pinochet

Bruno Leal: Departamento de História da UnB transmite aula inaugural sobre Salvador Allende

Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) vai transmitir, ao vivo, a aula inaugural do seu próximo semestre. O convidado é o historiador Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP). A aula vai analisar a experiência do governo de Salvador Allende. Allende foi presidente do Chile entre 1970 a 1973, quando foi deposto por um golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet, chefe das Forças Armadas chilenas, e com apoio do governo dos Estados Unidos.

O evento acontece no dia 28 de julho, às 18h. A transmissão ocorrerá pelo canal do YouTube do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UnB. O evento é gratuito e não é preciso inscrição prévia. Qualquer pessoa poderá acompanhar a aula. A aula ficará disponível no canal do ICH permanentemente.

Aggio é doutor em História pela USP e tornou-se Professor Livre-Docente em História da América em 1999 e desde 2009 é Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca. Atuou como professor visitante na Universidade de Valencia (Espanha), onde realizou seu pós-doutorado entre 1997 e 1998. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Política, trabalhando com história política da América Latina contemporânea, cultura política e democracia, intelectuais e pensamento político, Gramsci e América Latina.

O historiador é autor do livro “Democracia e Socialismo: A Experiência Chilena”, que pode ser encontrado na Amazon. A obra também está disponível no formato Kindle.

*Bruno Leal é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

Fonte:

Café História

https://www.cafehistoria.com.br/departamento-de-historia-da-unb-transmite-aula-inaugural-sobre-salvador-allende/

DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile

Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo

A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.

Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.

Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.

Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.

Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.

“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”

Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile

Derrota da direita

A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.

“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.

Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.

A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.

A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.

A nova Constituição

A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.

A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.

O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.

A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.

O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.

Fonte:

DW Brasil

https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680

Movimento


DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile

Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo

 

A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.

Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.

Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.

Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.

Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.

“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”, disse à agência de notícias Efe Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

Derrota da direita

A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.

“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.

Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.

A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.

A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.

A nova Constituição

A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.

A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.

O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.

A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.

O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.

Fonte:

DW Brasil

https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680


Alberto Aggio: A experiência chilena, 50 anos depois

Há 50 anos o Chile vivia uma experiência política extraordinária. Foi o período em que Salvador Allende governou o país, depois de ter vencido as eleições em 1970 e, quase três anos depois, ser deposto por um golpe militar, em 11 de setembro de 1973.[1] Tão logo se começa a rememorar o período vêm à mente as imagens que correram o mundo ao registrarem o assalto ao Palácio La Moneda, em Santiago. Cenas chocantes especialmente em se tratando de um país que cultivava, interna e externamente, a imagem de estabilidade política e solidez institucional.

Allende em meio a apoiadores em 1973

O que ocorreu para que se chegasse a tal ponto? Até hoje, 50 anos depois, essa pergunta é feita e há muitas respostas para ela, tanto quanto as incógnitas que permanecem submersas. Diversos aspectos são apresentados como fatores explicativos. Dentre eles, o fato de que Allende tornou-se Presidente mas seu apoio eleitoral era minoritário, uma vez que havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse aprovada, em segunda instância, pelo Congresso; que as forças políticas da época se dividiam em três — os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista —, com projetos de sociedade distintos, o que dificultou a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições; que as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas, evidenciaram-se excessivamente maximalista e o caminho adotado para realizá-las, por meio do Executivo, acabaram abrindo espaço para a contestação e a ingovernabilidade; que o apoio dos EUA à oposição e, por fim, ao golpe de Estado, não deixam dúvidas a respeito da transcendência do que se passou no Chile, um dos palcos da confrontação acionada pela “guerra fria”.

Os três anos nos quais Allende governou o Chile são identificados como a experiência chilena, que mesmo depois do golpe militar continuou a provocar uma sensação paradoxal, constituindo-se numa referência positiva e negativa em razão do fracasso da chamada via chilena ao socialismo, que acalentava a ideia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Tratava-se de uma proposição inédita, de repercussão universal.

Por muito tempo fez-se uma discussão reducionista da via chilena ao socialismo. Para alguns era mais uma ilusão reformista; para outros, ensaiava-se uma perspectiva nova de construção do socialismo. Entre os protagonistas, as avaliações posteriores tenderam a reproduzir a divisão que habitava a esquerda chilena do período Allende.[2] Imerso nesse antagonismo anacrônico, onde inutilmente se busca uma “saída” para o governo Allende, o passado permanece envolto numa bruma que não se dissipa.

VIA CHILENA E VIA DEMOCRÁTICA AO SOCIALISMO

Em diversas oportunidades Allende usou a expressão via democrática para qualificar melhor a opção que a esquerda deveria seguir no Chile. Esta expressão, para Allende, enfatizava a forma de luta e o comportamento político que a esquerda deveria adotar no exercício do poder. Foi neste sentido que suas referências à via democrática acabaram por selar uma identificação entre processo (experiência chilena) e projeto (via chilena ao socialismo) que, juntos, passaram a ser vistos como uma experiência prática de aplicação daquilo que nas perspectivas teóricas da esquerda ocidental se chamava — ainda que de uma maneira um pouco difusa — de via democrática ao socialismo.

Allende discursa na nacionalização do cobre em 1971

No entanto, a história não corrobora esta identificação. Mesmo que Allende jamais tenha se afastado dos procedimentos democráticos, a experiência chilena apenas pode ser compreendida como uma tentativa de realização prática dos pressupostos da via chilena, uma vez que o projeto que a embasava nem sempre fora compreendido no interior da UP como uma via democrática ao socialismo. A identificação entre via democrática e via chilena ao socialismo não se configurou como uma linha política clara e hegemônica nem no governo nem entre os partidos que o apoiavam. Tratava-se de uma estratégia bastante inovadora para os dois principais partidos da esquerda chilena, o PC e o PS. Para ambos, a superação do Estado burguês no processo revolucionário chileno se concluiria com o estabelecimento da ditadura do proletariado, única situação em que se poderia pensar a implantação do socialismo. Para o PC, era necessário chegar ao momento da ruptura mantendo a institucionalidade; para o PS, era preciso resolver a questão do poder e formar um Estado paralelo fundado no “poder popular”. Em suma, para os dois partidos, a particularidade chilena confirmaria, mais uma vez, as leis universais da revolução.

Está claro, portanto, que aquela esquerda concebia a via chilena apenas como um elemento de retórica, um slogan, um artifício de unidade e mobilização. A via chilena constituiu-se apenas numa “anunciação” e não numa aplicação da via democrática para o socialismo. A cultura política convencional que governava a cabeça da esquerda chilena — mas não apenas dela — não permitiu que se pensasse na ideia de que a democracia era ou poderia ser “a via” do socialismo. Isto somente iria começar a ser formulado em outro contexto e em função das lições que foram extraídas do golpe de 1973.[3]

Esse caráter anunciador do projeto da via chilena, mais intencional do que dirigente de uma grande política, perdeu poder de atração e eficácia no decorrer do governo, diluindo-se na imperiosa necessidade de manter unida a coalizão de esquerda como forma de sustentação política. Do ponto de vista prático, o que ocorreu foi que a via chilena ao socialismo de Allende acabou por reduzir-se a um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado. Mesmo Allende supunha que o processo se encaminharia para uma situação de ruptura na qual se poderia transformar o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. A via socialista deveria ser capaz, nestas circunstâncias, de articular simultaneamente criação socialista e resolução do problema do poder como processos construtivos de desarticulação da dominação capitalista. Aqui ressoam ecos fortes do “socialismo de esquerda europeu” que, à época, criticando o comunismo soviético e a socialdemocracia, procurava encontrar uma alternativa que vinculasse reforma e revolução. Mas o resultado foi outro: fraturada, a UP não executou nem desenvolveu a via chilena ao socialismo e o que nela se anunciava como uma possibilidade de caminho democrático ao socialismo.

A experiência chilena de Allende e da UP evidencia que foi impossível seguir adiante sem a construção de consensos e de instituições que dessem suporte às transformações estruturais colocadas em curso. Seu fracasso deixa explícito que aquela era uma revolução que se tornou impossível por conta da cultura política convencional que marcava a esquerda da época diante do caminho escolhido: transitar ao socialismo por meio da democracia.

DE UM CHILE A OUTROS: IMAGENS DA EXPERIÊNCIA CHILENA

Toda metáfora quer dar corpo concreto a uma impressão difícil de exprimir. Sua forte produtividade heurística, a despeito das imprecisões, cumpre um papel de síntese, procurando assegurar, por meio de um custo muito pequeno, o máximo rendimento comunicativo. Em relação à experiência chilena, alguns analistas se mantiveram prisioneiros à imagem da tragédia como síntese daquele processo, predeterminado ao fracasso. A história aqui é vista como uma aproximação a um fim inexorável, o que impossibilita que se investigue as estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores envolvidos, dimensões sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas dificuldades e seus limites.

