polarização política
Brasil vive 'mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política'
Leandro Prazeres*, BBC news Brasil
Nem mesmo a experiência de quem acompanha a política e as eleições na América Latina há mais de 30 anos foi suficiente para evitar o espanto que o professor americano Scott Mainwaring sentiu ao saber da morte de Marcelo Arruda, um membro do PT morto a tiros por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL).
"É um fato grave, não lembro de nada parecido no Brasil", disse à BBC News Brasil.
Scott Mainwaring é um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina. Ele já morou em países como a Argentina e o Brasil (onde fez pesquisa de campo para o seu doutorado) e fala português fluentemente. Nestes países, ele investigou a redemocratização na região e viu como, em alguns casos, esse processo envolveu casos de violência política.
Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo. Atualmente, é professor de Ciências Políticas da Universidade de Notre Dame.
O americano é autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).
É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escalada de violência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morte de Marcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.
Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente de "ódio pessoal e polarização política".
Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atos de violência.
"Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinato de um membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipo de alerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?
Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipo de violência política. É um ato de criminalidade comum e, além disso, é um tipo de ato que atinge a democracia.
BBC News Brasil - Que sinal a morte de alguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?
Mainwaring - Para mim, é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentes de violência.
Mainwaring - Me refiro a outros incidentes de violência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatos de candidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.
BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morte de um militante político por um oposicionista?
Mainwaring - É um fato grave. Não lembro de acontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atinge de forma profunda a democracia.
[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantes de uma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler em 1921]
BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Na sua avaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?
Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.
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BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nível de animosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?
Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito grave de polarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processo de animosidade, de ódio. É possível ter um processo de polarização que não se baseia em ódios pessoais. Mas no Brasil de hoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política.
BBC News Brasil - Considerando essa escalada de violência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palco de algo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?
Mainwaring - É um risco.
BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?
Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fato de Bolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinais de que pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.
BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira onda de democratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?
Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.
A eleição de um presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinal em si mesmo.
Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.
Os problemas antecediam a eleição de Bolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perda de credibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.
BBC News Brasil - Considerando a quantidade de armas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direção de uma realidade em que atos de violência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?
Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o número de assassinatos de candidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.
BBC News Brasil - O nível de polarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?
Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provável de Lula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momento de possível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.
BBC News Brasil - Qual é a responsabilidade de Lula nesse cenário de polarização?
Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidade de ele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticos de incentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Na sua avaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambiente de tensão que a gente vê no Brasil?
Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistema em dúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?
Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho, de qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.
BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistas em democracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Na sua avaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?
Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequente de a democracia se romper é pela via do que chamamos de "executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixa de ser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regime de Daniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a Hungria de Viktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganhar de novo. O risco de ele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasil em relação à compra de armas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambiente de tensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?
Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como o de Marcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupante em termos do aumento de número de armas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do Rio de Janeiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.
BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil, em relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?
Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.
BBC News Brasil - Existe, na sua avaliação, algum sinal de que essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nível de polarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?
Mainwaring - Se Lula ganhar, vai depender de como ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. E de quê maneira? Se o governo de Lula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casos de corrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.
BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morte de Marcelo Arruda é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?
Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.
BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas lá em Foz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou em 2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerda de violenta. Esse tipo de declaração ajuda a acalmar os ânimos?
Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressão de um petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.
*Texto publicado orginalmente em BBC news Brasil. Título editado.
El País: Pandemia deteriora as democracias na AL e aumenta descontentamento
Relatório da IDEA Internacional alerta para o aprofundamento da desigualdade, da pobreza e da polarização política
Rócio Montes, Santiago do Chile, El País
Um relatório da IDEA Internacional, uma organização intergovernamental que apoia a democracia sustentável em todo o mundo, alertou que durante a pandemia houve um aprofundamento da desigualdade, da pobreza, da polarização política, da corrupção, altos níveis de criminalidade e de fragilidade do Estado na América Latina, embora a resiliência se mantenha. Segundo o documento In focus, divulgado nas últimas horas, a crise sanitária “atingiu severamente” uma região “assediada por problemas estruturais não resolvidos”, onde alguns países sofriam de “processos de erosão e retrocesso democrático” ou de “fragilidade e debilidade democrática” inclusive antes de a pandemia atingir esta região do planeta em março.
“A covid-19 não apenas ceifou a vida de centenas de milhares de pessoas, mas agravou ainda mais problemas estruturais como a desigualdade, a pobreza, a polarização política, a corrupção, altos níveis de criminalidade e fragilidade do Estado”, analisa Daniel Zovatto, diretor regional da IDEA Internacional.
