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Cristina Serra: Onde estaremos daqui a um ano?

O Brasil, hoje, nos sufoca de indignação e vergonha

A pergunta do titulo foi feita pelo jornal El País em recente entrevista com o bilionário norte-americano Bill Gates, que há tempos investe parte de sua fortuna em pesquisa científica. Em 2015, ele alertou que a próxima guerra travada pela humanidade seria contra um inimigo invisível, um vírus muito infeccioso, que se propagaria pelo ar e mataria milhões de pessoas. Por isso, era urgente que os países se preparassem para o combate.

Obviamente, constatamos da pior forma possível que isso não aconteceu. Em pouco mais de um ano, a pandemia já matou dois milhões e meio de pessoas no mundo. Apesar da perda colossal, Gates estima que no começo de 2022 os efeitos mais dramáticos do contágio estarão superados e os países terão de volta algum nível de normalidade, desde que 70% das populações sejam vacinadas.

Ao ler a entrevista, me fiz a mesma pergunta pensando no Brasil. O ritmo atual da vacinação não nos autoriza uma perspectiva positiva para o futuro próximo. O neurocientista Miguel Nicolelis, sempre objetivo nas suas análises, disse que "começa a ser real" a possibilidade de não ter Carnaval em 2022. Chegaríamos, portanto, a dois anos de pandemia, com mais mortes e a população pobre tocando a vida aos trancos e barrancos.

Como já alertaram importantes cientistas brasileiros, Bill Gates também adverte que o tempo está se esgotando para que a humanidade conjugue esforços no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas, "muito piores" que os da pandemia. É um desafio para gigantes, que só pode ser vencido com a confluência de interesses de governos e mercados e com muito investimento em ciência.

Décadas de reconstrução democrática prepararam o Brasil para ser uma voz respeitada globalmente em saúde e meio ambiente, temas intimamente relacionados. Sob um governo de gente orgulhosa de sua ignorância, o Brasil, hoje, nos sufoca de indignação e vergonha. Amá-lo tornou-se um martírio doloroso e inútil.


Pedro Fernando Nery: De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família

Seja via o benefício ou por novo programa social, a população infantil deve ser prioridade do governo

De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretamente (gasto) ou indiretamente (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencial mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?

Cerca de 50 milhões dos beneficiários do auxílio emergencial não eram beneficiários do Bolsa Família. Como possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenciários ou trabalhistas. Eles pressionarão pelo aumento da cobertura da assistência social. Já os beneficiários do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencial. Eles pressionarão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).

Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramento, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiários, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.

Assim, um desdobramento do auxílio emergencial poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvimento da infraestrutura do domicílio (gastos com eletrodomésticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvimento infantil e de inclusão digital).

Ugo Gentilini, líder global para assistência social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporários da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementaram. Condizente com as curvas de popularidade no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriormente sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhadores do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelmente aumentando a sustentabilidade política de programas de grande escala”.

O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceitos associados a transferências de renda, o que pode ter desmistificado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocracia já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincentivar o trabalho ou estimular o aumento de famílias.

Para o Bolsa Família, é especialmente importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvimento destes futuros trabalhadores – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças.

Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republicanos estrelados.

Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferência de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específicos tidos como “estratégicos”. Como provocou recentemente Carlos Góes, estratégicos são os pobres.

Poderia o auxílio emergencial ser um catalisador dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicamente aconteceram diante de inesperadas janelas de oportunidade – mas elas se fechariam rapidamente. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabilidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.

*Doutor em economia 


Ricardo Noblat: Intervenção na Petrobras une PT a Bolsonaro

E quem pensava que já assistira a tudo....

Além da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, onde pulsa o coração do mercado financeiro, quem mais votou em Jair Bolsonaro para presidente por acreditar na sua súbita conversão ao liberalismo de Paulo Guedes, seu futuro ministro da Economia?

A massa gigantesca de votos que quase o elegeu direto no primeiro turno pouco ou nada entende de liberalismo e de economia, juntos ou separados. Havia um desejo gigantesco de mudança e uma repulsa generalizada à política tradicional.

Então se escolheu um até então desconhecido deputado federal do baixo clero que se dizia não político e contra tudo o que ali estava. Portanto, não se diga agora que ele traiu seus eleitores ao intervir na Petrobras. Pode ter traído, se muito, a Brigadeiro Faria Lima.

É no que dá acreditar naquilo que não é, mas que se gostaria que fosse. O capitão que repetia o pouco que Guedes lhe ensinou revelou-se outra vez o estatizante que sempre foi. É curioso que até aqui somente o PT tenha saído em seu socorro.

Bolsonaro e PT, tudo a ver em alguns pontos: ambos anti-mercado, anti-capitalismo e pró-estatizante. Ambos populistas com um forte viés autoritário que pelo menos Lula, em seus dois governos, tentou por sabedoria amenizar, mas Dilma mão de ferro, não.

Filho de um general nacionalista que morreu, o economista Aloizio Mercadante (PT-SP), que foi ministro da Educação e da Casa Civil do governo Dilma, apressou-se eufórico em mandar um recado para os militares brasileiros:

– Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos. Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo, para os caminhoneiros e para os motoristas de aplicativos.

