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Chico Alencar: Desafios do PT aos 40 anos
A direita viralizou a falsa ideia de que a corrupção de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo
Há 40 anos, o Partido dos Trabalhadores foi importante novidade no cenário político do país. Partidos de caráter nacional, com doutrina e base militante, só surgiram entre nós depois do Estado Novo, com a democratização de 1945 — à exceção do Comunista, fundado em 1922. E de movimentos como a Ação Integralista Brasileira e a Aliança Nacional Libertadora, nos anos 30.
Antes, o que tínhamos eram ajuntamentos de interesses aristocráticos: os de “portugueses” e “brasileiros” na época da Independência quase bicentenária, “liberais” e “conservadores” no Império, partidos republicanos à feição das oligarquias provinciais na República Velha.
O PT nasceu na contramão do padrão costumeiro: veio das praças para os palácios. Novidade também na esquerda, chegou criticando ortodoxias e experiências autoritário- burocráticas do “socialismo real”. Não queria ser mera legenda para disputas eleitorais. Não aceitava substituir a cidadania, e sim representá-la e estimulá-la.
Seus documentos inaugurais afirmavam que o socialismo do programa do PT, radicalmente democrático, só o seria se fosse obra de milhões, combatendo todas as desigualdades. Um partido ético, crítico e criativo. Com essas virtudes, cresceu e ganhou influência. Graças a essa nitidez tornou-se, ainda hoje, a despeito da maré montante da antipolítica, a sigla mais reconhecida no cipoal (recém-“renovado”) de legendas de fantasia.
Como é notório, a ampliação da inserção do PT na institucionalidade trouxe contradições. Alcançando evidência parlamentar e conquistando governos, setores de suas direções deixaram de considerá-lo ator entre atores, com diferentes papéis e uma elaboração compartilhada a ser permanentemente revista e encenada na cena pública: a da construção de uma “nova gramática” do poder, inclusive na formulação de uma política econômica alternativa. Ao hegemonismo somou-se uma espécie de “adaptacionismo” — como reconhecem muitos de seus militantes e alguns dirigentes.
Tempus fugit! A base operária que deu “nervo e vida” ao PT não é mais a mesma: novas tecnologias alteraram profundamente o perfil da classe trabalhadora no Brasil, hoje muito segmentada. Diversas funções estão em extinção. A automação e o universo digital geram a chamada “desmaterialização” da produção e o desemprego estrutural. Não se interfere em novas realidades com compreensões obsoletas.
A interação do PT com os movimentos populares se refletiu nas políticas sociais que desenvolveu quando no poder central. Faltaram reformas estruturantes, democratizantes, profundas: a política, a tributária, a agroecoambiental, a do Estado — para este ficar poroso às demandas da sociedade. Justamente quando enfrentou o maior desafio de sua história, sendo governo da República, o PT implementou medidas que não proclamara em campanha e fez alianças — um imperativo na política — desconsiderando fronteiras éticas, mais pragmáticas que programáticas. Em meio a dissensos e desencantos, parte da população passou a percebê-lo como um partido igual aos demais. A direita hoje vitoriosa viralizou a falsa ideia de que a corrupção sistêmica, estrutural e antiga de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo.
A tendência é que o PT siga sendo uma sigla expressiva eleitoralmente, apesar dos desgastes. O grande desafio, dele e de todas as forças progressistas, inclusive não partidárias, é reconhecer a derrota e os erros, renovar-se (nas pautas e também na linguagem) e vivificar, no imaginário popular, a mística do encantamento político pelos projetos coletivos.
Não se faz autocrítica dos outros. Mas essa boa tradição da esquerda precisa ser revitalizada, com humildade, em todas as suas organizações. Isso é tão importante quanto constituir uma frente democrática, progressista e antifascista, que reencontre os endereços perdidos do nosso povo.
*Chico Alencar é professor e escritor e foi deputado federal pelo PT e pelo PSOL
Luiz Sérgio Henriques: Populismos e democracia bloqueada
Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.
Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.
O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.
A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.
O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.
Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.
Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.
Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.