos. Em 1995, a empresa foi transformada em três sociedades anônimas. Hoje, o Deutsche Post atua em 220 países, emprega 480 mil pessoas e movimenta 55 bilhões de euros.

A nossa riqueza pública é muito maior do que a dívida pública; administrá-la melhor poderia ajudar a resolver o problema do endividamento, ao mesmo tempo em que financiaria o crescimento econômico. O mais importante não é a propriedade, é o rendimento dos ativos públicos. Melhorar a gestão desses recursos é fundamental para o equilíbrio fiscal. Mais ainda para combater a corrupção e fortalecer a democracia.

 


Carlos Alberto Torres: O dilema fundamental da democracia bloqueada

Existem duas formas de olhar para a atual conjuntura política; essas duas formas compõem dois aspectos de uma única realidade inseparável. Mas essas formas de olhar correspondem a interesses diferentes; logo, dependendo do seu ponto de vista, você pode chegar a conclusões e a posições políticas diferentes.

Esses dois olhares deveriam representar os mesmos interesses sociais, mas isso não está acontecendo neste momento da história brasileira. Esta a razão central do bloqueio do desenvolvimento de nossa democracia.

Esses dois olhares, entretanto, não estão escondidos nos subterrâneos de nossas consciências. Eles são conscientes, e cada um deles conhece, claramente, um ao outro. Eles formam o dilema fundamental da democracia bloqueada.

O primeiro olhar corresponde ao interesse da sociedade. Naturalmente, a sociedade não está satisfeita com o seu sistema político-partidário-eleitoral. Por que? Os eleitos tanto para o executivo como para o legislativo, via de regra, não parecem fazer da política a arte de zelar pelo bem comum; como foi desnudado pela Lava-Jato, a corrupção tornou-se o meio fundamental para financiar a conquista e a manutenção do poder político; o sistema político, partidário e eleitoral é extremamente caro para resultados de eficiência e eficácia sociais tão pífios; a corrupção, hoje, está associada à falência, ineficiência e desmoralização dos serviços públicos, particularmente nas áreas de saúde, educação e segurança.

O segundo olhar corresponde ao interesse da maioria dos políticos com mandato nos poderes executivo e legislativo federal, e ao de suas respectivas máquinas partidárias. Agem, agora, para tentar viabilizar as suas reeleições e sobreviver. Surpreendidos pelas apurações da Lava-Jato, denunciados, réus, os principais caciques partidários agem por meio da "reforma política", cujos acertos se dão na calada da noite, como em verdadeira "blitzkrieg" contra a sociedade. A única coisa que conseguem conceber é torná-la ainda mais exorbitantemente cara, com o "Fundo de Financiamento da Democracia" e com o "Distritão", para favorecer a eleição dos caciques partidários, dos representantes das oligarquias locais e o poder econômico. Ou seja, um sistema político-partidário-eleitoral, que já é ruim, e que elegeu os Dilma's, os Temer's, os Renan's e os Cunha's, essa lamentável representação, eles pretendem piorá-lo ainda em várias vezes mais!

Se esses olhares são conscientes e compõem realidades que podem ser descritas com dados, fatos, provas e evidências, por que persistem? É que, a justificar esse segundo olhar, "rodam" por trás, como programas ou algoritmos (*) automáticos, arraigadas concepções e comportamentos sociais, e se propagam como "memes (**)", de caráter cultural, histórico, filosófico, político, sociológico, econômico, etc., sobre como funciona - ou devem funcionar - as instituições políticas da sociedade.

É no Congresso Nacional que se encontram e reproduzem essas práticas ao nível da República. Alguns justificam, embora por trás dos panos, a corrupção, o patrimonialismo, o fisiologismo e o corporativismo, porque "sempre foi assim", isentando-se; outros, porque a política perderia qualquer interesse se não fosse um "negócio" onde pudessem enriquecer com ela, alegando, pragmaticamente, que o "ser humano é assim mesmo - egoísta"; outros, ainda, implicitamente aceitando as concepções acima, a justificam como a expressão da "luta de classes", como defendida por uma certa esquerda autoritária e conservadora, alegando que, se os que defendem os interesses dos trabalhadores não roubarem, como o fazem os representantes das "elites" - ou das classes dominantes -, não conseguirão ter recursos para financiar as campanhas eleitorais, que estão cada vez mais caras.