Saudou o general Joaquim Silva e Luna, o futuro presidente da Petrobras, como “um militar nacionalista”. Lembrado de que Bolsonaro extrairá dividendos eleitorais caso controle os novos reajustes de preços dos combustíveis, justificou-se:

– Ao contrário daqueles que nos golpearam, não apostamos no quanto pior, melhor. Assim como defendemos o auxílio-emergencial, temos que defender uma Petrobrás para os brasileiros. O povo brasileiro está sofrendo agora.

De fato, está, e não só por conta do vírus que continua matando, e da falta de vacina que se agrava, mas também porque a intervenção na Petrobras tornou o Brasil mais caro para os que vivem cá, e mais barato para os estrangeiros. Na vida real é isso.

Foi de 21,6% a queda do preço das ações preferenciais da Petrobras no primeiro dia útil após anúncio da intervenção, e de 20,4% nas ações ordinárias. O Ibovespa perdeu 4,87%. O dólar subiu 1,30%, O preço das ações do Banco do Brasil caiu 11,64%.

Investidores da Petrobras preparam uma ação coletiva para questionar as perdas. A troca de presidentes fez a empresa perder 102,5 bilhões em valor de mercado. Até a semana passada, quem tomava emprestado 100 reais pagava 110. Ontem, pagou 120.

“Ninguém vai interferir na política de preços da Petrobras”, declarou Bolsonaro ante a reação do mercado. No último final de semana, ele afirmou que vai reduzir em 15% o preço do diesel e da gasolina. O que ele diz não se escreve, mas produz estragos.

O economista Roberto Castelo Branco, que passará o cargo ao general Luna, era bem tratado pelo governo até outro dia. Se a política que ele conduzia na Petrobras não sofrerá nenhum tipo de alteração, por que mandá-lo embora?

Certamente não será porque Bolsonaro queria que ele investisse numa campanha milionária de propaganda do governo a ser veiculada no SBT e na Record, emissoras que fazem parte do Sistema Bolsonarista de Televisão. Castelo Branco não quis.

Em queda nas pesquisas de intenção de voto, sem que a economia se recupere como ele havia prometido, com a inflação em alta e com o índice de desemprego se aproximando dos 18%, o problema de Bolsonaro não é Castelo Branco, mas Guedes.

No fundo, para seguir sonhando com a reeleição, Bolsonaro precisa libertar-se das amarras do ministro da Economia para gastar mais e fazer negócios. A Petrobras é uma mina de negócios como demonstrado por governos anteriores.

O Brasil só não quebrou ao fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso porque Bill Clinton, à época presidente dos Estados Unidos e amigo dele, socorreu-o com um empréstimo. Reeleito, Fernando Henrique desvalorizou o Real.

O ciclo da valorização das commodities evitou que o Brasil quebrasse durante a crise financeira mundial de 2008. Lula, o presidente, cambaleava sob os efeitos do escândalo do mensalão do PT e as contas públicas desarrumadas. Sobreviveu.

Para reeleger-se, Dilma segurou o reajuste de preços dos combustíveis e da energia elétrica, causando um rombo nas empresas envolvidas que repercutiu em toda a economia. Depois, quando quis voltar à ortodoxia, não teve mais tempo.

Sem risco de impeachment e com o apoio militar que Mercadante tanto preza, Bolsonaro poderá ir no rastro de Dilma na esperança de se dar bem. Quanto à Brigadeiro Faria Lima, não passa de “um rebanho eletrônico”. Foi o general Mourão quem disse.


Míriam Leitão: Bolsonaro escancara populismo econômico

A interferência na Petrobras é mais grave do que o mercado refletiu ontem no banho de sangue dos pregões. Ao fim, a Petrobras tinha perdido R$ 98 bilhões em dois dias. Outras estatais também caíram. O que Bolsonaro quer? Ele busca ganhos políticos. Faz demagogia com os caminhoneiros para usá-los politicamente, faz populismo com todos os que sentem no bolso o preço da gasolina ou do diesel, cria um inimigo e ainda manipula o imaginário brasileiro com a frase “o petróleo é nosso”. São estratégias conhecidas.

A ditadura chilena dos anos 1970 usou os caminhoneiros como arma política. A ditadura da Venezuela usou a gasolina barata, o inimigo externo e o nacionalismo para se eternizar. O jogo é conhecido dos candidatos a ditador.

Enquanto isso, para acalmar os investidores locais e internacionais, a equipe econômica tenta usar uma arma de destruição em massa de princípios da Constituição. A proposta é aprovar uma PEC como condição para dar o auxílio emergencial. Pela versão divulgada ontem ela elimina todas as vinculações constitucionais para saúde e educação. Veja-se este ponto que parece incompreensível. “Revogar o caput e os §§ 1º e 2º do art. 212 da Constituição.” Isso mata o Fundeb. Simples assim. E está lá como se fosse inofensivo no item quarto do artigo quarto da PEC. Todo o esforço brasileiro de criar um fundo de valorização do ensino básico, que foi debatido intensamente no ano passado, seria apagado com uma penada. Ora, senhores da equipe econômica, na democracia uma mudança dessa profundidade não pode ser feita na chantagem da necessidade de um auxílio emergencial, nem no afogadilho de uma votação marcada para daqui a dois dias.

