PIB
Rogério Furquim Werneck: Em câmera lenta
Presidente já não esconde entusiasmo com expansão do gasto público
A divulgação, pelo IBGE, dos dados mais recentes de evolução do nível de atividade impôs um choque de realidade que nos ajuda a perceber, com a devida nitidez, as reais proporções da crise que o país enfrenta.
O que agora se sabe é que o PIB já tinha sofrido queda de 2,5% no primeiro trimestre deste ano, quando os desdobramentos econômicos da pandemia mal começavam a se fazer sentir. E que, no segundo trimestre, sofreu contração adicional de nada menos que 9,7%.
Já extenuado por longa e profunda recessão, com queda de 8% no PIB, entre 2014 e 2016, e por três anos de crescimento medíocre, entre 2017 e 2019, o país se vê, agora, às voltas com nova e vertiginosa queda do nível de atividade. O que se estima é que, mesmo que o movimento recessivo seja atenuado no segundo semestre, como se espera, o recuo do PIB, em 2020, possa ser da ordem de 5%.
Constatação tão desalentadora dá um fecho melancólico ao período de 120 anos para os quais se tem dados minimamente aceitáveis sobre a evolução do PIB real no Brasil. E, por isso mesmo, ganha realce se percebida de uma perspectiva de longo prazo.
Uma periodização muito simples, que meramente decomponha essas 12 décadas em três períodos de 40 anos, já se revela altamente elucidativa. A taxa anual média de crescimento do PIB foi de cerca de 4%, entre 1901 e 1940. E de mais de 7%, entre 1941 e 1980. Mas de não mais que 2%, entre 1981 e 2020. Salta aos olhos que, nas últimas quatro décadas, o dinamismo da economia foi perdido. Simplesmente desapareceu.
Os dados dos últimos dez anos são especialmente desanimadores. Se a recessão de 2020 for, de fato, da ordem de 5%, a taxa anual média de crescimento real do PIB, no período 2011-2020, ficará próxima de zero. Ou seja, a economia voltará a ter este ano o PIB que tinha em 2010. E, tendo em conta o crescimento demográfico, o PIB por habitante de 2020 deverá ser mais de 8% menor que o de 2010. Uma boa medida das proporções trágicas da perda de dinamismo da economia na última década.
Ao contemplar as razões para tamanho fiasco, não há como deixar de lembrar que a conta do descarrilamento da economia, na esteira do descalabro fiscal do governo Dilma Rousseff, continua em aberto. A estratégia de superação da crise de confiança, causada por descontrole tão escancarado das contas públicas, baseou-se na assunção de um compromisso, inscrito na Constituição, de estrito respeito à rígida limitação à expansão do gasto público.
A presunção era que, só assim, seria possível dar credibilidade ao argumento de que o esforço requerido de mudança do regime fiscal não precisaria ser feito de imediato. Que poderia ser viabilizado de forma paulatina, desde que houvesse persistência no avanço das reformas fiscais que se faziam necessárias.
Mas a verdade é que, passados 20 meses do governo Bolsonaro, o compromisso com a preservação do teto de gastos vem sendo rapidamente erodido. O presidente já não esconde seu entusiasmo com as possibilidades eleitorais da expansão do gasto público. Vem dando claro alento às ideias da ala desenvolvimentista do governo. E não disfarça seu fascínio com a possibilidade de turbinar o Bolsa Família e transformá-lo num novo programa — Renda Brasil —, que possa substituir com sucesso o auxílio emergencial, quando for suspenso, no final do ano.
Por enquanto, o governo vem tentando dissimular as divergências. Diante do impasse, na disputa entre o Ministério da Economia e o Planalto, vem se refugiando na indefinição. Adia recorrentemente a apresentação de propostas de reforma prometidas ou opta, como no caso da reforma administrativa, por uma proposta desdentada, que, ao poupar os atuais servidores, deixa de ter impacto sobre as contas públicas no horizonte relevante.
Mas não há como alimentar ilusões. A batalha mais importante que vem sendo silenciosamente travada em Brasília é a que se dá em torno da preservação do teto de gastos. E o que se teme é o que o Ministério da Economia esteja sendo derrotado aos poucos. Em câmera lenta.
Vinicius Torres Freire: Desastre do PIB mostra erros de Guedes
Queda inédita era prevista, mas economia já andava muito mal antes de ser infectada pelo vírus
A economia brasileira foi o desastre mais ou menos esperado no segundo trimestre. O que se descobriu agora é que, mesmo antes da calamidade do vírus, o PIB já dava com a cara no chão e quebrava uns dentes, em vez de decolar, como dizia Paulo Guedes, o ministro da Economia.
Segundo a revisão do IBGE, o PIB caiu 2,5% no primeiro trimestre (ante o final de 2019), não apenas 1,5%. Ou seja, estamos em um buraco um pouco mais profundo do que o previsto. Em março, quando o coronavírus já caçava vítimas pelo Brasil e o mundo inteiro fechava as portas, Guedes dizia que o Brasil cresceria 1% em 2020. A previsão mais recente do povo do mercado era de queda de 5,3%, antes de saber dos dados ainda piores do primeiro trimestre.
Guedes agora diz que a economia brasileira vai se recuperar em “V” (ou seja, cai e se levanta tão rapidamente quanto). Tomara. Até agora, não parece.
O desempenho brasileiro foi horrivelmente similar à média das maiores economias do mundo e melhor que o da maioria da Europa ocidental. No segundo trimestre, o PIB dos países da OCDE baixou 9,8% (o do Brasil, 9,7%). A OCDE é um clube de três dúzias dos países com os maiores PIBs do mundo (mas China e Brasil não estão lá).
O resultado brasileiro não foi ainda pior porque:
- o gasto do governo foi relevante, grande na comparação internacional;
- o setor externo ajudou (com uma contribuição de 2,3 ponto percentual para o PIB): as exportações resistiram, as importações caíram
Por falar em auxílio do governo, note-se que por volta de março Guedes também dizia que com “uns R$ 5 bilhões” se resolveria o problema da pandemia (o governo acabará gastando mais de meio trilhão de reais extras) e propunha auxílio emergencial de R$ 200 (é no mínimo de R$ 600).
Guedes acha que o resultado do segundo trimestre é um ruído de um acontecimento que está agora a uma distância astronômica, tão astronômica quanto seus erros de previsão e e desvarios quantitativos, entre outros (o Brasil decolava no início do ano, cresceria 1% neste ano, privatizaria empresas no valor de R$ 1 trilhão, teria déficit zero em 2019 etc.).
