pobreza
Nas entrelinhas: A insensatez e o efeito manada
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A Marcha da Insensatez, da historiadora Barbara Tuchman, que venceu o prêmio Pulitzer por duas vezes, trata de situações nas quais seus protagonistas contrariaram seus próprios interesses, nos casos da Guerra de Tróia, da Reforma Protestante, da Independência dos Estados Unidos e da Guerra do Vietnã. Nesses episódios, as lideranças políticas mais poderosas tomaram decisões catastróficas. Por isso, o livro é um clássico da política.
Tuchman descreve a desastrosa atuação dos papas do fim do século XV e início do XVI, a arrogância da aristocracia inglesa frente às colônias americanas e, por fim, a cegueira da elite político-militar dos EUA na Guerra do Vietnã. O mundanismo — o enriquecimento do alto clero — dividiu a Igreja e embalou a Reforma de Lutero e Calvino. A inflexibilidade e a cobiça da aristocracia inglesa resultaram na perda de suas Colônias na América do Norte. A Guerra do Vietnã levou os Estados Unidos a uma de suas mais profundas e longas crises políticas.
No Brasil, estamos vivendo um momento parecido. Estão em xeque nossa ordem democrática e a institucionalidade da economia. Ulysses Guimarães, o grande patrono da nossa Constituição Cidadã, quando alguém se queixava do Congresso, costumava dizer que a safra de parlamentares seguinte seria pior. Sua pilhéria virou uma maldição, porque o grau de deterioração das práticas políticas no Congresso só aumenta.
Depois que os políticos do Centrão, aliados ao presidente Jair Bolsonaro, passaram a dar todas as cartas no nosso Parlamento, um câncer corrói as entranhas da política brasileira, o chamado orçamento secreto, que cedo ou tarde será mais um caso de polícia. Para completar, o bilionário fundo eleitoral destinado aos partidos nas eleições está se transformando num obstáculo à renovação dos costumes políticos.
Criou-se uma situação de absurda desvantagem entre quem tem mandato, e usufrui de verbas do Orçamento da União, estruturas de gabinete e recursos abundantes de campanha, e aqueles que serão candidatos e não têm as mesmas possibilidades. Como se não bastasse, agora vem o pacote de bondades da PEC da Eleição, que será a bandeira eleitoral de quem pleiteia a reeleição.
Seu objetivo seria mitigar os efeitos da inflação na vida da população de mais baixa renda, mas isso é apenas uma cortina de fumaça para o que realmente está acontecendo. São medidas de curto prazo, de caráter populista, que não vão resolver os problemas da população, porque o rombo fiscal que provocará será um fator acelerador da própria inflação, corroendo os seus benefícios.
Mais graves são as consequências em termos institucionais, como o desrespeito ao calendário eleitoral e o abuso do poder econômico nas eleições, de um lado, e a ruptura na institucionalidade de nossa economia, devido à falta de responsabilidade fiscal, de outro. A insegurança jurídica provocada por emendas à Constituição casuísticas, aprovadas à toque de caixa, ampliam o cenário de incertezas em relação ao futuro da própria moeda, o real.
A três meses das eleições, essas medidas que estão sendo aprovadas no Congresso desnudam um descolamento dos partidos políticos e seus representantes dos verdadeiros interesses da sociedade. São um fator de enfraquecimento da própria democracia. Já passamos por outras situações semelhantes, ao longo da história, que nos levaram a profundas crises.
A hiperinflação da década de 1980, que coincidiu com a transição à democracia, ainda hoje nos cobra pedágios, pois nunca mais conseguimos ingressar num ciclo longo e sustentável de crescimento, mesmo depois de o Plano Real ter estabilizado a nossa moeda e as privatizações terem se realizado, para restabelecer o equilíbrio das contas públicas. A Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo rasgada.
Encenação
O preço desse fracasso está anunciado: é a iniquidade social que explode nas ruas e não será superada na campanha eleitoral com esse pacote de medidas proposto pelo governo. O Senado aprovou a PEC das Eleições com apenas um voto contrário, o do senador José Serra (PSDB-SP), um economista experiente, que governou São Paulo, conhece as contas públicas e entende de política de desenvolvimento.
Casa de ex-ministro e ex-governadores, muitos dos quais candidatos nestas eleições, o Senado protagonizou um acordão sem precedentes entre o presidente Bolsonaro, o Centrão e a oposição, num pacto do tipo “nos locupletemos todos”. Com toda a certeza, não será a Câmara que irá restaurar a moralidade.
O misancene que está sendo feito pela oposição, cujos parlamentares estão docemente constrangidos, apenas disfarça o efeito manada. A palavra de origem francesa — “mise en scène” — significa encenação. É o que está acontecendo nas manobras de obstrução da votação na Câmara. É muito difícil para um parlamentar com mandato em risco votar isoladamente contra as benesses anunciadas no pacto. Não teria como explicar aos eleitores.
O presidente Jair Bolsonaro aposta todas as fichas na PEC da Eleição para reverter a desvantagem em que se encontra em relação à preferência das parcelas mais pobres da população, principalmente no Nordeste. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acredita que as medidas o beneficiarão, porque estão sendo adotadas de última hora, diante do risco de derrota eleitoral do governo. É a marcha da insensatez.
200 anos agora: da independência à crise da nova República Brasileira
Vinicius Müller, Horizontes Democráticos*
A efeméride de duzentos anos da independência do Brasil, comemorada neste ano de 2022, vem suscitando um sem número de balanços sobre os caminhos de nossa história que buscam, sobretudo, identificar em nosso passado os erros e acertos que, de algum modo, nos trouxeram até aqui. Há um razoável consenso que afirma que é destes erros e acertos que tiramos alguns parâmetros para possíveis projeções que fazemos ao futuro da sociedade brasileira.
Neste sentido, e entre tantas possibilidades, há duas abordagens que nos auxiliam nesta tarefa de resgatar o passado em nome do entendimento do presente e da projeção do futuro. Uma delas vincula-se à identificação de uma história que, nestes duzentos anos, pode ser entendida como sendo de longa duração; ou seja, a história que recupera a formação do Brasil, do processo de independência aos nossos dias, apontando para os variados projetos que nesta trajetória foram apresentados, debatidos e disputados entre grupos e interesses múltiplos. Nela estão também as interpretações que pautaram o entendimento que temos sobre nossa própria trajetória. A outra busca na trajetória histórica brasileira os elementos que promovem a intersecção entre a temporalidade longa e a conjuntura. Neste caso, a pertinência de uma história mais recente e conjuntural – e que trataremos como sendo o período da Nova República – a partir de sua relação com a trajetória mais longa.
Na primeira perspectiva destacam-se quatro possibilidades de entendimento de nossa história. A primeira é aquela que expõe a formação brasileira, especialmente em sua dimensão econômica, por seus aspectos ligados à origem e destino da produção. Ou seja, aquela que vê o país por sua tradição primária e exportadora – e pelos problemas a ela relacionados, como a concentração da terra, a fragilidade diante das oscilações do mercado internacional, a incorporação de novas fronteiras agrícolas a partir de movimentos pouco ciosos com a lei e com a preservação ambiental e social, e a baixa sofisticação tecnológica aderente a esta formação econômica e produtiva. Por outro lado, a industrialização e a urbanização, marcadamente durante o século XX, teriam aberto a possibilidade de modernização brasileira, principalmente amparadas em três características que, circunstancialmente, apresentaram: a forte presença estatal (com destaque ao seu papel de empresário), sua forte vinculação ao mercado interno e, em tese, sua facilidade em contribuir com a ampliação da qualidade de vida e com a diminuição da desigualdade econômica.