Mas há outras encrencas nas últimas decisões de Bolsonaro que vão bater no bolso do contribuinte. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 14) qualquer aumento de subsídio tem que ser compensado com elevação de imposto. Não basta cortar uma despesa. Está na lei que a compensação tem que ser: “aumento de receita proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributos.” Então aqueles R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões a mais de gasto pela redução dos tributos do diesel e do gás de cozinha terão que ser compensados com novo imposto. E mais. Pela Lei das Estatais, se qualquer estatal tiver prejuízo por uma medida tomada pelo governo, o Tesouro terá que compensar a empresa. Se a Petrobras tiver perdas de caixa com uma nova política de preços o Tesouro terá que compensá-la. No fim, quem pagará a conta do populismo econômico de Bolsonaro é o contribuinte.

Trocar presidente de estatal é natural. Passar por cima de leis, normas e estatutos e ainda acusar o que sai de “jogar contra o país” não é natural. A ironia é que Roberto Castello Branco fez parte do trio inicial do programa econômico do candidato Jair Bolsonaro. Era Paulo Guedes, ele e Rubem Novaes, ex-Banco do Brasil. Castello Branco entregou exatamente o que foi pedido a ele. Isso é que deixou economistas do mercado perplexos:

— Se Bolsonaro fizer metade do que ele falou nos últimos dias, o risco fiscal vai aumentar e o BC será forçado a subir juros em março pela confusão causada pelo presidente da República — avaliou um economista que influencia muita gente no mercado.

O consumidor está bravo porque o combustível subiu muito este ano. Gasolina 34%, e diesel, 27%. Mas no passado, com a pandemia, houve queda de 13% no diesel e redução de 4% na gasolina. Em parte, os preços estão subindo agora por causa do câmbio. O real é uma das moedas que mais perdem valor diante do dólar e isso é resultado direto das crises criadas pelo próprio presidente. O dólar sobe e bate em diversos preços que batem no bolso dos consumidores. Veja-se o caso da energia de Itaipu até agora presidida pelo general Joaquim Silva e Luna, que vai para a Petrobras. A energia de Itaipu subiu entre 35% e 40%. Ela é corrigida pelo dólar. O assunto não gerou polêmica porque Itaipu reajusta os preços automaticamente, a distribuidora repassa para o consumidor, que culpa a concessionária. A Itaipu do general Luna subiu seus preços pela mesma lógica que Castello Branco.

Bolsonaro desde o início sabotou o projeto liberal que vendeu na eleição. Agora foi além no estelionato. Ele escancarou seu populismo econômico, um caminho que sempre termina em crise.


Carlos Andreazza: O Daniel Silveira da Faria Lima

Bolsonaro passou a faca na Petrobras. Queria dar um recado aos irmãos caminhoneiros. A mensagem: “Vocês não me chantageiam. Chantageamos juntos”. E então mandou cortar, sem qualquer estudo, e sem que o combustível ficasse mais barato para o consumidor, os impostos federais sobre o diesel. Interveio para pressionar os governadores, os vilões do ICMS — alguns dos quais potenciais adversários em 2022. Em suma: “Fiz a minha parte. E vocês?”.

O presidente fez a sua parte: contratou rombo bilionário na arrecadação de um Tesouro que — vem aí o auxílio emergencial — terá aumento nos desembolsos. (É claro que se pode acreditar nas compensações fiscais — sempre do futuro — prometidas pelo Ministério da Economia; o sócio Centrão topa, mas só ali na frente, com as privatizações.) Essa é a austeridade de Bolsonaro, rigorosíssimo em sua campanha pela reeleição. Paulo Guedes que a viabilize, já muito testada a flexibilidade de sua cervical, embora não exibida para recolher do chão a cabeça do CEO da Petrobras.

(Caso à parte é a confiança em que Guedes — bolsonarista mais apaixonado que Weintraub — pudesse domar e educar liberalmente alguém como Bolsonaro, autocrata cuja mente econômica é produto do Brasil Grande. Já seria improvável se houvesse projeto e capacidade de executá-lo. Com palestras, incompetência e adesão ao conspiracionismo, impossível.)

Inicia-se, pois, o show de Luna na Petrobras. Avança a pazuellização do Brasil, o que equivale a dizer que progride a inépcia em meio ao recrudescimento da peste. Multiplicam-se os generais a se prestarem de cavalo para o mito; agora também — já era ministro da Saúde — comandante da petroleira. E que já prometeu mostrar que dirige as Minas e Energia. Guedes — este minion — não é militar, mas desde há muito se oferece como montaria; e sem relinchar. Bolsonaro — historicamente hostil à Lei de Responsabilidade Fiscal — é o ministro da Economia; e é também um populista que só pensa em se reeleger. Conta que não fecha.

Jaca não vira cereja. Com poder, será jaqueira. Bolsonaro é Bolsonaro. Uma vez presidente da República, o líder corporativista será um presidente da República líder corporativista. Ou já teremos nos esquecido de como procedeu, em prol de interesses de classe, na reforma da Previdência? Ou da forma como operou para que a reforma administrativa minguasse?

Mas há os que descobrem somente agora que Bolsonaro — porque meteu a mão na Petrobras — jamais será presidente de um governo reformista. “Oh! Meu Deus, ele não é liberal. Fui enganado.” Oi? Estava onde nos últimos 30 anos? Estava onde, amigo do mercado, para crer que o sujeito — há três décadas mamando o leite do Estado — promoveria uma cirurgia para reduzir o tamanho das tetas em que engorda a si e aos seus? (Isso no caso de o amigo não ser um entre os tantos que usam o fetiche liberal-guedista para dissimular o que outra coisa não é que atração pelo autoritarismo bolsonarista.)

Estava onde, em abril de 2018, quando Bolsonaro apoiou a revolução dos caminhoneiros, aquela que, motivada por insatisfações com o preço do combustível, paralisou criminosamente o Brasil, provocou desabastecimento e nos deu vislumbre do que seria um processo de venezuelização? O então deputado federal, candidato do ente mercado já no primeiro turno, não teve dúvida na hora de se associar a um movimento delinquente cujo potencial desestabilizador do país servia à ascensão de seu projeto de poder antiestablishment.

Mesmo sendo um baixo clero padrão, cuja existência deriva de haver se aboletado, para constituir bem-sucedida empresa familiar, nas bordas gordas do sistema, Bolsonaro soube explorar o sentimento reacionário — a mentalidade miliciana — que arrebanha ressentidos e violentos à margem; a paixão rompedora da qual emergem golpistas armados como Daniel Silveira, corruptores da democracia liberal, agentes revolucionários que, eleitos, se valem da legitimidade do espaço político-institucional para degradar as instituições da República.

Aqui, uma questão conceitual a expor a estupidez dos que acreditaram ser possível existir governo reformista de um presidente cuja base de apoio fundamental é antiliberal e prospera no confronto, na forja de inimigos, no estímulo do caos; como se fosse possível promover reforma estrutural do Estado num chão de instabilidade cultivado pelo chefe do governo dito reformista. O caso Silveira é exemplar. Seu crime — atentado à ordem pública, produto do bolsonarismo por excelência — travou e transtornou a atividade legislativa num momento em que o país nem sequer tem orçamento para 2021.

O estado paralelo, que aparelha o governo, não pode reformar o Estado. Só dilapidar as instituições que compõem a ordem democrática.

Bolsonaro é um estelionatário eleitoral. Guedes lhe serve, conscientemente, de escada. Já não pode mais haver desavisados pelo liberalismo do amanhã. Está dado que o populismo por 2022 abrirá campo ao golpismo se a reeleição vier — e são boas chances de que venha. O regime do peito de Bolsonaro é outro. Quem — diante de todas as evidências — ainda financia este governo já sabe ao que serve. Está cheio de Daniel Silveira na Faria Lima.


Luiz Carlos Azedo: Guedes foi abduzido

O governo deu uma guinada populista e estatizante para agradar a base eleitoral de Bolsonaro e consolidar o poder dos generais do Palácio do Planalto

A troca de comando na Petrobras — o executivo civil Roberto Castello Branco foi substituído pelo general Luna e Silva na presidência da empresa — provocou uma queda de 21% das ações da companhia, o que representa uma perda no seu valor de mercado que já supera R$ 100 bilhões. Ameaças de troca de comando na Eletrobras e no Banco do Brasil também tiveram muito impacto no mercado financeiro, o que fez a Bovespa cair 5% e o dólar, fechar cotado a R$ 5,45, uma alta de 1,26%, mesmo com o Banco Central (BC) vendendo US$ 1,5 bilhão em linha direta.

O mercado não está só especulando, o que é normal quando há mudanças desse tipo. Está mesmo à beira de um ataque de nervos, porque a situação geral do país é complicada: (1) o Brasil está isolado internacionalmente, na contramão da política de Joe Biden; (2) a segunda onda da pandemia está fora de controle em várias cidades do país, com a média de mortes acima de 1.000 óbitos/dia; (3) a manutenção da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Câmara mostrou que o Centrão não apoia Bolsonaro para o que der e vier (os bolsonaristas podem não chegar a 130 deputados); (4) o presidente da Câmara, deputado Artur Lira (PP-AL), em entrevista à Veja, deixou claro que seu acordo com o Palácio do Planalto não incluiu a reeleição de Bolsonaro em 2022.

O governo deu uma guinada populista e estatizante para agradar a base eleitoral de Bolsonaro e consolidar o poder dos generais do Palácio do Planalto, com a militarização da direção das principais empresas estatais. Com isso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, corre o risco de virar um “anão de jardim” na Esplanada dos Ministérios. Ninguém sabe o que Guedes pretende fazer, mas o mercado financeiro o considerou uma figura ornamental nessa troca na Petrobras, ou seja, perdeu a credibilidade. Numa reunião com empresários, ontem, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), indagado sobre eventual saída de Guedes, respondeu com indiferença: paciência. Caso isso ocorra, o Centrão já tem candidato: Rogério Marinho, o ministro da Integração Nacional, que é economista e foi o negociador das reformas trabalhista, no governo Michel Temer, e previdenciária, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro.+

Pau mandado
Nos bastidores, Guedes fez chegar a interlocutores que sua aposta é a aprovação da PEC Emergencial. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC, propõe o fim do piso para a educação e a saúde, o que coloca em risco o recém-aprovado Fundeb e o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). No substitutivo da emenda constitucional, incluiu a chamada “cláusula de calamidade pública”, com os acionamentos de gatilhos para gastos extraordinários, ou seja, despesas acima do teto de gastos, sem infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro Paulo Guedes tem ressaltado a necessidade da votação dessa matéria para viabilizar o auxílio emergencial.

A nomeação do general Luna e Silva, que já foi diretor de Orçamento e Finanças do Exército e ministro da Defesa, não passou pelo ministro da Economia, foi uma indicação dos generais do Palácio do Planalto. Guedes foi abduzido pelos militares, mas minimiza os efeitos da troca de comando na Petrobras e vê a queda das ações como um fenômeno normal no mercado financeiro, no qual sempre atuou. Avalia que a aprovação da PEC pelo Senado será uma conquista mais importante do que os efeitos da intervenção na Petrobras. A equipe econômica também estaria elaborando um novo programa de privatização, que incluiria a criação de um fundo destinado à transferência de renda, o que agradaria o presidente Bolsonaro. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), pretende votar a PEC Emergencial na próxima quinta-feira.

O general Luna e Silva terá de convencer os acionistas da Petrobras de que não é um pau mandado do presidente da República, como acontece com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que atua na base do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O problema do governo é que os acionistas da empresa podem entrar na Justiça exigindo indenização da companhia, principalmente os estrangeiros, em razão dos prejuízos causados pela intervenção indevida do governo na política de preços de combustíveis. Com ações na Bolsa de Nova York, a Petrobras já cortou um dobrado com esses acionistas, que processaram a empresa nos Estados Unidos por causa do escândalo do petrolão.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-guedes-foi-abduzido/

Eliane Cantanhêde: ‘Engodo liberal’

Persio Arida alertou que o liberalismo de Bolsonaro era uma farsa e Guedes não mandaria nada

Não foi por falta de aviso. Desde a campanha eleitoral, em 2018, as vozes mais brilhantes da economia, com grandes serviços prestados ao Brasil, já alertavam para o autoengano do mercado com o liberalismo improvisado do corporativista Jair Bolsonaro, que usou o “Chicago Boy” Paulo Guedes para “enganar um bobo, na casca do ovo”. 

Foi assim que Bolsonaro venceu e, presidente, joga pela janela a “nova política”, a Lava JatoSérgio Moro, as reformas, as privatizações e as regras de mercado. Só falta jogar o próprio Guedes e... a democracia. Quanto ao ministro, é considerado questão de tempo. Quanto à democracia, é melhor prevenir agora do que (tentar) remediar depois. 

Persio Arida, um dos pais do Plano Real e assessor da campanha do tucano Geraldo Alckmin, não grita, não é histriônico, nem sequer é político, mas alertou o tempo todo para exatamente tudo o que está acontecendo agora. Banqueiros, empresários, economistas e metidos a entendidos, não venham dizer que não sabiam e estão perplexos. O passado condena. O passado de Bolsonaro já dava todas as pistas do que viria por aí. 

Em entrevista inesquecível à repórter Renata Agostini, no Estadão, Arida disse que o capitão Bolsonaro era um “engodo liberal”, como o coronel Hugo Chávez na Venezuela, e alertou para a esquizofrenia da campanha bolsonarista: um candidato estatizante e corporativista escudando-se num “Posto Ipiranga” privatizante e reformista. Sua aposta: o “mitômano” Guedes não ia mandar nada. Afinal, “quem tem a caneta manda”. 

Foi um momento “Mãe Dinah” de Persio Arida? Não, ele apenas disse o óbvio, mas o capital e grandes parcelas da população estavam cegos pelo ódio ao PT e foram facilmente manipulados por uma profecia autorrealizável: só Bolsonaro venceria o ex-presidente Lula ou o candidato dele. As pesquisas diziam o contrário, mas as redes sociais tanto martelaram isso que virou verdade. A facada fez o resto e veio “o mito”. 

Cadê o R$ 1 trilhão de Guedes com a venda de estatais? Bolsonaro é contra privatizações e o gato comeu. Cadê a promessa de Guedes de zerar o déficit público em um ano? Bolsonaro nunca quis cortar nada e, quanto mais 2022 se aproxima, menos ele quer. A reforma administrativa? Bolsonaro trancou na gaveta, em favor do corporativismo e do populismo. E a tributária? Ele não entendeu nada, mas não gostou. Dá muito trabalho. E não rende voto... 

Teimoso, obtuso, o capital segue com Bolsonaro contra tudo e contra o bom senso, mas seus argumentos, ou melhor, pretextos, vão lhes escorrendo pelos dedos. Quando já não sobrava quase nada a dizer, muitos ainda tentavam manter a pose: “Ah! Deixa o Bolsonaro para lá, o importante é deixar o Guedes trabalhar”. Ainda tentam? 

Gurus e “gabinete do ódio” estão tendo um trabalhão para providenciar algum discurso para o capital e as tropas bolsonaristas da internet, depois de Bolsonaro entrar de sola na Petrobrás e rasgar o que restava dos seus compromissos de campanha. Desta vez, a um altíssimo custo: a mais simbólica companhia brasileira derreteu R$ 100 bilhões até esta segunda-feira, 22. 

A bomba na Petrobrás enterra o “engodo liberal”, humilha o “mitômano” Guedes, chacoalha o cinismo do mercado, deixa o Banco do Brasil e as estatais de barbas de molho e obriga os bolsonaristas renitentes a dar um salto mortal: de endeusadores da Lava Jato, viraram algozes de Sérgio Moro; de adeptos de Guedes, terão de virar inimigos do liberalismo. O bolsonarismo segue os passos do petismo. 

Como efeito colateral, Bolsonaro vai cooptando um general atrás do outro e, assim, embaçando a visão estratégica das Forças Armadas. Aliás, outro alerta certeiro de Persio Arida parece cada vez mais atual: “Bolsonaro é um risco à democracia”, já dizia em 2018. 


Alon Feuerwerker: Cabo de guerra

O mercado reagiu como esperado, e como previsto, ao anúncio da troca no comando da Petrobras. A queda nas ações da companhia estendeu-se a outras estatais e impactou o desempenho do mercado de capitais.

Um temor do mercado é quanto as pressões do governo para a suavização dos reajustes dos preços dos combustíveis vão refletir nos resultados da empresa, e portanto também nos dividendos distribuídos aos acionistas. Outra dúvida é sobre a continuidade dos planos de desinvestimento, especialmente das refinarias.

Aparentemente, ao precisar decidir entre um cabo de guerra com o mercado e o risco de uma greve de caminhoneiros em plena pandemia, o presidente da República preferiu a primeira alternativa. Agora que conseguiu estabilizar a relação com o Congresso, especialmente com a Câmara, Jair Bolsonaro parece querer fugir do risco da queda abrupta de apoio social.

Recorde-se, por exemplo, o mergulho de popularidade de Dilma Rousseff causado pelas manifestações de junho de 2013, e que foram apenas isso, manifestações. Qual seria o efeito, para o apoio ao presidente na população, de um colapso do abastecimento em plena pandemia e com a economia projetando recuo neste primeiro trimestre?

Ontem, a pesquisa CNT/MDA mostra ótimo+bom presidencial algo estável na ordem de grandeza de um terço do eleitorado (leia). Sem base orgânica de apoio no Legislativo, Jair Bolsonaro certamente não deseja sofrer uma corrosão de popularidade como a de Dilma na largada do segundo mandato. Seria a senha para uma crise política grave.

Michel Temer também viu o apoio popular mergulhar num certo momento, mas ao contrário de Dilma e de Bolsonaro mantinha base congressual sólida . Sem isso, um presidente impopular ou vira pato manco, como dizem os norte-americanos, ou cai.

Mas não convém tampouco apostar numa radicalização sem limites. Mais provável é o novo presidente da Petrobras procurar um caminho de conciliação, intermediário, entre os objetivos dos acionistas minoritários e os do majoritário. Resta acompanhar como será essa operação.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bruno Carazza: Chicago losers

Paulo Guedes errou a estratégia e a cada dia se torna menor

No discurso de posse, em 1949, o presidente americano Harry Truman anunciou que uma das prioridades de seu segundo mandato seria o apoio a países em desenvolvimento, como forma de compensar a preferência dada à reconstrução da Europa no pós-guerra, com o Plano Marshall.

O chamado “Ponto Quatro” do seu programa de governo previa empréstimos e assistência técnica. No caso do Brasil, a parceria resultou na criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que entre 1951 e 1953 realizou um amplo diagnóstico das carências e oportunidades do país e acabou resultando na fundação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (o “Social” só apareceria na década de 1980) e, anos depois, no Plano de Metas de JK.

Uma das linhas de ação escolhidas pelo Chile foi oferecer bolsas de estudos para que estudantes de economia fizessem mestrado e doutorado na Universidade de Chicago, desde então a cidadela do pensamento neoclássico e da defesa do livre mercado.

Com o golpe de Augusto Pinochet em 1973, muitos desses jovens foram convidados a retornar e elaborar o programa econômico do seu governo. Ganharam assim o apelido de Chicago boys, e deram as cartas até o fim da ditadura, em 1990.

40 anos depois de defender sua tese de doutorado na Universidade de Chicago, Paulo Guedes foi escolhido para ser o xerife da economia pelo ainda candidato Jair Bolsonaro. Determinado a dar um choque liberal, o novo ministro decidiu convocar três amigos também egressos da escola celebrizada por Friedman, Coase, Stigler, Becker, Lucas e tantos outros vencedores do Prêmio Nobel.

Assim, Rubem Novaes, Roberto Castello Branco e Joaquim Levy assumiram, respectivamente, as presidências do Banco do Brasil, da Petrobras e do BNDES. Num feliz trocadilho, Guedes e seus amigos se autoproclamavam os Chicago oldies.

No fim da tarde da última sexta-feira (19/02), o presidente demitiu Castello Branco da Petrobras e pôs um fim precoce à experiência dos “garotões” de Chicago no governo. Antes dele, Joaquim Levy havia caído em junho de 2019, e Rubem Novaes saído do BB em setembro de 2020. Agora só resta Paulo Guedes.

Neste final de semana muito se falou sobre o intervencionismo de Bolsonaro, bem como do populismo que o impede de implementar a pauta liberal do ministro da Economia. Para quem passou quase três décadas no Congresso defendendo uma agenda corporativista e sem se envolver em qualquer debate relevante para o futuro do país, nada disso deveria surpreender.

O que precisamos discutir, contudo, são os erros estratégicos de Paulo Guedes.

Ao aceitar o convite de Bolsonaro, Guedes não se contentou simplesmente em ser a principal referência econômica do governo; ele exigiu superpoderes, colocando sob a sua guarda nada menos do que quatro antigos ministérios: Fazenda, Indústria e Comércio, Planejamento e Trabalho.

Mas não foi só: o superministro também fez questão de não trazer para sua equipe ninguém que pudesse lhe fazer sombra. Além dos amigos Chicago oldies, os postos-chave de seu ministério foram ocupados por jovens servidores de carreira (que embora competentes, não tinham peso político) ou seus antigos colaboradores do setor privado. A cada entrevista de Bolsonaro, Guedes parecia inflar ao ser chamado de “Posto Ipiranga” - aquele a quem todos recorrem em qualquer necessidade, como no comercial da TV.

Houve um tempo em que o brasileiro razoavelmente bem informado sabia recitar de cor a escalação da equipe econômica. Além dos ministros da Fazenda e do Planejamento, o presidente do Banco Central e os titulares das Secretarias do Tesouro e da Receita também assumiam publicamente o papel de guardiões da austeridade fiscal, transmitindo aos políticos, ao mercado e à população as diretrizes do governo.

Na época de ouro em que conseguimos manter anos seguidos de superávits acima de 3% do PIB, o time incluía, no segundo mandato de FHC, Pedro Malan (Fazenda), Martus Tavares (Planejamento), Armínio Fraga (Banco Central), Everardo Maciel (Receita) e Fábio Barbosa (Tesouro). No primeiro mandato de Lula, mesmo com um político à frente da Fazenda (Antonio Palocci) e um economista heterodoxo no Planejamento (Guido Mantega), as contas foram mantidas em dia com Henrique Meirelles no Banco Central, Joaquim Levy no Tesouro, Marcos Lisboa na Secretaria de Política Econômica e Jorge Rachid na Receita Federal.

Hoje em dia é raro encontrar quem saiba dizer, sem utilizar o Google, o nome dos secretários atuais do Tesouro ou da Receita Federal, pois seu superior não autoriza ninguém a falar em seu nome. Por não ser onipresente e onisciente, e sem contar com um time de peso que publicamente defenda suas propostas, Guedes acabou isolado.

Com um ministério tão grande nas mãos, os problemas de coordenação não tardaram a aparecer, como atestam as sucessivas promessas furadas de entrega de reformas e privatizações. Outros erros capitais foram desprezar a cultura política de Brasília, promovendo atritos desnecessários com o Congresso, e subestimar a complexidade do funcionamento da máquina pública federal - que o digam Salim Mattar e Paulo Uebel, que debandaram em agosto de 2020.

Mesmo antes da pandemia, a demora em entregar crescimento e desemprego baixo já incomodava Bolsonaro e seus ministros da ala militar e desenvolvimentista, todos de olho em 2022. Não chegam a ser surpresa, portanto, os rumores de uma iminente divisão do ministério da Economia. Quando as coisas começam a ir mal, uma pasta tão grande desperta a cobiça alheia, e o Centrão está à espreita.

Guedes desprezou os conselhos de Filipe II da Macedônia e do Homem Aranha. Sem entender que é preciso “dividir para governar” e que “grandes poderes exigem grandes responsabilidades”, a cada dia se torna menor e dispensável. Virou um Chicago loser.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Vinicius Torres Freire: Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).

Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.

Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.

A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?

Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.

Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?

Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?


Míriam Leitão: Risco ao capital e à democracia

A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.

Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.

Bolsonaro fez atos explícitos de populismo fiscal e de intervencionismo. Numa penada, aumentou em quase R$ 5 bilhões as despesas públicas, eliminando impostos sobre combustíveis fósseis, quando a equipe tenta cortar R$ 10 bilhões de um orçamento exaurido e ainda não aprovado. Paulo Guedes terá que fazer mais um truque ilusionista para fingir que cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A pandemia exigiu gastos extras e suspendeu limites legais, mas o presidente tem cometido crime de responsabilidade fiscal e não é por aumentar gastos na saúde. Ele ignora a tragédia sanitária que atinge o país. A gestão de Bolsonaro elevou o número de mortes do Brasil.

Os tumultos criados pelo presidente e seus histriônicos radicais feriram a economia e a política. Por eles, o país desperdiçou mais uma semana que deveria ter sido dedicada à luta por saúde, auxílio aos mais pobres e reajuste das contas públicas. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que falou em dar uma surra nos ministros do Supremo, “até o gato miar”, está fora do jogo. A Câmara aprovou o ato do STF de prendê-lo. Ele provavelmente será cassado.

Silveira ameaçou o Supremo. Bolsonaro, também. Silveira defendeu o AI-5. Bolsonaro, também. Silveira é truculento e ameaça os adversários de eliminação física. Bolsonaro, também. Silveira praticou crimes na internet. Bolsonaro, também. Silveira foi preso. Bolsonaro governa o país. Do posto, conspira contra a democracia, a economia e a saúde dos brasileiros. Na sexta-feira, ele, de chapéu de couro, fazia demagogias no Nordeste. No sábado, numa escola militar, falou uma frase dúbia sobre o regime democrático.

A Petrobras será presidida pelo general Silva Luna, o Conselho pelo Almirante Leal Ferreira e o ministro da área é o almirante Bento Albuquerque. Eles agora farão juras à economia de mercado e à governança da empresa. Será mentira. Alguns do mercado vão fingir acreditar. Há muita liquidez na economia global procurando ativos.

No Alto Comando do Exército, em 2018, quando o general Villas Bôas postou as mensagens para intimidar o Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, estavam o general Eduardo Ramos, o general Braga Netto, o general Fernando Azevedo e Silva. O próprio Villas Bôas, mesmo no momento final de uma doença degenerativa, ajudou a História ao informar que os integrantes do Alto Comando foram ouvidos. O general Silva Luna era ministro da Defesa e também soube. Perguntei ao atual ministro da Defesa, Azevedo e Silva, através da sua assessoria, se ele havia visto a nota. “O ministro não vai comentar. O conteúdo do livro cabe ao seu autor”, respondeu o Ministério.

A governança da Petrobras foi atacada por Bolsonaro para impor o controle de preços. Nem isso contentará os caminhoneiros. Bolsonaro é inimigo do liberalismo econômico e derrubou o valor da ação da Petrobras. Mas isso se recupera no futuro. O bem mais caro que Bolsonaro ameaça é a democracia. O país sabe o alto preço que pagou por ela.


Adriana Fernandes: Discurso de Bolsonaro de que não haveria intervenção na Petrobrás cai por terra

Que país quebrado pode abdicar desse dinheiro e com tanto a fazer na pandemia?

Foi pelo Facebook que o presidente Jair Bolsonaro demitiu Roberto Castello Branco do comando da Petrobrás, com a indicação do general Joaquim Silva e Luna como novo presidente da companhia.

A troca abre mais uma crise e consolida um movimento de forte intervenção do presidente na estatal para segurar, na marra, o preço dos combustíveis. Reforça também a política de populismo fiscal para a qual seu governo caminha a passos largos, para garantir a sua reeleição em 2022.

O discurso do presidente de que não haveria intervenção nos preços da Petrobrás, feito há uma semana, quando anunciou um projeto de lei para alterar a tributação do ICMS dos governadores e que tanto agradou o mercado financeiro, cai por terra.

De forma traumática, o ministro da EconomiaPaulo Guedes, perde mais um expoente do grupo que arregimentou e que estava ao seu lado durante a eleição do presidente e na transição de governo no final de 2018. Castello Branco foi indicação do ministro, de quem é amigo de décadas.

O ministro perde Castello Branco na equipe e perde também mais um alicerce da política econômica que se comprometeu a fazer e que previa carta branca para a companhia atuar, sem intervenção nos preços, prática que Guedes tanto condenou no governo Dilma Rousseff.

A decisão do presidente de zerar os tributos federais no diesel e levar a Receita Federal a perder mais de R$ 3 bilhões de arrecadação em apenas dois meses desmonta também a bandeira de ajuste fiscal de Guedes pregada no Congresso.

A equipe econômica exige corte de despesas como contrapartida para renovar o auxílio emergencial nessa nova fase mais aguda da pandemia da covid-19. Enquanto o presidente, na base da canetada, mandou reduzir a tributação do diesel e quer segurar na marra o preço do combustível pela via das contas públicas para atender os caminhoneiros.

Se já estava muito difícil conseguir aprovar no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com essas contrapartidas fiscais, agora o cenário fica mais turvo.

Que país quebrado, como assim classificou o próprio presidente, pode abdicar desse dinheiro em apenas 60 dias e com tanto a fazer na pandemia? Não faz nenhum sentido o acordo do ministro com o presidente diante desse cenário atual de negociação no Congresso. Não há coerência. 

O mais complicado é o governo permanecer calado, sem apontar o caminho de como implementará a medida. Não respondeu à mais simples das perguntas: afinal, quem pagará a conta?

Não há detalhes porque, a depender da vontade do presidente, a desoneração de tributos pode ser feita passando um trator por cima da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige compensação para a perda de arrecadação, via aumento de impostos ou corte de despesas. Tratorar a LRF é o que quer o presidente.

A área jurídica está quebrando a cabeça para entregar esse modelito ao presidente. E os técnicos do Ministério da Economia tentando encontrar um jeito para atender Bolsonaro sem ferir a LRF. Ou seja, fazendo a compensação.

Se não fizer essa compensação e passar por cima da LRF, Guedes vai perder integrantes da sua própria equipe no Ministério da Economia.

O problema da alta dos preços dos combustíveis que tanto incomoda o presidente Bolsonaro não é muito diferente do enfrentado pelos últimos presidentes. 

Em artigo recente, o economista Manoel Pires, do Ibre,  aponta que a elevada volatilidade do preço internacional do petróleo desde 2008 acentuou o problema. Pires ressalta que, com a elevada volatilidade, o governo Dilma 2011 iniciou uma política discricionária de reajustes e, em 2012, zerou a Cide Combustíveis para reduzir a defasagem do preço. A desoneração custou R$ 5 bilhões por ano.

O pacote dos caminhoneiros de Temer teve um custo total de R$ 13,5 bilhões. Houve ainda uma tentativa frustrada de tabelar o valor do frete que parou no Supremo.

"O que esses episódios estão mostrando é que esse problema virou um tema de política econômica e deve ser tratado como tal", diz o economista do Ibre. Não cabe mais improviso toda hora que os caminhoneiros ameaçam parar o País, boa parte deles apoiadores de Bolsonaro.