Palácio La Moneda, em Santiago, é atacado por soldados em 11 de setembro de 1973

O cientista social Tomás Moulian buscou outra angulação. Para ele, o período da UP expressou simultaneamente “festa e drama”, foi “excitante e efervescente” bem como “doloroso e traumatizante”.[4] Havia uma dimensão positiva, de festa popular — uma dimensão erótica —, mas também uma face negativa, marcada pela imposição do regime ditatorial que sucedeu ao golpe de Estado. “Festa e drama” eram duas caras de uma mesma moeda. A festa assumia “a forma de uma catarse vingativa, adotava o caráter de uma vingança por anos de sofrimento, silêncio e impotência”; “não era alegre, tinha a gravidade dos ritos, onde o povo se assume como juiz”; “expressão de uma pulsão escatológica” em que se acreditava ter chegado o “momento do acerto de contas”, momento definidor em que o povo capturava o futuro para si, imagem condensada na ideia de “revolução triunfante”. O drama, por sua vez, materializou-se na “encarniçada batalha política”, na emergência de uma “situação de crise catastrófica gerada e produzida (no seu sentido forte) pelas decisões adotadas, em diferentes conjunturas do processo, pelos atores em conflito”. Nessa leitura, a crise de 1973 é ainda vista como derrota da UP, evitando-se aludir ao fracasso de um governo conduzido pela esquerda.

Quase 10 anos depois, Moulian retoma o turbilhão de imagens para recontar a história da UP, agora no contexto do “transformismo” pós-ditatorial[5]. No novo contexto, o período Allende representa um Chile romântico, o avesso do Chile da Concertación[6], onde predomina a negociação, o pragmatismo político, o consumismo, etc. O romantismo da UP assumiria um “pathos trágico”, típico da adolescência. Seu desfecho, um “doloroso aborto”, imagem que sugere a explosão de violência que se impôs depois de 1973.

Para Moulian, o Chile “transformista” dos tempos da Concertación, evidenciando outra cristalização identitária, equivoca-se ao criar o mito da transição modelar da mesma forma que se equivocou ao mistificar o “Chile democrático” anterior à catástrofe de 1973. “Verniz e aparência”, diz o nosso autor: “a estabilidade da democracia chilena até a década de sessenta sustentou-se mais em razão de suas imperfeições do que de suas perfeições”. A estabilidade chilena, como “nossas ilusões”, continua, não se baseava “no enraizamento da democracia na cultura, nos valores incorporados com força quase atávica”[7].

O Chile do final da segunda década do século XXI já é inteiramente outro. O período da Concertación se foi com a alternância de poder com a direita democrática. Mas, o Estado de “mal-estar social”, marcado por extensas desigualdades e a manutenção da Constituição de 1980, herdada do período Pinochet, acabaram por gerar o que ficou conhecido como o “estallido” de outubro de 2019, quando multidões desceram às ruas de forma tão imponente quanto surpreendente. Essa explosão social forçou o acordo político que iria dar sustentação à realização de um Plebiscito quase um ano depois no qual se aprovou os termos de realização da eleição e funcionamento de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de uma nova Constituição.

Pateando Piedras, disco de Los Prisioneros onde foi gravada a canção “El baile de los que sobran”, 1986

Afirmar que há uma identidade entre essa “irrupção de massas” e a vitória de Allende em 1970 alimenta equívocos. A eleição de Allende em 1970 não tem nada semelhante ao outubro de 2019. A catarse dos cânticos da UP nas ruas de Santiago, em outubro de 2019, pode iludir a quem pensa em fazer a História voltar atrás. No prefácio a um livro coletivo sobre os 50 anos da UP[8] Tomás Moulian chama a atenção para a impossibilidade de se repetir aquele processo. Também cantada nas ruas em 2019, “El baile de los que sobran”, do álbum Pateando piedras (1986), da extinta banda, Los Prisioneros, talvez sinalize mais realisticamente o que se pensa ultrapassar e o que se ambiciona alcançar.

Hoje o Chile de Allende e da UP está bastante distante do universo político que anima os jovens que saem às ruas e pedem mudanças estruturais para o País. Se há alguma atualidade daquele Chile nos dias de hoje ela não está na expectativa de se retomar os pressupostos do projeto de construção do socialismo por meio da democracia, mas na compreensão dos dilemas políticos que, hoje, vivenciamos e que assumem dimensões universais. A experiência chilena deve ser vista, portanto, como um ponto de inflexão na necessidade de superação da cultura política da revolução, sem a qual não haverá possibilidade de redirecionamento das políticas da esquerda para o enfrentamento dos problemas e impasses da democracia, entendida como a projeção civilizacional do nosso tempo, capaz de garantir transformações históricas sem a perda das liberdades e das individualidades. O fracasso da experiência chilena demonstra que o tempo da revolução é incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado pela urgência da tomada do poder, o segundo reconhece que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática.


“El baile de los que sobran”, cantado nas manifestações de outubro de 2019 em Santiago


Notas:

[1] Allende foi candidato pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que tinha como eixo os Partidos Comunista (PC) e Socialista (PS), mais os Radicais, o partido Socialdemocrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU); o golpe militar foi liderado pelo general Augusto Pinochet que imporia uma ditadura por 17 anos.

[2] AGGIO, A. Democracia e socialismo: a experiência chilena. Curitiba: Appris, 3ª. Ed. 2021.

[3] O início do reconhecimento dessa perspectiva se dá nos três artigos de Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano (PCI), publicados em 28 de setembro e 5 e 12 de outubro de 1973 em Rinascita, que dão corpo ao chamado “compromesso storico” entre o PCI e a DC. Ver Vacca, G. L`Italia contesa – comunisti e democristiani nel lungo dopoguerra (1943-1978). Venezia: Marsilio, 2018, p. 266 (há uma tradução brasileira no prelo pela Editora da Unicamp).

[4] MOULIAN, T. “La Unidad Popular: fiesta, drama y derrota”. In GAZMURI, J., Chile en el umbral de los noventa. Santiago: Planeta, p. 27-41, 1988.

[5] MOULIAN, T. Chile Actual, anatomía de un mito. Santiago: LOM/Arcis, 1997.

[6] A Concertación de los partidos por la democracia nasce no plebiscito de 1988 como Concertación por el No. Foi formada por diversas forças oposicionistas, menos o PC. Em 1990 vence as eleições presidenciais com Patricio Aylwin. Vários Presidentes eleitos pela Concertación governaram o Chile sucessivamente até 2010.

[7] MOULIAN, T., 1997, p. 166.

[8] HENRY, R. A., SALÉM V., J. y CANIBILO R., V. (comps.) La vía chilena al socialismo 50 años después, Tomo II. Buenos Aires: CLACSO, 2020. http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20201201032252/La-via-chilena-al-socialismo-Tomo-II.pdf

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, 02.04.2021: https://estadodaarte.estadao.com.br/chile-allende-aggio-horizontes/)


El País: Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet

Um juiz do Chile considera que os abuso sexuais cometidos por agentes da polícia secreta constituíram “uma forma específica de violência contra a mulher”

Pablo Cadiz, El País

Beatriz Bataszew ficou aterrorizada quando soube o que estava acontecendo no porão de Venda Sexy. Horas antes, em 12 de setembro de 1974, ela havia sido detida por agentes da Direção Nacional de Inteligência (DINA), a polícia secreta da ditadura de Augusto Pinochet, que a transferiram para aquele centro clandestino instalado em uma casa de dois andares de um setor de classe média da comuna de Macul, em Santiago do Chile.

A origem do nome Venda Sexy está registrada no primeiro Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura ―mais conhecido como relatório Valech. Lá ficou estabelecido que era parte do jargão dos agentes da DINA e estava relacionado ao seu método preferido de tortura: abuso sexual, principalmente de mulheres, que durante sua passagem pela casa ficavam nuas e vendadas.

Para Beatriz Bataszew, estudante de engenharia florestal e militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), sua passagem pelos porões da casa foi de cinco dias, nua, vendada, sem contato com o exterior e submetida a vários interrogatórios nos quais foi torturada, agredida e abusada sexualmente. O lugar também era conhecido como a discoteca: um toca-discos ficava ligado a todo volume para ocultar o horror.

O que aconteceu em Venda Sexy, afirma Beatriz, estava completamente fora do que ela e outros militantes de movimentos de esquerda imaginavam sobre a repressão, em meio aos anos mais duros da ditadura. Um dos primeiros avisos do que ela iria viver chegou ao escutar a história de Marta Neira, de quem perderiam todo o rastro e iria engrossar a lista dos mais de 1.210 presos desaparecidos pelo regime: “Ela voltou do porão e relatou desesperada, desconcertada, que havia sido violentada pelo cachorro. Isso foi terrível para nós que ainda não tínhamos passado por aquela experiência, porque quando ela contava eu pensava que isso iria acontecer comigo, e de fato aconteceu”.

Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy.
Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy. MEMORIAS DE REBELDÍAS FEMINISTAS

Os estupros eram perpetrados pelos próprios agentes da DINA e em especial por uma mulher: Ingrid Olderock, descendente de alemães, com ideias ligadas ao nazismo, que se tornou conhecida na polícia secreta por meio de seu cachorro Volodia, da raça pastor alemão e treinado para cometer os abusos. “Não foi só violência sexual, foi violência política sexual, que tinha como objetivo nos domesticar, nos disciplinar e particularmente nos punir, porque éramos mulheres que lutávamos decididamente contra a ditadura”, diz Beatriz Bataszew, lembrando o que viveu há quase meio século.