Por isso, não importa o matiz ideológico e político que digam ter, neste momento histórico a maioria dos partidos atua, conservadoramente, contra o desenvolvimento da democracia. Isto é bem ilustrado quando se constata que, porque temem a Lava-Jato, unem-se e agem, em "santa aliança", para combate-la e se manterem impunes; ou, ainda, na proposta da reforma política, cujo relator é o deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), quando o PMDB, o PT e o PSDB, junto com os partidos do chamado "centrão", defendem a criação do acintoso fundo de financiamento da democracia para aumentarem os seus privilégios. Louve-se os parlamentares e partidos que, embora minoritários, travam uma verdadeira batalha contra a impunidade, e são contra essa reforma política regressiva.

Mas as reações sociais estão sendo imensas, pois existe um divórcio entre o interesse da sociedade e o do sistema político! Esta é uma contradição fundamental que precisa ser resolvida no interesse da sociedade. Ou melhor, no interesse da democracia. Em síntese, é uma tarefa para os democratas. Ela não é fácil, pois onde esteja um democrata indignado, seja como um simples cidadão, ou como um futuro candidato nas eleições de 2018, terá que discutir, propor e agir para realizar essa tarefa histórica: a de desbloquear o desenvolvimento da democracia brasileira.

Existe em meio à grave crise algo que nos consola! Podemos ousar resistir: primeiro, porque não estamos sozinhos, pois milhões de brasileiros estão tão indignados quanto nós; segundo, porque não se extinguiu a força do movimento democrático, que culminou com a Constituição de 1988; terceiro, porque a democracia conquistada nos conduziu a um Estado Democrático de Direito com estabilidade institucional. Isto nos favorece. Portanto, não devemos desanimar, pois a hora é agora. E é hora de luta!


O Estado de S. Paulo: Caciques tucanos têm desaprovação maior que a de Lula

Aécio, Serra, Alckmin e FHC têm imagem mais desgastada que a do petista; João Doria é menos rejeitado entre todos políticos tucanos analisados

Daniel Bramatti, Gilberto Amendola e Pedro Venceslau, O Estado de S. Paulo

A pesquisa Ipsos sobre a percepção dos brasileiros em relação a 27 figuras públicas revela que quatro dos principais caciques do PSDB – Aécio Neves (MG), José Serra (SP), Fernando Henrique Cardoso (SP) e Geraldo Alckmin (SP) – têm hoje a imagem mais desgastada que a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Também tucano, o prefeito de São Paulo, João Doria, está em situação mais confortável: é o que aparece mais bem colocado entre os políticos avaliados pela pesquisa. Ainda assim, sua taxa de desaprovação (53%) é bem maior que a de aprovação (19%).

Condenado em um processo e réu em outras cinco ações relacionados à Operação Lava Jato, Lula é desaprovado por dois terços da população, enquanto um terço o vê de forma favorável. Já a desaprovação aos caciques tucanos varia entre 73% e 91%.

O maior desgaste é o de Aécio, que teve 48,4% dos votos na eleição presidencial de 2014 e hoje tem seu desempenho desaprovado por nove em cada dez brasileiros – resultado que o coloca em situação de empate técnico com o presidente Michel Temer (93%) e o deputado cassado e ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (91%), que está preso desde outubro de 2016 e já foi condenado na Operação Lava Jato a 15 anos por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Logo a seguir aparece o senador e também ex-candidato a presidente José Serra, que foi ministro de Relações Exteriores no governo Temer durante nove meses. Serra é mal avaliado por 82% da população, segundo o Ipsos. FHC e Alckmin são desaprovados por 79% e 73%, respectivamente.

A pesquisa não revela os motivos da rejeição aos políticos. Mas a desaprovação a Aécio teve um salto a partir de junho, quando ele foi acusado pela Procuradoria-Geral da República de receber recursos ilícitos do grupo JBS. Na época, o tucano chegou a ser afastado do mandato de senador por decisão liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.

Serra e Alckmin, cuja desaprovação também aumentou nos últimos meses, foram envolvidos em delações na Operação Lava Jato. O primeiro é alvo de inquérito por suposto recebimento de recursos ilegais da Odebrecht, e também foi acusado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de receber doações da JBS via caixa dois. Já o atual governador paulista foi citado por delatores da Odebrecht como beneficiário de recursos ilícitos.

Serra afirma que suas campanhas sempre foram feitas dentro da lei. Alckmin também nega irregularidades.