O relatório destaca que as reformas políticas e socioeconômicas longamente adiadas na América Latina agravaram as crises econômicas e de saúde pública provocadas pela pandemia. Acrescenta-se um novo fator: as medidas restritivas aos direitos fundamentais para conter a propagação do coronavírus aumentaram o risco de consolidar ou agravar ainda mais as preocupantes tendências que a democracia apresentava na região antes da crise sanitária.
A magnitude da emergência levou ao uso das Forças Armadas para reforçar quarentenas, transportar pacientes e distribuir insumos médicos, complementando a ação das polícias. “Mas nem isso impediu os avanços da criminalidade e da violência persistente”, acrescenta Zovatto. “Em alguns casos, a mesma resposta do Estado contemplou abusos cometidos por agentes da ordem, violação da privacidade de dados para rastrear contágios (Equador) e restrições à liberdade de expressão para evitar alarme público (no México, o chefe de Estado atacou verbalmente jornalistas e veículos de comunicação por sua cobertura)”, acrescenta o diretor regional da IDEA Internacional.
Em ao menos oito países da região, as Forças Armadas foram instruídas a intervir para dirigir o combate à pandemia, especialmente em áreas como logística, transporte, serviços de saúde e rastreamento de contatos. Mas em alguns países elas também receberam poderes mais controvertidos, como a manutenção da ordem pública e a implementação de medidas restritivas à liberdade de circulação e de reunião durante toques de recolher e estados de sítio e emergência. O relatório dá o exemplo do Chile, onde os toques de recolher e a mobilização das Forças Armadas se tornaram comuns desde as manifestações que começaram em outubro de 2019. Devido à pandemia, o país decretou o estado de exceção constitucional desde o final de março, com proibição de circular entre meia-noite e cinco da manhã, que continua em vigor.
Nem todos os setores foram igualmente afetados pela pandemia: as mulheres, a comunidade LGTBI e os povos originários sofreram muito com a falta de proteção e o acesso desigual à Justiça, explica Zovatto. O relatório indica que nestes meses a violência doméstica e as disparidades entre homens e mulheres cresceram: “As desigualdades de gênero aumentaram durante a pandemia, com o fechamento de escolas e as medidas de confinamento, o que aumentou a carga de trabalho doméstico das mulheres, ao qual se soma uma participação já desequilibrada nas tarefas domésticas entre homens e mulheres na região”, enfatiza o In focus. De acordo com o estudo, isso provavelmente afetará a capacidade das mulheres de permanecer no mercado de trabalho, postular cargos públicos e participar em igualdade de condições nas esferas econômica e política.
Entre os desafios para a democracia na região durante a pandemia está incluído o adiamento de processos eleitorais. “Houve uma postergação generalizada de eleições de todo tipo, por compreensíveis motivos sanitários, mas a maioria delas poderia ter sido realizada”, acrescenta Zovatto. Apesar dos impactos negativos da pandemia nas democracias, felizmente estas continuam sendo majoritárias na região, acrescenta o diretor da IDEA Internacional, “com exceção de Cuba, Nicarágua e Venezuela, onde os regimes aprofundaram ainda mais sua natureza autoritária”.
Nesse quadro não é surpreendente que os protestos sociais de 2019 estejam sofrendo um ressurgimento que desafia até as restrições sanitárias impostas pela pandemia, como se viu na Colômbia, recentemente na Argentina e na Guatemala. “A frustração de alguns setores, ao invés de ter suspendido, parece ter se alimentado de novas razões de descontentamento”, diz Zovatto, que, no entanto, vê possibilidades nessa crise. “Existe um senso de urgência que pode ser aproveitado positivamente para fazer reformas longamente adiadas para otimizar a governabilidade democrática e neutralizar o clima de frustração reinante, aquele que foi expresso nos protestos de 2019 e que abre a porta para populismos de diferentes tipos” , analisa o cientista político argentino.
Marcus Pestana: As mudanças recentes na conjuntura política
Como estávamos em 2019? A radicalização ideológica atingiu grau máximo. Manifestações pela volta do AI-5 e pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF reafirmaram a divisão do país, na reprodução modificada do nefasto nós contra eles, que já vigia na era petista. O Presidente se pronunciava diariamente em temas polêmicos estimulando o bolsão mais radical do bolsonarismo. A recuperação econômica após a grande recessão do Governo Dilma era tímida e lenta. O desemprego permanecia em níveis elevados.