O caso dela faz parte de uma decisão inédita da Justiça chilena que incorporou uma perspectiva de gênero ao condenar os ex-agentes da DINA Raúl Iturriaga Neumann, Manuel Rivas e Hugo Hernández a 15 anos de prisão como autores de sequestros e uso de tortura com violência sexual contra Beatriz e cinco outras mulheres: Cristina Godoy, Laura Ramsay, Beatriz Bataszew, Sara de Witt, Alejandra Holzapfel e Clivia Sotomayor; além de quatro homens que foram vítimas de sequestro e tortura entre 1974 e 1975, dentro de Venda Sexy.

A particularidade da decisão do juiz Mario Carroza reside no fato de que os abusos cometidos durante os interrogatórios foram considerados “uma forma específica de violência contra a mulher”, em consonância com padrões internacionais. “No estudo do ocorrido no referido recinto clandestino de detenção, os agentes não se limitaram apenas a sequestrar homens e mulheres, com o propósito de trancafiá-los e deles extrair informações, sob tortura, que no caso das mulheres, por sua natureza e gravidade, tiveram um impacto sobre elas que marcou sua vida futura”, explica Carroza ao EL PAÍS.

Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.
Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.CONSEJO DE MONUMENTOS NACIONALES

Para o juiz, o que as mulheres vivenciaram no interior daquela casa “foram circunstâncias desumanizadas, degradantes e abusivas”, e que deveriam ser entendidas como uma figura penal diferente e que “tornasse evidentes essas circunstâncias”. Com as sentenças de prisão dos ex-agentes, Carroza condenou o Estado do Chile a pagar uma indenização de 80 milhões de pesos chilenos (cerca de 560.000 reais), por danos morais, a cada uma das demandantes. A sentença é inapelável.

Para Beatriz Bataszew, a sentença “tem um valor importante, mas tem limitações, entre as principais o fato de que não ser considerado o elemento político daquela violência. Isso significa que são julgados os que cometeram os atos, mas não quem orquestrou esse instrumento de terrorismo de Estado. Ou seja, não se julga a autoridade política”. “Há um progresso no sentido de que se avança na verdade, mas não consideramos que seja justiça um ato executado quase meio século depois. Se a justiça não é oportuna, não é justiça”, diz.

Já para a advogada Camila Maturana Kesten, da Corporação Humanas, organização feminista que presta apoio jurídico a vítimas de violações aos direitos humanos, “é da maior importância que o Judiciário chileno reconheça e destaque a particularidade da repressão exercida por agentes do Estado em Venda Sexy, assinalando que, além de infligir grave sofrimento físico e psicológico às pessoas sequestradas, foi cometida violência sexual sistemática e maciça, em particular contra mulheres”.


El País: Richard Nixon: “Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”

Cinquenta anos depois da chegada do socialista à presidência do Chile, o Arquivo de Segurança Nacional dos EUA divulga documentos inéditos que revelam as estratégias de Washington para desestabilizá-lo

Introdução de um dos documentos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA agora desclassificados, que traça um perfil do ex-presidente chileno Salvador Allende.
Introdução de um dos documentos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA agora desclassificados, que traça um perfil do ex-presidente chileno Salvador Allende.NSA ARCHIVE

Rócio Montes, do EL País

Cinquenta anos depois da chegada de Salvador Allende ao poder no Chile, em 3 de novembro de 1970, o Arquivo de Segurança dos EUA divulgou documentos que derrubam a versão oficial sobre o papel desempenhado pela Administração de Richard Nixon (1969-1974) contra o Governo do socialista chileno. Durante décadas, os Estados Unidos afirmaram que intervieram no país sul-americano não com a intenção de desestabilizar a Unidade Popular de Allende, e sim de apoiar os partidos de oposição como vistas a uma eleição que seria realizada em 1976. Em suma, para “preservar” a democracia e suas instituições. O próprio Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional dos EUA, declarou que seu país não sabia do golpe de Estado de 1973 ―que acabou com os mil dias da via chilena para o socialismo e levou o presidente à morte― e não tinha relação com aqueles que o impulsionaram na frente interna. Os documentos liberados agora pelo organismo, porém, evidenciam uma estratégia agressiva de hostilidade e pressão.

“Esses documentos registram o objetivo deliberado das autoridades americanas de minar a capacidade de Allende para governar e de derrubá-lo para que não pudesse estabelecer um modelo bem-sucedido e atraente de mudança estrutural que outros países poderiam seguir”, explica Peter Kornbluh, analista sênior encarregado do Chile no Arquivo de Segurança Nacional, uma ONG com sede em Washington que analisa os documentos desclassificados pelos Estados Unidos depois da detenção de Augusto Pinochet em Londres em 1998. “É uma história de um país pioneiro ―um poderoso império― que queria controlar os países, suas instituições e as vidas de seus cidadãos, mas não em nome da democracia, e sim de uma ditadura militar e sua repressão. No nosso mundo atual, em plena crise, devemos estar atentos a essa história trágica”, diz.

Kornbluh se refere a um dos principais temores do Governo de Nixon e, principalmente, de Kissinger: que o caminho do socialismo à chilena ―alcançado pela via democrática― expandisse sua influência não só na América Latina, mas também em outras regiões do planeta. “Acredito firmemente que esta linha é importante no que diz respeito a seu efeito nas pessoas do mundo”, disse Nixon a Kissinger em uma conversa telefônica em novembro de 1970, segundo os papéis divulgados pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional. “Se [Allende] puder demonstrar que pode estabelecer uma política marxista antiamericana, outros farão o mesmo”, afirmou o presidente americano. Kissinger concordou: “Terá efeito inclusive na Europa. Não só na América Latina”.

Os documentos mostram que o assessor de Segurança Nacional influiu decisivamente na política que o Governo americano adotou em relação ao Chile, que incluiu uma tentativa frustrada de golpe de Estado para impedir que Allende assumisse a presidência que ele havia conquistado democraticamente. Estava marcada para 5 de novembro de 1970, na Casa Branca, uma reunião formal do Conselho de Segurança Nacional para discutir a política para o Chile. Mas Kissinger manobrou para adiar a reunião por 24 horas e, com isso, conseguir se reunir a sós com o presidente para que este desistisse de tomar decisões brandas em relação ao Governo de Allende, empossado dias antes. “É essencial que você deixe muito clara a sua posição sobre esse assunto”, disse Kissinger a Nixon. O assessor tinha motivos para se preocupar: nem todos os funcionários americanos estavam de acordo com uma estratégia hostil.

O Departamento de Estado temia que houvesse um escândalo internacional se os esforços para derrubar Allende ficassem em evidência e, por isso, defendeu uma política prudente de coexistência. Foi a chamada estratégia modus vivendi: apoiar os partidos da oposição chilena― os de centro e de direita― para ajudá-los nas eleições de 1976. O Escritório de Assuntos Interamericanos, entretanto, alertou que se Washington violasse seu “respeito pelo resultado das eleições democráticas”, reduziria sua credibilidade mundial, “aumentando o nacionalismo” contra os Estados Unidos. “Isso será utilizado pelo Governo de Allende para consolidar sua posição junto ao povo chileno e ganhar influência no resto do hemisfério”, assinalou o escritório em um documento.

Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet.
Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet.SERGE PLANTUREUX / GETTY

Chile e o temor de uma “Cuba em 1972”

Kissinger fez gestões de alto nível para conseguir se reunir a sós com Nixon antes do encontro do Conselho de Segurança Nacional. De acordo com um memorando em que um funcionário do Gabinete do presidente justifica o adiamento da reunião, Kissinger advertiu: “O Chile pode acabar sendo o pior fracasso de nossa Administração: ‘nossa Cuba’ em 1972”.

A reunião, registrada em 5 de novembro de 1970, entre Nixon e seu assessor de Segurança Nacional foi realizada no Salão Oval. Durante uma hora, Kissinger apresentou um estudo completo para que a abordagem agressiva de longo prazo em relação ao Governo socialista saísse vitoriosa. “Sua decisão sobre o que fazer a respeito pode ser a decisão mais histórica e difícil sobre relações exteriores que você terá de tomar este ano”, disse Kissinger, dramaticamente, a Nixon. “O que acontecer no Chile durante os próximos 6 a 12 meses terá ramificações que irão muito além das relações entre Estados Unidos e Chile.”

Kissinger se referia à influência mundial da via chilena para o socialismo: “O exemplo de um bem-sucedido Governo marxista eleito no Chile certamente teria um impacto em ―e até mesmo um valor como precedente para― outras partes do mundo, principalmente na Itália. A propagação imitativa de fenômenos similares em outros lugares, por sua vez, afetaria significativamente o equilíbrio mundial e nossa própria posição nele”, analisou.

O assessor procurava, por todos os meios, convencer Nixon a pressionar a burocracia da política externa a adotar uma posição de mudança de regime, em vez de preferir a estratégia modus vivendi, segundo um documento desclassificado pelo Arquivo de Segurança Nacional e publicado pela primeira vez no livro de Kornbluh intitulado The Pinochet File, lançado em 2013, 40 anos depois do golpe de Estado.