O terceiro trimestre decerto está sendo melhor. Sim, saímos do fundo do poço mais recente, mas ainda estamos dentro do buracão e há problemas sérios na recuperação adiante:
- o auxílio emergencial vai ser cortado pela metade, de R$ 600 para R$ 300. A economia vai ter de despiorar muito rápido para criar renda bastante para compensar essa diferença;
- o setor de serviços está muito estropiado e ainda ficará assim por meses, dada a longa duração da epidemia no Brasil;
- o investimento em novas instalações produtivas, casas, máquinas e equipamentos se arrastava antes do vírus; difícil ver como vai sair do chão (na verdade, do buraco) em uma economia ainda mais deprimida e com investimento público ainda mais reduzido.
Nas categorias em que o IBGE divide o PIB, o setor mais desastroso foi “outros serviços”: caiu quase 19,8% em relação ao primeiro trimestre (inclui atividades como alimentação fora de casa, hotéis e similares, serviços pessoais, profissionais liberais, saúde e educação privadas, entretenimento, cultura, esportes). A seguir, veio o setor de transportes, armazenamento e correios, com queda de 19,3%.
Juntos, “outros serviços” e “transportes” fazem quase 29% da economia brasileira. Com o comércio, são 42,4% do PIB.
Os dados mais recentes do setor de serviços indicam uma despiora lenta. Em agosto, as vendas no setor de serviços em geral ainda estavam 46% abaixo do registrado em fevereiro, antes da pandemia (ante alta de 3,2% nas vendas de bens não-duráveis e queda menor, de 4,8%, nas vendas de bens duráveis). Os dados são da Cielo, de despesas com cartão no varejo.
“Nós humanos somos átomos que raciocinam. Economia não é uma ciência exata. Como a velocidade da luz é diferente da velocidade do som, você vê um raio muito cedo e o som chega muito depois. É a mesma coisa com a economia”, discursou Guedes sobre o PIB nesta terça-feira (1º).
Guedes enxerga a luz dos astros antes de nós.
Dados os seus erros de anos-luz de distância e conversas desvairadas assim, parece que o ministro anda vendo coisas. Estrelas, pelo menos.
Míriam Leitão: O raio de abril e outras histórias
Antes de o raio cair em abril, o país já estava despencando. É o que ficou claro nos dados de ontem. No primeiro trimestre, o PIB encolheu 2,5% segundo dado revisto pelo IBGE. Isso é impressionante porque só na segunda quinzena de março o país começou a fechar as portas por causa da pandemia, e mesmo assim houve essa queda forte. Não podem ser só os 15 dias, a economia já vinha mal. Então o que o ministro Paulo Guedes disse ontem — “é o impacto de um raio que caiu em abril” — é verdade, mas há mais informações nos dados. O PIB caiu 9,7% no segundo trimestre, mas sem o auxílio emergencial o PIB poderia ter caído cinco pontos a mais, segundo cálculo da MB Associados. Há unanimidade de que o terceiro trimestre será de recuperação e haverá outra alta, mais leve, no quarto trimestre. Mesmo assim, a crise está longe do fim.
O dado divulgado ontem pelo IBGE é um desses acontecimentos que já nascem históricos. Sempre que olharmos para a série estatística haverá esse colapso do segundo trimestre de 2020 como uma cicatriz. Foi mais penoso pela maneira como o governo lidou com tudo, com o presidente criando conflitos, disparando ameaças às instituições, ofensas à imprensa e ataques aos governadores. Isso não está nos números, mas aumentou a infelicidade do Brasil.
Olhando para os índices é possível ver que há gradações no tombo. Dentro da indústria, o setor de construção caiu 5%, a indústria de transformação, 17%. Os serviços foram puxados para baixo pela queda do consumo das famílias. O agronegócio e o setor exportador tiveram números positivos. Um está ligado ao outro, e ambos ao dólar, que subiu muito, elevando a remuneração das vendas ao exterior. Nosso maior comprador foi a China, que apesar disso ouviu críticas disparadas pela política externa.
A MB Associados alertou para dois fatos importantes. Há mais desigualdade regional e mais pobres no Brasil. A consultoria fez uma conta entre 2015 e 2021, o que já ocorreu e a projeção futura. Ao fim desse período, o Nordeste terá queda de 7,5%, e o Centro-Oeste, alta de 3,2%. “O Nordeste, de novo, será o centro da disputa política regional em 2022.” Brigam pelo coração do Nordeste, mas o país empobreceu e ficou mais desigual. A distribuição de renda está piorando, diz a MB. As classes D e E, as de renda mais baixa, estão aumentando em 11,9 milhões de pessoas. A classe média está encolhendo.
Os economistas ouvidos pela coluna concordam em vários pontos. O número veio um pouco pior no segundo trimestre, mas houve aqui e ali um resultado melhor do que o esperado. Mesmo assim, há muita gente melhorando as projeções do ano. Fernando Honorato, do Bradesco, acha que não muda a visão de recuperação que vinha desde maio. Ele acredita que as projeções continuarão entre –5,5% e -4,5%. A MB refez a previsão, de uma queda de 5,3% para -4,8%. Mas houve também quem piorasse as estimativas.
O presidente Bolsonaro anunciou quase que na mesma hora da má notícia do PIB a extensão do auxílio emergencial até o fim do ano. É um truque antigo para criar uma agenda positiva num dia ruim. Tudo foi feito de tal forma a ser mais um momento do culto à personalidade. Cercado dos seus líderes, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), o deputado Ricardo Barros (PP-PR) e o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), Bolsonaro deu a notícia da extensão do auxílio. Depois, com o olhar parado no horizonte, ouviu os elogios. Paulo Guedes repetiu que “o presidente não deixou ninguém para trás”. Dos parlamentares, alguns velhos conhecidos, o mais eloquente foi Bezerra.
— Todos vão se surpreender com os dados da economia no final do ano, porque o Brasil acertou, o presidente Bolsonaro acertou. Alguns falavam em retração de 10% e será menor que 4,5% — disse Bezerra, acrescentando que depois do auxílio vem o Renda Brasil. “É o presidente Bolsonaro protegendo os mais pobres.”