‘Mito’. Para o ex-governador de São Paulo Alberto Goldman, vice-presidente nacional do PSDB, a desaprovação aos líderes do partido se soma a uma “rejeição à classe política em geral”. Sobre o fato de Lula estar em situação um pouco melhor, Goldman disse que o ex-presidente “tem ainda certa dose de mito, um grau de sentimento popular, e isso abranda a rejeição dele”.

Para cientistas políticos ouvidos pelo Estado, a pesquisa Ipsos mostra o quão imprevisível está o quadro político para as eleições de 2018. “O imprevisto é o provável”, afirmou Cláudio Couto, da Fundação Getulio Vargas. “A situação está tão confusa e o desgaste de lideranças tradicionais é tão grande que fica muito difícil fazer qualquer tipo de previsão. Nesse contexto, abre-se espaço para aventureiros que, hoje, estão fora do radar eleitoral. Talvez o discurso antissistema se transforme em uma vantagem eleitoral.”

Já a também cientista política Maria do Socorro Braga, da USP, relaciona o baixo índice de aprovação dos políticos à Operação Lava Jato. “No começo, era algo que parecia apenas atingir o PT, mas depois, com o tempo, a sociedade entendeu que os problemas estavam disseminados por outras legendas.”

Para Marco Antônio Teixeira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), até políticos que se apresentaram como novidade “acabaram se desgastando rapidamente, porque, pelo menos aparentemente, repetem hábitos da ‘política velha”. Já o professor de Direito Constitucional Oscar Vilhena (FGV) disse que “a bola está com o eleitor”. “A pesquisa mostra uma necessidade de reconstrução e renovação, mas será que o cidadão está realmente pronto para ela?”

 


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

 

Ou reformamos a política (cultura, condutas, valores) ou é melhor deixar como está. Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.

 


Alberto Aggio: Entre dois polos, como reconstruir o centro?

Postulação centrista traria à cena política um ator indispensável para a estabilidade

O ano de 2018 chegou. A razão disso está no fato de que a polarização política sofreu um claro deslocamento. Depois do impeachment, tudo indicava que ela ficaria contida no encarniçado embate da oposição contra o governo, com a primeira vociferando contra a legitimidade do segundo. Os ecos dessa retórica tornaram-se, dia a dia, menos audíveis e as mobilizações, cada vez menores.

2018 chegou e a polarização deslocou-se para a dimensão político-eleitoral. A mudança é perceptível e com ela os dois polos em contraposição deixaram de ser o PT e o PSDB, substituídos por duas postulações à Presidência da República. Lula expressando uma esquerda de discurso sectário em pugna com a direita extremada de Jair Bolsonaro, que representa a mesma coisa em sentido inverso. Na imprevisibilidade reinante, ambos podem chegar inteiros ou acabados a 2018, e, ao invés do acirramento da polarização, paradoxalmente, o discurso dos polos pode se voltar contra postulações diferenciadas que venham a surgir.

Porém, este é um quadro incompleto. O centro político, combatido historicamente pelo PT e conspurcado nos seus governos, é ainda o grande ausente. Ao centro, a fragmentação é expressiva, o que leva a prever grande dificuldade eleitoral para esse campo, que poderá lançar um ou mais postulantes.

Não resta dúvida de que uma postulação ao centro, especialmente se for como expressão de um campo democrático, representaria a reintrodução na cena política de um ator indispensável à estabilidade, com vistas a projetarmos avanços civilizatórios dos quais o País se afastou injustificadamente. Por opção e convicção, Lula e Bolsonaro ocupam extremos opostos e revelam uma evidente ausência de cultura política democrática que possa fazê-los se aproximar produtivamente do centro político. Uma recomposição do centro teria, pelo menos, a virtude de gerar a expectativa de superação da política de facções que se instalou nos últimos anos, comprometendo nossa convivência política.

Tema complexo, é um equívoco imaginar que o centro seja algo fixo, incapaz de se ressignificar. Ele se tornou relevante política e analiticamente na avaliação das democracias europeias do pós-guerra. Os restos do fascismo, a presença da esquerda comunista e socialista e a emergência da guerra fria jogaram luz em correntes políticas que buscavam afastar o perigo de os extremismos alcançarem o poder. Desse lugar “defensivo” nasceram e se afirmaram as seguidas metamorfoses do centro político, que ainda marcam nosso tempo.