“Podemos derrubá-lo”

A reunião do Conselho de Segurança Nacional foi finalmente realizada em 6 de novembro de 1970. Nem todos os participantes sabiam que Nixon tinha ordenado que a CIA impulsionasse secretamente um golpe de Estado preventivo para evitar que Allende assumisse a presidência do Chile, o que não havia dado certo. No encontro, havia um acordo importante: a eleição democrática de Allende e sua agenda socialista para uma mudança substancial ameaçavam os interesses dos Estados Unidos. Mas, como Kissinger temia, não havia consenso sobre o caminho a seguir. O secretário de Estado, William Rogers, manifestou sua oposição à hostilidade e à agressão aberta contra o Governo de Allende: “Podemos derrubá-lo, talvez, sem ser contraproducentes”. O secretário de Defesa, Melvin Laird, sustentou: “Temos de fazer tudo que pudermos para prejudicá-lo e derrubá-lo”.

O diretor da CIA, Richard Helms, apresentou um documento informativo no qual explicou como Allende conquistou a presidência em uma eleição apertada, traçou o provável rumo de suas políticas econômicas e de relações externas e fez uma análise de sua equipe de ministros. O presidente chileno escolheu “um gabinete militante de linha dura” que “reflete a determinação dos socialistas de afirmar sua política mais radical desde o início”, assinalou Helms, que também se dedicou a fazer anotações.

“Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”, indicou Nixon no encontro, segundo o manuscrito de Helms, que faz parte dos documentos desclassificados pelos Estados Unidos e publicados agora pela primeira vez. O presidente havia decidido: seria adotado um programa de agressão hostil, mas de baixo perfil, para desestabilizar a capacidade de Allende de governar. “Nossa principal preocupação no Chile é a possibilidade de que [Allende] possa se consolidar e a imagem projetada ao mundo seja seu sucesso”, disse Nixon ao dar instruções à sua equipe de Segurança Nacional. “Seremos muito frios e muito corretos, mas fazendo coisas que serão uma verdadeira mensagem para Allende e outros.

Em 9 de novembro, Kissinger distribuiu um memorando secreto com a decisão adotada no conselho, intitulado Política para o Chile. “O presidente decidiu que a posição pública dos Estados Unidos será correta, mas fria, para evitar dar ao Governo de Allende uma base sobre a qual reunir apoio nacional e internacional para a consolidação do regime”, resumiu o assessor de Segurança Nacional. “Mas os Estados Unidos procurarão maximizar as pressões sobre o Governo de Allende para evitar sua consolidação e limitar sua capacidade de implementar políticas contrárias aos interesses dos Estados Unidos e do hemisfério”, acrescentou.

O documento desclassificado pelos Estados Unidos detalha os métodos: autoridades americanas colaborariam com outros Governos da região ―principalmente do Brasil e da Argentina― para coordenar esforços contra Allende; seriam bloqueados, silenciosamente, os empréstimos dos bancos multilaterais para o Chile, e cancelados os créditos e empréstimos para exportações dos Estados Unidos para o país sul-americano; empresas americanas seriam recrutadas para abandonar o Chile; e seria manipulado o valor, nos mercados internacionais, do principal produto de exportação do Chile, o cobre, para afetar ainda mais a economia chilena. Além disso, a CIA foi autorizada a preparar planos de ação relacionados à futura implementação dessa estratégia.

Naquela ocasião, Nixon e seu assessor também mantiveram uma conversa telefônica na qual comentaram o discurso de posse de Allende. “Helms [diretor da CIA] tem de chegar a essas pessoas”, disse o presidente. Kissinger respondeu: “Deixamos isso claro”. A transcrição do diálogo foi divulgada pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional.

Os novos documentos publicados lançam por terra as tergiversações que, durante décadas, autoridades dos Estados Unidos tentaram construir para que os EUA se esquivassem de sua responsabilidade pela quebra da democracia do Chile e pelos 17 anos de ditadura militar, que deixaram milhares de vítimas. Em setembro de 1974, o The New York Times revelou as operações encobertas da CIA para derrubar Allende. O Congresso americano abriu uma investigação sobre o assunto, o escândalo internacional resultou nas primeiras audiências públicas sobre as operações da CIA e foi publicado o estudo Covert Action in Chile 1963-1973 (“ação encoberta no Chile 1963-1973”), escrito por uma comissão especial do Senado, presidida pelo senador Frank Church (a comissão Church). Mas o Executivo americano reteve parte da documentação e os senadores que investigaram o caso não tiveram acesso ao registro completo sobre as deliberações e decisões da Casa Branca nos dias anteriores e posteriores à posse de Allende, que o Arquivo de Segurança Nacional revela agora, 50 anos depois dos fatos.

Última página do segundo documento desclassificado do Conselho de Segurança Nacional dos EUA que descreve a relação entre o Governo de Allende e a União Soviética.
Última página do segundo documento desclassificado do Conselho de Segurança Nacional dos EUA que descreve a relação entre o Governo de Allende e a União Soviética.NSA ARCHIVE

As palavras do poder

“Embora soubéssemos bastante sobre as maquinações do Governo de Nixon para impedir ou desestabilizar o Governo de Allende, é extremamente importante contar com estes documentos, incluindo notas manuscritas e transcrições de conversas telefônicas”, opina o historiador chileno-americano Iván Jaksic. “É surpreendente ver como aquilo que antes parecia ser especulação era mais do que verdadeiro. A crueldade da linguagem e as medidas propostas para pressionar o Governo de Allende e mandar sinais inequívocos a outros países são francamente arrepiantes”, acrescenta o ganhador do Prêmio Nacional de História de 2020. “São as palavras do poder e, com estes documentos, não resta dúvida de que por trás de cada palavra existiram medidas concretas que tiveram um impacto direto na agonia que viveu nosso país nesses anos.”

Jaksic conheceu o relatório da comissão Church assim que chegou aos Estados Unidos, em 1976: “Foi realmente devastador”, lembra o autor de livros como La Lucha por la Democracia en Chile (“a luta pela democracia no Chile”). “Mas a história não para por aí, pois nem mesmo essa comissão teve acesso a todos os documentos. As evidências que surgiram desde então e que continuam aparecendo são fundamentais para comunicar como foi urdida uma política em relação ao nosso país e à América Latina”, reflete.

O historiador, que mora em Santiago desde 2006, considera “notável” que se envolva a Europa na política para o Chile: “É evidente que, para o Governo dos EUA, o Chile era importante principalmente como um exemplo que não deveria se espalhar, ou seja, um marxismo que chega ao poder por vias democráticas”.

Segundo Ascanio Cavallo, jornalista e um dos autores de La Historia Oculta del Régimen Militar (“a história oculta do regime militar”), “não há ninguém no Chile que duvide da vontade do Governo de Nixon de que Allende não terminasse seu mandato”. “Mas tanto o próprio Nixon como Kissinger ―que em suas memórias faz uma referência muito breve ao Chile― sempre negaram um papel ativo dos Estados Unidos depois que Allende assumiu a presidência, diferentemente do que indicam estes documentos, que revelam que a Administração americana discutia como conseguir sua derrubada.”


Folha de S. Paulo: Vitória no plebiscito é recado a políticos do Chile e líderes estrangeiros, diz Lagos

Para ex-presidente, aprovação de mudança da Constituição mostra que 'modelo chileno' é falsa solução

Sylvia Colombo Folha de S. Paulo

SANTIAGO - Para o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, 82, o plebiscito que derrubou a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet é um recado a líderes estrangeiros, como o presidente Jair Bolsonaro, que consideram ou chegaram a considerar que o “modelo chileno” seria um exemplo a ser seguido.

Lagos presidiu o país entre 2000 e 2006. Tentou convocar uma Assembleia Constituinte, mas, na época, partidos de direita se mantiveram unidos e não permitiram a realização de um referendo. O socialista, então, alterou, ponto por ponto, aspectos mais autoritários da Carta hoje em vigor.

Além do tom liberal, a Constituição de 1980 dava muito poder aos militares, o que colocava obstáculos a decisões do Legislativo e do Executivo. Entre as 58 modificações realizadas por Lagos estavam a redução do mandato presidencial de seis para quatro anos, o aumento do peso do poder do Congresso em detrimento da participação das Forças Armadas e o fim da designação de senadores vitalícios.

Como o senhor avalia o resultado do plebiscito?

Estou muito orgulhoso por termos honrado uma tradição chilena de institucionalidade. Este foi um processo que teve momentos de violência nos últimos meses, mas que não foram preponderantes ao final. Tivemos uma eleição massiva se considerarmos a pandemia e o histórico recente do Chile, de comparecimento muito baixo. Os cidadãos votaram com paz, inclusive os idosos, que poderiam ter temido o vírus e ficado em casa. Votou-se com entusiasmo, alegria e respeito.

Por que foi possível aprovar uma Assembleia Constituinte agora e não em seu período como presidente?

No meu tempo, a direita estava unida, e, portanto, era impossível aprovar um processo como este. Hoje, temos um setor da direita que concorda com a necessidade de renovar a Constituição. Demorou, mas chegamos a esse momento. Esses direitistas que mudaram de opinião, que poderiam ser considerados traidores em seu ambiente, deram-se conta de que as mudanças são necessárias. A explosão social do último ano colaborou para que abrissem os olhos para a inevitabilidade de ter de acompanhar as transformações dos tempos. Agora vamos assistir a uma reorganização da direita para a eleição constituinte e para as próximas presidenciais [em novembro de 2021].