Para o mercado financeiro também foi enviado um auxílio emergencial: o anúncio de que a reforma administrativa sairá da gaveta do presidente para o Congresso. O ministro Paulo Guedes disse que “as reformas” voltarão à pauta. A bolsa subiu, e o dólar caiu. A proposta só muda a situação para os futuros servidores, avisou Bolsonaro. Isso, segundo a economista Ana Carla Abrão terá impacto imediato zero nas contas públicas. Ela disse que esse é o problema: “não há ganho fiscal nem para o curto, nem para o médio prazos.”
Luiz Carlos Mendonça de Barros: Uma nova fase da crise econômica
Estimativa para o PIB no 2º trimestre de 2020 tem números melhores dos que os estimados anteriormente
Os trinta dias decorridos desde minha última coluna no Valor revelam, de maneira mais clara, o roteiro que vamos seguir em nossa difícil estrada para a recuperação econômica em 2022. Uma primeira informação importante que agora dispomos é que está sendo impossível aos governos nacionais - no Brasil e em vários outros países - seguir o roteiro original em que o isolamento social só seria abandonado quando o controle da pandemia estivesse assegurado e o achatamento da curva da doença atingido. Inclusive nos países em que o controle teve sucesso inicial, acabou ocorrendo aceleração da abertura da economia, mesmo que ao custo de vidas humanas.
No Brasil - como nos Estados Unidos - o controle social radical foi abandonado com volta do crescimento da economia se impondo como valor político inadiável. Mas a avaliação sobre acertos e erros na evolução do relaxamento - ou mesmo de seu total abandono - vai ser feito no futuro.
Com este novo protocolo na busca da normalização da economia, podemos trazer nossa atenção para sua dinâmica ao longo dos próximos meses. A China voltou ao nível de sua atividade econômica de antes da covid-19 como prêmio pela dureza e eficiência com que tratou o controle da pandemia. Em segundo lugar nesta disputa pela volta ao normal, contrariando as expectativas dos analistas, está a zona do Euro. Mesmo aos trancos e barrancos ao longo dos primeiros noventa dias a grande maioria de seus países membros controlaram a covid 19 com certo sucesso e iniciaram, ainda no segundo tri, um processo gradativo de relaxamento do controle social e já estão colhendo os primeiros frutos de ter saído do chamado fundo do poço.
Certamente uma das causas de sua recuperação, adiante de outros países, foi a injeção de ânimo nos agentes econômicos provocado por um pacote fiscal, de quase US$ 1 trilhão, para ser usado pelos países mais frágeis da região mediterrânea. Este sinal de solidariedade, nunca antes visto, acabou por provocar uma valorização do euro em relação ao dólar e consolidar a recuperação das economias nacionais. Mas mesmo assim a queda do PIB no segundo tri de 2020 foi histórico e, em algumas economias, perto dos 15% ao ano.
O Brasil ficou no grupo de países com uma política de enfrentamento da pandemia pouco eficiente, com divergências profundas entre seus líderes políticos de como implementar o afastamento social. Por esta razão a velocidade de recuperação da economia é mais lenta e o custo final de perdas de vidas humanas certamente mais elevado do que teria ocorrido se seguido o caminho da Europa. Neste sentido estamos seguindo os Estados Unidos, este sim a grande decepção no tratamento da crise de saúde e da recuperação de sua economia. A diferença a nosso favor foi a implantação de um abrangente programa de apoio de renda aos brasileiros que vivem no mundo da informalidade e uma logística de acesso ao benefício que funcionou com eficiência. Nos Estados Unidos os conflitos políticos, e um presidente fortemente negacionista em relação à pandemia, criaram as condições para um colapso histórico do emprego e da renda dos mais pobres.
A melhor prova do nosso sucesso no apoio à renda dos mais vulneráveis veio esta semana com a divulgação de algumas estatísticas econômicas referentes ao mês junho, principalmente a das vendas ao varejo. Os números divulgados mostram que este segmento importante do consumo dos brasileiros já voltou aos níveis de antes da pandemia. A equipe de economistas da FGV divulgou a primeira estimativa para o PIB no segundo trimestre de 2020 com números melhores dos que os estimados anteriormente: queda de 10,3% em relação ao primeiro tri e de 10,7 % em relação ao mesmo período do ano passado. Posteriormente o BC divulgou o seu indicador mensal do PIB - o IBC-Br - mostrando até junho números compatíveis com os da FGV.
Quando comparada com a queda de outras economias importantes neste mesmo período esta primeira medida da intensidade da nossa recessão se mostrou menor do que a queda de 12,1% estimada para a zona do euro - no caso da França este número foi 14,2% - e apenas 1/3 da queda de 32,9% ocorrida nos Estados Unidos, o que serve de algum conforto para uma sociedade tão sofrida como a nossa.
Além destas informações mais favoráveis sobre a recuperação da economia, outros indicadores que medem as expectativas dos agentes econômicos levaram a equipe da FGV a rever suas previsões para o ano fechado em dezembro: queda do PIB de 4,5% em 2020 e um crescimento de 3,5% em 2021. Se isto ocorrer efetivamente, chegaremos ao fim de 2021 com um PIB nominal praticamente igual ao de 2019 lembrando que há poucos meses a queda prevista pela grande parte dos analistas chegava a mais de 3% neste mesmo período de dois anos.
Mas a batalha pela recuperação do crescimento ao longo do restante do ano e principalmente nos primeiros meses de 2021 vai exigir do governo federal uma postura realista e madura em relação à política econômica. Se houver afastamento deste caminho, com a busca do crescimento via utilização de artifícios populistas, vamos ter uma recaída na recessão na parte final do mandato do presidente Bolsonaro. Estamos vivendo tempos parecidos com os anos iniciais do governo Geisel em 1975 quando a ansiedade de voltar a crescer fez o governo atropelar o ciclo econômico e tentar uma via mais rápida com resultados desastrosos para o regime militar poucos anos à frente.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
RPD | Raul Jungmann: Congresso Nacional, Defesa e Forças Armadas
O Parlamento deve assumir suas responsabilidades e definir os rumos da Defesa Nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino e dos destinos da defesa e da democracia, avalia Raul Jungmann
À minha Casa de origem, onde durante três mandatos de deputado federal fui membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, permito-me dirigir um apelo em favor de um tema premente que volta à pauta legislativa para apreciação parlamentar.
A Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a terceira revisão da Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco da Defesa Nacional. Revisados a cada quatro anos, os textos em questão contêm as mais importantes decisões sobre a defesa do país e o papel das Forças Armadas na manutenção da soberania, interesses nacionais, território, recursos, povo e identidade.