A base parlamentar do governo era frágil para sustentar as inadiáveis reformas. O desgaste na imagem do país foi enorme nos campos ambiental, educacional, dos direitos humanos e diplomático. De bom houve a reforma da previdência, graças à lucidez das lideranças congressuais. Mas municípios e estados ficaram de fora. Resultado: inflação baixa, PIB crescendo insuficientes 1,1%, desemprego alto, queda na aprovação do governo federal e tensão institucional inédita.
Veio a pandemia. Já são mais de 105 mil vidas brasileiras perdidas. O foco da sociedade e dos governos se voltou inteiramente para a saúde. O SUS e a saúde suplementar foram submetidos a um teste radical. Com o isolamento social, período para acúmulo de informações sobre o vírus e a preparação da retaguarda hospitalar, responderam satisfatoriamente. Infelizmente, o governo federal renunciou a seu papel coordenador. Ao contrário, patrocinou o confronto com governadores e prefeitos. As desigualdades profundas foram escancaradas. Os invisíveis tornaram-se visíveis. O Congresso Nacional assumiu o protagonismo aprovando o estado de calamidade pública, o auxílio emergencial, o “orçamento de guerra”, o apoio de crédito às empresas e o programa de manutenção dos empregos.
A nova realidade produziu mudanças significativas. O Presidente mudou de atitude, eliminou seus polêmicos pronunciamentos diários, procurou o apoio do Centrão e assumiu a necessidade de distensionar o relacionamento com o parlamento e o poder judiciário. Moro, símbolo do lavajatismo, saiu do governo, tirando do Presidente, segundo especialistas, 10% de aprovação na opinião pública, que foram substituídos por uma nova base social de apoio, os beneficiários do auxílio emergencial. Graças ao teto dos gastos, à reforma da previdência e à expectativa de manutenção da agenda reformista, os juros básicos chegaram ao menor patamar da história. Mas a recessão em 2020 será gravíssima. Ao final da pandemia, o número de desempregados e desalentados chegará a níveis bem superiores aos do início do governo.
Há vários desafios pela frente. A polêmica - aumento de investimentos públicos versus teto dos gastos e responsabilidade fiscal - não pode ter desfecho inspirado por tentações populistas. A globalização enfrentará um inevitável recuo e o Brasil terá que mudar sua orientação diplomática. Medidas como o novo marco do saneamento já aprovado podem também produzir resultados em áreas como gás e petróleo. As reformas tributária e administrativa são imprescindíveis e urgentes. O compromisso com as privatizações tem que ser retomado. Houve uma debandada na equipe econômica liberal. Há que se repensar o papel do Estado e o mundo digital na vida do Brasil pós-pandemia. Que não vença uma anacrônica visão populista-nacional-desenvolvimentista. Isso é o que esperamos.
*Marcus Pestana, foi deputado federal e, por dois mandatos consecutivos, presidente do PSDB de Minas Gerais.
Demétrio Magnoli: O único consenso nacional
A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária
‘Já enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’ António Guterres, secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate sobre o tema foi virtualmente interditado.
As escolas particulares de Manaus reabriram há 35 dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas revelam riscos muito baixos. Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.
Um fator relevante é psicossocial: os pais temem por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados, é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente, o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se meu filho for o ponto fora da curva?
O medo tem um contexto. A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”. No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista — apenas virando-a pelo avesso.
Na prática, como quarentenas prolongadas são insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos, escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de “toda uma geração” de brasileiros sem voz.
Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo, flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do PT à prefeitura de São Paulo.
Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir escolas com segurança nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais, equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.
Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui, a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.
Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.
Maria Hermínia Tavares: Improviso e dispersão
Brasil e EUA poderiam coordenar de maneira mais eficaz a administração pública para prover saúde
Polarização política, descentralização federativa e desigualdades são condições prévias que permitem entender a dramática situação do país na pandemia. A constatação, que se aplica sem tirar nem pôr ao Brasil, é do cientista político Bruce Cain, da Universidade Stanford, ao falar dos Estados Unidos.
Mas as semelhanças vão além. Ali como aqui, eleições alçaram à Presidência políticos populistas que cultivam a mentira, desprezam a ciência, alimentam-se de conflitos e pouco se importam com a vida humana. Isso posto, o argumento do professor tem a virtude de chamar a atenção para um dado menos perceptível: mesmo se os dois países contassem com dirigentes responsáveis, circunstâncias anteriores restringiriam a capacidade de seus governos de combater a pandemia.
