plano biden
Pedro Cafardo: O culto à cloroquina e ao teto sacrossanto
Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, Brasil se vê envolto na discussão sobre limites fiscais rígidos demais
Uma frase banal - fazer do limão uma limonada - move quem está pensando na economia da era pós-covid. Ainda que as aflições com o desastre humanitário global em andamento desencorajem esse olhar economicista, muitos países já puseram o tema em discussão e tomam medidas olhando para o futuro imediato.
Quem prestou atenção nos discursos da Cúpula do Clima da semana passada viu o “caminho das pedras” da nova economia. A ideia geral é que o principal mecanismo para criar empregos após a pandemia serão os investimentos na economia verde.
O presidente dos EUA, Joe Biden, está presenteando os americanos com um programa econômico que vai muito além do auxílio emergencial. Já aprovou um pacote de estímulos fiscais de US$ 1,9 trilhão e propõe investimentos de longo prazo de até US$ 3 trilhões. Esta segunda parte é a limonada, porque aproveita a crise para sugerir uma grande transformação estrutural da economia americana, ao mesmo tempo em que promete reduzir as emissões de gases-estufa em 52% até 2030. Pode parecer estranho, mas a infraestrutura americana está velha e precisa ser renovada. Não há no país, por exemplo, ferrovias de alta velocidade, coisa comum na Europa. As novas linhas de trens devem substituir transporte aéreo, altamente poluidor.
Então Biden quer renovar a infraestrutura do país e, ao mesmo tempo, descarbonizar a economia, que é para onde vai a fronteira tecnológica em função do aquecimento global. Além disso, ele promete investir em educação e saúde pública com recursos obtidos pela maior taxação dos ricos americanos.
O plano Biden, pela sua enorme dimensão, provoca controvérsias. As declarações que mais preocuparam foram as do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, por ser um economista de centro-esquerda, que teoricamente deveria apoiar o investimento público. Summers acha que o pacote fiscal, grande demais, pode gerar inflação de demanda, alta de juros e recessão.
Com ou sem polêmica, o fato é que os americanos já planejam a economia do pós-covid e pouco se lixam com o aumento dos gastos. Europeus vão pelo mesmo caminho. Na França, o ministro das Finanças, Bruno Le Maire, mandou às favas o neoliberalismo e disse que vai proteger a economia francesa “a qualquer custo”. Prometeu investir para garantir soberania e domínio de tecnologias que “moldam o futuro” do país. Vai proteger as empresas com taxações e novos financiamentos. A ideia é “reinventar o modelo econômico do país” com base na inovação e na indústria livre de carbono.
Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, aqui o governo ainda aposta na cloroquina, provocando gargalhadas no exterior. Promessas, como as feitas na Cúpula do Clima, soam falsas. O comando econômico só pensa em conter gasto público. A discussão da política macroeconômica se limita ao teto de gastos, jabuticaba pouco razoável num momento em que mundo decidiu aplicar recursos para combater a doença e renovar a economia nos novos parâmetros.
Nem no incentivo ao carro elétrico, óbvia tendência mundial, estamos pensando ainda, como mostrou Marli Olmos no Valor de ontem. Não se trata de defender a ideia de que o bom para os EUA ou para a Europa é bom para o Brasil. Trata-se de seguir o rumo da economia mundial ou de ficar sentado na sarjeta, chorando e esperando pelos milagres da cloroquina ou do teto de gastos.
José Luis Oreiro, professor da UNB, que acaba de lançar o livro “Macroeconomia da Estagnação Brasileira” em parceria com Luiz Fernando de Paula, anda enfurecido com o que chama de “fé no teto sacrossanto”, que só existe no Brasil com esse rigor, incluído na Constituição e com poucas regras de saída. “Se preservar o teto, a economia cresce; se violar, não cresce”, esse é o dogma. “Por que?”, pergunta.
Em tempo: na opinião de Oreiro, Summers está equivocado e “Biden deve ficar para a história como o novo Roosevelt”.
Pontes abertas
Mudando de assunto, mas nem tanto, os quadrinhos acima, uma velha metáfora comum nas paredes de barbearias dos anos 1960, representam bem o que vêm fazendo as duas forças políticas progressistas do país há quase três décadas. Nunca saíram do primeiro quadrinho e foi preciso aparecer um radical totalitário para desconfiarem que estão no mesmo lado. Ameaçam agora passar para o segundo quadrinho.