O senhor considera que este plebiscito foi um recado à classe política?

Sim. É importante notar que boa parte de quem votou pelo “rejeito” ainda assim escolheu, na segunda cédula, a Assembleia Constituinte integralmente eleita. Ou seja, admitiu que, caso a Constituinte passasse, preferiam que fossem eleitos novos legisladores para redigi-la. Nesse sentido, foi um recado a legisladores e partidos que estão no poder agora. É um número interessante de ser analisado. Porque se os que votaram pelo “rejeito” estivessem contentes com os atuais políticos, pediriam que a assembleia fosse mista, pois assim os partidos de sempre poderiam ter controle da situação. Essa hipótese foi derrotada, portanto, tanto pelos que votaram “aprovo” quanto pelos que votaram “rejeito”.

Quais são os desafios do governo agora?

A votação gerou grande expectativa, mas é preciso que a população tenha paciência, porque a nova Constituição não ficará pronta neste mandato. É preciso eleger os membros da constituinte, que eles redijam a nova Carta e que depois ela seja aprovada. Portanto, os problemas da população seguirão presentes nos próximos dois anos, e o desafio do governo é atender a essas questões mais urgentes agora. No momento, o foco deve estar na recuperação econômica e em vencer a pandemia. O trabalho da assembleia constituinte seguirá paralelo, e seu efeito não é imediato.

O que o senhor diria para líderes como Jair Bolsonaro, que chegaram a defender a aplicação do chamado “modelo chileno”?

Respondi a essa questão a vários líderes, um deles foi o ex-presidente dos EUA George W. Bush. Quando você mexe num tema como a Previdência, por exemplo, adotando a capitalização em vez da repartição, você diminui muito aquilo que a pessoa receberá no futuro. E, no final das contas, isso acaba virando um problema novo para o Estado. A ex-presidente [Michelle] Bachelet teve de fazer aportes novos, com o sistema de “pilares solidários”, que foram repasses de benefícios para quem não tinha com o que viver depois de aposentado. O mesmo acontece em outras áreas quando você quer retirar o Estado de tudo. No final, o Estado tem de arcar com as contas. Ou seja, é uma falsa solução, muito imediata, que não funciona a longo prazo. Isso explicaria ao sr. Bolsonaro. Bush entendeu, nunca mais me perguntou.

O senhor acredita que as manifestações continuarão?

É possível, pois os problemas imediatos seguirão, temos muito a percorrer até a Constituição ficar pronta. Ela pode ser uma solução para o futuro, mas não para o presente. O governo tem de lidar com as urgências. Se não conseguir, as pessoas voltarão às ruas.

*Ricardo Lagos, 82, primeiro presidente socialista do Chile depois de Salvador Allende (1908-1973), que foi deposto pela ditadura de Augusto Pinochet, governou o país de 2000 a 2006. Advogado e economista, anunciou candidatura para as eleições de 2017, mas desistiu pouco depois por falta de apoio dentro de sua coalizão. ​


Entenda o plebiscito

O que foi votado?

No dia 25 de outubro, a população chilena decidiu se o país aprovava ou rejeitava a elaboração de uma nova Constituição. O plebiscito também perguntou se a nova Carta deveria ser elaborada por uma comissão constituinte formada apenas por representantes eleitos ou por uma comissão mista, que inclua também os atuais membros do Congresso.

Quais são as críticas à Constituição atual?

Liberal, a Carta não obriga o Estado a fornecer diretamente saúde, educação e proteção social aos chilenos, o que estimula a atuação privada nessas áreas. Uma mudança constitucional poderia obrigar o governo a ser mais atuante e ampliar o acesso da população a serviços básicos. Outra crítica é a de que ela foi feita pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1980, com pouca participação popular, e que refazê-la permitirá incluir demandas de mais grupos, especialmente das mulheres.

E quais eram as razões para não mudá-la?

Defensores do "não" dizem que uma mudança radical pode comprometer a estabilidade econômica e argumentam que a Constituição poderia ser apenas reformada. Os críticos da mudança apontam que expandir a atuação social do governo depende muito mais de ter dinheiro em caixa do que das intenções da Constituição e consideram que ela não deveria ser tão detalhista, como apontar em quais questões sociais o governo deve agir.

Como se chegou ao plebiscito?

A mudança da Constituição foi uma das demandas dos protestos realizados no país a partir de outubro de 2019. O estopim foi a alta da tarifa do metrô em Santiago, mas logo se tornou um movimento contra a alta do custo de vida e a dificuldade de acesso à educação e saúde e o baixo valor das aposentadorias. O Congresso aprovou a realização de um plebiscito constitucional em novembro, que seria votado em abril. Por causa da pandemia, ele foi adiado para outubro.


Marcus Vinicius Oliveira analisa desafios da esquerda com base na via chilena

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, historiador toma como base livro de Alberto Aggio

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, conforme analisa o doutor em história Marcus Vinicius Oliveira, em artigo que produziu para a 23ª edição da revista Política Democrática Online. “Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários”, afirma.

Clique aqui e acesse a 23ª edição da revista Política Democrática Online!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos com acesso gratuito em seu site. Em seu artigo, Oliveira analisa, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

“Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder, “ escreve o doutor em história, para continuar: “Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático”.

De acordo com o autor do artigo, é preciso refletir em torno dos significados da experiência para a política contemporânea. “Não revisitamos a ‘experiência chilena’ para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI”, afirma.

Distante de qualquer perspectiva socialista, segundo Oliveira, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

“Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence”, afirma o doutor em história. Para o presente, conforme acrescenta, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

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RPD || Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira: A "experiência chilena" e o tempo da política

Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo

Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e expectativas vivenciadas no presente, de modo que revisitar um livro pode se tornar a descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile. Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução, e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada à modernidade política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao menos desde a primeira metade do século XX, com a ativação da participação das massas na política e a construção de um consenso democrático.

Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.

Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado. Nessa nova configuração política, trata-se de, por meio das relações de força que caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói novo significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura – pactuada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática”.

Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

*Marcus Vinicius é doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.


Alberto Aggio: Brasileiros de esquerda no Chile de Allende

Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da Praça Ñuñoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher”.

É com essas palavras que Fernando Gabeira inicia a narrativa do seu famoso O que é isso, companheiro?, publicado em 1979, depois da anistia e de seu retorno ao Brasil. O livro alcançou um êxito tão fulminante quanto duradouro, especialmente em função da polêmica que criou ao questionar os valores e crenças daqueles que se lançaram à luta armada no Brasil. Gabeira era um deles e como muitos outros brasileiros que haviam saído do país por vincularem-se à esquerda – armada ou não –, ele estava no Chile no dia do golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Naquele final de tarde Gabeira conheceria, mais uma vez, o sabor amargo da derrota. A sensação era pesada e a decisão difícil. Um tanto disfarçadamente, alguns companheiros caminhavam junto com ele pelas ruas de Santiago rumo à Embaixada da Argentina com o intuito de conseguir asilo político. Certamente não passava pela cabeça daqueles jovens a letra de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na qual se cantava, com outro espírito, os versos: “caminhando e cantando e seguindo a canção … a certeza na frente, a história na mão”. Ao contrário do voluntarismo daquela canção que animara os corações e mentes no final da década de 1960, ali só havia uma certeza: para salvar a própria vida, caminhava-se para um “exílio dentro do exílio”. A história lhes escapava das mãos e, como registrou Gabeira, o reconhecimento era inevitável: “as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente”.

Entretanto, aquela era uma explicação compreensivelmente unilateral a respeito do que se passava na América Latina e bastante superficial em relação ao que estava ocorrendo no Chile. Era, enfim, a visão daqueles que haviam investido sua juventude na luta armada e que viam a sua situação pessoal se complicar ameaçadoramente a partir da eclosão do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. Isto porque àquela altura já não havia mais – se é que alguma vez houve – um movimento guerrilheiro de perfil latino-americano que estava sendo acuado pelas forças da reação, como Gabeira, de alguma forma, supunha em seu registro. As mudanças que se produziam naquela hora teriam, como se confirmará depois, um caráter muito mais profundo do que apenas o de reação a movimentos armados ou governos eleitos pela esquerda. As ditaduras que se impuseram por meio de golpes militares, especialmente a chilena, refundariam seus países e as repercussões disso eram ainda insondáveis para os homens contemporâneos àqueles fatos, especialmente aos que militavam na esquerda latino-americana.

Salvador Allende discursa em manifestação pública em Santiago

Salvador Allende havia assumido o poder no Chile depois de vencer a eleição presidencial de 1970 sendo candidato da Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que abrigava os partidos Comunista, Socialista, Radical, Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Ao longo de três anos, Allende exerceu a presidência da República e foi deposto por um golpe militar na manhã daquela terça-feira, dia 11 de setembro de 1973. Seu governo ficou conhecido como a “experiência chilena” porque se propunha realizar uma tarefa inédita: construir o socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Essa perspectiva política havia sido denominada por Allende como a “via chilena ao socialismo”, uma consigna que visava expressar o caminho que deveria levar à realização do objetivo maior de seu governo. Analiticamente, a “via chilena” era o projeto que deveria embasar a atuação do governo e da esquerda enquanto a “experiência chilena” constitui-se no processo que marcou todas as realizações, contradições e vicissitudes do governo conduzido por Allende e pela Unidade Popular.