A segunda é a dicotomia que opôs centralização e descentralização, entendidas como modelos de gestão tanto política quanto administrativa, e potencializadas pelo gigantismo territorial e pela diversidade regional brasileira. Esta dicotomia cristalizou, em razão de episódios históricos específicos, uma síntese que identifica a descentralização como necessariamente limitada em seu alcance, já que ela teria, nas vezes que foi ampliada, produzido três consequências indesejáveis: o questionamento da unidade brasileira (neste caso de maneira pontual e já superada), a ampliação da desigualdade entre as regiões brasileiras e o atraso – e/ou enfraquecimento – da cidadania e dos direitos sociais. Em oposição, a centralização – mesmo que em coexistência com algum nível de descentralização e/ou federalismo – seria responsável pela melhor distribuição da riqueza entre as regiões e, portanto, como propulsora de uma redução da desigualdade entre elas. E pela aceleração do processo de ampliação dos direitos sociais entendidos como pilares da democracia moderna.
Já a terceira é a associação entre pobreza e desigualdade presente em modelos explicativos sobre a formação econômica e social brasileira. Neste caso, haveria uma complementaridade entre o modo como estruturamos nossa produção de riqueza e a ampliação e/ou manutenção da desigualdade. Portanto, a desigualdade seria fundamentalmente fruto da estrutura produtiva, amparada na escravidão e na baixa capacidade de acumulação. Desta forma, apenas uma mudança aguda no modo de criação da riqueza poderia romper a relação histórica entre a (baixa) riqueza e a desigualdade. Não há duvidas quanto à herança nefasta da escravidão à sociedade e à economia brasileiras. Contudo, ao não dissociarmos estes elementos – e, portanto, os entendermos sempre em conexão um ao outro –, deixamos escapar algumas sutilezas que envolvem os outros elementos. Por exemplo, acabamos por creditar pesos iguais à escravidão e à estrutura de propriedade da terra; ou à estrutura do mundo (incluindo uma ética) do trabalho e à formação de nossas instituições de mercado.
E, por fim, esta mudança aguda e necessária para romper a relação histórica entre o modo de criação da (baixa) riqueza e a desigualdade viria não só por uma mudança produtiva que nos afastasse da tradicional estrutura econômica como também teria que ser acelerada e invertida. Ou seja, faríamos esta mudança a partir de uma ‘revolução’ que aceleraria a história de modo a nos lançar à outra organização econômica e social. Neste sentido, a aceleração dos processos históricos de ‘superação’ seria compatível com propostas de refundação e rupturas, não com arranjos e conciliações.
Todas estas considerações são, embora pertinentes, limitadas em seus diagnósticos sobre a formação brasileira. Assim, a construção de pares antitéticos criados a partir destes diagnósticos pouco produziram remédios eficientes em relação aos resultados desejados. Isto porque a formação agrária e exportadora da economia brasileira não é a matriz nem da baixa capacidade de criação de riqueza e muito menos da desigualdade. Ao contrário, não há uma relação linear entre as regiões que se formaram sobre a agricultura de exportação, pobreza e desigualdade. O que há é uma relação entre o modo como o uso dos recursos obtidos pela economia primária – tanto aquela voltada ao mercado externo quanto ao mercado interno – e a desigualdade. Ou seja, não foi o modo de criação da riqueza que determinou o menor ou maior desenvolvimento (e a maior ou menor desigualdade) e sim a maneira que se fez uso dos recursos oriundos da economia agrícola, especificamente, ou primária, no geral. Também porque a solução centralista, dada como resposta aos atrasos nos avanços sociais e da cidadania, pouco esteve amparada em análises sobre a estruturação do Estado brasileiro em seus aspectos burocráticos, autoritários e patrimonialistas. Acreditou-se que o atraso no desenvolvimento social e econômico estava vinculado à ‘oligarquização’ do Estado brasileiro. E que a solução passaria pela centralização do poder. Pouco se assuntou a possibilidade de que a burocratização do Estado em nome da centralização revelaria outros lados sombrios de nossa sociedade: o autoritarismo e a radicalização presentes naquelas que foram consideradas as duas experiências mais marcantes do país no século XX: a ditadura de Vargas e a ditadura militar.
Assim, duas características estiveram entre aquelas que impactaram na capacidade de criação de riqueza e na transformação desta riqueza em desenvolvimento: a combinação – e não oposição – entre duas dimensões da estrutura econômica (mercado interno e externo; setores da economia diferentes); e o ambiente institucional – formal e informal – que determina o uso da riqueza independentemente de sua origem (agrícola ou industrial; mercado interno ou exportação).
Portanto, ao contrário do que parte significativa da historiografia e dos diagnósticos sobre a formação brasileira diz, as regiões que melhor combinaram riqueza, menores índices de desigualdade e desenvolvimento em prazo mais alongado – e que sustentaram esta condição em períodos maiores – foram aquelas que independentemente da origem, combinaram de modo mais equilibrado produção e infraestrutura voltado ao mercado externo com estímulo e desenvolvimento do mercado interno; que melhor equilibraram a diversificação produtiva entre setores primários, secundários e terciários. E não quem tentou abruptamente passar de um ao outro. E quem, localmente, usou seus recursos em nome da criação de uma institucionalidade que incentivasse a competição, o empreendedorismo e, principalmente a educação. Em outras palavras, não foram os projetos nacionais que, de “cima para baixo”, estabeleceram as condições de desenvolvimento das regiões brasileiras. E sim, as condições oriundas da formação e das decisões regionais que determinaram a relação entre riqueza, desigualdade e desenvolvimento. Principalmente aquelas que, antes de buscarem grandes mudanças em suas estruturas produtivas, como, por exemplo, o desenvolvimento industrial em regiões de economia primária, desenvolveram sustentações mais duradouras, como educação, incentivos institucionais ao empreendedorismo e infraestrutura. Não funcionou a estratégia de modernização econômica que lideraria o desenvolvimento educacional, e sim o contrário: a educação e a infraestrutura vieram antes da modernização econômica, inclusive industrial.
Em suma, as condições do desenvolvimento brasileiro guardam mais relação com os resultados e desigualdades regionais do que com os projetos nacionais de desenvolvimento feitos de “cima para baixo”. Menos com escolhas ou tentativas de passar de um setor para outro – por exemplo, da economia primária para a industrial – e mais com o modo como um transbordou para outro, ou como eles se relacionaram e se complementaram. Assim como tem menor relação com sua orientação voltada ao mercado externo ou interno, e sim com a maneira que investiu os recursos independentemente de suas origens. Ou seja, não importou muito se os recursos vieram da economia agrícola de exportação ou voltada ao mercado interno, da indústria ou do comércio, mas sim em como esses recursos foram usados para transbordarem de seus setores de origem em direção a outros.