Nem sempre o centro foi ocupado por um partido hegemônico equidistante entre a direita e a esquerda, responsável pelo equilíbrio do sistema político. No Chile, por exemplo, o Partido Radical cumpriu esse papel, mas quando a Democracia Cristã (DC) assumiu seu lugar, no final da década de 1950, o centro político assumiu nova configuração, passando a ser um centro “excêntrico”, ou seja, mais um polo do sistema político, perdendo a função anterior de equilíbrio. Essa não foi a causa principal, mas foi determinante para que a democracia ruísse em 1973. Na Itália, as lições do Chile levaram o Partido Comunista Italiano e a DC a projetarem o famoso compromesso storico, que ressignificaria o centro político a partir da esquerda, mas essa estratégia fracassou.

A política brasileira desconhece um partido de centro como fator de equilíbrio. Antes de 1964, a exclusão do PCB dispensava essa função, facilitada também pela ausência de autodefinição de um ou vários partidos “de direita”. A nossa geografia político-partidária, cheia de claros e escuros, foi o inverso da chilena, o que não nos aliviou da ocorrência de golpes de Estado no correr do século 20. Aqui, o centro é ocupado de forma instrumental, produzindo inercialmente uma lógica centrípeta que conduz e reproduz o sistema.

Durante o período militar, afirmou-se a disjuntiva “situação” e “oposição”, simplificando o sistema e fatiando o centro entre os dois polos subalternizados. No interior dessa disjuntiva, lideranças do liberalismo e do comunismo, em “frente política” contra o regime, arquitetaram uma aliança da esquerda com o centro, abrindo-se a possibilidade entre nós de circulação da noção de “campo democrático”. Essa estratégia levou a transição à democracia a bom porto.

Apesar da reprodução da disjuntiva situação/oposição na nova situação democrática, a lógica centrípeta permaneceu vigente e se afirmou com a imposição do chamado “presidencialismo de coalizão”, que guiou o País nos últimos anos. Esse arranjo se sustentou fundado em consensos fáticos, como as reformas sociais inclusivas, uma competição eleitoral aceitável, mesmo com graves distorções na representação, e um controle fiscal legitimado.

A conexão desses três pontos se desfez nos governos Dilma. Em termos fiscais, o impacto da decomposição se mostrou insustentável. Foi isso que impulsionou o impeachment, com apoio efetivo de massas. Não corresponde à verdade, portanto, a lenda de que o impeachment ocorreu para resguardar os parlamentares do PMDB do alcance da Operação Lava Jato. Essa é uma interpretação tão simplista quanto ideológica.

O pós-impeachment ensejava o retorno da política e uma reconfiguração do centro. Contudo, o PMDB, carro-chefe do “Centrão”, que se sustentou nos governos petistas e hoje sustenta Temer, perdeu a grande oportunidade de levar adiante projetos de reforma que poderiam criar uma nova base programática para futuros consensos.

Não é equivocada a avaliação de que, do ponto de vista democrático, o centro político foi perdido e não será fácil recuperá-lo. Repor a convivência política como terreno comum e postular uma reforma do Estado, com vistas ao bem-estar efetivo da população, podem se constituir em pontos de partida para uma nova combinação entre “reforma social” e democracia política, a ensejar um novo “arranjo centrista” entre nós.

 

 


Helena Chagas: As privatizações do PMDB

Nada como não ter votos. Só mesmo um presidente que não foi eleito, sabe que não tem a menor chance de sê-lo no futuro e não tem qualquer compromisso com programas aprovados nas urnas para fazer tudo o que Michel Temer está fazendo. Sob o argumento do rombo estratosférico nas contas públicas, vamos vender a Eletrobras, a Casa da Moeda, os aeroportos - incluindo a jóia da coroa, Congonhas - e até abrir parte do setor de tráfego e segurança aéreos ao capital privado.

Nada a observar sobre o cavalo-de-pau privatista do Executivo peemedebista se, em algum momento, esse programa tivesse sido apresentado e discutido com o país - como normalmente se faz em campanhas eleitorais, debates, entrevistas, programas de TV. Há sentido, do ponto de vista fiscal e da própria eficiência do Estado, na privatização de algumas empresas. Há fartas razões a justificar a concessão de certos serviços à iniciativa privada.