Os antagonismos políticos poderiam ser algo mais civilizados, não fossem Trump e Bolsonaro, a um tempo, suas criaturas, principais agentes e beneficiários. Ainda assim, os outros dois fatores apontados por Cain estariam presentes e de formas distintas continuariam dificultando a luta contra a Covid-19.
A federação, consequência quase inevitável da opção pela democracia em nações de porte continental, requer do governo central, além da aptidão para definir rumos, disposição e engenho político para negociar e coordenar a ação de estados com competências e atribuições próprias.
As desigualdades cumulativas de renda, condições de vida e acesso a serviços públicos básicos tornam virtualmente impossível a aplicação eficiente da principal medida em face da crise sanitária, na ausência de vacinas: o isolamento social. Por essa razão, nos países —entre eles Brasil e Estados Unidos— onde a pobreza é disseminada e as desigualdades, profundas, duas pandemias coexistem, com características e probabilidades distintas de levar à morte: a dos que podem se proteger em casa e a dos muitos para os quais isso é impossível.
Fossem outros os governos em Brasília e Washington, outro seria o debate, e bem maior o aprendizado sobre a forma mais eficaz de coordenar os diferentes níveis da administração pública para prover saúde; como melhor proteger os que não podem se isolar; como usar organizações públicas ou comunitárias para fazer chegar água, comida e regras de cuidado às moradias mais pobres ou para aqueles que vivem nas ruas. Tudo, em suma, o que está sendo feito de maneira improvisada e dispersa.
Para tanto, outro precisaria ser o governo, com ministros à altura do desafio e um presidente antes preocupado em criar consensos do que em dar cloroquina para as emas do Palácio.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
José de Souza Martins: Os modernos inimigos de Galileu
Convidado pelo Reitor, o Papa Bento XVI deveria ter sido o orador que, na quinta-feira, dia 17 de janeiro, faria a conferência inaugural do ano acadêmico da Universidade La Sapienza, de Roma. No entanto, grupos de professores e alunos da universidade levantaram objeções à sua presença numa universidade pública. Invocaram a premissa do caráter laico da Universidade e questionaram as posições conservadoras do teólogo que este Papa também é. Em face do questionamento, conservador e retrógrado, aliás, o Vaticano preferiu cancelar a aula de Bento XVI.
O gesto da impugnação de sua presença e de sua aula nele vitimou, também, os profissionais do conhecimento, os pensadores, os cientistas, tanto os que creem quanto os que não são católicos e mesmo os que não creem. É justo o temor quando se descobre que nos próprios redutos da liberdade de pensamento essa liberdade tenha sido sacrificada por aqueles que dizem defendê-la.
Não se tratava de um sermão, em que a recusa seria até compreensível por parte de quem não professa uma religião. No plano intelectual, filosófico, sociológico e político pode-se discordar do Papa e ele mesmo, em mais de uma ocasião, tem convidado seus ouvintes e leitores, católicos e não católicos, crentes e não crentes, a terem com suas idéias e interpretações um diálogo crítico. Foi o que demonstrou quando foi à Academia Católica da Baviera, em 2004, debater com o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas os fundamentos morais do Estado liberal.
O ministro da Universidade e da Pesquisa, em face do ocorrido, questionou o autoritarismo dos atos de impugnação da presença do Papa em La Sapienza e o fez em nome do astrônomo Galileu Galilei, condenado pela Inquisição a abjurar suas descobertas científicas relativas ao fato de que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Mas Galileu estava certo e a Inquisição estava errada. O Papa compreendeu que estava agora na posição de Galileu. E, como Galileu, disse a seu modo “E no entanto, se move”, distribuindo o texto da aula densa e erudita, questionada antes de ser ouvida.
O conhecimento não resulta de um monólogo. Em sua conferência, o Papa trataria do conflito entre o bem e o interesse na busca da verdade. Defenderia a universidade e sua missão específica no campo do conhecimento e do ensino. Falaria como professor universitário que foi e optou por continuar a ser, mesmo sendo Papa.
O que aconteceu em Roma não foi fato isolado. Em muitos lugares vem acontecendo o mesmo, como ocorre aqui no Brasil. Em nome da esquerda, grupos que são de fato de direita impugnam a manifestação verbal e escrita daqueles que lhes são fundamentadamente críticos. É um silêncio que, se silencia quem poderia e deveria falar, empobrece e ensurdece quem deveria e poderia ouvir.
* José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular aposentado de Sociologia e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homem simples, Sociologia da fotografia e da imagem, Fronteira, O cativeiro da terra, A política do Brasil lúmpen e místico, A Sociologia como aventura, Uma Sociologia da vida cotidiana e Linchamentos.