E, fundamentalmente, não existe uma sina que associa a riqueza (ou a pobreza) à desigualdade no Brasil. Riqueza e pobreza, de um lado, e igualdade e desigualdade, de outro, são eixos que, embora possam estar relacionados, também podem – e devem – ser vistos separadamente. Não há num país tão grande e com tantas diferenças internas como o Brasil um diagnóstico que explique a riqueza, a pobreza, a desigualdade e o desenvolvimento. E, portanto, muito menos um projeto nacional que sirva de remédio. Ao contrário, há inúmeras combinações, essencialmente regionais, que melhor explicam estas diferenças. Elas, em geral, seguiram estas três orientações, como já dito: decisões regionais e não nacionais; relação de transbordamento e complementaridade entre setores econômicos e produtivos diferentes e não oposição entre eles; e criação de infraestrutura, instituições de incentivo ao empreendedorismo e educação antes de apostarem em investimentos ‘de cima para baixo’ (em geral do governo nacional) como motores da modernização da economia, da industrialização e da geração de renda.
Em outra dimensão temporal, que não aquela vinculada às estruturas e diagnósticos relativos à longa história brasileira, há um desafio que também carece de diagnósticos mais certeiros ou minimamente revisados. Nas últimas três décadas um tornado de mudanças tomou de assalto o país e reorganizou nossos paradigmas e o modo como entendemos o passado e suas interpretações. Ao menos três elementos determinaram estas mudanças. Um deles foi a redemocratização do país a partir de 1985, ano oficial do fim do regime militar que durava desde 1964. E, fundamentalmente, a promulgação da Constituição de 1988, conhecida como a Constituição cidadã. Embora fruto do arranjo possível à época, a Carta máxima brasileira, como deve ser, manteve vivo um debate com o passado nacional e, portanto, com as interpretações que fazemos dele. Neste sentido, reconheceu o déficit de cidadania que nos persegue, apostando na ampliação dos direitos consagrados no mundo ocidental – civis, políticos e sociais – como redutora da desigualdade. Embora correta no atacado, a consolidação da Constituição – e do que chamamos de Nova República – dependia do ajuste possível naquele momento. E o momento, ou os momentos diferentes que se encontravam naquele contexto da segunda metade da década de 80, não eram tão simples. Se por um lado o protagonismo deveria e foi dado aos opositores da ditadura que se encerrava, por outro havia um baixo reconhecimento de que muitos dos problemas legados pelos militares tinham origem no período anterior. Ou seja, pouco se reconhecia que a estrutura burocratizada, centralista – não obstante a pretensa, porém frágil, repactuação do federalismo – e de estirpe positivista transpassava período mais amplo do que o governo militar. E, nos anos 80, teria que compor com a justa ascensão de novos atores – refiro-me ao sindicalismo e aos novos grupos políticos – e com a pressa de superar as mazelas legadas pela ditadura (crise econômica, atraso institucional, bloqueio da democracia e censura). Isso em meio à ansiedade que se manifestava na crença de que a Nova República conseguiria, finalmente, romper a barragem histórica que nos impossibilitava ter uma sociedade moderna, desenvolvida e menos desigual.
Esta esquina da história coincidente com nossa redemocratização ainda esbarrou em outros dois elementos fundamentais. O primeiro foi a dificuldade em superarmos a herança maldita (essa sim uma herança verdadeiramente maldita) deixada pela república militar e representada pela crise fiscal do Estado e pela inflação galopante. E o segundo foi a mudança do cenário internacional caracterizado pela queda do muro de Berlim, pelo fim da URSS e da Guerra Fria e pela reafirmação da liderança dos EUA e de seu modelo revigorado durante os anos 80 e 90. A inflação e a crise fiscal do Estado tornavam mais difícil, na prática, o ajuste da Constituição de 1988, ancorada tanto na superação de nossos entraves sociais quanto na manutenção de elementos de nosso nacional-desenvolvimentismo em suas partes mais condenáveis. Entre elas a antiga crença de uma liderança estatal (em sua forma burocratizada, protecionista e patrimonialista sob o eufemismo de política industrial) sobre nosso processo de modernização econômica. Em outras palavras, a Nova República nasceu sob a ameaça de ter sua virtuosidade, representada pela legítima defesa da Constituição cidadã, superada por seu vício de reproduzir os males de uma estrutura que superava, em termos históricos, o período sob o governo dos militares. E que, no fundo, remontava ao varguismo. Esta ‘linha de falha’ viria a produzir a nossa versão de uma esclerose institucional que se manifestou em diversas situações desde então: nos impedimentos de Collor e Dilma, nas parcialmente fracassadas tentativas de reforma do Estado e nas dificuldades de organização de um consenso mínimo sobre a responsabilidade fiscal. Mas também pelo persistente desequilíbrio do federalismo, pelos indesejáveis mecanismos de negociação e cooptação entre Executivo e Legislativo e pela captura do Estado por grupos organizados em torno de uma ética que estimula e naturaliza a corrupção. E pelos constantes, e cada vez mais graves, conflitos que envolvem poderes e organizações do Estado, como Judiciário e Forças Armadas. O resultado disso foi a incapacidade do estado brasileiro em ser responsivo à sociedade que se manifestou em 2013. E, claro, o renascimento de um tema que pensávamos superado: as críticas ao modelo democrático e as defesas de controle, censura e no limite de experiências autoritárias. Ainda somos, portanto e fundamentalmente, divididos entre as ‘viúvas’ de Vargas, de um lado, e as ‘viúvas’ da ditadura militar, de outro.
Já o fim da Guerra Fria e a retomada da liderança dos EUA no plano internacional culminaram na revalorização do modelo liberal e, mais do que isso, na internacionalização – ou globalização – deste modelo. Descontando as análises mais precipitadas e que se mostraram equivocadas, como aquela que decretava o fim da História ou a que acusava a globalização de ser o imperialismo norte-americano (?), esta conjunção entre globalização e liberalismo foi a senha para uma série de transformações cujos resultados ainda vivenciamos. Um deles foi a adesão menos orgânica e mais instrumental às tentativas de redefinição do papel do Estado, aqui exemplificado pelas privatizações. Instrumental, pois, mais do que amparada numa aderência ao debate sobre a quantidade e a qualidade do Estado (ou seja, se o ponto principal era a diminuição do Estado ou a ampliação da qualidade de sua atuação), a adesão do país aos códigos e linguagens do liberalismo global esteve vinculada fundamentalmente a uma tentativa quase desesperada de recuperação da credibilidade internacional e de superação da crise econômica e fiscal dos anos 80.
Ou seja, a oportunidade aberta pela reorganização internacional foi menos entendida como a janela para as mudanças estruturais e mais como uma ferramenta para superarmos problemas conjunturais. O resultado foi a falha em nossa preparação para nos integrarmos na nova economia internacional e em acompanharmos as mudanças tecnológicas, educacionais, institucionais e de gestão pública e privada. A comparação, neste caso, é eloquente e conhecida. Enquanto o Brasil apresentou esta dificuldade, países como Índia, Coréia do Sul e China potencializaram suas economias durante o alvorecer do século XXI de modo inequívoco e bem-sucedido.
A aproximação destes dois contextos diferentes – a Nova República, suas contradições e conflitos, e a dificuldade de nos prepararmos para a economia globalizada em um ambiente de renovado e ‘esburacado’ liberalismo – produziu resultados impactantes que revelam, então, nossas dimensões estruturais e conjunturais: a persistência da pobreza, a fragilidade de nossas tentativas de diminuição da desigualdade econômica, social e regional, a incapacidade de endereçarmos nosso sistema educacional em nome de um projeto realmente modernizador, a comprovação da fragilidade de nossa indústria (e, portanto, de todo o modelo de sua implantação e desenvolvimento que vigorou por quase um século) e, menos surpreendentemente do que pode parecer, a ascensão do novo agronegócio brasileiro.