Só que o distinto público não pode ir dormir um dia num país cheio de estatais, ainda que ineficientes, e acordar no outro com todas elas na prateleira do supermercado. É preciso ter um modelo pronto, detalhado e amplamente discutido. É necessário haver regras que dêem segurança aos compradores e novos investidores - que, obviamente, querem o lucro - mas, sobretudo, garantam ao consumidor que ele será beneficiado com serviços melhores e não terá que pagar mais.

É o mínimo que se espera para assegurar que não haverá privatização feita na bacia das almas, enchendo o bolso de todo mundo, menos daqueles que pagam as contas. É na forma como essas coisas são feitas que mora o perigo.

Há muitos e muitos anos não se falava em privatizar a Eletrobras, e o anúncio da decisão de vender a combalida empresa pegou todo mundo no susto. Não ficou bem explicado nem quando e nem como as coisas vão acontecer. Políticos desconfiados de Minas e do Nordeste correram para tirar do pacote Furnas e Chesf. Então para elas não vale?

A oposição, meio apática, pouco reagiu - a não ser pela ex-presidente Dilma Rousseff, que virou alvo por causa da mudança de regras que promoveu no setor e apanhou sozinha.

Mas mercado e investidores, ávidos pelos novos negócios em meio ao deserto em que vivem hoje, entraram em estado de euforia, mesmo sem dados mais concretos sobre a privatização da gigante do setor elétrico. As ações da empresa subiram 49% e o valor da estatal na Bolsa cresceu R$ 9 bilhões num dia.

Sucesso total!, festejaram os peemedebistas. E resolveram repetir a dose no dia seguinte, botando aeroportos, Casa da Moeda e mais cinco dezenas de ativos estatais no balaio das privatizações. Na mesma pressa, no mesmo improviso, no mesmo açodamento. Sem a perspectiva de que os processos estarão concluídos daqui a um ano e cinco meses, quando, na melhor das hipóteses, Temer descerá a rampa do Planalto.

Vai deixar, em janeiro de 2019, alguma dessas privatizações concluída com sucesso, revertendo em benefícios para o país e sua população?

Aí é que está: isso pouco importa para o grupo de peemedebistas que está hoje no governo. Seus objetivos parecem ser bem mais imediatos: passar a idéia de que vão tapar o rombo no caixa e dar assunto para a platéia se distrair. Quem sabe, discutindo essa ou aquela venda, ela se esquece de assuntos mais explosivos que devem pipocar nos próximos dias, como o conteúdo da delação do operador Lúcio Funaro e a nova denúncia do PGR Rodrigo Janot?

Depois, seja o que Deus quiser. Sobretudo se, nesse depois, os peemedebistas tiverem tido, no limite da irresponsabilidade, oportunidade de tratar de outras razões e interesses que cercam os processos de privatização no Brasil.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Reserva do barulho

A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, estaria por trás da extinção da reserva

O líder do PSDB na Câmara, deputado Ricardo Trípoli (SP), anunciou que apresentará à Casa Civil da Presidência da República uma solicitação para que sejam sustados os efeitos do Decreto nº 9.142, divulgado ontem, que extinguiu a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), liberando para exploração mineral área localizada entre o Pará e o Amapá. Para Trípoli, além do evidente risco ambiental, a medida foi tomada sem uma discussão adequada, não tendo recebido o aval de importantes setores relacionados ao tema. Por trás do pedido, também há uma reação dos militares contra a medida, adotada sem muita discussão dentro do governo.

Trípoli quer debater os riscos da medida com todos os atores envolvidos, inclusive os ministérios do Meio Ambiente, Minas e Energia e da Justiça. Há áreas indígenas demarcadas na região que podem sofrer com a extinção da Renca. “Ao desbloquear essa área, de 47 mil km², abre-se precedente para que outros locais sejam explorados de maneira predatória e inconsequente”, argumenta o tucano. A área estava protegida desde o governo do presidente João Figueiredo. Depois do Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” e da Cúpula da Terra no Rio, que inaugurou as negociações globais para o Acordo do Clima, analistas veem a decisão como um retrocesso inexplicável, um surto a la Trump, que não tem nada a ver a como a política ambiental e os acordos internacionais assinados pelo Brasil.