Contrastando com a situação chilena do início da década de 1970, o Brasil vivia, naquela conjuntura, um aprofundamento do autoritarismo e da repressão política que caracterizavam o regime ditatorial implantado no país em 1964. No final de 1968, o Ato Institucional n. 5 (AI5) impôs severas restrições à vida política do país com o fechamento do Congresso, a implantação da censura prévia aos principais veículos de comunicação e a cassação do mandato de diversos parlamentares. Contudo, o Brasil não viveu, no início da década de 1970, apenas os “anos de chumbo” da ditadura militar. Esse também foi o período do chamado “milagre brasileiro” no qual a economia cresceu aceleradamente, com base numa combinação de arrocho salarial e entrada maciça de capitais internacionais, proporcionando uma vigorosa legitimidade ao regime militar. Com ela vieram o ufanismo do “Brasil Grande Potência” bem como o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma dramática resposta aos críticos do regime. A situação política do país para aqueles que se situavam ideologicamente à esquerda, vindos do trabalhismo, do comunitarismo cristão, do comunismo, do socialismo ou do trotskismo, e que vislumbravam atuar em oposição ao regime militar quer do ponto de vista político-partidário quer do ponto de vista acadêmico e intelectual era visivelmente restrita e em alguns casos absolutamente impeditiva.

Prisioneiros políticos brasileiros libertados depois de sequestro de embaixador no anos 1970

Não à toa muitos brasileiros tiveram que rumar para o exterior ou lá permanecerem, voluntária ou involuntariamente. Alguns o fizeram como último recurso para salvar a própria vida, outros simplesmente para conseguir dar seqüência à sua carreira profissional, especialmente aqueles vinculados ao meio acadêmico.  Dentre estes últimos, muitos haviam se mudado para o Chile, depois de 1964, e lá permaneceram como pesquisadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) quando o regime militar deu mostras de recrudescimento da sua ação repressiva após a promulgação do AI5. Outros, contudo, como o já mencionado Fernando Gabeira, chegaram ao Chile depois de trocados pela liberdade de algum embaixador estrangeiro seqüestrado pela esquerda armada no Brasil. Naquele momento, o Chile tornou-se um dos destinos preferenciais dos exilados brasileiros tanto em função da sua longa trajetória de democracia quanto da vitória da esquerda em 1970. Para todos esses brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra, dentre outros, uma frase do hino nacional chileno, em que se canta que o Chile deverá ser sempre “el asilo contra la opresión”, soava bastante literal, além de garantir efetivamente um amparo seguro para eles e, em alguns caos, para suas famílias.

Darcy Ribeiro, um dos principais representantes da intelligentsia trabalhista brasileira, talvez tenha sido a liderança política vinda do Brasil que alcançou mais proximidade com o então presidente Salvador Allende. Darcy Ribeiro foi seu assessor especial e, nessa função, redigiu partes do famoso discurso presidencial de 05 de maio de 1971 no qual Allende define a via chilena como uma segunda forma de construção da sociedade socialista, procurando distinguir o caminho chileno das experiências soviética e cubana. Nesse discurso – que se tornou a principal referência a respeito da via chilena ao socialismo –, Allende menciona explicitamente trechos extraídos dos clássicos do marxismo, especialmente de F. Engels, em que se admite um caminho pacífico para o socialismo. A fala de Allende procurava enfatizar que o caminho chileno seria realizado “dentro dos marcos do sufrágio, em democracia, pluralismo e liberdade”, indicando que o principal desafio do Chile sob o governo da esquerda seria “institucionalizar a via política para o socialismo”.

Darcy Ribeiro, antropólogo e politico da esquerda trabalhista

Anos mais tarde, em suas Confissões (Cia. das Letras, 1997), Darcy Ribeiro relata que, juntamente com outro assessor, o valenciano Joan Garcés, defendera perante o presidente que o primeiro objetivo de seu governo deveria ser a criação de uma legalidade democrática de transição ao socialismo e não a ênfase na política de nacionalizações e estatizações. Assim, para ele, além das grandes transformações estruturais desenhadas no programa da UP – e que deveriam ser realizadas com muito equilíbrio –, o grande desafio da opção assumida no Chile residia no percurso que se deveria trilhar para se conquistar a institucionalização da via política para o socialismo.

Entretanto, os partidos da esquerda chilena se colocaram contra essa idéia, estabelecendo uma outra linha de ação. Nos três anos que se seguiram, a ação transformadora do governo da UP ficou concentrada no Poder Executivo, sob comando do presidente Allende. Acreditando que a legalidade chilena suportaria as transformações que o governo da UP colocaria em curso, adotou-se uma posição intransigente nas ações governamentais, visando incrementar a industrialização do país mediante processos de nacionalização e estatização, intensificar a integração social por meio de políticas públicas de corte popular e aprofundar a democratização com o aumento dos espaços de participação. A temática político-institucional, presente na reflexão de Darcy Ribeiro no inicio do governo, permaneceu em segundo plano e, mais tarde, meses antes do golpe, quando Allende lhe perguntou se a alternativa que propusera teria sido mais viável e eficaz, Darcy não teve como dar ao presidente uma resposta definitiva, preferindo um argumento mais consensual para o momento no sentido de reconhecer que a dimensão econômica já havia chegado ao seu limite e que o governo necessitava de outras soluções para enfrentar a severa crise que já vivenciava. Apesar das divergências de condução política, Darcy Ribeiro compartilhou com Allende a visão de que era preciso compatibilizar as transformações econômicas com o andamento político do processo e manter um comportamento hábil e cauteloso no sentido de “acumular forças” para passos mais decisivos que estariam por vir.

Marco Aurélio Garcia e Elizabeth Lobo no Chile em 1971

Contudo, desde o inicio, muitos viam com ceticismo a chamada via chilena ao socialismo. Influenciados pela Revolução Cubana e capitaneados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), parcelas do MAPU e pelo Partido Socialista – o partido de Allende –, estes setores entendiam que esquerda e governo deveriam seguir a estratégia de “pólo revolucionário”, contestando de maneira antagônica o “poder burguês”, agindo no sentido de aprofundar as contradições e conflitos até se produzir uma situação pré-revolucionária. Para isso, era preciso “avanzar sin transar”, ou seja, aprofundar as transformações sociais e econômicas sem negociação alguma com outros segmentos do espectro político chileno. O MIR não apoiara a eleição de Allende e, durante todo o período, permaneceu como a força oposicionista mais ativa no campo da esquerda. Seu líder mais expressivo, Miguel Enriquez (que anos mais tarde seria brutalmente assassinado pela ditadura) qualificava de “mentirosa” a formulação da via chilena como um segundo caminho para se chegar ao socialismo. De uma forma geral, todos esses setores de esquerda eram contundentes críticos do projeto da via chilena ao socialismo – e a maior acusação era de que ela se mantinha equivocadamente no interior da institucionalidade do Estado burguês – e visceralmente contrários ao encaminhamento político adotado pelo governo Allende. Há que se mencionar também o fato de que, nessa avaliação, esses setores da esquerda chilena se viam acompanhados por intelectuais que expressavam o pensamento da então chamada gauche revolutionnaire que brilhou na Europa entre os anos 60 e 70. Estes intelectuais (dentre eles a italiana Rossana Rossanda do grupo Il Manifesto, jornal critico e dissidente do velho Partido Comunista Italiano, o PCI) vaticinavam em seus textos de avaliação da chamada experiência chilena que, mais cedo ou mais tarde, como em todos os reformismos, Allende seria forçado a mudar de estratégia, aderindo, por fim, ao caminho revolucionário – definido, para eles, por meio da ruptura armada com o Estado burguês.

Theotônio dos Santos, Vania Brambirra e Hebert de Souza (Betinho) no retorno do exilio

Essa divisão marcaria profundamente a avaliação dos brasileiros que lá estiveram, refletindo a divisão que existia no seio da esquerda latino-americana a respeito do que se passava no Chile. Para boa parte da intelectualidade e da militância política da esquerda brasileira que se exilou no Chile, ao contrário do que defendia Allende, a experiência chilena teria que operar uma inflexão radical: passar do reformismo à revolução e do nacional-desenvolvimentismo ao poder democrático-popular. Um dos mais expressivos representantes dessa posição política foi Theotônio dos Santos, que era inclusive filiado ao Partido Socialista Chileno e dirigia, em 1973, o Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile (CESO). Nesse mesmo alinhamento poderíamos mencionar também os irmãos Eder e Emir Sader, Rui Mauro Marini, bem como Marco Aurélio Garcia, todos mais ou menos aderentes ou simpáticos às posições do MIR. Para se ter uma dimensão da contundência dos argumentos dessa corrente política, Theotônio dos Santos, no balanço final de um simpósio internacional realizado em Santiago, em outubro de 1971, procurou indicar o que ele entendia que deveria ser o papel chave do governo da UP: “criar condições para a tomada do poder (…) através da constituição do poder alternativo e não da conquista gradual do poder do Estado existente”. Depois do golpe, ao reavaliar todo o período, o que se deveria “julgar”, de acordo com Eder Sader, não eram os homens ou suas condutas no âmbito da esquerda e sim o próprio projeto da via chilena ao socialismo. O veredicto seria implacável: tratou-se de um equívoco trágico e fatal, ainda de acordo com Sader.