A persistência da pobreza e, em partes, a dificuldade de diminuirmos a desigualdade de modo mais duradouro, deve-se ao equívoco analítico bastante difundido que trata as duas dimensões – pobreza e desigualdade – como siamesas. Talvez tenham sido no passado, mas há muito que não são. O avanço tecnológico e a economia de mercado internacionalizada desde o século XIX, e que nas últimas três décadas viveram um recrudescimento, criaram condições que fundamentalmente impactam na capacidade de ampliação da riqueza. Se esta capacidade de criação de riqueza não impacta na diminuição da desigualdade – o que não é verdade em várias regiões do mundo – é porque elas têm determinantes diferentes. Superar a pobreza tem sua relação principal com a capacidade produtiva. Nela se encontram tecnologia e trabalho, entre outros. Já a desigualdade guarda relação íntima com instituições informais e valores morais. Ambas ficam, assim, congeladas tanto pela nossa baixa capacidade tecnológica e educacional como pela inversão – principalmente após 1989 – do modo como entendemos o papel do Estado na redução da desigualdade. A desigualdade realmente se reduz quando os elementos da redução estão mais ligados ao lado da oferta do que ao lado da demanda. Ou seja, não é o aumento do consumo ou do acesso aos bens materiais – mesmos que justo e necessário – que faz com que a desigualdade caia de modo sustentável. E sim a ampliação equitativa da capacidade de trabalho, educacional e tecnológica. Além da mudança da mentalidade fundamentada em ideal aristocrático e hierarquizante que, no Brasil, é alimentada, entre tantos e há tanto tempo, pelo próprio Estado. A redução da desigualdade pela demanda é prato cheio para demagogos e populistas.
Por fim, a fragilidade da indústria frente ao processo de abertura econômica internacional e a ascensão do agronegócio revelam o equívoco dos paradigmas que norteiam nossas mais frequentes análises. Por um lado, revela que o modo como concebemos nossa industrialização não preparou o setor para enfrentar a abertura comercial e a integração global. Também não foi capaz de promover a diminuição da desigualdade entre as regiões brasileiras. Ao contrário, só as reforçou. E a ascensão do agronegócio nas últimas décadas (há uma projeção, crível, de que o Brasil será o maior exportador de comida do mundo em 2025) revela não só a preparação do setor para se integrar à globalização como também a superação de vícios que carregou em sua trajetória. Em tempo, vicio que esteve ligado à disponibilidade de terra e mão de obra que prescindiam de avanço tecnológico e de produtividade. Ao que tudo indica, antes de ser um retrocesso histórico e econômico, a ascensão do novo agronegócio será uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento do país, assim como já foi, ao menos parcialmente, em outras oportunidades históricas.
No final, é isso que importa: evitar que, mais uma vez, percamos a oportunidade de crescermos e desenvolvermos o país, como já ocorreu em vários outros momentos. E para tanto, urge pensarmos nossa experiência tanto em dimensão longa e estrutural, quanto conjuntural. Será nossa capacidade de criar um ambiente favorável ao debate que envolva as duas dimensões, que identifique as suas intersecções e que as proteja de capturas eleitoreiras de curto prazo que nos possibilitará sair da armadilha que nós mesmos criamos nos últimos 200 anos ou nas últimas três décadas. O momento de efeméride da independência pode nos estimular a isso, mas também a necessidade de reorganização da indústria, de maior e mais eficiente internacionalização da economia, de (re) nascimento da economia primária exportadora como uma oportunidade e não como um retrocesso, e da firme defesa da institucionalidade democrática e da estabilidade do país (independentemente de projetos de poder e de táticas eleitorais, como ocorreram em passado recente).
Estes elementos praticamente nos obrigam a refazer nossa trajetória. E principalmente, de repensarmos nossas grandes interpretações, que foram e continuam sendo parâmetros para nosso entendimento sobre o passado, seus problemas e soluções já identificados e testadas, assim como as bases de projeções de nosso futuro. Desta forma, qualquer projeto que se pretenda pensar o futuro do Brasil a partir de sua experiência de 200 anos independente ou de quase 40 de nova República deverá incorporar tais questões sobre nossa mentalidade, equívocos dos diagnósticos passados, resultados bons e ruins de nossas experiências anteriores. E, principalmente, enfrentar nossos tabus relacionados aos nossos modelos explicativos e nossos parâmetros analíticos, a fim de incentivar um debate mais amplo e arejado em favor do desenvolvimento econômico e social para os próximos anos, décadas e quem sabe séculos.
Fome: Em busca de uma saída solidária e global
Claudio Fernandes, Outras Palavras*
Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.
Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.
Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.
Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.
Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.
É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.
A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.
Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.
Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.
Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.
Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.
Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.
De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.
Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.
Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.
Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.
Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.
*Texto publicado originalmente em Outras Palavras
Fome mata mais que covid, aponta reportagem da RPD Online
Reportagem especial da revista mensal da FAP cita dados de estudo da Oxfam divulgado neste mês
A fome, no país e no restante do mundo, pode matar 11 pessoas a cada minuto, até o final deste ano, no planeta, caso nada seja feito, segundo relatório da organização internacional Oxfam, publicado na reportagem especial da revista mensal Política Democrática online de julho (33ª edição).
Veja a versão flip da 33ª edição da revista Política Democrática online (julho/2021)
Para exemplificar o drama, a reportagem mostra a vida de pessoas como a idosa Maria Amélia da Conceição de Fátima, de 72 anos, e sua família, que vivem entre catadores de lixo no Setor de Clubes Sul, na capital federal, e comumente se alimentam de restos e migalhas. A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no portal da entidade.
O Brasil está entre os focos emergentes da fome, ao lado da Índia e da África do Sul, conforme lembra a reportagem, baseada no estudo. A taxa de mortalidade de quem não tem o que comer é maior que a da Covid-19, que é de sete pessoas por minuto.
Desde o início da pandemia, as mortes por Covid-19, no país, ficaram em terceiro lugar no mundo, enquanto o percentual de brasileiros em extrema pobreza quase triplicou – de 4,5% para 12,8%, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A reportagem também cita dados da pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), segundo a qual, no final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome.
A publicação da FAP cita, ainda, o dado de que, no ano passado, 11% das famílias chefiadas por mulheres conviviam com a fome, enquanto mais de 10% das famílias negras enfrentavam o problema, em comparação com mais de 7% das famílias brancas.
Confira todos os autores da 33ª edição da revista Política Democrática Online
Na revista Política Democrática online de julho, os internautas também podem conferir entrevista exclusiva com a jurista Eliana Calmon. Também há artigos sobre políticas nacional e externa, economia, meio ambiente e cinema.
Além do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista.
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Cristovam Buarque: IDH - A culpa é nossa
Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo
O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.
O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.
Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.
Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.
A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.
Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
El País: Pandemia deteriora as democracias na AL e aumenta descontentamento
Relatório da IDEA Internacional alerta para o aprofundamento da desigualdade, da pobreza e da polarização política
Rócio Montes, Santiago do Chile, El País
Um relatório da IDEA Internacional, uma organização intergovernamental que apoia a democracia sustentável em todo o mundo, alertou que durante a pandemia houve um aprofundamento da desigualdade, da pobreza, da polarização política, da corrupção, altos níveis de criminalidade e de fragilidade do Estado na América Latina, embora a resiliência se mantenha. Segundo o documento In focus, divulgado nas últimas horas, a crise sanitária “atingiu severamente” uma região “assediada por problemas estruturais não resolvidos”, onde alguns países sofriam de “processos de erosão e retrocesso democrático” ou de “fragilidade e debilidade democrática” inclusive antes de a pandemia atingir esta região do planeta em março.
“A covid-19 não apenas ceifou a vida de centenas de milhares de pessoas, mas agravou ainda mais problemas estruturais como a desigualdade, a pobreza, a polarização política, a corrupção, altos níveis de criminalidade e fragilidade do Estado”, analisa Daniel Zovatto, diretor regional da IDEA Internacional.
O relatório destaca que as reformas políticas e socioeconômicas longamente adiadas na América Latina agravaram as crises econômicas e de saúde pública provocadas pela pandemia. Acrescenta-se um novo fator: as medidas restritivas aos direitos fundamentais para conter a propagação do coronavírus aumentaram o risco de consolidar ou agravar ainda mais as preocupantes tendências que a democracia apresentava na região antes da crise sanitária.
A magnitude da emergência levou ao uso das Forças Armadas para reforçar quarentenas, transportar pacientes e distribuir insumos médicos, complementando a ação das polícias. “Mas nem isso impediu os avanços da criminalidade e da violência persistente”, acrescenta Zovatto. “Em alguns casos, a mesma resposta do Estado contemplou abusos cometidos por agentes da ordem, violação da privacidade de dados para rastrear contágios (Equador) e restrições à liberdade de expressão para evitar alarme público (no México, o chefe de Estado atacou verbalmente jornalistas e veículos de comunicação por sua cobertura)”, acrescenta o diretor regional da IDEA Internacional.
Em ao menos oito países da região, as Forças Armadas foram instruídas a intervir para dirigir o combate à pandemia, especialmente em áreas como logística, transporte, serviços de saúde e rastreamento de contatos. Mas em alguns países elas também receberam poderes mais controvertidos, como a manutenção da ordem pública e a implementação de medidas restritivas à liberdade de circulação e de reunião durante toques de recolher e estados de sítio e emergência. O relatório dá o exemplo do Chile, onde os toques de recolher e a mobilização das Forças Armadas se tornaram comuns desde as manifestações que começaram em outubro de 2019. Devido à pandemia, o país decretou o estado de exceção constitucional desde o final de março, com proibição de circular entre meia-noite e cinco da manhã, que continua em vigor.
Nem todos os setores foram igualmente afetados pela pandemia: as mulheres, a comunidade LGTBI e os povos originários sofreram muito com a falta de proteção e o acesso desigual à Justiça, explica Zovatto. O relatório indica que nestes meses a violência doméstica e as disparidades entre homens e mulheres cresceram: “As desigualdades de gênero aumentaram durante a pandemia, com o fechamento de escolas e as medidas de confinamento, o que aumentou a carga de trabalho doméstico das mulheres, ao qual se soma uma participação já desequilibrada nas tarefas domésticas entre homens e mulheres na região”, enfatiza o In focus. De acordo com o estudo, isso provavelmente afetará a capacidade das mulheres de permanecer no mercado de trabalho, postular cargos públicos e participar em igualdade de condições nas esferas econômica e política.
Entre os desafios para a democracia na região durante a pandemia está incluído o adiamento de processos eleitorais. “Houve uma postergação generalizada de eleições de todo tipo, por compreensíveis motivos sanitários, mas a maioria delas poderia ter sido realizada”, acrescenta Zovatto. Apesar dos impactos negativos da pandemia nas democracias, felizmente estas continuam sendo majoritárias na região, acrescenta o diretor da IDEA Internacional, “com exceção de Cuba, Nicarágua e Venezuela, onde os regimes aprofundaram ainda mais sua natureza autoritária”.
Nesse quadro não é surpreendente que os protestos sociais de 2019 estejam sofrendo um ressurgimento que desafia até as restrições sanitárias impostas pela pandemia, como se viu na Colômbia, recentemente na Argentina e na Guatemala. “A frustração de alguns setores, ao invés de ter suspendido, parece ter se alimentado de novas razões de descontentamento”, diz Zovatto, que, no entanto, vê possibilidades nessa crise. “Existe um senso de urgência que pode ser aproveitado positivamente para fazer reformas longamente adiadas para otimizar a governabilidade democrática e neutralizar o clima de frustração reinante, aquele que foi expresso nos protestos de 2019 e que abre a porta para populismos de diferentes tipos” , analisa o cientista político argentino.
DW Brasil: Eliminar pobreza extrema no Brasil custaria 0,13% do PIB
OCDE exalta "feito extraordinário" na primeira década do milênio, com 33 milhões de pessoas fora do limiar da pobreza
Em seu relatório anual sobre o Brasil, OCDE projeta nova "década perdida" na economia, mas sugere que uma redução da pobreza extrema, como a registrada no país nos anos 2000, é um objetivo tangível no curto prazo.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou nesta quinta-feira (17/12) a edição 2020 do relatório publicado anualmente pela entidade sobre o Brasil. Se as projeções para a economia nos próximos anos são pouco favoráveis, com risco de uma nova "década perdida", a redução da pobreza extrema se revela um objetivo tangível no curto prazo.
O chefe da Seção Brasil do Departamento de Economia da OCDE, Jens Arnold, calcula que o custo para eliminar a pobreza extrema no Brasil represente apenas 0,13% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa foi apresentada em webinar organizado pela Fundação Getúlio Vargas sobre o relatório nesta quinta-feira.
A conta de Arnold se baseia no custo para complementar a renda dos brasileiros que vivem nessa situação além do limiar da pobreza extrema, a partir dos indicadores macroeconômicos aferidos periodicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, o governo federal desembolsa 0,5% do PIB para o programa Bolsa Família.
"O cálculo mostra que o custo de melhoria da renda para os mais vulneráveis não é tão elevado para o Brasil. É menos uma questão de ter mais recursos, e sim fazer melhor, com políticas sociais desenhadas de maneira eficiente", afirmou Arnold.
OCDE fala em "feito extraordinário"
Na edição recém-publicada do relatório sobre o Brasil, a OCDE enaltece o "feito extraordinário" alcançado pelo país na primeira década do milênio, quando 33 milhões de pessoas saíram do limiar da pobreza a partir de 2003. Todavia, a entidade lembra que as desigualdades e a pobreza vêm crescendo no país em decorrência da recessão econômica iniciada entre 2015 e 2016.
Embora reconheça a importância de políticas públicas específicas para lidar com o problema, defendendo a expansão e o aperfeiçoamento do Bolsa Família, a OCDE elenca o aumento de produtividade como o único fator capaz de acarretar mudanças sustentáveis nesse cenário, por meio da criação de novos postos de trabalho e de melhor qualidade.
Na avaliação da entidade, esse objetivo só será alcançado por meio de reformas estruturais que destravem investimentos em setores produtivos. A reforma tributária, principal pauta da agenda econômica do Congresso para 2021, é tida como fundamental, sobretudo no delicado cenário fiscal brasileiro.