A Política estabelece os objetivos da Defesa Nacional; a estratégia, os meios e ações para alcançá-los; e o Livro Branco é um grande inventário – efetivos, equipamento, disposição e recursos – das nossas Forças Armadas, dando transparência à sua estrutura, organização, recursos e promovendo a confiança junto às demais nações.
Tornados norma pela lei complementar 136 /2010, da qual fui relator na Câmara, as três peças visam submeter ao poder político da Nação os objetivos e meios necessários para a dissuasão de ameaças externas, de sustentação ao nosso desenvolvimento e de projetação do poder nacional onde for preciso, em apoio à política externa e à capacidade de dizer não em nome da nação quando for necessário.
Até aqui, o Congresso Nacional tem-se omitido na definição do papel das Forças Armadas nesse abrangente contexto. Exemplo disso, a política e a estratégia anteriores, de 2016 a 2020, foram aprovadas pelo Senado e Câmara em votação simbólica, sem a realização de uma audiência pública sequer, sem debates e sem participação da sociedade.
Aliás, a política de defesa e a estratégia de defesa de 2016, enviadas em 18 de novembro daquele ano, só lograram aprovação em 17 de dezembro de 2018, dois anos após. Não sancionadas pelo presidente Temer, de saída, também não o foram pelo presidente atual, ficando o Brasil com oito anos de defasagem nessa área, contando apenas como os textos de 2012.
A política e a estratégia de 2020 são políticas de Estado que agora já contemplam possíveis conflitos armados na América do Sul; a situação do Atlântico Sul, por onde passam 97% de nossas exportações, atrai interesses de nações ao norte pela descoberta de petróleo no Golfo da Guiné.
A Amazônia segue sob pressão, e o Ministério da Defesa reivindica que seu orçamento passe dos atuais 1,5% do PIB para 2%. Esse cenário precisa ser analisado, debatido, modificado, ou não, e aprovado pelo Congresso Nacional.
Num mundo com riscos de conflito em alta, em que armas baseadas em tecnologias disruptivas são desenvolvidas, em que o sistema de contenção da corrida nuclear vem sendo desmontado e no qual países incrementam seus orçamentos de defesa, nos imaginarmos uma ilha de paz perpétua é ilusão suicida.
Reafirmemos nosso caráter pacífico e o respeito às demais nações. Nossa observância às regras do multilateralismo e aos acordos e tratados internacionais dos quais somos signatários, e à nossa Constituição. Mas é inexorável que nossa ascensão como nação nos conduza a maiores responsabilidades globais em que restrições e ameaças venham a tentar tolher nossos passos.
No momento em que os militares estão no centro do debate, é hora de o poder político assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino, defesa e democracia.
*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança PPública do governo Michel Temer. Escreve no Capital Político.
RPD | Reportagem | Covid-19 destrói vidas e deixa povos indígenas em risco de ‘apagão cultural’
Ao todo, doença já matou 658 indígenas no país; entidades cobram controle de invasores e apontam falta de atenção do governo
Cleomar Almeida
“Quando morre um cacique, a comunidade perde um líder. Quando morre um mestre e um ancião, é um livro cheio de informações que se fecha para sempre”. No início do mês, a frase do neto do cacique Raoni Metuktire, Patxon Metuktire, repercutiu na internet em honra à vida e história do líder do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit, de 71 anos, que morreu por complicações da Covid-19. Entre os povos indígenas, os efeitos da doença são ainda muito maiores, já que a falta de atenção à saúde e proteção deles os deixam ainda mais vulneráveis à destruição de vidas, mitos, línguas e tradições milenares.
Levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) registrou 658 indígenas mortos e ao menos 23.712 infectados pelo novo coronavírus até o dia 11 de agosto. No total, são 148 povos atingidos pela doença, que, segundo a entidade, chega às aldeias principalmente por meio das rodovias e profissionais de saúde que não vivem nas comunidades. Não há monitoramento de acesso aos territórios tradicionais para fazer testagem das pessoas, como caminhoneiros, que trafegam nas estradas do país, além de garimpeiros e madeireiros ilegais que invadem os territórios indígenas para devastar a floresta.
Ao todo, 900 mil indígenas vivem em todo o país. Nos territórios, cada morte provoca um apagão sobre a cultura milenar, já que anciãos servem como autoridades morais, conselheiros espirituais e detentores de conhecimento e memória para os povos indígenas.
Cacique desde os 19 anos e um dos líderes mais antigos e respeitados do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit era um dos últimos falantes da língua yawalapiti, do tronco linguístico aruak, e conhecido por lutar pela defesa dos povos indígenas, principalmente pela preservação das terras conquistadas. Ele ficou internado por duas semanas após ser contaminado pelo novo coronavírus. Morreu em Goiás, em 5 de agosto, no mês em que é celebrado o Dia Internacional dos Povos Indígenas. O líder havia sido transferido de Mato Grosso.
“Perdemos um dos maiores guerreiros da nossa família. Foi referência dentro da aldeia e fora. Sua história rompeu fronteiras. Perdemos um grande líder Yawalapiti. Nós, Kamayuras, estamos de luto”, desabafou Jeff Kamayura, primo de Aritana, nas redes sociais.
Mortes também geram desorientação para as populações originárias, como também é o caso dos 14 mil habitantes da comunidade Munduruku, que vivem nos Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso. No total, a Covid-19 já matou 12 integrantes desse povo; 11 deles eram idosos.
“Quando vamos descansar nossos corações? Meu tio cacique Vicente Saw Munduruku; meu pai Amâncio Ikõ Munduruku; Arcelino Dace Munduruku; Francidalva Saw Munduruku; cacique e professor Martinho Boro Munduruku. E agora mais um, o professor Bernardo Akay Munduruku. Tem sido dias difíceis para nosso povo!”, escreveu Arlisson Ikon Biatpu Munduruku, em uma rede social.
Efeito devastador
Entre os indígenas, a morte de líderes provoca impacto devastador em comunidades inteiras. Vai além da dor de familiares e amigos, como é o caso de Amâncio Ikõ Munduruku. Em 1998, ele foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, que atua em defesa dos direitos desses povos. Além disso, Amâncio encorajou o cacique Juarez Saw a retomar território ancestral da etnia, que depois se tornaria a Terra Indígena Sawre Muybu/Daje Kapap Eïpi.