A medida faz parte de um programa de privatizações lançado pelo governo sem muito planejamento nem regras claras, com propósito de sinalizar para o mercado o avanço de uma reforma liberal da economia, que ainda requer modelagem consistente para não cair no vazio e encalhar em intermináveis batalhas judiciais, além de dar munição para a oposição petista. A extinção da Reserva Nacional do Cobre (Renca) vem sendo planejada desde março, quando o ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, indeferiu os títulos protocolizados desde 1984 pleiteando ocupação de áreas dentro da reserva, mas manteve os requerimentos minerários (autorizações de pesquisa, concessões de lavra, permissões de lavra garimpeira e registros de licença) anteriores à criação da reserva.

Com isso, o governo pretende intensificar a exploração mineral numa área de pré-cambriano da Amazônia, considerada de grande potencial, utilizando técnicas modernas de pesquisa geológica. Esse período se estende da formação da Terra, há cerca de 4,6 bilhões de anos, até ao início do Período Cambriano, cerca de 440 milhões de anos atrás, quando os animais de carapaça dura apareceram pela primeira vez em abundância. Representam 88% do tempo geológico, nos quais apareceram os fósseis, os oceanos, a Lua, muitos minerais, a oxigenação, a formação de algumas vidas multicelulares e as placas tectônicas.

Cobiça

O maior defensor da reserva foi o almirante Gama e Silva, que liderou os estudos na área. Em 1969, após a descoberta de Carajás, o geólogo Décio Meyer descobriu o complexo alcalino-ultramáfico do Maraconaí, o que deu início a outras expedições de pesquisa entre os rios Jarí e Paru. Em 1981, a British Petroleum (BP) requereu direitos de exploração de cobre na região. Chefe do Grupo Executivo do Baixo Amazonas, Gama e Silva temia que Daniel Ludwig, do Projeto Jarí, dono de ações da BP, pretendesse dominar e internacionalizar a região. Conseguiu, porém, que o Conselho de Segurança Nacional vetasse a concessão dos alvarás da BP.

Hoje, as unidades de conservação e terras indígenas ocupam 80% da área, o que libera apenas 20% para exploração mineral. Há unidades federais (três) e estaduais (quatro) na Renca, mas o que impediu a pesquisa geológica na região foi a inércia do governo federal, que praticamente abandonou os estudos. Sabe-se, porém, que há na área enormes reservas de ferro, manganês, nióbio, níquel, cobre, ouro e petróleo. O assunto mais polêmico é o nióbio, que já chegou a ser relacionado até com o mensalão, após o empresário Marcos Valério afirmar na CPI dos Correios, em 2005, que o Banco Rural havia conversado com o ex-ministro José Dirceu sobre a exploração de uma mina na Amazônia.

Em 2010, um documento secreto do Departamento de Estado americano, vazado pelo site WikiLeaks, incluiu as minas brasileiras de nióbio na lista de locais cujos recursos e infraestrutura são considerados estratégicos e imprescindíveis aos EUA. A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, supostamente estaria por trás da extinção da reserva.

Em 2011, um grupo de empresas chinesas, japonesas e sul-coreanas fechou a compra de 30% do capital da mineradora com sede em Araxá (MG) por US$ 4 bilhões. O fato é que 98% das reservas conhecidas no mundo estão no Brasil, que responde atualmente por mais de 90% do volume do metal comercializado no planeta, seguido pelo Canadá e Austrália. Nossas reservas são da ordem de 842 milhões de toneladas e as maiores jazidas conhecidas se encontram nos estados de Minas Gerais (75% do total), Amazonas (21%) e em Goiás (3%).


Roberto Freire: Um país acuado pela violência 

Basta sair às ruas em qualquer cidade do país, seja nos grandes centros urbanos ou nos pequenos e médios municípios, para que se note uma das maiores preocupações dos brasileiros nos dias de hoje. Como se não bastassem o desemprego e as enormes dificuldades para a superação da mais profunda recessão econômica de nossa história, o cidadão sofre cotidianamente com a calamidade da violência. Em algumas regiões, não é exagero afirmar que já se vive quase em um cenário de guerra, tal o nível de desmantelo ao qual chegamos.

De acordo com informações divulgadas pelo jornal “O Estado de S.Paulo” com base em dados fornecidos pelas secretarias estaduais de segurança pública, o Brasil ultrapassou a marca de 28,2 mil assassinatos cometidos somente no primeiro semestre deste ano – sejam homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte ou latrocínios. São nada menos que 155 assassinatos a cada dia, o que corresponde a um índice 6,79% maior do que no mesmo período de 2016. Se a violência prosseguir nessa média, o país deve se aproximar dos 60 mil homicídios ao final do ano.