"Os subsídios e gastos tributários consomem 4,8% do PIB brasileiro. É quase o mesmo que se gasta com educação. A carga tributária brasileira não é tão alta se comparada a outros países, mas o Brasil é campeão da complicação fiscal", criticou Arnold no evento.
Zona Franca é questionada
Na linha do relatório, que sugere a unificação de impostos para simplificar o regime tributário, o representante da OCDE questiona a eficácia de mecanismos de atração de investimentos por isenção fiscal, como a Zona Franca de Manaus, que consome mais de 0,3% do PIB e acumula benefícios desde os anos 1960.
"Pesquisas recentes não foram capazes de identificar efeitos externos significativos sobre indicadores de desenvolvimento humano na região além da própria Zona Franca, incluindo o bem-estar das mulheres", diz o documento.
O relatório da OCDE observa que as despesas referidas por Arnold vêm crescendo desde 2010. Embora a entidade destaque a redução dos subsídios para operações de crédito direcionadas, de 1,8% do PIB em 2015 para 0,6% em 2019, o documento ataca as isenções concedidas aos serviços de saúde e educação privada.
A OCDE entende que a atual dedutibilidade do imposto de renda referente às despesas privadas de saúde e educação tem efeitos distributivos regressivos – ou seja, que estimulam a concentração de renda.
Ao passo que 90% dos brasileiros têm remuneração abaixo do limite em que pagariam imposto de renda, apenas 25% da população assina planos privados de saúde, enquanto a maioria depende do sistema público de saúde. "Uma redução das despesas tributárias para a ordem de 2% do PIB parece viável", diz o texto.
Década perdida à vista
A recomendação de que o país implemente reformas estruturais na economia acompanha projeções pessimistas do relatório para a próxima década. A OCDE estima uma recessão de 5% do PIB para este ano, com recuperação lenta nos anos seguintes.
"Sem uma ação firme, os custos de financiamento podem subir substancialmente, afetando a sustentabilidade fiscal e a taxa de investimentos. O Brasil pode viver uma recessão prolongada, como a 'década perdida' dos anos 1980", diz o documento.
Com relação à taxa de desemprego, a OCDE espera um aumento do patamar atual de 13,6% para 16% em 2021, com estimativa de chegar a 15% em 2022. O economista José Feres, pesquisador da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV/EPGE), ressalta o cenário mais desfavorável para os mais pobres.
"A pandemia teve um efeito forte na ocupação das mulheres e pessoas de menor nível educacional. A deterioração do mercado de trabalho afetou os mais vulneráveis, o que tende a acentuar desigualdades. Este é um dos desafios que o governo e as políticas públicas terão que enfrentar num horizonte próximo", diz.
O economista Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembra que o país vive um cenário de elevada incerteza fiscal, política e sanitária, o qual não deverá sofrer grandes modificações em 2021.
"O grau de incerteza mensurado pelo IBRE atingiu o maior nível da série histórica em abril. Desde então, tem caído, mas subiu em novembro e está muito acima do nível pré-pandemia. O cenário que se desenha é o padrão observado antes da pandemia: incerteza alta, informalidade elevada e baixo crescimento da produtividade", explica.
Entrada do Brasil na OCDE
Conhecida como o "clube dos países ricos", a OCDE é composta por 37 países. O objetivo-fim da entidade é fomentar boas práticas de economia de mercado e democracia entre as nações-membros.
O presidente Jair Bolsonaro e a equipe de política externa do governo moveram esforços, desde o início do mandato, para que o Brasil ingresse no grupo. Para atrair o apoio dos Estados Unidos à candidatura brasileira, o governo adotou uma série de concessões comerciais junto à administração do aliado Donald Trump.
Após se ver frustrado com a indicação da Argentina pelos EUA para uma das vagas abertas na OCDE, o apoio de Trump à nomeação do Brasil foi concretizado em janeiro deste ano. Porém, a troca de comando na Casa Branca gera dúvidas sobre os próximos passos.
O diretor do departamento de economia da OCDE, Álvaro Pereira, afirmou que a entrada do Brasil no organismo internacional é "uma questão de tempo".
"Eu acho que o Brasil tem mostrado ao mundo que tem vontade de reformar e quer abrir-se mais ao mundo. Eu não tenho dúvidas que o Brasil vai entrar na OCDE. É uma questão de tempo. E vai ser um dos países mais importantes que nós temos na OCDE", disse no fim do lançamento do relatório da OCDE sobre a economia brasileira.
Maria Hermínia Tavares: A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade
Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá
Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho "Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza", escrito por três ases --os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares-- e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.
Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 --e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda-- cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.
O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.
Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.
Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.
A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.
Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.
Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Política Democrática online faz raio-x da pobreza na maior favela do Brasil
Sol Nascente tem área equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no estádio Mané Garrincha
Cleomar Almeida
A reportagem especial da sétima edição da revista Política Democrática online faz um raio-x da maior favela do Brasil. Sol Nascente está localizada na cidade-satélite de Ceilândia, a 35 quilômetros do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. Vive uma explosão populacional sem precedentes na história, de acordo com estimativas da administração local.
» Acesse aqui a sétima edição da revista Politica Democrática online
A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania. Sem infraestrutura básica para a população, Sol Nascente abriga 250.000 pessoas, segundo dados da administração de Ceilândia, a maior cidade-satélite de Brasília. Os moradores são castigados pela falta de serviços de segurança, educação e saúde públicas, por exemplo, conforme relata a reportagem.
Apesar de já ser a mais populosa do DF, a comunidade é a que mais recebe novos moradores de outras regiões do país. Em 2010, abrigava 56.483 pessoas e, naquele ano, só tinha menos habitantes que a Rocinha, no Rio de Janeiro, onde moravam 69.161 pessoas, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que deve realizar novo levantamento no próximo ano.
Devido à sua localização em um morro, segundo a reportagem, a favela carioca passou a ter dificuldade para novas explosões populacionais, após registrar surtos de crescimento nas décadas de 1970 e 1980 e no início dos anos 2000. Sol Nascente, que completou 19 anos no dia 11 de maio, tem uma área plana de 943 mil hectares, o equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no Estádio Mané Garrincha. Ceilândia, onde fica a favela, terá 448.000 habitantes em 2020, aponta projeção da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) com base em dados do IBGE.
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El País: Seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre
Estudo da Oxfam revela que os 5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95%. Mulheres ganharão como homens só em 2047, e os negros como os brancos em 2089
Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio Pereira de Moraes (Grupo Votorantim) são as seis pessoas mais ricas do Brasil. Eles concentram, juntos, a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, ou seja, a metade da população brasileira (207,7 milhões). Estes seis bilionários, se gastassem um milhão de reais por dia, juntos, levariam 36 anos para esgotar o equivalente ao seu patrimônio. Foi o que revelou um estudo sobre desigualdade social realizado pela Oxfam.
O levantamento também revelou que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os demais 95% da população. Além disso, mostra que os super ricos (0,1% da população brasileira hoje) ganham em um mês o mesmo que uma pessoa que recebe um salário mínimo (937 reais) - cerca de 23% da população brasileira - ganharia trabalhando por 19 anos seguidos. Os dados também apontaram para a desigualdade de gênero e raça: mantida a tendência dos últimos 20 anos, mulheres ganharão o mesmo salário que homens em 2047, enquanto negros terão equiparação de renda com brancos somente em 2089.