Lideranças indígenas dizem que se tornaram ainda mais suscetíveis ao novo coronavírus em razão do desmonte de políticas públicas realizado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, visto como uma ameaça aos povos nativos, que também lutam pela proteção ao meio ambiente. O cacique Raoni Metuktire, conhecido pelos coloridos cocares de plumas e o grande disco inserido no lábio inferior, vem intensificando as denúncias de ataques contra os povos indígenas no Brasil por parte de Bolsonaro.
Ícone da luta pela conservação da Amazônia, Raoni afirmou à imprensa que Bolsonaro quer “se aproveitar” da pandemia para impulsionar projetos de ameaça aos povos indígenas, que têm histórico de vulnerabilidade a doenças externas. Ele recebeu alta, no dia 25 de julho, após ficar internado durante uma semana por causa de infecção intestinal. Sua mulher, Bekwyjkà Metukire, morreu, em 23 de junho, depois de sofrer acidente vascular cerebral.
As perdas indígenas provocam uma série de consequências para a organização social dos povos e para o conjunto das relações deles com seus territórios e os demais segmentos da sociedade brasileira, de acordo com a coordenadora executiva da Coordenação das Organizações dos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré.
“É fundamental que o Brasil não indígena perceba que também sofrerá com as perdas desses povos, seja por toda a influência da cultura indígena na formação da cultura nacional, seja pela relevante contribuição que o modo de vida dessas populações oferece à manutenção do equilíbrio ambiental do país”, afirmou.
Resistência e socorro
Em todos os biomas, em especial na Amazônia, as terras indígenas são palco de resistência à destruição do meio ambiente, o que, segundo Nara, “os posiciona como verdadeiros guardiões das florestas”. O movimento indígena informa que instalou, na região, mais de 100 Unidades de Atendimento Primário Indígena (Uapi) e denuncia a falta de apoio e atenção do governo brasileiro.
Em todo o país, movimentos e organizações indígenas se mobilizam, por meio da internet, em busca de doações de produtos e fundos para comunidades e aldeias, mais vulneráveis a infecções respiratórias. O objetivo é amparar as famílias para diminuir o impacto do novo coronavírus na vida dessas pessoas.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que já investiu R$ 26 milhões em medidas de combate ao novo coronavírus e que reforçou ações de prevenção em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O órgão também informa que atua para garantir a segurança alimentar e higiene de famílias indígenas, com distribuição de cerca de 500 mil cestas básicas e quase 62 mil kits de higiene pessoal e limpeza.
De acordo com a Fundação, foram realizadas “ações de vigilância e monitoramento territorial”. O órgão informa, ainda, que participa de 271 barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas em aldeias, contabilizando 151 ações de fiscalização em 63 terras demarcadas para coibir “extração ilegal de madeira, garimpo e pesca predatória.”
Fonte: Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena/Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Aumenta tensão entre governo e líderes indígenas
A tensão entre os povos indígenas e o governo brasileiro tem aumentado cada vez mais. No dia 7 de agosto, o embaixador do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), Fernando Simas Magalhães, vetou a participação da coordenadora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, para falar na reunião do seu Conselho Permanente, durante a 3ª Semana Interamericana de Povos Indígenas, e da Comemoração do Dia Internacional dos Povos Indígenas.
Nara iria informar ao Conselho Permanente e outros convidados da sessão os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas e como as organizações e comunidades estão combatendo o vírus por sua iniciativa própria. O presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Jaime Cargas, também teve sua participação cancelada.
O secretário-Geral da OEA, Luís Almagro Lemes, admitiu os impactos do novo coronavírus principalmente entre os povos nativos. “A Covid19 exacerbou a vulnerabilidade dos mais necessitados. Hoje, quando começamos a 3ª Semana dos Povos Indígenas, devemos reconhecer a frágil condição em que estão os povos indígenas e convocar a todos a levar em consideração suas necessidades no mundo pós-coronavírus”, disse, em suas redes sociais.
“A postura da OEA e de seus membros, principalmente o Brasil, não condiz com o discurso do secretário-geral da OEA, em que afirma que quer nos escutar e fazer algo pelos povos indígenas, mas impede uma liderança amazônica de se pronunciar perante os membros da organização”, afirma Kleber Karipuna, liderança da Coiab, em nota de repúdio publicada no site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Fundada em 1948, a OEA é o mais antigo organismo regional do mundo. Foi originada na União Internacional das Repúblicas Americana (1889-1990), com o objetivo de promover relações pacíficas nas Américas. O governo brasileiro não se pronunciou sobre o episódio.
‘Índios não vão se acabar’, diz antropólogo
Ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o antropólogo Mércio Pereira Gomes, diz se preocupar com a morte de indígenas, mas ressalta que esses povos não serão extintos por causa da doença. “O que estamos sentindo hoje é o perigo de os velhos desaparecerem e, por isso, lamentamos muito. Estamos preocupados com essa perda das fontes de moral, de conhecimento tradicional e de mitos, que guardavam os mais velhos”, afirmou. “Entretanto, acredito que os índios segurarão essa doença. Não vão se acabar”, disse.
Gomes é autor do livro Os Índios e o Brasil (304 páginas, editora Contexto), que, em sua primeira edição, anunciou a sobrevivência dos povos indígenas na década de 1980 e que analisa o crescimento deles no país. Em entrevista à revista Política Democrática Online, ele ressalta que a questão indígena é de nacionalidade. “Os indígenas formam a raiz da nacionalidade brasileira”, pondera.
O autor lembra que, em 1955, o antropólogo Darcy Ribeiro, que foi diretor do Museu do Índio, afirmou que esses povos somavam 100 mil pessoas e estariam em declínio. “Em 1988, eu disse que índios eram 300 mil e em crescimento”, ressaltou Gomes, explicando que a população indígena não vai acabar no Brasil. “Os índios sobreviveram, cresceram mais de 10 vezes, em população, desde 1950”, asseverou.
Nem por isso o governo deve se eximir de sua responsabilidade de proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas, na avaliação de Gomes. “É preciso que o governo fique mais atento e consiga usar sua estrutura médica e sanitária, com redobrada atenção, para que essa fase de mortes acabe e os índios voltem de novo a respirar com alegria e determinação em suas vidas”, acentuou. “Os velhos importam. No caso dos índios, há conhecimento na sua própria alma”, destacou.
RPD | Editorial: Calmaria e tempestade
Completa mais um mês o novo figurino adotado pelo presidente da República. Não mais confrontos com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; não mais ameaças, veladas ou não, ao funcionamento regular das instituições. Aparentemente, o bloco parlamentar apelidado de “centrão” teria logrado surpreendente e rápido sucesso, tanto na tarefa na de convencer o presidente a transitar pelos meandros da ordem democrática, como na de guiá-lo nesse percurso.
Dois fatos recentes, contudo, evidenciam a fragilidade dessa avaliação otimista. Em primeiro lugar, os relatos da reunião de 22 de maio, na qual a possibilidade de destituição da totalidade dos membros do STF, mediante força militar, teria sido debatida, com seriedade, por ministros militares e civis. Em segundo lugar, a denúncia do funcionamento, na estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de um órgão encarregado da investigação de servidores públicos envolvidos em ativismo antifascista. Como sabemos todos, uma polícia política não tem lugar no ordenamento legal do país, e as ameaças concretas à ordem democrática não partem exatamente de militantes que trabalham na defesa dos direitos humanos.
Tudo indica, portanto, que a calmaria que experimentamos se limite à superfície da política, ao passo que, nas profundezas, prosseguem os movimentos na direção do fortalecimento do presidente da República e da criação de condições para a decretação da “intervenção” almejada no momento propício.
Nessa situação, seria erro grave das oposições democráticas sustar o processo de convergência, que avançava com celeridade quando a tensão política era crescente. Mais do que nunca, é preciso impulsionar esse processo, para dar conta de ao menos três objetivos.
Em primeiro lugar, envolver na estratégia de defesa da democracia setores do próprio governo. Nada obsta, afinal, que parte, pelo menos, da base de apoio parlamentar do governo assuma, simultaneamente, as funções de linha de frente do governo no Congresso e de primeira linha de defesa da democracia, quando questões fundamentais estiverem em jogo.
Em segundo lugar, atuar conjuntamente no sentido de esclarecer a opinião pública acerca das perdas colossais impostas aos brasileiros hoje e nos meses que virão pela incapacidade de o governo lidar de forma adequada com a crise sanitária corrente e a crise econômica que está se seguindo a ela.
Finalmente, cooperar nos embates institucionais que se avizinham, das mudanças na composição do STF às eleições municipais, de modo a maximizar o fortalecimento da democracia.
A calmaria é aparente. As movimentações autoritárias prosseguem: o momento da tempestade está sendo preparado por atores relevantes da política.
RPD | Alberto Aggio: As modulações da guerra de Bolsonaro
O aumento do número de mortos provocado pela pandemia, a desastrosa atuação do governo no tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança e o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente estancaram a linha de ação da guerra de Bolsonaro
Não estamos em guerra, nem internacional, nem de libertação nacional, nem mesmo contra a pandemia que se abateu sobre nós. No entanto, a metáfora da guerra invadiu, com palavras e expressões do mesmo campo semântico, o espaço discursivo da política desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder. Até a cultura foi atingida em nome de uma insana “guerra cultural” contra tudo o que os partidários do presidente definem como “esquerda”. A militarização de parcela da gestão pública federal é parte dessa aparentemente insólita situação, com um general à cabeça do Ministério da Saúde asseverando que lá está “para cumprir ordens”.
O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclaração contundente, é o programa de “destruição” dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988. Em momentos nos quais a eloquência confrontacional do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo “paz, em nome do Brasil”.
A “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário.
Talvez por isso a sensação de crispação política nos remeta tanto à guerra como à revolução. Esta última, um devaneio rupturista que os ideólogos do bolsonarismo curam em “fogo morno” contra a democracia em seus valores, instituições e direitos. Ruptura travestida como eliminação de “comunistas” e “corruptos” do solo pátrio. Como o presidente não lidera um partido fascista ou um movimento orgânico (embora tenha mobilizado massas) que combine a rua com redes sociais e instituições da sociedade política, pode-se dizer que ele e o “núcleo duro” do bolsonarismo guardam alguma similitude com a subsistência de experiências do tipo “45 cavaleiros húngaros”, mencionada por Gramsci, nas quais uma minoria, em meio à paralisia ou desorientação das massas, consegue alcançar um sucesso inesperado.
Garantir o êxito conquistado e levá-lo avante no mesmo padrão da campanha eleitoral foi o que se fez neste ano e meio, ao se acionar uma “guerra de movimento”, aberta e confrontacional, visando a uma vitória esmagadora e histórica que impusesse uma “nova hegemonia”. Esse movimento, permanente e multifacetado, que pediu “intervenção militar” e um “novo AI-5”, atingiu seu ápice no “bombardeio fake” ao STF com fogos de artifício, sugerindo que se passasse da encenação a um efetivo “golpe de mão”. Em maio, Bolsonaro cogitou efetivamente de “intervir” no STF e destituir seus ministros[1].
Mas havia mais de uma pedra no caminho. O crescente número de mortos provocado pela pandemia e o desastroso tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança (cujo desastroso ápice foi a saída de Sergio Moro), e, por fim, o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente, envolvendo a milícia carioca, estancaram aquela linha de ação.
Ato contínuo, sobreveio uma contraofensiva democrática capitaneada pelas instituições da República, notadamente o STF, que, ladeada pela postura crítica da mídia tradicional, ganharia as redes sociais e, mesmo em plena pandemia, as ruas. Em manifestações múltiplas, a sociedade civil passou a confrontar simbolicamente as hostes bolsonaristas conclamando à defesa da democracia. Infelizmente, em função de históricas divisões, o saldo político dessa contraofensiva foi pequeno, mostrando a debilidade das forças democráticas.
Entretanto, sentindo o mandato ameaçado, o presidente acusou o golpe e, depois disso, assumiu estratégia híbrida de congelamento do movimentismo e adoção de uma “guerra de posições”, a visando evitar o impeachment. A estratégia de “suspensão da política” esgotou-se. Cooptar os parlamentares do Centrão para o campo governista tornou-se elemento essencial.
A mudança forçou um “retorno à política”, mesmo sem as convicções que uma operação como essa exige. Há claro dissabor nessa operação para quem pretendia vitória fulminante. Mas o movimento de Bolsonaro não é apenas defensivo. Ele pretende, de um lado, impedir a aproximação e uma eventual aliança entre a oposição e as principais lideranças de centro ou centro-direita no Congresso; e, de outro, capturar bandeiras sociais como o auxílio emergencial, que se somaria a outras propostas de cunho assistencial. Impedir o impeachment, por meio de uma “guerra de posições” e manter o ativismo eleitoral, rumo a 2022, define o sentido dessa mudança de estratégia; somente a severidade da crise, ao que tudo indica, pode comprometer seu êxito.
Por ora, a ameaça de destruição integral da democracia parece estancada, embora o estrago tenha sido enorme. Desorientada, a oposição viu o impeachment fugir-lhe entre os dedos, o que inevitavelmente voltou a aprofundar suas divisões. Isso fez com que Bolsonaro se recuperasse e saísse das cordas. Uma coisa é certa: Bolsonaro vacilou e criou obstáculos para não “abrir o cofre” para salvar vidas (empresas e empregos), mas parece não ter dúvidas em fazê-lo para garantir sua reeleição, o que poderá agregar às crises que já temos um aprofundamento da nossa eterna crise fiscal, de consequências imprevisíveis.
[1] Gugliano, Monica. “Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo”, Piauí, edição 167, agosto de 2020.
RPD | Rubens Barbosa: As eleições nos EUA e o Brasil
Diante de uma provável vitória de Joe Biden, Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado
As pesquisas de opinião oscilam, mas passou a haver chance real de Joe Biden vencer as eleições presidenciais de novembro, com mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa nos EUA. A incerteza deriva do sistema eleitoral dos EUA, no qual o presidente é eleito não por voto majoritário, mas por um colégio eleitoral, formado por delegados dos 51 estados, alguns dos quais divididos, como Pensilvânia, Michigan, Flórida, com resultados imprevisíveis, pela mudança de sua maioria em cada eleição.
O Partido Democrata, no governo, implementará uma política econômica com forte viés nacionalista, para recuperar o dinamismo da economia e reduzir o desemprego, com grande ênfase em políticas ambientais (Green New Deal). Os EUA deverão assinar o Acordo de Paris e voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o consequente retorno à Organização Mundial de Saúde, ao fortalecimento da OMC e da ONU. Temas como salvar o acordo nuclear com o Irã, o reingresso no acordo comércio com a Ásia (TPP), a relação com a Europa (OTAN) e a saída do Reino Unido da União Europeia estarão altos na agenda.
As crescentes tensões geopolíticas entre os EUA e a China deverão continuar e mesmo ampliar-se nas áreas comerciais, tecnológicas e militares, pois Beijing é tratada hoje como um adversário pelo establishment norte-americano. A presença da China na América do Sul poderá trazer o conflito geopolítico para a região. A decisão do governo de Washington, de apresentar candidato para a presidência do BID, contra um candidato brasileiro, pode ser o indicio de um renovado interesse político dos EUA para conter Beijing na América do Sul.
Qual o impacto sobre as relações Brasil-EUA?
Em uma de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro comentou o cenário da eleição presidencial americana. Confirmou que torce por Donald Trump, mas que vai tentar aproximação, caso Joe Biden seja o vencedor. "Se não quiserem, paciência", simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata, ao contrário do tratamento que está sendo dado ao presidente Fernández, da Argentina.
Nesse contexto, é importante ter em mente a distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana. Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação especial com Trump por influência ideológica. Em termos institucionais, o relacionamento bilateral, de baixa prioridade, deve continuar nas mesmas bases em que ocorre hoje. Mesmo no governo Trump, o Comitê de Orçamento da Câmara, um relatório do Departamento de Estado e carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, que haja sanções contra Brasília por conta das políticas ambiental e de direitos humanos, e que seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da OTAN.
Um futuro governo democrata tenderá a ampliar essas críticas e afastar-se das posições brasileiras nos foros internacionais. O alinhamento com os EUA, nem sempre explicitado nas relações bilaterais, torna-se automático quando se trata de votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais (ONU, OMS, OMC). Em muitos casos, o Brasil fica isolado com EUA e Israel e, na questão de costumes, apenas com países conservadores (Arábia Saudita, Líbia, Congo, Afeganistão). O tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais.
O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Biden vença a eleição. O Brasil vai ter de decidir se fará uma opção (evitada pela maioria dos países europeus e asiáticos) por um dos lados ou se preferirá permanecer equidistante nessa disputa. Eventual oposição à tecnologia chinesa no 5G e apoio à proposta dos EUA na OMC sobre a participação apenas de países de economia de mercado – o que excluiria a China – indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado. Os EUA convencerão o Brasil a ficar contra a China? Levando em conta que a disputa entre as duas potências está apenas começando e durará por muitas décadas, manter-se equidistante parece ser a melhor atitude na defesa do interesse nacional.
RPD | Paulo Baía: Jair Bolsonaro e o fingimento como práxis política
Brasil vive etapa do fingimento na política nacional. Governo Jair Bolsonaro tenta evitar confrontos com os presidentes das casas legislativas e com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto amplia acordo com os partidos do Centrão
Jair Bolsonaro e seu Estado Maior vão tocando o dia a dia da política nacional, como diz no linguajar popular, através da prática de ir cozinhando o galo. A relação estabelecida com o Congresso Nacional é a do não confronto com os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. E trataram de ampliar o diálogo com os partidos políticos – PSDB e MDB –, principalmente com o deputado emedebista Baleia Rossi.
Aparentemente, Jair Bolsonaro não participa da campanha para a Presidência da Câmara dos Deputados, fazendo com que os partidos fisiológicos, autodenominados de Centrão, sem se caracterizarem realmente como um centro político, finjam desconforto com o governo, mas aceitem com alegria as nomeações nos terceiro e quarto escalões da República. Além de estarem focados nas facilidades que o Governo Federal está oferecendo às campanhas municipais a serem realizadas nos dias 15 e 29 de novembro de 2020.
Apesar do descontentamento pela derrota sofrida com a aprovação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) por uma maioria qualificada, tornando-se permanente, o governo manteve-se com uma postura de aceitação. O Fundeb deixou de ser um programa e passou a ser uma política de Estado constante e de interligação entre os entes federados – municípios e estados –, e não mais como uma relação federativa formal. Inclusive, até 2023 o Governo Federal terá que efetuar uma crescente participação para a manutenção do fundo.
Como efeito da aprovação do Fundeb temos a discreta e não surpreendente nomeação para secretária da Educação Básica do MEC, da professora Izabel Lima Pessoa, experiente servidora pública com presença marcante em todos os governos, desde FHC até Michel Temer. E com ótimo trânsito na quase totalidade das secretarias municipais e estaduais de educação.
A pandemia do coronavírus permanece ativa e potente, e atingiu a triste marca de mais de 100 mil brasileiros mortos. No entanto, prefeituras e estados vêm flexibilizando o retorno de todas as atividades econômicas como parte da estratégia do Governo Federal, pensando no reaquecimento da economia, grande preocupação do presidente Bolsonaro, visando às eleições presidenciais de 2022.
Na parte educacional, as universidades públicas retomam o ensino de graduação de maneira remota, com apoio, apesar de discreto, aos estudantes carentes a partir da doação de chips e de uma bolsa para compra de computadores. O governo estenderá o auxílio emergencial até dezembro, pensando nos efeitos produzidos na aprovação do presidente nos segmentos mais pobres e sacrificados da população brasileira. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também finge que governa e estabelece diálogo sobre a reforma tributária com empresários, parlamentares, governadores e prefeitos, os quais fingem escutar e até concordar com a dita reforma.
Entramos para a etapa do fingimento na política nacional e no governo Jair Bolsonaro. Entretanto, como contraponto de realidade política, temos uma economia política da vida emergindo para milhões de brasileiros num experimentalismo comunitário vigoroso. Podemos falar do caso da auto-organização de comitês de favelas e periferias num processo de defesa potente da vida e dos meios de sobrevivência; estão se reinventando.
No início do mês de julho, Jair Bolsonaro e seu governo praticavam um silêncio pragmático para enfrentar as decisões do STF, como no caso do inquérito contra as fake news, tendo surgido um forte rumor de reuniões do presidente com forças militares para dissolver o STF, relatado pela revista Piauí. Já em agosto, inicia-se uma postura de fingimento de que não existe uma crise política profunda e ampla, potencializada pelos impactos paralisantes da Covid-19 em parceria com o ineficaz e desastroso liberalismo da morte do ministro Paulo Guedes e sua equipe.
Por sua vez, a oposição finge que faz oposição num universo paralelo e ficcional justamente por sua não atuação nas práticas políticas reais e eficazes para criar e manter um debate sobre a situação sanitária, política e econômica do país. Podemos afirmar que o signo do mês de agosto de 2020 se dá através da relação entre o fingidor e o fingimento numa tentativa de colocar a sociedade brasileira diante de um enigma. Sendo que Édipo será incapaz de decifrá-lo por se tratar de uma esfinge com signos claros de uma republiqueta do submundo periférico.
*Paulo Baía é sociólogo e cientista político.
RPD | José Luiz Oreiro: Pós-Covid 19: Estagnação Perpétua?
As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias em comparação com as principais economias mundiais. O país deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019, avalia José Luis Oreiro
A eclosão da pandemia do coronavírus no primeiro trimestre de 2020 está produzindo a maior contração coordenada do nível de atividade econômica em nível global, desde a grande depressão de 1929. A média das previsões do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e da Comissão Europeia aponta para uma queda de 6,5% da economia mundial, em 2020, com as economias avançadas apresentando recuo mais forte, de 7,5%. Ao passo que as economias em desenvolvimento devem apresentar retração mais suave, de “apenas” 3,0%. Claro está, contudo, que boa parte da queda mais suave das economias em desenvolvimento relativamente às economias avançadas se deve à projeção média de queda de 0,6%, em 2020, para a economia da China.
Quanto à economia brasileira, a média das previsões aponta para retração de 8,7%, configurando, assim, a mais rápida e intensa queda do nível de atividade econômica já registrada no país desde 1929.
Para o ano de 2021, a média das previsões das instituições internacionais listadas acima aponta para recuperação relativamente rápida da economia mundial, que deverá apresentar crescimento de 5,4%, em 2021. Mas a recuperação será extremamente desigual entre os países analisados. Enquanto a China deverá apresentar crescimento de 4,9%, em 2021, devolvendo toda a perda de produto ocorrida durante a crise do coronavírus, as economias avançadas deverão apresentar crescimento de 4,4% no próximo ano, insuficiente para recuperar a perda de produção e de renda ocorrida ao longo do ano de 2020. As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias: a economia brasileira deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019.
A teoria macroeconômica convencional apresenta os ciclos econômicos como oscilações de amplitude e periodicidade irregular em torno de uma tendência de longo prazo relativamente constante, determinada por fatores do lado da oferta da economia e independente das flutuações do nível de atividade. Dessa forma, períodos de forte contração do nível de atividade econômica deveriam ser seguidos por períodos de crescimento acelerado, caso a tendência de crescimento de longo prazo não seja alterada ao longo do processo. As previsões acima, contudo, parecem apontar para efeitos persistentes da crise do coronavírus sobre o nível de atividade econômica, pois as projeções de crescimento para 2021, para a maior parte dos países, indicam que suas economias chegarão ao final desse ano com um nível de atividade muito abaixo do nível prevalecente antes da pandemia.
O caso brasileiro é particularmente grave nesse quesito. Não só a economia brasileira ao final de 2021 estará operando muito abaixo do nível verificado no final de 2019, como ainda estará 9,4% abaixo do indicador verificado em 2014! Isso porque, no início de 2020, a economia brasileira sequer havia se recuperado dos efeitos da crise de 2015-2016, quando o nível de atividade apresentou contração de 6,81%. A perda de produto não recuperada ao longo do período 2017-2019 será somada à contração esperada de 9,10% (pelo FMI), no ano de 2020, totalizando queda de produto de 11,96% no período 2015-2020.
O cenário para 2021 é assustador. Os programas do Governo Federal, de manutenção de renda e de emprego, devem ser terminados no final do terceiro trimestre de 2020. Se nada for posto em seu lugar, teremos queda de renda significativa no último trimestre do ano, o que deverá produzir uma segunda contração do nível de atividade econômica e novo mergulho recessivo. Além disso, se o teto de gastos não for flexibilizado em 2020, com a exclusão dos investimentos públicos do teto a partir de 2021, então o Governo Federal será obrigado a recomeçar o ajuste fiscal, mas com uma economia que deverá registrar índices cavalares de ociosidade da capacidade produtiva.
Nesse contexto, parece pouco provável que a economia brasileira possa ter desempenho de crescimento superior ao que obteve no período 2017-2019, ou seja, um crescimento médio em torno de 1% a.a. Com esse ritmo, a economia brasileira só retornaria ao nível de PIB de 2014 em 2033! Se esse cenário se concretizar, a economia brasileira passará por período de estagnação de quase 20 anos. Não acredito que uma estagnação tão longa seja política e socialmente sustentável. Ou a sociedade brasileira se livra das amarras de um pensamento econômico obsoleto ou ela poderá trilhar o caminho da autodestruição.
José Luís Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. E-mail joreiro@unb.br