A situação talvez mais emblemática seja a do Rio de Janeiro. É importante destacarmos o papel que as Forças Armadas vêm cumprindo na cidade, sob acompanhamento do ministro Raul Jungmann, que faz um notável trabalho à frente da pasta da Defesa. Mas é evidente que esse tipo de atuação é uma consequência direta do total descalabro da área de segurança pública não só no Rio, mas em diversos estados do país.

Neste momento, a presença ostensiva do Exército nas ruas do Rio se impõe como razoável e, mais que isso, necessária. Mas devemos ter a consciência de que tal política não pode ser permanente, pois este não é o papel que cabe às Forças Armadas brasileiras. A segurança é responsabilidade constitucional dos estados, por meio da ação de suas polícias, e a transferência dessas atribuições aos militares é um verdadeiro atestado de incompetência, algo inaceitável, além de um claro desvirtuamento da ordem constitucional.

Para agravar um quadro que já é suficientemente delicado, o que não falta é a busca por respostas e soluções fáceis e equivocadas para problemas difíceis e complexos. Uma parcela significativa da sociedade brasileira defende a posse indiscriminada de armas de fogo pelo cidadão comum, como se tal medida, por si só, diminuísse a violência. Nada mais falso. Basta consultar especialistas em segurança pública ou mesmo policiais civis e militares para entender que, se armados, ao contrário do que prega o senso comum, estaremos ainda mais vulneráveis e desprotegidos.

Segundo o “Mapa da Violência 2016”, o Brasil tem uma média de 21,2 mortes por 100 mil habitantes envolvendo armas de fogo. O país ocupa a lastimável 10ª posição em um ranking composto por 100 nações – encabeçado por Honduras (66,6 mortes por 100 mil) e El Salvador (45,5). Em 2014, mais de 25 mil jovens de 15 a 29 anos foram assassinados por armas de fogo, um aumento de quase 700% em um período de quase 35 anos (desde 1980, quando morriam cerca de 3 mil pessoas nessa faixa etária).

Nos Estados Unidos, por exemplo, em especial nos últimos anos, todos nós acompanhamos inúmeras tragédias envolvendo os chamados “serial killers”, que chocaram o mundo ao fazer vítimas em série justamente porque o acesso às armas é cada vez mais fácil e disseminado naquele país. Os defensores do uso de armas pela população civil costumam citar a Suíça como um exemplo de país pacífico, altamente desenvolvido e onde há amplo acesso a armamento em geral. Ocorre que se trata de uma das raras nações europeias nas quais o serviço militar permanece obrigatório para os jovens de 18 a 20 anos.

Um detalhe importante, no entanto, é que as armas têm de ser guardadas em casa durante todo o período de serviço ativo e de reserva – e todos os suíços continuam na reserva para as Forças Armadas até os 42 anos de idade. A partir daí, podem adquirir sua arma por um preço simbólico, o que explica a grande circulação desses equipamentos entre os civis. A Suíça tem a 11ª menor taxa de homicídios do mundo (0,6 por 100 mil habitantes), mas não porque tem grande concentração de armas de fogo. Japão e Cingapura, que proíbem o uso de armas, têm menos homicídios (0,3 por 100 mil).

A sociedade não suporta mais conviver com um grau de violência que há muito ultrapassou todos os limites minimamente aceitáveis e se alastra por nossas cidades nos quatro cantos do país. Precisamos de leis mais eficazes para derrotar a impunidade, por um lado, e de educação e desenvolvimento social para diminuir a desigualdade, por outro. Todos os brasileiros verdadeiramente comprometidos em construir um futuro mais digno, sobretudo as autoridades públicas nas diferentes esferas de poder, devem somar forças e trabalhar em nome da paz, por mais civilidade e contra a barbárie. O Brasil está acuado e com medo, e há motivos para tanto. É tempo de reagir.

 


Luiz Carlos Azedo: Será o fim do patrimonialismo?

Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção

A emblemática privatização da Casa da Moeda, anunciada ontem pelo governo, vai muito além da desmobilização de seu patrimônio e concessão de serviços. É a joia mais antiga da coroa do nosso velho patrimonialismo. Fundada em 1694, em Salvador, por Dom Pedro II de Portugal, foi criada para cunhar moedas de ouro de circulação exclusiva no Brasil. Desde então, é responsável pela produção do meio circulante brasileiro e de outros produtos de segurança, como passaportes com chips e selos fiscais. O complexo industrial, localizado em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, por exemplo, é um dos maiores do gênero no mundo, com três fábricas da empresa (de cédulas, de moedas e gráfica); na antiga sede no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, inaugurada em 1868, hoje funciona o Arquivo Nacional.