Segundo Katia Maia, diretora executiva da Oxfam e coordenadora da pesquisa, o Brasil chegou a avançar rumo à correção da desigualdade nos últimos anos, por meio de programas sociais como o Bolsa Família, mas ainda está muito distante de ser um país que enfrenta a desigualdadecomo prioridade. Além disso, de acordo com ela, somente aumentar a inclusão dos mais pobres não resolve o problema. "Na base da pirâmide houve inclusão nos últimos anos, mas a questão é o topo", diz. "Ampliar a base é importante, mas existe um limite. E se você não redistribui o que tem no topo, chega um momento em que não tem como ampliar a base", explica.
América Latina
Neste ano, o Brasil despencou 19 posições no ranking de desigualdade social da ONU, figurando entre os 10 mais desiguais do mundo. Na América Latina, só fica atrás da Colômbia e de Honduras. Para alcançar o nível de desigualdade da Argentina, por exemplo, o Brasil levaria 31 anos. Onze anos para alcançar o México, 35 o Uruguai e três o Chile.
Mas para isso, Katia Maia propõe mudanças como uma reforma tributária. "França e Espanha, por exemplo, têm mais impostos do que o Brasil. Mas a nossa tributação está focada nos mais pobres e na classe média", explica ela. "Precisamos de uma tributação justa. Rever nosso imposto de renda, acabar com os paraísos fiscais e cobrar tributo sobre dividendos". Outra coisa importante, segundo Katia Maia, é aproximar a população destes temas. "Reforma tributária é um tema tão distante e tecnocrata, que as pessoas se espantam com o assunto", diz. "A população sabe que paga muitos impostos, mas é importante que a sociedade esteja encaixada neste debate para começar a pressionar o Governo pela reforma".
A aprovação da PEC do teto de gastos, de acordo com Katia Maia, é outro ponto importante. Para ela, é uma medida que deveria ser revertida, caso o país realmente deseje avançar na redução da desigualdade. "É uma medida equivocada", diz. "Se você congela o gasto social, você limita o avanço que o Brasil poderia fazer nesta área". Para ela, mais do que controlar a quantidade do gasto, é preciso controlar o equilíbrio orçamentário e saber executar o gasto.
Além das questões econômicas, o cenário político também é importante neste contexto. "Estamos atravessando um momento de riscos e retrocessos", diz Katia Maia. "Os níveis de desigualdade no Brasil são inaceitáveis, mas, mais do que isso, é possível de ser mudado".
El País: Pobreza extrema volta a crescer no Brasil
Mais de um milhão e meio de brasileiros despencam para nível social mais baixo em 2017, o segundo ano consecutivo que o número de pobres aumenta
Por Tom C. Avendaño, do El País
Em 14 de maio de 2017, Maria Silva Nunes, sexagenária, negra e com uma expressão de cansaço permanente no rosto, passou da classe social mais baixa do Brasil para a pobreza extrema. Era o Dia das Mães e sua família, com a qual levava uma vida precária em Heliópolis, a favela mais populosa de São Paulo, ia se reunir para comemorar. Ali estavam suas três filhas: a doente que ainda mora com ela, a que teve o primeiro de três filhos aos 16 anos e até a que está na prisão, beneficiada pelo indulto do Dia das Mães. O dia começou bem e terminou no extremo oposto. “Fabiana, a do meio, parecia que estava dormindo na cadeira, cansada de tanta criança e tanta festa, mas não estava dormindo, estava morta”, lembra Maria Silva, retorcendo os punhos encostados na mesa do refeitório de uma escola. Não revela a causa da morte: aperta os lábios como se reprimisse um gesto, aguardando a próxima pergunta. “Ela estava morta, o queixo estava no peito. Morta.”
Tudo o que aconteceu depois, que arruinou a frágil existência de Maria Silva Nunes aos 63 anos, aconteceu de forma precipitada, uma reação atrás da outra. O marido da falecida e pai de seus três filhos pegou um deles e desapareceu. “Ele é catador, o que vai fazer?” Maria Silva herdou a responsabilidade de cuidar dos outros dois, de 16 e 12 anos, em uma idade em que outras mulheres estão se aposentando. Com Fabiana se foi também o dinheiro que ela lhe dava todo mês. Nem conseguiu manter o Bolsa Família: “Isso é para pais e filhos, não te dão se você é avó”, intui. Em casa também está a outra filha em liberdade, que não tem trabalho e seu filho. Há meses em que entram apenas 60 reais e nada mais: são os meses em que, se a cesta básica acaba, Maria Silva sai em busca de comida no lixo. Mais dia menos dia, supõe, vão cortar a luz. “Devo 583 reais em contas e ainda não sei como vou repor o pacote de arroz que está acabando.” E, depois, teme que sua família ficará sem casa. Naquele Dia das Mães, Maria Silva perdeu uma filha e tudo que a impedia de afundar ainda mais. “Tudo ficou difícil. E continua difícil”, suspira. “Não tenho ninguém. Aqui é só eu e Deus.”
Maria Silva Nunes tropeçou em uma das frestas mais nocivas do Brasil recente: o aumento de 11% na pobreza extrema desde o final de 2016, um buraco negro pelo qual passaram, como ela, um milhão e meio de habitantes. Em um país em que o Governo celebra a recuperação econômica após anos de recessão, havia, no início de 2017, 13,34 milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema; no final do mesmo ano, já eram 14,83 milhões, o 7,2% da população, segundo relatório da LCA Consultores divulgado pelo IBGE. Apesar de não serem números astronômicos, esse é o segundo ano consecutivo em que a tendência se mantém após o progresso espetacular do país entre 2001 e 2012, quando se erradicou 75% da pobreza extrema no Brasil, de acordo com cálculos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
“A queda da pobreza naqueles anos é explicada pela melhora do mercado de trabalho, que vem se deteriorando nos últimos anos. Há menos formalidade, ou seja, há pessoas trabalhando sem carteira assinada, enquanto os salários, em geral, não estão crescendo”, pondera o economista Fernando Gaiger, que pesquisa a pobreza e a desigualdade para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Isso tem mais a ver com a recessão do que com a reforma trabalhista de Temer, cujos resultados só começaremos a ver no final do ano que vem. Mas é inegável que pioramos. Alguém sem carteira assinada perde o emprego e depois a casa e logo logo está na rua. De uma hora para outra, tudo muda.”
Priscila Mourilo, vizinha de Maria Silva em Heliópolis, nunca imaginou que seria vítima dessa questão trabalhista. Quando era pequena, essa jovem na casa dos vinte anos, de costas largas e cabelos castanhos se sentia mais ou menos segura porque seu pai trabalhava em uma copiadora. Podiam viver sem grandes dificuldades com outros vizinhos da classe média baixa em Diadema, na periferia de São Paulo. “Entrava, saía... Era uma mulher livre”, lembra hoje. Se apaixonou, foi morar em Heliópolis, de onde era seu namorado, e lá teve três filhos. O namorado desapareceu depois de algum tempo, mas deixou-a ficar no apartamento de sua mãe. E aí os problemas começaram. À medida que cresciam, as crianças foram mostrando problemas de desenvolvimento: “O mais velho, Maurício [oito anos], tem uma ligeira deficiência. O menor, Murilo, está com sete anos e acho que também tem. Não para quieto, é impulsivo, não se concentra, não fala bem, não sabe abotoar um botão, não se limpa quando vai ao banheiro...”, diz ela no sofá de sua diminuta casa na favela. Está sob uma enorme mancha de umidade de onde pinga água. No seu colo está Mia, a gata que têm para pegar os ratos que se aproximam da casa.
Forçada a olhar as crianças a cada segundo que passam acordadas, Priscila descarta procurar trabalho. Seu único recurso seria pedir dinheiro ao seu pai, mas ele perdeu o emprego na copiadora depois de 20 anos e não recebeu nenhuma indenização. Também não tem direito a aposentadoria: não tinha carteira assinada. Priscila engravidou outra vez, do mesmo namorado. Sua mãe, sexagenária, teve que deixar a aposentadoria e começar a fazer faxina para sustentar a família. “Eu gostaria de sustentá-los, mas não tenho como”, repete, com olhar envergonhado. Quando cresceu, sabia que não era rica, mas nunca suspeitou que acabaria sendo extremamente pobre.
Em janeiro de 2017, perdeu o Bolsa Família. Nem ela sabe dizer o motivo. “E eu comecei a sentir medo. Medo e fome. Não tinha dinheiro para comprar biscoitos para os meninos, nem fraldas para a menina. Acordava sem saber o que ia comer, se conseguiria arranjar alguma coisa para alimentar meus filhos. Sobrevivo com o dinheiro que minha mãe me manda.” Cerca de 200 reais por mês. O pai das crianças não trabalha? “Ai moço, boa pergunta. Ele cata papelão, não tem dinheiro.” Você sabe como vai passar o próximo mês? “Pelejando. Pelejando como sempre. Mais do que isso não dá para saber. O futuro não ia ser assim.”
Luiz Werneck Vianna: De quando é bom ter uma pinguela segura
Agora não resta solução senão a de atravessar, pé ante pé, essa estreita que se tem à frente...
Para um observador desavisado, inexperiente de como aqui se vivem as coisas da política, diante do cenário que aí está, nada de estapafúrdio que se lhe dê na telha a ideia de estarmos na iminência de uma revolução.
Nas salas de aula das universidades os estudantes exibem adesivos estampando um “fora Temer”, professores das escolas de ensino médio cumprimentam seus alunos com o mesmo bordão, artistas e cantores populares não começam seus espetáculos sem ele, também presente nas salas de cinema e nos teatros. Uma ex-presidente da República que teve seu mandato cassado, num trâmite que passou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, que decretou o seu impeachment, em julgamento presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, participa de comícios eleitorais de candidatos às eleições municipais, quando se declara vítima de um golpe, todos são sinais que levam nosso observador a ruminar suas impressões.
Contudo se ele resolver testá-las, levantando a vista para a sociedade inteira, logo reconhecerá o despropósito da sua fabulação. No Congresso, em suas duas Casas, o governo detém folgada maioria, couraça sem a qual não há Executivo que se mantenha, fato ilustrado pela nossa experiência, contundentemente confirmada por recentes episódios. Nas chamadas classes fundamentais, fora a agitação de sempre que lhes é própria, não se percebem outras movimentações que não sejam as da defesa de seus interesses e direitos. No mundo agrário, tradicional calcanhar de Aquiles da política brasileira, sopram os mesmos ventos.
Faltaria, ainda, consultar o que se passa nas eleições municipais, termômetro confiável para o registro dos sentimentos da população, e nos quartéis, cuja importância na tradição republicana brasileira dispensa comentários. Nestes últimos reina, há tempos, a reverência ao culto constitucional e ao exercício dos seus papéis profissionais; nas eleições, que transcorrem em clima morno, se valem as pesquisas – e tudo indica que valem –, as candidaturas que se deixaram embair pelo bordão “fora Temer”, principalmente nas grandes capitais, estão longe de obter votações que as levem à vitória. E, como sempre entre nós, não há melhor detergente em horas de crise política do que um processo eleitoral.
Feito esse balanço, nosso observador admite que se equivocou no diagnóstico. Mas se não é de revolução, do que se trata, que bicho é esse que nos aturde com sua presença? A frase é velha, mas nem por isso perde validade: o passado não mais ilumina o futuro, que ainda não começou a nascer. A hora é de transição, de lusco-fusco, não é mais noite e o dia tarda a aparecer, mas a sociedade se inquieta e começa despertar sem saber o que a espera em meio às ruínas que sobraram dos partidos e, em geral, das nossas instituições políticas.
Ela mudou em meio às poderosas transformações demográficas, sociais e ocupacionais que desfiguraram a paisagem reinante em meados do século passado. Encontramo-nos em terra nova, como se estrangeiros a ela, agarrados a um passado que nos foi familiar, com as relações entre gerações, entre gêneros, sobretudo entre as classes sociais e sistema de crenças girando em gonzos fora do nosso controle e da nossa imediata percepção. A sociedade modernizou-se por cima, sujeita a experimentos saídos das pranchetas de uma tecnocracia ilustrada, impostos a ferro e fogo – exemplo mais recente, o da colonização da Amazônia.
Entre nós, a obra dessa modernização persistiu por décadas, ora por vias duramente repressivas, como no Estado Novo de Vargas e no regime militar, ora de forma doce, como nos governos de Juscelino – que criou no centro geográfico do Brasil, nos ermos do Cerrado, uma nova capital para o País – e nos de Lula e Dilma.
Fora de dúvidas que tais esforços em favor da aceleração da modernização foram bem-sucedidos, em que pesem os altos custos políticos e sociais envolvidos, não só pelo aprofundamento das desigualdades já existentes, como pela condenação da sociedade a um estatuto de minoridade sobre a qual deveria incidir a ação modernizadora do Estado. Não à toa as lutas pela democratização do País trouxeram consigo a denúncia dessa modelagem, filha de nossa longa tradição de autoritarismo político, do que foi exemplar a publicação de São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza, sob a iniciativa do cardeal Paulo Evaristo Arns, obra coordenada por Lucio Kovarick e Vinicius Caldeira Brant.
Essa nova agenda, nos anos 1980, encontrou no PT uma de suas mais importantes vocalizações. Com efeito, dele vieram críticas contundentes ao nacional-desenvolvimentismo e à cultura política que enlaçava a sociedade civil ao Estado e às suas agências, como no caso do sindicalismo, objeto de feroz crítica das emergentes lideranças sindicais dos metalúrgicos do ABC, Lula à frente, como seu principal porta-voz. O PT nasceu e cresceu em nome de uma representação da sociedade civil que aspirava por autonomia diante da onipotência de um Estado que fazia dela base passiva para sua manipulação.
Como se sabe, esse partido, por fas ou nefas, se converteu às práticas que combatia; e levou-as à exaustão depois de um curto período de fastígio no seu uso, culminando no episódio melancólico do impeachment do mandato presidencial de Dilma Rousseff sob a acusação de ter atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja inspiração oculta, ao impor limites ao decisionismo do Executivo, consistiu precisamente em interditar caminhos ao processo de modernização autoritária vigente por décadas no País.
Agora, não resta outra solução que não a de atravessar, pé ante pé, a pinguela estreita que se tem à frente, de que falou em entrevista o ex-presidente Fernando Henrique, travessia perigosa que, para ser segura, está a exigir outra bibliografia e uma imaginação bem diversa da que nos trouxe até aqui.
Luiz Werneck Vianna: Sociólogo, PUC-RJ
Fonte: opiniao.estadao.com.br