As propostas das duas não são conflitantes. Quando governaram, controlaram inflação, buscaram crescimento, reduziram analfabetismo e mortalidade infantil, tiveram a responsabilidade fiscal possível e melhoraram a distribuição de renda. Seria utopia pensar numa aliança progressista entre elas? As pontes estão abertas. Mas será preciso superar ambições pessoais de poder em ambos os lados e alguém tomar a iniciativa de atravessar as pontes. As propostas podem ser mescladas para salvar um país entregue a quem não faz planejamento econômico, ignora a ciência e o desafio ambiental, descuida da educação e da saúde e promove discórdias.
Se não se unirem, as duas forças serão condenadas pela história. Pode dar com os burros n’água a ideia de deixar a centro-esquerda de fora e formar um bloco puro-centro, que é móvel, infiel e fragmentado, como mostrou pesquisa publicada sexta-feira pelo Valor. Também não há como isolar de um acordo a centro-direita, porque a esquerda não forma maioria. Não seria melhor escantear os extremistas, parar, negociar e decidir se vão comer juntos primeiro as mortadelas da esquerda ou as coxinhas da direita?
Marcos Lisboa: Tudo vai ser diferente?
Nossa tentativa de plano Biden não deu certo
Os EUA de Joe Biden pretendem investir US$ 2,3 trilhões em oito anos, sobretudo em infraestrutura. O programa custará, anualmente, 1,3% do PIB americano. Para equilibrar as contas, o governo propôs elevar impostos por 15 anos, como tributar o lucro das empresas em 28%.
Essa ousadia pode ser comparada com algumas políticas da nossa história recente. Deve-se ressaltar que os EUA são 6,5 vezes mais ricos do que o Brasil. Além disso, empresas aqui já têm alíquota nominal de 34% sobre o lucro.
O custo anual do plano Biden equivale, no Brasil, a cerca de R$ 100 bilhões, menos de três vezes o valor das emendas parlamentares em 2021. O Orçamento federal é de R$ 1,5 trilhão.
Entre 2009 e 2015, o Tesouro brasileiro concedeu, por meio do Programa de Sustentação do Investimento, subsídios de R$ 323 bilhões, ou 5,5% do PIB anual médio no período.
Ajustado pelo PIB americano, o programa equivaleu a 50% do plano Biden. E essa foi só uma das políticas públicas utilizadas naquele período para estimular investimentos. Cabe mencionar que o custo para Tesouro americano está perto de 0,5% ao ano e o nosso, na época, era quase 6% acima da inflação, 12 vezes maior.
De 1998 a 2007, a nossa carga tributária cresceu cerca de 6 pontos percentuais mais do que o PIB, o que significou uma arrecadação adicional de R$ 2,33 trilhões no período.
O aumento do gasto público, contudo, foi-nos de pouca valia. Os EUA cresceram mais do que o Brasil entre 1995 e 2016, e os países emergentes fora da América Latina, cerca de sete vezes mais.
A razão é simples. Parte dos recursos se perde nos interesses que capturam o Estado brasileiro, com menos benefícios para a população do que em outros países, ou poucos investimentos eficientes.
Desenvolvimento e combate à desigualdade são utilizados, em parte, como cortina de fumaça para garantir subsídios para o setor privado e reajustes para corporações.
Nos EUA, servidores deixam de receber seus salários caso o Orçamento não seja aprovado. A maioria não tem estabilidade, muito menos aposentadorias integrais.
Por aqui, a burocracia, com estabilidade e aposentadoria integral, garante seu quinhão. Semana passada, por exemplo, o Congresso decidiu que técnicos da Previdência devem receber como analistas tributários.
Segundo deputados, a medida privilegiou 1.800 servidores, que vão receber salários de até R$ 18 mil por função para a qual não prestaram concurso. A conta chega a R$ 2,7 bilhões.
No mundo desenvolvido, o Estado está a serviço da sociedade. No Brasil, a sociedade trabalha para sustentar o Estado e seus alcaides.
Já passou da hora de tratar a nossa disfuncional economia política.