Para Darcy Ribeiro, esses setores praticavam um “radicalismo verbal exacerbado” e pretendiam – dogmaticamente – “cubanizar o processo chileno”. Para Darcy Ribeiro, essa “esquerda desvairada” ajudou a direita a dar o golpe definitivo em Allende. Essa avaliação, ainda que insuficiente enquanto uma explicação integral daquele processo histórico, nunca pode ser contestada cabalmente. Por outro lado, em sentido contrário ao que propugnavam no período e ao que escreveram posteriormente, aqueles que, como por exemplo, Theotônio dos Santos, à época criticavam Allende, entendem hoje – numa espécie de tour analítico surpreendente – que o governo da UP deve ser reivindicado “como vanguarda dos ideais revolucionários no nosso continente” e a sua experiência deve ser compreendida como um “projeto possível”.

Fernando Henrique Cardoso na defesa de doutorado em 1961

Entretanto, para além da polarização acima apresentada, é possível identificar também entre os brasileiros uma posição intermediária, que chegou a ser formulada no correr do período Allende. Num texto publicado por Fernando Henrique Cardoso na extinta revista Argumento – escrito antes, mas vindo a público depois do golpe de Estado –, chamava-se atenção para algumas importantes dificuldades do processo político chileno no sentido de superar a situação de dependência existente no país por meio da estratégia e das práticas adotadas pela UP e pelo governo Allende. Para Fernando Henrique Cardoso, os conflitos políticos e sociais que envolviam o governo Allende ameaçavam chegar a um patamar incontrolável e lançavam uma nuvem de pessimismo sobre a situação política. Segundo o sociólogo brasileiro, em função dos graves acontecimentos que marcavam o governo Allende, o cenário que se apresentava não era dos mais auspiciosos para a democracia chilena. Contudo, essa percepção de Cardoso – em tudo distanciada do protagonismo polarizador que marcavam as posições dos dirigentes da esquerda brasileira no Chile – não se transformaria em uma orientação política relevante, permanecendo no seu universo estritamente acadêmico e reflexivo. Deve-se lembrar que Fernando Henrique Cardoso – no Chile, um funcionário da CEPAL – havia publicado, com o chileno Enzo Faletto, em 1967, o livro Dependencia y desarrollo en América Latina que se tornaria um clássico dos estudos sobre a dependência. A superação da dependência do Chile em relação à presença dominadora dos EUA em sua economia era uma das questões centrais do programa da UP e do governo de Allende.

De toda maneira, o que se pode observar é que expressas de forma contrapostas, as falas dos principais protagonistas invadem integralmente o campo de análise, mantendo o passado envolto em uma bruma que não se dissipa. Ao testemunharem sobre o Chile de Allende, é ainda a perspectiva da derrota da esquerda diante da direita que, de maneira exclusiva, conduz o repensar histórico. Evita-se pensar a experiência chilena como o fracasso de um governo conduzido pela esquerda. Nas avaliações publicadas pelos principais protagonistas que participaram daquele processo – e dentre eles alguns dos brasileiros que acima mencionamos – não se toma como relevante o fato de que o governo atuou como nucleador de uma política que seguia a via institucional e as bases sociais da esquerda como um outro pólo que buscou permanentemente resolver a chamada questão do poder para implantar o mais rapidamente possível o socialismo. Essa dissociação foi geradora de uma tensão permanente no campo da esquerda e invadiu o coração do governo da UP. A partir dessa perspectiva de análise é possível perceber que efetivamente Allende foi se tornando, com o passar do tempo, uma liderança disfuncional uma vez que não advogava pela ruptura institucional e, por outro lado, não revelava capacidade para dirigir e controlar por inteiro o processo político que, por fim, redundou numa polarização catastrófica.

Uma das tendências radicalizadas do período se expressou na consigna “criar poder popular”

De uma forma geral, pode-se dizer que a experiência chilena fracassou por razões que pareciam despreocupar os principais atores da esquerda chilena e que eram anteriores a qualquer possível erro de condução política do processo e que também não tinham que ver diretamente com o desafio inédito de construir o socialismo por meio da democracia. Hoje está claro que jogou um papel fundamental o fato de Allende ter sido um Presidente da República com apoio político minoritário do ponto de vista da representação, uma vez que ele havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse havia sido aprovada, em segunda instância, pelo Congresso chileno. Efetivamente, somente o “clima revolucionarista” do final dos anos sessenta e a poderosa influência da Revolução Cubana na esquerda latino-americana explicam a temeridade de se buscar avançar na construção do socialismo pela democracia com um percentual tão exíguo de apoio eleitoral. Hoje sabemos também que há, no Chile de Allende, uma extraordinária importância o fato de que as forças políticas à época se dividiam em três correntes político-ideológicas – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos de sociedade distintos e até antagônicos entre si, dificultando a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições. É importante chamar a tenção para o fato de que o Chile nesse momento não tinha um centro político com funções negociadoras. Ao contrario, a DC buscava também implementar o seu projeto de sociedade. Em outras palavras, a DC era um centro excêntrico e isso, senão impossibilitava, dificultava ao extremo qualquer negociação mais substantiva ou duradoura entre esquerda e centro político. Em terceiro lugar, se poderia mencionar um tema programático: as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas (especialmente aquelas vinculadas à área mineradora), eram excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do executivo, acabaram efetivamente abrindo espaço para a ingovernabilidade. A exacerbação da idéia de que socialismo era estatização no plano econômico gerou uma política de tipo “soma zero”, que agregada aos outros fatores acima mencionados, geraram uma crispação sem remissão entre as forças políticas do país. Por fim, há que se agregar o fator externo: o apoio dos EUA à oposição – democrática e não-democrática – e, em seguida, ao golpe de Estado, não deixa dúvidas a respeito da transcendência do que se passava no Chile no início da década de 1970. Impedir uma nova Cuba era essencial para os EUA e, de fato, se configurou como um processo impossível de ser levado a bom termo num país que havia experimentado décadas de vida democrática antes de 1973.

Dividida e aquém dos acontecimentos e dos ditames que a historia lhe colocava, a esquerda buscava, sob Allende, realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado chileno, mas pretendia implantar um socialismo que não era outra coisa senão algo equivalente ao que se passava na União Soviética, na China ou em Cuba. Realizar uma coisa e outra se mostrou inviável naquelas condições, indicando que, em nenhum sentido, estava amadurecido o significado da via democrática ao socialismo que a esquerda chilena, a partir do governo, vocalizava e dizia querer implementar.

Por essa razão, o governo Allende não deve ser entendido como uma experiência prática da impossibilidade histórica de uma via democrática ao socialismo, como pensou a esquerda brasileira e latino-americana por vários anos, depois daquele 11 de setembro de 1973. Naquele governo apenas se anunciou essa possibilidade. Allende e a UP concebiam o socialismo a partir de uma cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana. Enquanto que o desafio que emergiu no Chile era novíssimo e obrigava a que se concebesse tanto o socialismo de outra maneira quanto um tipo novo de estratégia para se chegar a ele. Ator e circunstâncias se contraditaram e a história, por meio de outros personagens, se impôs implacavelmente.


George Gurgel: Chile, 11 de setembro de 1973

O Golpe militar, que culminou com o atentado terrorista ao Palácio de La Moneda, residência oficial do governo chileno, é um dos mais trágicos acontecimentos da vida política latino-americana, no século XX.

O socialista Salvador Allende, eleito democraticamente em 1970, é golpeado pelas forças mais conservadoras da sociedade chilena, apoiadas, como na maioria dos golpes militares acontecidos na América Latina no século XX, pelo governo norte-americano. Refletia as disputas entre EUA e a URSS, em plena Guerra Fria, pela hegemonia política internacional e regional.

O Chile, com a Unidade Popular e a liderança de Salvador Allende, era a possibilidade de construção de uma sociedade socialista, democrática, via eleições , em sintonia com os anseios da maioria da população, respeitando a Constituição e a pluralidade política e social do país.

A vitória eleitoral da Unidade Popular, em 1970, trouxe otimismo e grandes expectativas na América Latina, e em toda parte. O Chile estava cercado de ditaduras, inclusive a brasileira, onde os militares, depois de derrotar a luta armada, voltavam-se contra o Partido Comunista, de maneira seletiva e cruel: prendendo, torturando e matando muitas das lideranças do PCB que ficaram no Brasil, lutando pela democracia.

Eram tempos difíceis, de perseguições, torturas e mortes. As ditaduras militares davam a tônica da vida política, econômica e social do continente.

Salvador Allende e a Unidade Popular, por tudo que representavam, eram a esperança de dias melhores, de um processo político, econômico e social que nos levasse às transformações almejadas pelos chilenos e latino-americanos, por uma sociedade mais justa e fraterna em toda a América Latina.

Das altitudes andinas vinham as boas novas. O sonho podia ser realizado.

A vitória de Salvador Allende colocava uma nova perspectiva política: a relação entre socialismo e democracia, via eleições, era possível.