Dois dias depois de anunciar a privatização da Eletrobras, uma gigante estatal com receita de R$ 60,7 bilhões e 24 mil empregados — com 13 subsidiárias, 178 empresas e 223 usinas hidrelétricas —, o governo anunciou um Programa de Parcerias de Investimento (PPI) no qual 57 novos ativos foram disponibilizados, entre aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Segundo o ministro da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco, o objetivo é “enfrentar a questão do emprego e da renda”. O governo não sabe ainda quanto pretende arrecadar com os novos leilões, mas estima que representarão R$ 44 bilhões em investimentos. O objetivo é elevar as receitas num momento de arrecadação fraca e deficit fiscal de R$ 159 bilhões.

Na prática, foi anunciada ontem a decisão política de se desfazer do patrimônio, sem que tenham ficado muito claras as regras do jogo. Não houve uma prévia discussão no interior da equipe econômica da modelagem das privatizações. O modelo será selvagem, como aconteceu com o programa do primeiro-ministro russo Boris Yeltsin, ou cercado de garantias institucionais, como nas privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso? As duas experiências ocorreram na década de 1990 e servem de paradigma para investidores do mundo inteiro quando se trata de lidar com os chamados países emergentes.

O programa reabre a discussão sobre o patrimonialismo no Brasil. O conceito foi criado por Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, e adotado por alguns dos chamados intérpretes do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Victor Nunes Leal (Coronelismo: enxada e voto, 1948). Em 1978, o tema foi retomado com a reedição da obra de Raymundo Faoro Os donos do poder, a formação do patronato brasileiro (1958), que mostra as dificuldades em separar o patrimônio público dos bens privados para a construção de um Estado moderno, baseado no respeito aos preceitos legais.

Privatizações
A crise do Estado de bem-estar social na Europa e o chamado “Thatcherismo” coincidiram, no Brasil, com a crise do modelo nacional desenvolvimentista, que proporcionara o chamado “milagre brasileiro” no auge do regime militar. Após a vitória conservadora no Reino Unido, em 1979, a primeira-ministra Margaret Thatcher privatizou a maior parte do setor público, contra a opinião dos trabalhistas e a mobilização dos sindicatos, que acabaram derrotados depois de uma greve de mineiros que durou mais de um ano. Nos meios intelectuais, o debate sobre as privatizações emergiu como uma espécie de saída para a crise de financiamento do setor público e superação do patrimonialismo em meio à luta pela democratização do país. Mas morte de Tancredo Neves, em 1985, de certa forma, frustrou uma reforma liberal.

Agora, a Operação Lava-Jato repôs esse debate na ordem dia. A passagem do PT pelo poder, economicamente intervencionista e estatizante, exacerbou o fisiologismo, o clientelismo e o patrimonialismo. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder, mas seus aliados permaneceram no controle das estruturas de governo, a começar pelo PMDB, cujas práticas patrimonialistas dispensam apresentação. Doutrinariamente, caberia ao PSDB liderar a retomada do debate sobre as privatizações, mas o que está acontecendo é outra coisa. Foi o núcleo peemedebista ligado ao presidente Michel Temer que resolveu desatar o nó das privatizações.

Como se dará esse processo? Essa é a grande indagação no mercado, porque as regras não estão claras. Na Rússia, as privatizações selvagens de Yegor Gayder, ministro de Boris Yeltsin, transformaram burocratas comunistas em magnatas capitalistas da noite para o dia. Putin virou um novo czar da Rússia ao pôr ordem no processo, com apoio da classe média generalizada que surgiu da restauração capitalista. No Brasil, a recessão impediu a consolidação da chamada nova classe média, lançada ao desemprego e à falência, mas a retomada do crescimento pode viabilizar isso. É uma aposta para 2018 se a reforma do Estado avançar na administração direta e na Previdência e os investimentos vierem. Muitos desses investidores são africanos, árabes, russos e chineses, que gostam de jogo bruto. Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção e o mau uso do patrimônio do Estado. Ele pode ser abortado por privatizações a toque de caixa.