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Maria Hermínia Tavares: Não é o que eles dizem: o piso de gastos em educação e saúde e seus críticos

Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades

Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.

A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.

Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.

Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.

Já a vinculação obrigatória de recursos à educação é anterior aos trabalhos da Constituinte: foi introduzida pelas chamadas emendas Passos Porto (EC 23/83) e João Calmon (EC 24/83), ambas visando assegurar recursos permanentes ao sistema público de ensino, nos três níveis da Federação. Incorporada à Carta, a vinculação foi aprimorada com a criação do Fundef em 1996 e sua transformação em Fundeb, dez anos depois. A meta sempre foi assegurar financiamento adequado e prover estímulos para reduzir o vergonhoso atraso educacional brasileiro.

Os pisos de gasto em saúde e educação destinaram-se a proteger as duas áreas da inevitável disputa por recursos quando as demandas são muitas; os interesses, divergentes; e o dinheiro, curto. Ou seja, uma forma de dizer que aquelas devem ser políticas de Estado, com estabilidade e permanência asseguradas, acima —e apesar— das intenções dos governantes de turno.

*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Ribamar Oliveira: O novo marco fiscal da PEC 186

Governo vai perseguir uma trajetória para a dívida pública

Se o substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, apresentado pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), for aprovado, o teto de gastos da União, instituído pela emenda 95/2016, terá função complementar e poderá, no futuro, ser suavizado. Na verdade, a proposta institui um novo marco fiscal para a União, no qual o governo federal irá perseguir uma trajetória de convergência do montante da dívida pública para um limite definido em lei.

Um modelo semelhante é utilizado pela Suécia. Lá, o governo adota uma política fiscal que tem um limite para a dívida pública bruta, uma meta de resultado nominal e um teto para gastos de base móvel, que pode ser ajustado depois de um determinado período. Tanto o teto como a meta fiscal são fixados para manter a dívida bruta na trajetória pré-definida. Há uma série de outros detalhes que não cabe aqui especificar.

O fato é que os elementos básicos desse modelo estão presentes na PEC 186. O inciso VIII do artigo 163, que está sendo acrescentado na Constituição pela PEC, estabelece que uma lei complementar definirá a trajetória de convergência do montante da dívida com limites especificados em legislação. Não esclarece, no entanto, se o conceito a ser utilizado é o da dívida bruta ou líquida.

É importante observar que o modelo não propõe a fixação de um limite para a dívida da União. Um limite está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000), mas nunca foi definido pelo Senado, pois o governo federal sempre foi contrário à ideia. Só há limites para Estados e municípios.

A PEC 186 estabelece que o governo vai propor uma trajetória para a dívida pública a ser alcançada durante um certo período de tempo. A trajetória terá que ser aprovada pelo Congresso Nacional. Acreditava-se, na área técnica, antes da pandemia da covid-19, que a dívida bruta do setor público brasileiro deveria convergir para 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Naquela época, ela estava próxima de 74% do PIB. No pós-pandemia, a meta pode ser, por exemplo, 60% do PIB, que seria alcançada em um determinado período de tempo.

O Brasil poderá adotar um sistema de bandas de flutuação para a dívida, com um limite superior e outro inferior, semelhante ao adotado no regime de metas de inflação utilizado pelo Banco Central. Na Suécia, se a dívida se desviar, para cima ou para baixo da trajetória definida, mais de cinco pontos percentuais do PIB, o governo é obrigado a apresentar uma comunicação ao Parlamento, explicando a causa do desvio e apresentando um plano de como pretende retornar a dívida para o patamar determinado.

A meta de resultado primário das contas públicas terá que ser compatível com a trajetória para a dívida, prevê a PEC 186. Talvez o resultado possa ser fixado para vários anos, como ocorre na Suécia. Assim, o Brasil poderia fazer um planejamento de médio prazo de suas contas.

A lei complementar que vai regulamentar esta questão poderá definir medidas de ajuste fiscal, suspensões e vedações para que a trajetória da dívida seja alcançada. A PEC diz que a União, os Estados e os municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade. E que a elaboração e execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.

Para a União, a PEC cria dois gatilhos que disparam as medidas de ajuste fiscal, com o objetivo de preservar o teto de gastos. Em situação normal, o governo pode adotar medidas de contenção toda vez que a despesa obrigatória primária, submetida ao teto de gastos, superar 95% da despesa primária total. Em situação de calamidade pública, reconhecida pelo Congresso, o ajuste deve ser realizado para compensar os gastos extras do período.

Se a PEC 186 for aprovada e o novo marco fiscal for colocado em prática, ficará mais fácil para o próximo governo adotar um teto de gasto mais flexível. A Suécia, por exemplo, define um teto para um período de quatro anos, sendo que o valor fixado para o terceiro ano é considerado impositivo. Para o quarto ano, o valor é apenas indicativo. Os novos cenários econômicos são anualmente analisados e, com base neles, o governo define o teto de gastos para outro período de quatro anos.

Outro ponto da PEC está relacionado com a sustentabilidade da dívida. Pela primeira vez será inscrito no texto constitucional que, na promoção e na efetivação dos direitos sociais, deve ser observado “o equilíbrio fiscal intergeracional”. A preocupação aqui, ao que parece, está relacionada com as decisões do Poder Judiciário, quando julga questões relativas a direitos individuais e coletivos.QuestionamentosA PEC determina que o presidente da República encaminhe, em até seis meses após a promulgação da emenda constitucional, um plano de redução gradual e linear de incentivos e benefícios de natureza tributária. Há, pelo menos, três questionamentos que precisam ser feitos.

O primeiro é saber por que o senador Bittar manteve este comando na PEC 186, uma vez que, neste momento, o Congresso discute a reforma tributária. Existe, inclusive, uma proposta do governo de unificação do PIS e da Cofins, com a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Até aqui a estratégia do governo era deixar a redução dos incentivos para depois da reforma, mesmo porque a mudança dos tributos iria permitir a eliminação de vários deles. A manutenção deste artigo na PEC pode indicar que o governo tenha desistido da reforma.

A segunda questão é que o substitutivo de Bittar fala em “redução linear” dos incentivos e benefícios. É difícil imaginar como isso poderá ser feito. O terceiro questionamento é a PEC excluir da redução os incentivos à Zona Franca de Manaus, a desoneração da cesta básica e os benefícios tributários às micro e pequenas empresas, por meio do Simples Nacional, que é responsável pelo maior volume do gasto tributário. Não dá para reduzir o gasto de 4% para 2% do PIB com o que sobra, como dispõe a PEC.


Celso Ming: Estratégia populista e falso liberalismo

A intervenção de Bolsonaro na Petrobrás é mais uma das inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022

Algumas decisões do presidente Jair Bolsonaro podem passar a impressão de que a estratégia continua sendo de política econômica liberal. Mas é grave engano.

A intervenção desastrada do presidente na Petrobrás produziu enormes estragos. A principal divergência de Bolsonaro com o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, talvez não tenha sido a questão dos preços dos combustíveis nem a política adotada, mas de falta de afinidade visceral, do tipo “não vou com tua cara, e pronto”. Mesmo se fosse por aí, não seria preciso tanta truculência. 

A substituição do presidente da Petrobrás poderia ter sido feita com jeito. Afinal, o mandato de Castello Branco terminaria em março. Se o chefe dos acionistas majoritários quisesse trocar o comando da Petrobrás, como se viu que quis, teria bastado acionar os mecanismos ordinários previstos para isso sem a turbulência que se viu depois.

De todo modo, Bolsonaro parece ter sentido a necessidade de olhar para o outro prato da balança. Primeiramente, tratou de afagar a cabeça do ministro da EconomiaPaulo Guedes, que vinha sendo ignorado. Na terça-feira, trabalhou para dar andamento no projeto de privatização da Eletrobrás – outro item da agenda liberal. 

Nesta quarta-feira, além de sancionar a lei de autonomia do Banco Central, pleito que não pode ser considerado populista, o governo também encaminhou ao Congresso o projeto de privatização dos Correios. 

Há alguns meses, o governo mudou sua política em relação à China. A hostilidade ostensiva aos produtos chineses, manifestada inicialmente na definição das regras da conexão 5G, foi trocada por atitude mais pragmática.

vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, teve há alguns meses o veto do presidente por ser “vacina da China e do governador João Doria”.  Mas, diante da necessidade de iniciar a vacinação contra a covid-19 no País, o Ministério da Saúde acabou autorizado a comprá-la. Pesaram nessa mudança de postura os interesses do agronegócio, o setor mais dinâmico da economia brasileira.

Mas essa aparente correção de rotas não significa reconversão a uma política econômica de equilíbrio fiscal e de apoio às reformas, onde prevalecessem a racionalidade das decisões e os princípios da livre concorrência.

Bolsonaro deu inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022, custe o que custar. Para isso, ele precisa que a economia supere o atual marasmo e os 14 milhões de desempregados. Depois de ter feito os acordos já conhecidos com o Centrão, pretende conseguir a virada da economia com distribuição de auxílios sociais sem contrapartida de corte de despesas, com desoneração dos combustíveis também sem contrapartida fiscal, com preços artificiais da energia elétrica e com uma espécie de bolsa subsidiada aos caminhoneiros.

Ele também afirma que o dólar acima de R$ 4,50 não atende a seus objetivos. Mas não disse como conseguiria derrubá-lo dos níveis atuais. Será esse seu próximo alvo?


Adriana Fernandes: O 'assopra' do presidente a Guedes tem tudo para virar um 'morde' logo mais

Ministro recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos

O presidente Jair Bolsonaro elevou de patamar o jogo de morde e assopra com o ministro da EconomiaPaulo Guedes, após o estopim provocado pela demissão do presidente da Petrobrás, as ameaças de mais intervenção na economia e o impacto de tudo isso no mercado financeiro.

Guedes recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos. Segue, portanto, pressionado pelo Palácio do Planalto, ministros próximos do presidente e pelos aliados no Congresso.

O Ministério da Economia pode até dizer que o Guedes fez do limão uma limonada ao conseguir que o presidente fosse com ele numa caravana até o Congresso para entregar o texto da MP de privatização da Eletrobrás numa estratégia bem encenada que recebeu “aplausos” do mercado financeiro após o “combo” que levou ao tombo das ações da Petrobrás, Eletrobrás, Banco do Brasil, alta de juros, perda de confiança e disparada do dólar.

Esse é um jogo em que ninguém é enganado, muito menos o mercado que passa a mão na cabeça no governo e ajuda a desorganizar as coisas. O Congresso não é lugar de "protocolo" de projetos, em que se tem uma resposta passados X dias úteis. Lá, o governo precisa trabalhar pela aprovação de suas propostas.

O teste final do apoio a Guedes não será com a Eletrobrás. Tampouco com a privatização ou abertura de capital dos Correios, que entrou novamente em cena como resposta aos desdobramentos da troca na Petrobrás.

A prova de fogo para o ministro no cargo também pode até não ser a votação da PEC fiscal para a concessão do auxílio emergencial, que foi apresentada com medidas fiscais.

A equipe do Ministério da Economia não abre mão desse reforço no controle dos gastos públicos e sobe o tom nos bastidores para impedir o fatiamento do texto no Senado, que quer aprovar apenas a parte do auxílio na proposta. “Não vamos ceder a isso”, afirmam em coro. A Câmara também quer o mesmo, como revelou reportagem do Estadão.

A tendência, porém, é de aprovação de uma PEC desidratada porque os parlamentares alegam urgência para o auxílio. Um movimento esperado diante do fato de que a equipe econômica quer colocar um conjunto de medidas muito grande, além do bode na sala do fim do piso constitucional para aplicação de recursos orçamentários em saúde e educação. Não passa, mas serve para desviar a atenção.  

A valentia da equipe econômica em não querer ceder na PEC mostra resiliência, mas o seu sucesso dependerá de até onde o presidente Jair Bolsonaro estará disposto, na prática, a dar apoio à PEC “cheia”: auxílio mais contrapartidas fiscais.

Bolsonaro defendeu o auxílio, mas até esse momento não deu uma palavra contundente em defesa da aprovação das contrapartidas fiscais que lotaram o parecer do senador Márcio Bittar. Nesta quarta-feira, repetiu que é preciso ter responsabilidade fiscal. Sem ação, de nada valem essas palavras.

Se o presidente não entrar em campo, mesmo que só nos bastidores, o ministro vai perder mais essa parada e terá que apostar num compromisso dos parlamentares de aprovar uma segunda PEC até o final do segundo semestre com o resto das medidas.

Essa segunda PEC foi defendida por lideranças antes da divulgação do parecer de Bittar, mas Guedes e sua equipe apostaram no tudo ou nada com o temor de repetir o que ocorreu com a PEC paralela, resultado da divisão da reforma da Previdência no Senado e que foi abandonada mais tarde. A inclusão na PEC de medidas polêmicas, jabutis e afins só dificultou ainda mais a tramitação. Não dá para querer abarcar o mundo numa situação de emergência.

Mesmo como todos os reveses, o pior cenário para o ministro poderá se dar mesmo com uma eventual decisão do presidente de demitir secretários especiais da pasta e dividir o ministério na reforma ministerial. Tem muita gente querendo recriar os ministérios do Planejamento, Indústria e Comércio, além de Previdência e Trabalho.

Guedes já disse da boca da fora que “podem ficar com a Previdência porque já teve a reforma”, mas não é bem assim. A gota d'água para ele poderá ser mesmo o fatiamento do Ministério da Economia e a demissão pelo presidente de seus auxiliares.

O que se sabe após o episódio da Petrobrás é que as mudanças não vão parar por aí. É só o começo no que está sendo chamado no Palácio do Planalto como “ajuste de estrutura”. O "assopra" agora do presidente, que disse que Guedes é uma âncora para o governo, tem tudo para virar um "morde" logo mais, a depender do que se viu até aqui.


Maria Cristina Fernandes: Populismo fiscal de Bolsonaro embaralha jogo

Bolsonaro não cairá de podre, é o país que pode apodrecer

Ao mergulhar no populismo dos combustíveis e tarifas, o presidente da República faz uma aposta que não apenas o posiciona no jogo de 2022 como desmonta o daqueles que se apresentam para enfrentá-lo.

Na tentativa de forçar a polarização com o PT, Jair Bolsonaro mexeu-se para abraçar a pauta do adversário. E foi por ele abraçado. A ordem é “não importa a cor do gato, o que importa é que mate o rato”.

Nessa linha, os sindicatos de petroleiros comemoraram a derrubada do ex-presidente da Petrobras, Castello Branco, e alimentam expectativas, correntes também nos meios militares, de que a BR Distribuidora venha a ser reestatizada e a venda de refinarias, suspensa

O tom com o qual Jair Bolsonaro queixou-se publicamente do trabalho remoto de Castello Branco, não se diferencia muito daquele que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem usado, internamente, para se queixar dos dirigentes sindicais que evitam se expor às aglomerações da pandemia.

Se Bolsonaro se move para roubar a bandeira do populismo fiscal, como se diferenciaria do PT? Com seu programa “Armas para Todos” e com uma pauta radicalizada nos costumes, acelerando a volta do Brasil ao estágio pré-civilizatório.

O jogo é um campo minado para todo o resto. Um aumento médio de 30% nos combustíveis em menos de dois meses do ano afeta não apenas a base bolsonarista de caminhoneiros e produtores rurais, mas precarizados de toda ordem que hoje ganham a vida em aplicativos de transporte. É discurso para o campo e a cidade.

Não é à toa que o enfrentamento deste discurso desnorteie a oposição. Abraçar uma política de preços 100% ditada pelo mercado é um suicídio eleitoral. Atacá-la à la Bolsonaro também o é. Uma coisa é endividar o país quando se tem o poder nas mãos de implementar políticas que gerem crescimento capaz de pagar essa dívida.

Outra coisa é defender uma política de preços que passe por endividamento acelerado quando não se tem o poder nas mãos. Cenário que se agrava quando o presidente de plantão não tem compromisso com resultados, só com a tentativa. E piora em proporções estratosféricas quando o sócio majoritário é o Centrão.

O bloco quer acomodar esse avanço populista de Bolsonaro desamarrando os limites fiscais e destruindo não apenas as vinculações orçamentárias que garantem alguma chance de resgate da dívida social do país, como é o caso dos recursos da saúde e da educação.

O Congresso avança também para desmantelar o próprio Estado, como é o caso da desvinculação dos recursos que garantem a autonomia da Receita, contida no substitutivo da PEC emergencial. Sem verba vinculada, os auditores teriam que negociar todos os anos com o Congresso. Quais serão as próximas vítimas, o Judiciário, a Polícia Federal? Vão fazer fila para pedir dinheiro àqueles a quem devem vigiar?

O Centrão, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deixou claro na “Live do Valor “, avança até para a intermediação dos recursos para as prefeituras. Quer eliminar a Caixa Econômica Federal, onde os critérios de liberação são mais rígidos, como agente dessa intermediação.

O ideal para o Centrão é que as transferências sejam feitas diretamente dos ministérios para as prefeituras, como aconteceu no repasse de emendas que marcou a eleição das Mesas. É um mecanismo por onde fica mais fácil operar as rachadinhas entre prefeitos e parlamentares.

É um golpe por dentro das instituições que ameaça desmontar a Constituição. E conta, no Judiciário, com atores bem postos para prestar serviços à sociedade Bolsonaro-Centrão, como se viu na invalidação das provas contra o senador Flávio Bolsonaro, mas não apenas.

As tentativas do presidente do Supremo, Luiz Fux, de estabelecer pontes com o Senado que lhe permitissem furar o cerco que lhe é imposto pela trinca Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, esbarraram na eleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

O ensaio de aproximação entre Fux e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fracassou pela determinação deste em delegar integralmente as questões relativas ao sistema de justiça ao presidente da CCJ.

Sem pontes com o Congresso, os ministros que ainda buscam preservar os alicerces do controle da corrupção podem se tornar cada vez mais reféns das investidas do desmonte da Lava-Jato. Há expectativas de que, a requisição de informações do TCU sobre o registro de ligações de integrantes da operação, encontre ministros do Supremo do outro lado da linha.

A sociedade entre Bolsonaro, Centrão e Judiciário é o que faz com que o populismo fiscal do atual presidente seja muito mais grave do que aquele observado no governo Dilma Rousseff. A ex-presidente foi derrubada pela aliança de um mercado incomodado com a gastança e um Centrão/Supremo reativo à inação do governo frente ao avanço do programa “Lama para Todos”, patrocinado por juízes, procuradores e policiais federais.

O que torna a situação de hoje mais grave não é a rouquidão do 'Fora Bolsonaro'. Pior é a interdição de alianças que projetem alternativas competitivas para 2022, a começar pela aproximação entre esquerda e centro

Trata-se de uma corrida de obstáculos. A começar pela modulação programática. A esquerda se sente desobrigada de fazer concessões liberais ante um mercado que jogou na retranca quando seus presidentes estiveram no poder.

E ainda investe, ao lado do Centrão, na desidratação das instituições de controle. Justifica-se com o argumento de que, ao longo de seus governos, atuou para fortalecê-las e recebeu, como retribuição, atuações desmedidas contra suas lideranças.

Entre as lideranças de centro, a visão não é menos embaçada. Consumidos na fulanização de suas vaidades, estão mais interessados em comer pelas beiradas a aliança de Bolsonaro com o Centrão do que em lançar pontes com a esquerda.

Entre aqueles que têm chances de projetar um futuro para o país, no centro e à esquerda, a crença majoritária ainda é que o bolsonarismo cairá de podre. Não dá sinais de que cairá. Antes disso, é o país que corre o risco de apodrecer.


William Waack: Homem convicto

No peculiar mundo político de Bolsonaro pululam as conspirações

Jair Bolsonaro é um homem de convicção. Não se trata de convicção sobre princípios de política ou de economia, mas, sim, da convicção trazida pela percepção de que ele, presidente da República, está perdendo instrumentos de poder. Como o de demitir chefes de estatais, ou de exigir deles obediência ao que Bolsonaro considere melhores políticas – incluindo fechamento de agências do Banco do Brasil ou formação de preços de combustíveis

A convicção de Bolsonaro baseia-se na forte crença de que há sempre conspirações em curso para tirá-lo do poder. Esses processos mentais, não importa a opinião médica que se tenha deles, são fatores importantes para se entender a motivação e as decisões do presidente brasileiro, segundo relatos em “off” de pessoas que acompanharam diretamente como chegou a recentes posturas políticas. No caso da Petrobrás, por exemplo, o presidente acha que a conspiração foi armada via aumentos de preços do diesel para irritar os caminhoneiros que, por sua vez, têm a capacidade de paralisar o País e criar o clima de caos social para prejudicá-lo. 

O mesmo ocorreu no caso do Banco do Brasil. O fechamento de agências, entende Bolsonaro, foi urdido com o intuito de prejudicá-lo entre o eleitorado de pequenas cidades e a pressão que elas exercem sobre deputados de várias regiões. Mesmo a aprovação da autonomia do Banco Central (algo que ele defendeu em público durante a campanha) caiu sob a mesma interpretação: Bolsonaro acha que lhe foi retirado um poder efetivo, o de mandar na taxa de juros. 

Auxiliares têm se esforçado em explicar ao presidente que a formação de preços no setor de energia, a política de pessoal em instituições financeiras públicas e a fixação da taxa de referência de juros obedecem a mecanismos complexos e a fatores entre os quais alguns (como o cenário internacional de juros e preços de commodities) escapam a qualquer controle brasileiro. Mas o presidente, segundo relatos confiáveis, não quer ouvir falar disso. 

O mundo político e pessoal de Bolsonaro, de acordo com interlocutores frequentes, é completamente dominado pelo empenho pela reeleição e a luta para sobreviver às conspirações para tirá-lo do poder e aplainar a volta de Lula. Frases ditas pelo ex-presidente petista em entrevistas recentes, como a importância de se preservar a atuação do Executivo sobre a Petrobrás, são mencionadas por Bolsonaro em conversas privadas como “prova” do que diz ser necessário manter como “instrumentos de poder”. 

A crença em conspirações tramadas por adversários estava presente também na maneira como Bolsonaro reagiu à pandemia. Depois de acreditar que o alarme sobre o vírus não passava de tentativa de desestabilização, o presidente passou a enxergar nas medidas restritivas adotadas por prefeitos e governadores apenas uma tática política de indispor a população contra o poder central. Ele acredita, de fato, que seus adversários continuam tentando criar uma situação de baderna à la Chile por meio do desemprego, miséria e fome. E o que é pior: com o dinheiro que ele, Bolsonaro, está disponibilizando via ajudas emergenciais. 

Quem conversa muito com o presidente afirma que ele só pensa em reeleição e submete qualquer outro tipo de consideração – como “intervencionismo” ou “liberalismo” na política econômica – ao cálculo político-eleitoral de prazo curtíssimo. É o que o faz defender posturas aparentemente contraditórias. Intervir na formação de preços de combustíveis (e a ação vai se estender também ao setor elétrico) fez desabar os mercados, dos quais dependem os humores de investidores, mas energizou seu núcleo eleitoral duro. 

O mesmo vale para a ajuda emergencial imediata, âmbito da ação política na qual Bolsonaro conta com as fortes simpatias do Centrão e sua prática de fazer agrados com o dinheiro do contribuinte. Nas complexas discussões sobre ajuda emergencial e teto de gastos Bolsonaro julga ter chegado ao fundo da questão. As preocupações com a situação fiscal são tidas pelo presidente como pretextos de cínicos gananciosos que não entendem nada de política. “Tudo bem que a tua turma ganha dinheiro, PG”, já disse Bolsonaro mais de uma vez a Paulo Guedes, “mas não me tira poder”. 

Ainda que seja apenas uma, Bolsonaro é um homem de convicção.


Elio Gaspari: A radioatividade do capitão

Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada

Quando o senador Tasso Jereissati disse que até a eleição do ano que vem “as instituições precisam ser fortes, trincar os dentes”, ele sabia do que estava falando. Semanas depois dessa advertência, o capitão fritou de forma espalhafatosa o presidente da Petrobras, com as consequências que são conhecidas.

Como escreveu o economista Gustavo Franco: “Boa tarde, Venezuela”. Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada. Ambos foram militares indisciplinados, ambos mantiveram relações agrestes com as instituições e ambos encantaram-se com o apoio de modalidades milicianas. Se Chávez foi para a esquerda, esse oportunismo vem a ser irrelevante. Nos dois casos, a mola propulsora era a busca e a manutenção do poder.

Com a fritura de Roberto Castello Branco, o capitão mostrou sua forma rombuda de governar. Na sua sala de troféus estão as cabeças de Gustavo Bebianno, o advogado que se juntou a ele quando os bolsonaristas cabiam numa Kombi. (Foi Bebianno quem levou Paulo Guedes ao deputado.) Ao lado dessa cabeça estão as de Sergio Moro, Luiz Henrique Mandetta e a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Dispensar colaboradores faz parte do jogo, e o general francês Charles De Gaulle ensinou que a ingratidão é um dever do governante. Espalhafato e falta de argumentos racionais nada têm a ver com isso, sobretudo quando se vê o equilíbrio com que Bolsonaro e seus filhos tratam o miliciano Fabrício Queiroz.

Seria injusto, contudo, atribuir apenas à radioatividade de Bolsonaro o desfecho das crises que alimenta. Todos os colaboradores que dispensou eram maiores de idade quando foram para o aglomerado contagiante de seu governo, inclusive o superministro Paulo Guedes, que lá continua, de máscara.

O ectoplasma que se denomina “mercado” mostra-se perplexo com a conduta de seu capitão. Há hipocrisia nisso. Enquanto fritava Castello Branco, Bolsonaro nomeava Paulo Skaf, presidente da Fiesp, para o Conselho da República. O andar de cima acreditou na própria esperteza e deu-se mal. Esqueceram que, em 1999, o deputado Jair Bolsonaro defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e o fechamento do Congresso.

Frias, a alma da ‘Folha’

Boa parte da alma dos jornais vem da alma de seus donos. A “Folha de S. Paulo” comemorou seu primeiro centenário e, num pequeno e delicado artigo, a jornalista Ana Cristina Rosa retratou a alma de Octávio Frias de Oliveira, seu dono de 1962 a 2007. Quando Frias morreu, a empreitada ficou com seus filhos.

A história contada por Ana Cristina Rosa diz tudo. Há 20 anos, ela era uma jovem jornalista e, ansiosa e insegura, foi entrevistar o Frias (ele tinha horror a que o chamassem de “senhor”). Na saída, presenteou a moça com um livro e, na dedicatória, chamou-a de “terrível inquisidora”.

Ela agradeceu:

— Esse seu ‘terrível’ tem duplo sentido, mas vou tomar como elogio. Obrigada. Ah, e vou guardar bem este livro para apresentar aqui na ‘Folha’ quando eu precisar de emprego.

Frias respondeu:

— O sentido é único e está bem claro. Quanto ao emprego, é seu quando quiser. E não precisa trazer o livro.

Esse era Frias. Gentil, abertamente afetuoso e, acima de tudo, atento. Sua alma ficou no jornal.


Monica de Bolle: Uma proposta para ressuscitar o auxílio emergencial

O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas atingidas que precisam trezentos reais para ontem

De acordo com um estudo recente de pesquisadores da Universidade de São Paulo liderado pela economista Laura Carvalho, o auxílio emergencial impediu que a economia brasileira sofresse retração de dois dígitos em 2020. Muitos de nós já havíamos aventado que isso aconteceria antes mesmo de sua adoção. Segundo o estudo, os efeitos do auxílio emergencial foram canalizados de várias maneiras, em particular devido ao apoio ao consumo e à consequente sustentação da arrecadação.

Conforme escrevi ao longo de vários meses para veículos distintos, era mesmo de se esperar que o auxílio, assim como os programas de renda básica, tivesse esse efeito. Afinal, trata-se de um programa de transferência direta de renda para a população mais pobre, que, por ter menor renda, tende a consumir parcela bem mais elevada do que recebe quando comparada à população mais rica. A razão é óbvia: ricos podem poupar, enquanto os mais pobres não dispõem desse privilégio, tendo de atender às suas necessidades imediatas de subsistência. Em razão disso, o deslocamento de recursos para os mais pobres tem maior capacidade de sustentar setores diversos, evitando mergulhos recessivos mais profundos. Mas essa não é a principal defesa para a reinstituição do auxílio emergencial.

Como já escrevi nesse espaço, o Brasil atravessa o momento mais crítico da pandemia de covid-19, o que significa que estamos muito piores agora do que no início da pandemia. Os sistemas de saúde em diferentes localidades estão sobrecarregados e as pessoas já não têm qualquer tolerância às medidas sanitárias mais restritivas – na verdade, não mostram tolerância sequer com o uso de máscaras para proteger a si e aos outros. O comportamento é compreensível. Há sensação de fadiga em relação à pandemia, lideranças políticas falharam em dar às pessoas o devido senso de alarme, o Presidente da República jamais perdeu oportunidades de minimizar os riscos relacionados à doença e à disseminação do vírus, não houve campanha nacional de informação. Por mais que o comportamento de muitos nos deixe aturdidos, indignados até, muitos estão mal informados e há pessoas que simplesmente não têm alternativa que não seja a de se expor, sobretudo após o término prematuro do auxílio emergencial em dezembro do ano passado. O grande problema é que agora temos novas variantes perigosas do vírus em circulação, duas delas surgidas no Brasil.

Desde que o auxílio emergencial acabou, a pobreza aumentou e dezenas de milhões de pessoas ou não têm o que comer, ou enfrentam situação extrema de insegurança alimentar. No contexto de uma pandemia que tende a se agravar, como é o brasileiro, essa situação é insustentável. Não à toa o governo, após ter dito em diversas ocasiões que não reconsideraria a adoção do auxílio emergencial, parece se preparar para lançar alguma proposta. Como de costume, não há nada de concreto, apenas a situação de urgência. Como de costume, Paulo Guedes prefere lançar balões de ensaio para sentir os humores do mercado financeiro enquanto mais de 80 pessoas padecem de covid-19 por minuto em todo o país.

Um recente balão de ensaio foi a proposta de reerguer o auxílio emergencial por um valor menor do que os 300 reais que vigoraram ao final de 2020 e por tempo limitadíssimo: um par de meses, quiçá três, não mais. A “proposta” viria acompanhada de alguma contrapartida, pois, pela lógica do ministro da Economia e de seus assessores, não se pode aumentar despesas sem que sejam cortados outros gastos. Surgiu, portanto, a ideia contraditória de um auxílio emergencial condicionado. Ora, por definição, qualquer coisa que seja condicionada a outra perde o caráter emergencial, já que a condicionante teria de ser aprovada conjuntamente. O balão de ensaio de Guedes, ou um deles ao menos, previa que a condicionante fosse a PEC Emergencial. Vejam, Proposta de Emenda Constitucional: algo exigente do ponto de vista jurídico-formal e das negociações, ou seja, que exige tempo para que se costurem as adesões no Congresso e para que sejam feitas as análises de sua real constitucionalidade. É claro que tal proposta esvazia por completo a razão de ser de um auxílio emergencial.

O que fazer, então? Penso que o ideal, considerando as altas inflacionárias em 2020, seria retornar ao valor original do benefício, isto é, 600 reais. Mas,temo que, se os grupos da sociedade que tanto lutaram pelo auxílio no ano passado se mobilizem em torno desse valor, tenham de abrir mão do prazo de vigência do programa como contrapartida. E o prazo de vigência do auxílio é de extrema importância pela situação de calamidade que vivemos, o atraso da vacinação, as variantes perigosas disseminadas e a perspectiva de que a pandemia esteja muito longe de acabar – inclusive, já escrevi nesse espaço que transitaremos de uma pandemia aguda para outra crônica. Portanto, minha proposta é a manutenção do valor do benefício em 300 reais, alcançando o mesmo número de pessoas de 2020, isto é, pouco mais de 70 milhões, até o fim do ano. Se esse programa tivesse início em março, custaria nesse ano cerca de 220 bilhões de reais.

Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição

Contudo, há mais. O auxílio não pode terminar abruptamente, como ocorreu no ano passado. O fim abrupto é um choque profundo nos orçamentos familiares, na capacidade de subsistência das pessoas. Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição. Penso ser razoável uma regra de transição de seis meses a partir da data de término do programa, reduzindo gradualmente o benefício. Esse modelo de auxílio emergencial teria, assim, um custo fiscal ainda em 2022.

Como financiá-lo? Com emissão de dívida. Vou repetir: com emissão de dívida. Trata-se de um programa emergencial, que não nos permite o luxo de buscarmos recursos em reformas como a tributária, que demoraria a ser negociada, mesmo com elevações pontuais de impostos, que exigem negociações. Põe-se de pé o auxílio, emite-se dívida para financiá-lo. Mais à frente instituímos os impostos progressivos, particularmente sobre lucros e dividendos, para dar conta dos desequilíbrios fiscais. Repito: estamos falando de uma emergência, não de uma situação normal. Emergência requer pressa. E é preciso lembrar do que disse no início dessa coluna: uma parte do auxílio se autofinancia. O auxílio gera consumo, que gera arrecadação. Vimos isso em 2020, já temos a experiência.

Precisamos de condicionalidades? Tudo o que não precisamos é de condicionalidades. O auxílio emergencial é incondicional por seu caráter de urgência. O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas que precisam desses trezentos reais para ontem. Insistamos para que se resgate um pouco de decência na política pública.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.


Afonso Benites: Ricardo Salles aposta na gestão Arthur Lira na Câmara para avançar mineração na Amazônia

Sob pressão com mudança de poder nos EUA, titular do Meio Ambiente afirma que não está preocupado com possível reforma ministerial sinalizada por Bolsonaro

Ricardo Salles tem oscilado entre altos e baixos no Governo Jair Bolsonaro. Apontado por ambientalistas como um representante de ruralistas no Ministériodo Meio Ambiente e visto por alguns diplomatas como um extremista, Salles tenta buscar uma sobrevida para sua permanência na pasta. Para isso, tenta se apoiar no novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) para emplacar projetos caros ao bolsonarismo, que têm potencial para dizimar regiões florestais e que podem prejudicar a sobrevivência de populações tradicionais. Entre essas propostas estão a regularização fundiária de regiões florestais e a que autoriza a mineração em terras indígenas. Ambas têm tudo para avançar sob a gestão Lira.

A primeira sinalização que o ministro fez para a base de apoio bolsonarista foi a de reclamar que, durante a gestão Rodrigo Maia (DEM-RJ), encerrada no início deste mês, pautas governamentais pouco avançaram. Agora, ele diz estar confiante de que a situação será mais favorável ao Governo. “O que nós vimos ao longo desse período que acabou é que nem sequer as discussões podiam ser feitas. Você mandava um projeto de lei ou até uma medida provisória que caducaram no Congresso, e as discussões não aconteciam”, disse Salles em entrevista ao programa Poder em Foco, do SBT, da qual o EL PAÍS participou como convidado.

Sobre seu apoio ao polêmico projeto de mineração em terras indígenas, o ministro diz que gostaria que houvesse regras claras sobre o tema. “A mineração na Amazônia, seja em terra indígena ou fora da terra indígena, qual é a regra que vai ser imposta? Nós estamos desde a Constituição de 1988 aguardando a solução de uma norma que já previa uma regulamentação e esse assunto vai sendo jogado pra baixo do tapete ano após ano. Então é preciso discutir e encontrar um caminho, a solução não é não ter solução”.

Nesta montanha-russa da política, Salles esteve fortalecido com o presidente mesmo após seguidas altas dos índices de desmatamento e de queimadas na floresta amazônica e no Pantanal ao longo de 2019 e 2020. O prestígio decaiu depois que, em março do ano passado, foi filmado em reunião ministerial dizendo que o Governo deveria aproveitar a pandemia para “passar a boiada” no afrouxamento de regras ambientais. Ficou um tempo fora das manchetes jornalísticas depois desse episódio. Mais recentemente, voltou a ter seu nome em destaque quando Joe Biden venceu Donald Trump na disputa presidencial dos Estados Unidos e vários analistas apostaram que ele seria demitido.

Manteve-se no cargo porque Bolsonaro estava irritado com seu vice, Hamilton Mourão, que comanda o agora esvaziado Conselho Nacional da Amazônia. O presidente queria ter alguém para se contrapor ao general. Mourão é visto por alguns bolsonaristas como uma ameaça a Bolsonaro, que já acumula mais de 60 pedidos de impeachment. Essa queda de braço tem sido vencida pelo ministro, por enquanto, já que os militares subordinados indiretamente ao conselho deixarão de atuar na fiscalização da região amazônica nos próximos dois meses.

O curioso é que o mesmo Centrão que pode dar sobrevida a Salles com o prestígio junto a Lira é o grupo que pode derrubá-lo, em busca de nacos de poder na Esplanada dos Ministério. O nome de Salles juntamente com o do chanceler Ernesto Araújo, volta a ser apontado como um dos próximos a ser demitido numa iminente reforma ministerial realizada para acomodar políticos do fisiológico Centrão. “O cargo é do presidente (...) Eu não estou preocupado se vai ter reforma, se não vai ter reforma”, disse no programa do SBT.

Primeira reunião com representante de Biden

Ao mesmo tempo em que tenta, mais uma vez, se equilibrar no cargo, Salles busca demonstrar institucionalidade e proatividade. No último dia 18, Salles e Ernesto Araújo se reuniram pela primeira vez, por videoconferência, com o secretário de Estado americano, John Kerry. Na ocasião, levaram uma proposta ao homem forte da área ambiental de Biden na qual pediam mais dinheiro para a proteção ambiental. Segundo interlocutores, o Governo americano não discordou da proposta. Apenas sinalizou que alguma compensação financeira poderia ser apresentada nos próximos meses. A proximidade entre Bolsonaro e Trump, e as declarações de apoio feitas pelo brasileiro antigo presidente americano por ora, tem criado barreiras entre a cúpula dos dois Governos.

A busca de Salles por mais recursos tem várias razões. Uma delas: em 2021, o Ministério do Meio Ambiente se deparará com um de seus menores Orçamentos das últimas décadas. O resultado prático disso será a redução de fiscalização, que está cada vez menor, e o enxugamento administrativo. Ainda assim, mesmo com menos recursos, desde que Bolsonaro chegou ao poder o país abriu mão de receber doações da Noruega e da Alemanha por meio do Fundo Amazônia. Atualmente, há 40 projetos de proteção ambiental com 1,4 bilhão de reais parados nas contas porque Bolsonaro e Salles decidiram alterar as regras de gestão desses recursos. A razão é ideológica. “Ao invés de mandar o dinheiro para projetos e ideias que não necessariamente o governo concorde, dissemos que queríamos ter maior participação nisso e os doadores, Noruega e Alemanha, não concordaram”, justificou-se o ministro.

Como alternativa para suprir esses recursos, Salles disse que o Brasil busca convencer os países ricos a doarem mais para a proteção ambiental. A contrapartida brasileira seria antecipar de 2060 para 2050 o prazo em que se zeraria as emissões de gás carbônico no país. A conta sairia cara para os países ricos, entre eles, os Estados Unidos: 10 bilhões de dólares por ano (algo em torno 53 bilhões de reais). “Pedimos cem Fundos Amazônia por ano”, afirmou na entrevista, gravada no último dia 10.


Andrea Jubé: “Ele não vai botar o pijama, não!”

General é a aposta para as crises do diesel e da energia

O presidente Jair Bolsonaro tem se notabilizado por jogar com as cartas abertas sobre a mesa. Após a intervenção na Petrobras, já anunciou que promoverá novas trocas no governo: “Mudança comigo não é de bagrinho, é de tubarão”. Pescador profissional, ele contou para os peixes que lançou a tarrafa.

Indicado para a presidência da Petrobras, o general Joaquim Silva e Luna nunca foi uma carta na manga. Ele foi apresentado como um dos homens da máxima confiança do presidente no segundo dia de governo.

Pelas idiossincrasias da política, declarações do presidente na posse do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, no dia 2 de janeiro de 2019, ainda repercutem, e estão relacionadas às principais crises da última semana.

Naquela solenidade, Bolsonaro trouxe à luz a estreita amizade com o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas. “Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, afirmou, em uma inconfidência que gera desassossego até hoje.

Villas Bôas não expôs no controvertido “Conversa com o comandante”, da editora FGV, o conteúdo dessas conversas. Mas a revelação dos bastidores dos tuítes que pressionaram o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento do “habeas corpus” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva produziu a folia mais agitada da atual gestão, desde o “golden shower”, culminando na prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).

Na mesma cerimônia, Bolsonaro tornou público seu apreço ao ex-ministro da Defesa do governo Michel Temer, anunciando que Silva e Luna, “um excelente homem”, integraria sua equipe. “Ele não vai botar o pijama, não!”

Menos de dois meses depois, em 21 de fevereiro de 2019, Silva e Luna seria nomeado diretor-geral brasileiro de Itaipu Binacional.

Representante da ala militar não palaciana, avesso aos holofotes de Brasília, o ex-ministro de Temer projetou-se como um dos quadros mais prestigiados pelo presidente.

Nestes dois anos, Bolsonaro compareceu a oito eventos da binacional no Paraná. Nesta quinta-feira, o presidente estará novamente no palanque ao lado do general em uma solenidade da hidrelétrica.

Esse é o pano de fundo da relação entre Bolsonaro e o ex-ministro, que culminou na conturbada intervenção na Petrobras, e no derretimento do valor da companhia.

Desse episódio, Silva e Luna emerge como o homem de confiança de Bolsonaro em meio a nova crise com os caminhoneiros, e, simultaneamente, para iluminar caminhos para a redução da tarifa de energia.

Bolsonaro avisou apoiadores que também vai “meter o dedo na energia elétrica, que é outro problema”. O presidente ouviu de Silva e Luna que Itaipu é uma das soluções.

Após dois anos na direção-geral brasileira da hidrelétrica, Silva e Luna tem expectativa de que, no ano que vem - ano eleitoral -, a tarifa de energia tenha queda substancial devido à amortização relevante de parcela da dívida da binacional, que deve ser integralmente quitada em 2023. “Será a energia mais barata do país”, tem dito Silva e Luna.

Sobre a Petrobras, o general nega que Bolsonaro lhe tenha encomendado mudanças na política de preços dos combustíveis.

Nos bastidores, entretanto, sabe-se que Bolsonaro se irritou com o desdém de Castello Branco em relação às queixas dos caminhoneiros, seu eleitorado cativo. Por isso, o presidente espera que o general tenha sensibilidade com esse público, com quem dialogou quando era ministro na greve de 2018.

Silva e Luna afirma que todo general tem uma missão imposta, e outra que é deduzida. A dedução do mercado é que Bolsonaro lhe incumbiu de resolver a crise dos combustíveis.

Mas o general deu sinais de querer trabalhar em sintonia com a diretoria-executiva e o conselho de administração. “Isso aí [alta dos preços] são considerações que têm que ser analisadas junto com o conselho, junto com a equipe”, disse ao Valor.

O economista- chefe da Guide Investimentos, João Maurício Rosal, observa que o mercado ainda não analisou as credenciais do general Silva e Luna para assumir o comando da Petrobras porque o ambiente de desconfiança gerado pela intervenção na companhia impede avançar uma casa num tabuleiro onde explodiram uma mina.

“A sinalização de que o controlador pode tomar decisões “ad hoc”, sem grandes explicações que não sejam ligadas ao valor da companhia vai pairar como um espectro por muito tempo. Reputação é difícil para uma empresa conquistar, mas é fácil de se perder”, diz Rosal.

O economista afirma que superar essa desconfiança vai ser missão hercúlea para o general. “Ele vai ter esse peso para carregar, essa desconfiança não se dissolve da noite para o dia”.

Rosal reconhece, entretanto, que a crise do preço dos combustíveis também é um espectro que volta e meia assombra os governos. Pedro Parente, a quem se atribui o primeiro movimento significativo de recuperação da empresa após a Lava-Jato, deixou o cargo na esteira da crise provocada pela greve dos caminhoneiros de 2018.

Por isso, Rosal sugere que o governo busque uma solução, citando o exemplo do Chile, que instituiu por um período longo um mecanismo, com gatilhos acionados sob critérios específicos para gerir a oscilação dos preços.

“Talvez o pais não esteja preparado para conviver com um mercado onde o preço dos combustíveis siga os preços internacionais, dada essa sensibilidade política. Mas o governo precisa pensar num mecanismo para o mercado de combustíveis, e não optar pela ingerência na Petrobras”, diz o economista. A alternativa seria encontrar uma política de preços final para o consumidor capaz de suavizar os ciclos internacionais sem comprometer a saúde fiscal do país”.


Vinicius Torres Freire: Novo auxílio será 'fura teto' e não exigirá corte de gasto social

Não haverá cortes obrigatórios de despesas a fim de compensar o novo auxílio emergencial que o Congresso deve aprovar em breve. É um dos artigos centrais do texto quase pronto da emenda constitucional que trata de gastos na epidemia, calamidades e de controles de gastos públicos.

Não haverá redução de salários de servidores, nem agora nem depois, tampouco corte de outros benefícios sociais. De grande impacto, propõe-se a extinção do gasto mínimo em saúde e educação, o que pode implicar o fim da eficácia prática do Fundeb (a transferência de recursos federais para a educação básica em estados e municípios). No Congresso já se ouve queixa geral sobre o fim do gasto mínimo em saúde e educação —difícil que passe.

Muito barulho por não muito, enfim. Venceu Jair Bolsonaro (sem partido), que desde o ano passado vetava quase qualquer sugestão de corte.

Não será preciso decretar calamidade para que se aprove o auxílio emergencial. Mas, no caso de o Congresso decretar calamidade nacional, nos dois anos seguintes ao fim dessa situação excepcional os governos deverão adotar medidas que contenham o aumento de gastos obrigatórios e com pessoal.

O novo auxílio emergencial que o Congresso deve aprovar em breve será um “fura teto”. Isto é, essa despesa: 1) não estará sujeita ao limite constitucional de gastos deste ano; 2) não será contada no cálculo da meta fiscal (a diferença entre o que o governo gasta e arrecada, estipulada em lei anual); 3) não estará sujeita à regra de ouro (grosso modo, o governo não pode se endividar para pagar despesas além daquelas de investimento em obras, equipamentos etc.)

O que há de “compensação” em termos de controle futuro de gastos?

A versão “quase final” da proposta de emenda constitucional 186 (PEC 186) especifica medidas a fim de evitar o estouro do teto de gastos —as regras até aqui eram confusas ou contraditórias. Se na aprovação da lei do Orçamento se verificar que a despesa obrigatória do governo supera 94% da despesa sujeita ao teto, estará suspensa qualquer medida que eleve o gasto com pessoal (reajuste, benefício, contratação, promoção etc. com exceções menores), durante o ano de vigência do Orçamento. A novidade aqui é o “gatilho” dos 94%. A despesa obrigatória já supera tal limite de 94% e assim deve ser em 2022.

Em outro artigo, governadores e prefeitos ficam autorizados a adotar medidas de contenção de gasto caso a despesa corrente, calculada em um período de 12 meses, supere em 95% a receita corrente —a contenção pode durar enquanto durar o estouro deste limite.

Isto é, governadores e prefeitos podem proibir mais gasto com pessoal ou outra despesa obrigatória, o reajuste de despesa obrigatória além da inflação, novos financiamentos, novos perdões de dívida ou não podem conceder ou ampliar benefícios tributários (redução específica de imposto para determinado setor ou grupo de cidadãos). As mesmas medidas podem ser adotadas caso a despesa ultrapasse o limite de 85%, desde que com autorização do Poder Legislativo.

Caso o governo federal, o Executivo, note que as receitas são insuficientes para cumprir metas fiscais do ano, precisa “contingenciar” (adiar até segunda ordem) parte da despesa prevista no Orçamento. Pela PEC, os demais Poderes, o Ministério Público e a Defensoria Pública terão de adotar cortes provisórios na mesma medida definida pelo Executivo (vale também para estados, Distrito Federal e municípios).

Caberá ao Congresso decretar estado de calamidade nacional. Nesse caso, ficam suspensas várias normas de contratação de despesa pública e o cumprimento da “regra de ouro”. Dois anos depois da calamidade, União, estados, Distrito Federal e municípios teriam de adotar medidas de controle de despesa previstas naquele caso em que gastos superam receitas em 95% (contenção de gastos obrigatórios e com servidores).

A PEC estipula que o presidente da República terá de mandar ao Congresso uma lei de redução paulatina de benefícios tributários, em até seis meses depois da promulgação da emenda. Isto é, o valor das reduções especiais de impostos deverá baixar de pouco mais de 4% do PIB para 2% no prazo de oito anos.

Há exceções, como benefícios da Zona Franca de Manaus, de micro e pequena empresa, para produtos da cesta básica, para entidades filantrópicas de saúde, educação e assistência social, para partidos, sindicatos, e no caso de benefícios concedidos no âmbito de fundos constitucionais do Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Ou seja, nota-se que a PEC foi redigida a dedo e que vai ser, pois, difícil reduzir benefícios tributários.

A Constituição já prevê que uma lei complementar trate da dívida pública. Na PEC, estipulam-se várias providências novas em relação a essa exigência: limite do valor da dívida, compatibilidade entre metas fiscais e crescimento da dívida, métodos de ajuste, planejamento de privatizações a fim de abater dívida etc.

Enfim, de principal, a PEC também tenta evitar uma esperteza de municípios e/ou estados: não incluíam na despesa com pessoal os gastos com inativos ou pensionistas. Agora, estaria previsto na Constituição o veto a essa manobra para gastar mais do que permitem os limites de despesa com pessoal.​


Hélio Schwartsman: As tentações do imediatismo

Abraçado ao centrão, Bolsonaro dá rédeas soltas ao imediatismo econômico

Jair Bolsonaro descobriu o caminho das pedras. Ele até que tentou seguir as bandeiras de sua campanha eleitoral, na qual rejeitou o "establishment" político, notadamente o centrão, e afirmou que governaria com o apoio de frentes parlamentares, em especial o das bancadas BBB (bíblia, boi e bala).

É óbvio que não deu certo. Ironicamente, foi uma derrota sua no Congresso, o generoso auxílio emergencial de R$ 600, que o fez experimentar as delícias do populismo. Com a ajuda de emergência, até grupos demográficos que pareciam bastiões inexpugnáveis do PT passaram a aprovar a gestão do capitão reformado.

Bolsonaro gostou e agora, abraçado ao centrão, dá rédeas soltas ao imediatismo econômico. Acaba de intervir na Petrobras e ameaça fazer o mesmo no setor elétrico, para assegurar preços baixos aos consumidores/eleitores.

O imediatismo é um dos muitos problemas que assombram as democracias. Pela lógica imposta por mandatos de quatro anos, sempre vale a pena para o governante sacrificar o futuro para se dar bem no presente. Como o auxílio emergencial mostrou, é fácil arrancar aplausos distribuindo benesses.

Os termos da equação seriam alterados se os mandatos durassem 20 ou 50 anos. Nesse cenário, responsabilidade fiscal e uma estratégia política baseada em ganhos incrementais mas constantes ganhariam importância eleitoral. Não recomendo, porém, o esticamento dos mandatos. Aí perderíamos uma das principais virtudes da democracia, que é a relativa facilidade com que ela despacha os maus políticos para casa.

O sistema só funciona bem quando o "establishment" se convence da necessidade de preservar o médio e o longo prazos e veta os arroubos populistas mais escandalosos dos dirigentes de turno. Até pareceu que o Brasil havia chegado a esse ponto de amadurecimento institucional nos anos FHC, Lula 1 e a primeira metade de Lula 2, mas, como vimos, era só uma ilusão.