Nesta época, tinha eu 16 anos, vivia em Salvador. Estudava e fazia política estudantil contra a ditadura brasileira. As notícias da Unidade Popular e a eleição de Allende nos animavam e, com as poucas informações que tínhamos, íamos nos enchendo de esperanças, com o caminho trilhado pelos chilenos.

O mundo olhava para o Chile, país que nos trazia otimismo e nos alentava na luta contra a ditadura no Brasil, apontando caminhos e possibilidades de mudanças para toda a América Latina.

A notícia do Golpe, em 11 de setembro de 1973, foi muito dura.

Os setores conservadores da sociedade chilena, apoiados pelas ditaduras latino-americanas, inclusive a brasileira e os EUA, derrotaram politicamente, economicamente e militarmente a Unidade Popular e a esperança de construção de uma sociedade socialista democrática no Chile.

O ataque das forças militares golpistas ao La Moneda, anunciava a razzia fascista que viria contra a Unidad Popular e a democracia chilena.

Instalou-se o terror como política de Estado.

Prisões, torturas e mortes de milhares de pessoas começou a fazer parte do dia a dia da sociedade chilena.

O Chile virou uma grande prisão. O Estádio Nacional foi uma delas. A repressão desencadeada pelos militares e a necessidade de milhares de chilenos e estrangeiros, inclusive brasileiros, de saírem clandestinos do país deram a tônica, desde o início, do que seria o regime militar que ali se instalou, com a chegada do ditador Pinochet ao poder. O regime se estendeu, por muitos anos, até 1990.

Durante o período da ditadura pinochetista, milhares de pessoas foram presas, torturadas e mortas pelo regime militar. A diáspora chilena, provocada pela ditadura de Pinochet, é conhecida. Milhares de trabalhadores, lideranças políticas, sindicais e intelectuais deixaram o Chile.

Foram para onde puderam ir. A Europa recebeu muitos deles.

Conheci muitos companheiros chilenos, quando cheguei a Moscou, em 1975.

Na URSS e nos países socialistas, inclusive Cuba, foram acolhidos milhares de chilenos.

Na capital soviética, na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, eram centenas. Convivemos e fizemos amizade com muitos deles.

A cooperação e a solidariedade eram a tônica entre nós, estudantes latino-americanos.

Em Moscou, o nosso trabalho político era de denúncia da situação do Chile, do Brasil e de outras ditaduras latino-americanas.

Luis Corvalan, secretário geral do Partido Comunista do Chile, entre outras lideranças políticas chilenas, era exilado em Moscou.

Aprendemos muito sobre a realidade latino-americana, nesta rica e fraterna convivência com homens e mulheres advindos da pátria de Pablo Neruda, no dia a dia da nossa Universidade e no Instituto da América Latina, assim como da Academia de Ciências da União Soviética.

A solidariedade era vermelha.

O longo período das ditaduras chilena, brasileira e outras da América Latina desafiou e continua desafiando a luta e a valorização da democracia e a unidade das forças democráticas, como fundamentos de transformação e de superação dos desafios históricos e atuais do continente, explicitados de maneira contundente, nestes tempos de pandemia e de chefes de governos imprevisíveis como Jair Bolsonaro e Donald Trump, na perspectiva de uma alternativa democrática que nos leve à sustentabilidade econômica, social e ambiental, em cada um dos nossos países.

A questão democrática continua na ordem do dia de cada um de nós, da cidadania latino-americana.

Ditadura nunca mais!

*George Gurgel, professor da Universidade Federal da Bahia


Sergio Fausto: Sobre a admiração dos Bolsonaros por Pinochet

O regime do general chileno foi não apenas uma ditadura, mas das mais brutais da região

Os presidentes da Câmara e do Senado chilenos, Ivan Flores e Jaime Quintana, recusaram convite para comparecer a jantar com Jair Bolsonaro organizado pelo presidente Sebastián Piñera. Incivilidade? De modo algum. Bolsonaro jamais poupou elogios ao ditador Augusto Pinochet. Razão de sobra para não comparecerem ao encontro.

Em sua recente visita a Santiago, o presidente brasileiro mostrou-se mais cauteloso, disse que não estava ali para discutir Pinochet, mas não perdeu a ocasião de uma vez mais pôr em dúvida que no Cone Sul (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai) tenha havido uma série de regimes ditatoriais liderados por militares nas décadas de 1960 a 1980. Falsificação histórica comparável à de chamar democrática a Venezuela chavista.

O regime de Pinochet foi não apenas uma ditadura, mas uma das mais brutais da região. Por quase duas décadas manteve fechado o Congresso, banidos todos os partidos políticos, proscritos todos os sindicatos de oposição, controlado o Poder Judiciário e a imprensa. Pinochet presidiu o Chile sem jamais ser submetido ao teste das urnas. Quando teve de enfrentá-lo, no plebiscito de 1988, o povo chileno disse-lhe não e a ditadura viu-se obrigada a reconhecer que havia chegado ao fim.

Depois do retorno do Chile à democracia, duas comissões – uma presidida por um respeitado jurista e político de centro, Raúl Retting, e outra pelo então bispo auxiliar emérito da Arquidiocese de Santiago, Sergio Valech – deram números tão precisos quanto possível à sistemática violação de direitos humanos durante a ditadura pinochetista: cerca de 30 mil pessoas presas e submetidas a sevícias de toda sorte e 3 mil mortas ou desaparecidas em centenas de centros clandestinos de detenção e tortura.

A matança começou logo após o golpe de 11 de setembro de 1973, com a decretação do “estado de guerra” e a organização das chamadas caravanas de la muerte. Sob o comando do general Sergio Stark, destacamentos militares puseram em marcha a execução sumária de uma centena de líderes políticos e sindicais ligados ao governo deposto de Salvador Allende. Depoimentos feitos anos mais tardes por alguns dos participantes relatam fuzilamentos seguidos de esquartejamento, com requintes de crueldade, e desaparição dos corpos.

Milhares de pessoas foram feitas prisioneiras já nos primeiros dias. À falta de infraestrutura, improvisaram-se instalações como o Estádio Nacional. Ali mataram em 16 de setembro de 1973 Victor Jara, cantor popular, com 44 tiros, não sem antes lhe terem quebrado os dedos das mãos a coronhadas. Em 2008 a Suprema Corte de Justiça condenou o general Stark a seis anos de prisão. Já os responsáveis pela morte de Victor Jara receberam pena de 15 anos, em sentença da Corte de Apelações de Santiago, em 2018.

À selvageria inicial seguiu-se a organização de um aparato dedicado à supressão de toda e qualquer oposição à ditadura de Pinochet. Em 1974 criou-se a Dirección de Inteligencia Nacional (Dina), a polícia política do regime, contra o voto de um único integrante da Junta Militar. Chefe dos Carabineiros, a polícia nacional chilena, o general Germán Campos se opôs à institucionalização do terrorismo de Estado, o que lhe custou o cargo.

O longo braço da Dina ultrapassou as fronteiras do Chile. Em setembro de 1974 seus agentes fizeram explodir em Buenos Aires o carro dirigido pelo antecessor de Pinochet no comando do Exército, o general Carlos Pras. Em 21 de setembro de 1976, em plena capital dos EUA, agentes da polícia política mandaram pelos ares o veículo de Orlando Letelier, ex-embaixador chileno em Washington. Ao matá-los a Dina cumpria o desígnio de Pinochet de eliminar fisicamente figuras respeitadas no exterior que denunciavam a sistemática e brutal violação dos direitos humanos no Chile. Pelo assassinato de Pras e Letelier, além de outros inúmeros crimes, o general Manuel Contreras, chefe da Dina, recebeu sentenças de tribunais chilenos que, somadas, o condenaram a pena de reclusão superior a 500 anos.

Para o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura de Pinochet foram o preço a pagar para livrar o Chile do risco de virar Cuba. A seu ver, valeram a pena. A afirmação revela não só uma assustadora insensibilidade ao sofrimento humano, mas também um raciocínio falacioso. Se a violência do regime Pinochet se justificasse por esse suposto risco, por que teria perdurado quando todos os partidos e grupos de esquerda já estavam desarticulados, quando não destruídos? Por que teriam agentes da Dina, então renomeada Central Nacional de Informaciones, envenenado o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, líder democrata-cristão que se opusera a Allende, em assassinato cometido em 1982, quase dez anos depois do golpe de 11 de setembro? Por que vários centros clandestinos de detenção e tortura só foram desativados quando o país retornou à democracia?

A verdade é que o terror estatal posto em funcionamento pela ditadura Pinochet visava a extirpar da memória e remover do horizonte da sociedade chilena quaisquer forças que pudessem pôr em xeque o modelo de país forjado a ferro e fogo pela ditadura, assegurando impunidade pelos crimes cometidos em seu nome. Não se travava só de implantar uma economia de mercado com direitos sociais mínimos, mas também uma ordem política autoritária com as Forçar Armadas à testa e a negação ou severa limitação dos direitos civis e políticos, além de uma cultura domesticada por um catolicismo ultraconservador e repressivo.

Ao se recusarem a comparecer ao jantar com Bolsonaro, os presidentes do Senado e da Câmara honraram as melhores tradições democráticas do Chile, um país que se libertou da ditadura pinochetista e elucidou a verdade de seus crimes, sem revanchismo, mas com coragem.

*Superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP