PGR

Merval Pereira: Não há intervenção

A triste coincidência da saída do coordenador da Operação Lava-Jato Deltan Dallagnol, provocada por problemas de saúde em sua família, e os embates políticos que ele vinha tendo com opositores políticos e no Judiciário deu mais uma vez motivos para teorias conspiratórias. Esta teria sido uma exigência do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para prorrogar o funcionamento da força-tarefa, que se encerraria no dia 10.

Essa ilação, no entanto, não resiste aos fatos. A subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, que integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal, antecipou-se a Aras e concedeu uma liminar prorrogando por mais um ano a força-tarefa de Curitiba, logo depois do anúncio de Dallagnol de que teria que deixar o cargo de coordenador da força-tarefa.

A sub-procuradora enviou então a decisão para o próprio Augusto Aras, que não colocara na pauta do Conselho Superior, como ela pedira, a prorrogação. Se depender da opinião dos procuradores de Curitiba, e do próprio Deltan Dallagnol, nada mudará na Operação Lava-Jato com sua substituição pelo procurador Alessandro Oliveira.“Não aceitaríamos uma intervenção. Aconteceria uma debandada”, garante Dallagnol, que foi quem ligou para Alessandro para propor a troca de funções.

O procurador que coordenará a Operação Lava-Jato é considerado uma pessoa séria e capaz, com estilo negociador, que já conhece como funciona a força-tarefa em Curitiba, de onde é originário. Esse conhecimento da operação e dos demais membros que dela fazem parte é outro motivo para tranquilizar os procuradores que ficarão no posto mesmo com a saída de Dallagnol.

As decisões são tomadas em conjunto pelos 14 procuradores da equipe, e Dallagnol avalia que deram muita importância individual à sua atuação sem entender que as decisões são tomadas por consenso. Deltan Dallagnol, que é evangélico da Igreja Batista, aceita com resignação os problemas de saúde de sua filha de 1 ano e 10 meses: “Deus nos manda dias de sol e dias de chuva. Agora é o momento de fazermos todo possível para sermos os melhores pais que pudermos”.

O diagnóstico definitivo sairá dentro de cerca de dois meses, mas o que já foi detectado pede ação imediata, com terapia que exige a presença dos pais. A filha tem problemas de “poda neural”, que pode surgir em crianças a partir de 1 ano e meio. “Identificamos sinais que nos preocuparam em nossa bebezinha. Ela parou de falar algumas palavras, deixou de olhar para a gente nos nossos olhos e rostos, e também quando nós a chamamos. A nossa filhinha está passando por uma série de exames e terei que me dedicar como pai. E isso não pode esperar”, afirma o procurador.

Ele explica que pais que identificarem esse tipo de sinais devem buscar atenção médica. A filha está passando por uma série de exames para um diagnóstico que deve demorar pelo menos 9 semanas, “mas os profissionais da saúde já identificaram que, independentemente da causa, é preciso uma intervenção imediata com terapias. A intervenção precoce nesse tipo de situação pode fazer toda a diferença em razão da plasticidade cerebral e capacidade do cérebro de fazer novas redes neurais, agora isso depende de estímulos certos”.

Ele está esperançoso, pois pesquisas avançaram nas últimas décadas e há métodos e técnicas que exigirão o conhecimento dos pais. Dallagnol conta que, segundo uma especialista consultada ontem, “quanto mais tempo investirmos, melhores serão as condições para ela se desenvolver, sendo possível até seu desenvolvimento pleno”.

Ela recomendou, entre terapias e tratamentos formais e domésticos, 40 horas semanais. “Isso exigirá dedicação intensa da família. Após o período de transição, para passar com responsabilidade as funções que exerço, tirarei férias para estudar, treinar e cuidar da nossa filhinha”.


Folha de S. Paulo: Após saída de Deltan, Aras articula encurtar duração da Lava Jato e reduzir procuradores

Procurador-geral, que trava embate com a força-tarefa de Curitiba, avalia prorrogar equipe por tempo menor

Após a saída do procurador Deltan Dallagnol da coordenação da Lava Jato no Paraná, o procurador-geral da República, Augusto Aras, avalia prorrogar a força-tarefa em Curitiba por um prazo mais curto e com número menor de integrantes.

Deltan anunciou nesta terça-feira (1º) que deixa o grupo de investigadores. Ele continuará no MPF (Ministério Público Federal), mas em outros casos.

Em vídeo divulgado nas redes sociais, o procurador afirmou que sai da força-tarefa por questões familiares. Segundo ele, o desligamento se deve a um problema de saúde de sua filha de um ano de idade.

Aras, por sua vez, prepara nova ofensiva contra a Lava Jato. Em atuação desde 2014, a operação poderá sofrer outro revés.

Uma das soluções avaliadas pelo chefe do Ministério Público Federal envolve a designação apenas de procuradores da República, opção que elimina a necessidade do aval do CSMPF (Conselho Superior do MPF), órgão máximo deliberativo na estrutura da instituição para a designação de integrantes do grupo.[ x ]

Na atual configuração da Lava Jato atuam procuradores da República e procuradores regionais da República, o que exige na legislação interna o referendo do Conselho Superior. Hoje há 14 investigadores —o número com uma eventual redução não foi definido.

Crítico da Lava Jato, Aras já travou embates no colegiado com outros integrantes por causa de posicionamento divergente que tem sobre o trabalho dos procuradores em Curitiba. Ele tem sido pressionado por integrantes do conselho a prorrogar a força-tarefa.

Também nesta terça-feira, a subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, uma das integrantes do conselho superior, decidiu de forma liminar (provisória) prorrogar a Lava Jato por um ano.

Caetana é relatora de um pedido de prorrogação e propôs o debate do assunto no encontro desta terça do colegiado. Como não houve tempo, ela tomou a decisão. Além de provisória, avaliam integrantes da PGR, ela não vincula Aras a segui-la.

O procurador-geral ainda não se pronunciou sobre a decisão de Caetana. Desde a criação da força-tarefa, a indicação de nomes para atuar na investigação foi referendada pelo colegiado.

A força-tarefa da Lava Jato no Paraná já teve a estrutura prorrogada por sete vezes. O prazo de encerramento das atividades do grupo expira no próximo dia 10.

No cargo, Deltan enfrentava um processo de desgaste e se tornou alvo de ações internas no MPF, além de estar envolvido em um embate com Aras.

"Depois de anos de dedicação intensa à Lava Jato, eu acredito que agora é hora de me dedicar de modo especial à minha família [...]. Essa é uma decisão difícil, mas estou muito seguro de que é a decisão certa e a que eu quero tomar como pai", afirmou Deltan em um vídeo na internet.

Deltan teve sua atuação na Lava Jato posta em xeque após a divulgação em 2019 de diálogos e documentos obtidos pelo The Intercept Brasil, alguns deles analisados em conjunto com a Folha.

Além de ver contestada sua relação com o então juiz Sergio Moro, também enfrentou questionamentos por causa do plano de negócios de eventos e palestras que montou para lucrar com a fama e contatos obtidos durante as investigações da Lava Jato.

Nos últimos meses, Deltan enfrentou o avanço de ações contra ele no Ministério Público e se envolveu em conflito com Aras sobre o sigilo dos dados sob investigação na força-tarefa em Curitiba. Ele aguardava processos que poderiam afastá-lo da Lava Jato.

Nesta terça, sem citar nomes, Deltan pediu em vídeo que a sociedade continue apoiando a Lava Jato diante da fase decisiva envolvendo os trabalhos do grupo. "A operação vai continuar fazendo seu trabalho, vai continuar firme, mas decisões que estão sendo tomadas e que serão tomadas em Brasília afetarão os seus trabalhos", disse.

Ao final do vídeo, Deltan afirmou ainda que vai continuar lutando contra a corrupção "como procurador e cidadão". "Não vou desistir, não vou deixar de sonhar com um país menos corrupto, com um país mais justo e melhor."

Em nota, o MPF do Paraná elogiou o trabalho do colega. "Por todo esse período, enquanto coordenador dos trabalhos, Deltan desempenhou com retidão, denodo, esmero e abnegação suas funções, reunindo raras qualidades técnicas e pessoais", diz a nota do órgão.

"Parabenizo o procurador Deltan Dallagnol pela dedicação à frente da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, trabalho que alcançou resultados sem paralelo no combate à corrupção no país. Apesar de sua saída por motivos pessoais, espero que o trabalho da FT [força-tarefa] possa prosseguir", escreveu Moro, no Twitter.

O ex-procurador-geral Rodrigo Janot tratou a saída de Deltan como resultado de uma ação contra a Lava Jato. "Seguimos o caminho pouco virtuoso do crepúsculo da Operação Mãos Limpas! Lá, como aqui, o sistema contra-atacou! Resiliência tem de ser a motivação! Dias melhores virão das trevas! Fiat lux!", afirmou, com menção à ação italiana frequentemente tida como inspiração da força-tarefa brasileira.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu a decisão de Deltan e a alternância de poder no cargo. "Se a decisão foi pessoal, é melhor para que não fique polêmica em relação à saída dele", disse.

"Não é possível que, no meio de tantos procuradores, não tenham outros procuradores que têm a qualidade dele, que têm a dedicação que ele teve à frente de uma área que foi tão importante para o Brasil nos últimos anos."

No mês passado, o ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu o julgamento de Deltan no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).

Deltan seria julgado em processos que o acusavam de parcialidade na condução da Operação Lava Jato, além de tentativas de interferência no processo político brasileiro.

Celso havia concordado com a alegação do procurador de que seu direito de defesa foi cerceado, bem como seu direito à liberdade de expressão e crítica.

Semanas depois, porém, a AGU (Advocacia-Geral da União) entrou com recurso no STF para que a corte reveja a decisão.

Outro processo no entanto, movido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi arquivado. O petista acusava Deltan e os procuradores Roberson Pozzobon e Júlio Noronha de abuso de poder e de expor o ex-presidente e a ex-primeira-dama Marisa Letícia a constrangimento público, no episódio do PowerPoint que apontava Lula como líder de um esquema de corrupção na Petrobras.


Eliane Cantanhêde: Legalidade sempre!

Afastamento de Witzel por decisão monocrática e sem ouvi-lo acende luz amarela entre governadores

O Ministério Público acertou ao investigar e descobrir maracutaias justamente na área de saúde no Rio de Janeiro, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) errou ao decidir monocraticamente o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias, sem nem sequer ouvir o que ele tem a dizer sobre as acusações, feitas a partir de uma delação premiada. Combater a corrupção, sim, mas abrir um precedente perigoso contra governadores, não. Por isso, o julgamento de terça-feira no plenário do STJ é tão importante.

Desde sexta-feira, há intensa troca de telefonemas e mensagens entre governadores, para analisar a situação e a operação que pegou Witzel de jeito. Ninguém defende Witzel, até porque eles não viram o processo e não conhecem as provas, mas todos defendem ferrenhamente a legalidade. Que o MP investigue e faça o que tem de fazer e que a Justiça decida, julgue, puna. Mas um único ministro afastar um governador eleito? Sem dar a ele acesso às acusações? Sem ouvi-lo?

Se hoje é Witzel, amanhã pode ser qualquer um. Há motivos para a preocupação. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves disse, em bom e alto som, que estava tudo pronto para pedir a prisão de governadores e prefeitos. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, sabia de véspera das primeiras buscas e apreensões contra Witzel. O senador Flávio Bolsonaro avisou com antecedência que o vice-governador assumiria. Witzel lembrou que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo é bolsonarista e amiga de Flávio. Amigo do meu inimigo é meu inimigo?

É um óbvio subterfúgio de réu que, sem resposta para os fatos, desqualifica acusadores. Mas serve de alerta para MP e Justiça serem milimetricamente rigorosos, sem abrir brechas ao acusado nem gerar desconfiança entre governadores. Uma coisa, legal, elogiável, é investigar roubalheiras e punir responsáveis. Outra é aproveitar erros de um governador para generalizar, jogar a opinião pública contra todos e criar ambiente para afastamentos, buscas e apreensões, até prisões.

Todo cuidado é pouco nessa hora, com o presidente Jair Bolsonaro em campanha e com tudo engatilhado para despejar sobre os governadores todas as culpas por 120 mil mortos, pandemia, economia, desemprego, queimadas, (falta de) educação. Bolsonaro vai posar de vítima, os governadores serão os réus. Bolsonaristas compram qualquer versão do “mito”. E os demais?

Witzel é uma das estrelas da “nova política” que invadiu governos estaduais e Congresso pelo PSL e PSC e na onda Bolsonaro. Nunca se ouvira falar num tal de Witzel e nem se sabia pronunciar o nome daquele juiz que caiu de paraquedas na eleição num dos três principais Estados do País, com direito a vídeo de apoio do general Augusto Heleno, um dos mentores da candidatura Bolsonaro.

O discurso de Witzel foi o mesmo que varou o País, com neófitos em Minas, DF, Norte, Sul, Centro-Oeste: Congresso, Supremo, política e políticos são uma porcaria, nós somos os bons, os salvadores da Pátria. Mas Witzel não é o único que sucumbe antes de completar dois anos de mandato. Aliás, como estão os processos contra Flávio Bolsonaro?

Por tudo isso e as provas que se acumulam, a repetição primária dos métodos do condenado Sérgio Cabral e a transformação de Helena Witzel na nova Adriana Ancelmo, os procuradores do Rio merecem aplausos, descortinando a corrupção, demolindo o discurso fraudulento. Mas não pode haver dúvidas quando Witzel se diz “massacrado politicamente”. Em vez de réu por corrupção, ele quer se passar por vítima do bolsonarismo. Se o STJ e o MP forem impecáveis, esse discurso não para em pé. Se não, o que é questão de justiça pode virar oportunismo político e ameaçar os governadores.


Vera Magalhães: Corrida da toga

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.

Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?

O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.

Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.

A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.

E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.

Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.

O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.


Merval Pereira: Mandatos cruzados

Surpreendente, devido às posições anteriores de contenção do foro privilegiado, mas nem tanto, pelas decisões recentes alinhadas ao governo Bolsonaro, o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), defendendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) recuse o recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio a favor do foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” não tem como prosperar se a jurisprudência do Supremo for seguida, como tem sido até hoje.

O caso mais emblemático é o do atual deputado e ex-senador Aécio Neves, cujos casos foram enviados para a primeira instância em decisões das Primeira e Segunda Turmas. No de Flavio Bolsonaro, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio fez com que as investigações voltassem para o STF.

Estavam na primeira instância pelo entendimento de que os casos ocorreram quando ele era deputado estadual, e, portanto, pela interpretação do Supremo de 2018 de que o foro privilegiado só serve para crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, não tinham nada a ver com o atual cargo de senador.

A grande discussão levantada tanto pela defesa de Flavio Bolsonaro quanto pela PGR é sobre “mandatos cruzados” ou “mandatos prolongados”, quando um político passa de um cargo para outro em eleições seguidas, que não estariam tratados na decisão do Supremo. “Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre ‘mandatos cruzados’ no nível federal, também não há definição de ‘mandatos cruzados’ quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”.

Alegando que não há essa definição, a PGR diz que a reclamação do Ministerio Público do Rio é indevida pois “não pode ser usada para alcançar entendimento inédito” no STF. Essa falta de definição é questionada em particular por muitos dos ministros do Supremo, mas o ministro Marco Aurélio Mello já se pronunciou na ocasião, afirmando que a decisão "desrespeitou, de forma escancarada" o entendimento do STF sobre o alcance do foro privilegiado.

A Primeira Turma do STF, acompanhando por maioria o parecer do próprio Marco Aurélio, decidiu no ano passado enviar para a Justiça Federal de São Paulo inquérito que investigava denúncias de dirigentes da JBS sobre fatos ocorridos quando Aécio Neves era senador por Minas Gerais.

Os deputados estaduais são julgados pelos Tribunais de Justiça, mas deputados federais e senadores são da alçada do Supremo. Diferentemente de Flavio Bolsonaro, que mudaria de instância, Aécio Neves poderia alegar que continuava sob a jurisdição do STF, pois passou de senador a deputado federal.

Mas o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que os casos aconteceram num mandato que já se esgotara e, portanto, o deputado mineiro já não não tinha foro privilegiado em relação a eles. Por esse entendimento majoritário no STF, tanto Aécio quanto Flavio não têm mais o mandato em que os fatos ocorreram, e portanto devem ser julgados como qualquer outro cidadão, na primeira instância.

Também os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em que o presente caso de Flavio Bolsonaro será julgado, enviaram inquéritos de Aécio para a Justiça Eleitoral. A maioria dos ministros do Supremo considera desnecessária a especificação cobrada pela Procuradoria-Geral da República, pois ambas as Turmas têm usado a mesma interpretação da legislação.

Se houver, no entanto, uma mudança de entendimento da Segunda Turma, é certo que será preciso uma revisão do plenário, para dirimir dúvidas sobre os “mandatos cruzados”. Mesmo que a decisão futura do plenário não favoreça a tese do Tribunal de Justiça do Rio, que lhe deu foro privilegiado no STF, o senador Flavio Bolsonaro não perderia esse privilégio, pois a lei só retroage em benefício do réu, nunca contra.


Merval Pereira: Dallagnol na mira

Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.

Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.

Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.

Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.

O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.

Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.

Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.

Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.

O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.


Luiz Sérgio Henriques: Simão Bacamarte e a política nacional

O balanço do impacto de grandes operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.

Não devemos esperar desfecho análogo: nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a lição clássica.

Deixemos provisoriamente de lado pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o atalho para o enriquecimento desonesto.

O personalismo tem múltiplas facetas e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós, costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM, que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja implantação mais forte acabaria por associar as características mais problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas conveniências mais imediatas.

A fragmentação, de certo modo, não foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em 2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.

A cada ato legislativo que se proponha regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?

É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.


Reinaldo Azevedo: Não há diálogo com os walking dead verde-amarelos

Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes

Já desisti de convencer os citadores sem lastro de que, em "O Príncipe", Maquiavel não escreveu ou deu a entender que "os fins justificam os meios". Apelo, então, à suavidade honestamente pueril de outra obra: o Pequeno Príncipe jamais desistira de uma pergunta. E eu nunca desisto de uma porfia. Volto, pois, aos embates entre a Lava Jato e Augusto Aras, procurador-geral da República.

"Promover a realização da justiça, a bem da sociedade e em defesa do Estado Democrático de Direito." Eis a missão do Ministério Público Federal, segundo o que está escrito em seu site, sintetizando o que vai na Constituição. Não! Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes, como quer certa… delinquência ignorante.

Essa até poderia ser a definição da função da polícia, mas ainda carregaria certa carga de truculência protofascistoide. Ela existe para proteger os cidadãos. E só por consequência atua contra os tais delinquentes. De resto, uma das atribuições do Ministério Público é fazer o controle externo da polícia, não excitar a sua discricionariedade. Não sei se a estupidez é doce, mas é certamente saliente.

Não com o propósito de contestar o hálito fétido que emana das catacumbas —posto que não há diálogo possível com os "walking dead" verde-amarelos—, lembro, então, que os membros do Ministério Público têm o dever de zelar também pelos direitos dos criminosos, distintos dos nossos. Se aquele que se encontra sob a guarda do Estado é submetido ao vale-tudo, o que pode acontecer a quem não se encontra?

Nada mais distante da ação de justiceiros do que o papel reservado ao promotor e ao procurador. Há aí a diferença que distingue o "Estado democrático e de Direito" (gosto com o conectivo "e"), que aparece lá na página oficial do MPF, da barbárie miliciana.

Não há nenhuma evidência de que a abertura da caixa-preta da Lava Jato atenderia a interesses de Jair Bolsonaro. Essa é só uma reserva de falso temor, simulada por aqueles que exibem neutralidade na disputa entre a corda e o pescoço, numa expressão desprezível de covardia.

Faço aqui um desafio: evidenciem, ainda que por hipóteses plausíveis apenas, por quais caminhos a criação de uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), no âmbito do MPF, poderia degenerar em uma polícia política.

Lembro que a Unac não eliminaria ou tisnaria nenhuma das prerrogativas dos senhores procuradores, notadamente a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade dos salários. Tampouco criaria circunstâncias que obrigariam um deles a desistir de uma investigação. O máximo que pode acontecer, em benefício da institucionalização de procedimentos, é a redução do espaço da arbitrariedade.

De resto, alinhar-se com o atual estado de coisas em nome do risco de que a mudança poderia ser instrumentalizada pelo atual governo corresponde a escolher a atuação degenerada da Lava Jato. Foi ela, em grande medida, a catalisadora do reacionarismo que conduziu Bolsonaro à Presidência.

Permitiremos que, mais uma vez, ao arrepio da lei, essa máquina de erigir e destruir reputações defina quem vai governar o país? Já conhecemos as consequências. Vamos ao "é da coisa": o beneficiário direto dos desmandos em voga é Sergio Moro. Sua pré-campanha à Presidência já está em gestação nos subterrâneos das redes sociais.

E o mote é precisamente a "defesa da Lava Jato" como sinônimo de combate à corrupção. Não é preciso fazer grande esforço interpretativo para entender que, nessa perspectiva, a operação, mera fração de um ente do Estado —o MPF—, resolve tomar o seu lugar.

Os meios qualificam os fins. Os empregados pelo lavajatismo corroem instituições e o devido processo legal. Existem provas robustas a respeito, não suposições. Não há desfecho virtuoso possível.
É imoral a isenção na disputa entre a corda dos justiceiros e o pescoço de suas vítimas, culpadas ou inocentes. Umas e outras têm de ser protegidas pelo devido processo legal. Parte da própria imprensa ainda não entendeu esse fundamento —e, portanto, não entendeu nada.


Maria Hermínia Tavares: Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio

Ninguém, entre os caciques políticos, verte pela força-tarefa uma furtiva lágrima

A Operação Lava Jato agoniza, sufocada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sob a aprovação silenciosa do conjunto de partidos e líderes políticos —de A a Z.

Na origem, a força-tarefa encarnou a autonomia do sistema de Justiça em relação ao Executivo, sustentada nos poderes ampliados que lhe conferiu a Constituição de 1988. Tornou-se possível com o advento de uma nova geração de promotores e juízes que já não dependiam da patronagem, mas de seus méritos aferidos em concursos públicos, para ingressar na carreira. Faz sentido que se vissem como guardiões da lei maior ameaçada por um sistema político no seu entender irremediavelmente corrupto.

A Lava Jato trouxe à luz a existência daquilo que, décadas antes, o cientista político americano Gordon Adams tinha chamado triângulos de ferro: arranjos informais e secretos que ligam firmas de prestação de serviços, burocratas de estatais e partidos políticos, em benefício dos envolvidos e em detrimento do interesse coletivo.

De fato, os cruzados de Curitiba revelaram o poderoso triângulo de ferro incrustado na maior empresa pública nacional, a Petrobras, sólido o suficiente para sobreviver ao vaivém de presidentes e coalizões governantes, encabeçadas primeiro pelo PSDB e depois pelo PT.

A Lava Jato não criou a crise política que pulverizou o sistema de partidos e abriu caminho para a ascensão da extrema direita. Mas forneceu o combustível para as campanhas da imprensa e as grandes manifestações de rua, as quais, associadas à crise econômica, à polarização política e ao desmanche da base parlamentar governista, tornaram possível o impeachment de Dilma Rousseff e tudo o que se lhe seguiu.

Os métodos reprováveis a que recorreram promotores e o juiz Sergio Moro —especialmente sua inaceitável proximidade durante a montagem dos processos— tampouco contribuíram para o aperfeiçoamento da aplicação da Justiça e a criação de instrumentos legítimos para reduzir a corrupção política.

No Brasil, o discurso moralista foi componente central de todas as grandes crises políticas sob regime democrático. Apesar do retrospecto, a Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio —e sem ninguém, entre os caciques políticos, a verter por ela uma furtiva lágrima.

Mas os triângulos de ferro do professor Adams sobrevivem a ela. Ativados e operantes, existem em empresas públicas e agências reguladoras. Por isso, a retórica anticorrupção continuará sendo um recurso da luta política. Alimentará o populismo de direita enquanto não ocupar também posição de relevo na agenda dos democratas.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Merval Pereira: A orelha de Bolsonaro

A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial.

Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.

Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo.

Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.

Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo.

Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.

Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.

Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.

Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.

Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.

Talvez Freud explique.


Cristina Serra: Aras e o aparelhamento do MPF

O procurador-geral da República e Deltan Dallagnol são faces do aparelhamento político das instituições de Estado

O procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu guerra contra a força-tarefa da Lava Jato e a hipertrofia dos procuradores federais comandados por Deltan Dallagnol na “República de Curitiba”. Aras e Dallagnol, no entanto, são faces da mesma moeda: a do aparelhamento político das instituições de Estado.

O sempre necessário e importante combate ao crime encontrou na vocação messiânica e na agenda política dos procuradores e do juiz Sérgio Moro terreno fértil para distorções, abusos e excessos da operação que pretendia acabar com a corrupção no país.

Não acabou. E deixou vasto legado de desrespeito a marcos legais. Moro divulgou ilegalmente um grampo telefônico envolvendo a então presidente Dilma, o que mereceu apenas uma reprimenda do STF ao juiz.

Este pediu “escusas” e ficou por isso mesmo. A Vaza Jato, do site The Intercept, mostrou como o juiz orientou os procuradores, tornando-se parte da acusação e violando seu compromisso ético e legal de imparcialidade.

Deu no que deu. A Lava Jato teve impacto decisivo na chegada de Bolsonaro ao poder, trazendo Moro a tiracolo, não por acaso. Como o mundo dá voltas, o candidato que se beneficiou do “lavajatismo” foi o mesmo presidente que deu a rasteira em Moro e agora comanda a ofensiva contra a “República de Curitiba”.

Ao atacá-la, Aras faz um favor ao centrão e ao chefe, que andam de braços dados desde que Bolsonaro entendeu que precisava de um escudo no parlamento, depois da prisão do amigão Fabrício Queiroz. Aras, porém, pode não ter calculado bem um efeito colateral de sua truculência. A perseguição à Lava Jato poderá levar Moro a disputar com o ex-chefe a narrativa do combate à corrupção, acirrando a concorrência no campo da direita nas eleições de 2022.

Há, contudo, uma pedra no caminho de Moro. A Segunda Turma do STF precisa terminar o julgamento, iniciado em 2018, sobre a suspeição do magistrado na condução da Lava Jato. Ao que parece, suas excelências não estão com a menor pressa.


Leandro Colon: O jogo seletivo de Aras

PGR fala em "caixa de segredos" da Lava Jato, mas se cala diante da usurpação da AGU

A reunião do Conselho Superior do Ministério Público Federal na sexta-feira (31) é o símbolo deprimente da crise entre o chefe da PGR, Augusto Aras, e um grupo de procuradores que lhe faz oposição.

Temos visto, rotineiramente, ataques mútuos, egos inflados e desvios da liturgia exigida para a função de procurador da República.

Anti-lavajatistas, dentro e fora do Ministério Público, celebram a disposição de Aras em enfrentar a força-tarefa de Curitiba, liderada há alguns anos por Deltan Dallagnol.

Nos bastidores, cresce a certeza de que Aras deve desmantelar ou ao menos fatiar as atribuições do grupo que comanda a Lava Jato.

Seria demonstração de força do chefe da PGR que pode enfraquecer Deltan e a equipe que conduziram as investigações da maior operação anti-corrupção que o país já viu.

Decerto que razões existem (e sobram) para contestar, apurar e repudiar os atropelos legais e o método policialesco que a Lava Jato adotou em muitos casos até aqui.

Assim como é inegável o serviço prestado por ela ao desmantelar um esquema de corrupção nefasto na Petrobras, colocando na cadeia políticos e figurões empresários que assaltaram os cofres públicos.

A questão aí é qual o jogo real de Aras, devoto da cartilha do presidente da República que o escolheu fora da tradicional lista tríplice da classe.

Aras se indigna com o que chama de "caixa de segredos" da Lava Jato, mas se cala diante da usurpação das atribuições da AGU e do Ministério da Justiça no governo Bolsonaro.

Isolado no MPF, ensaia uma dobradinha com o STF. Aliou-se a Dias Toffoli para ter acesso ao material sigiloso da Lava Jato —isso depois de tentar obtê-lo na marra.

Em recente declaração, Aras disse que, durante seu mandato, não vai permitir que "haja um aparelhamento" do Ministério Público.

Espera-se a mesma disposição do chefe da PGR em investigar no inquérito que ele abriu para apurar o aparelhamento do comando Polícia Federal por parte de Jair Bolsonaro.