Pernambuco

Eliane Brum: A vagina que salvou o Réveillon do Brasil

Ao cobrir a terra arrasada pelo canavial com uma buceta de 33 metros, a obra da artista Juliana Notari interrompeu a farra bolsonarista

Jair Bolsonaro planejou e executou uma coreografia de “macho” para abrir 2021. A bordo de uma lancha, aproximou-se da Praia Grande, no litoral paulista, onde centenas de banhistas se amontoavam apesar de o país já estar chegando aos 200.000 mortos por covid-19. Depois de acenar para adultos e crianças, atirou-se no mar e nadou até a multidão. Atravessou a massa de gente como se fosse ungido por ela, ovacionado por gritos de “mito! mito!”. Funcionou tanto que ele até repetiu o batismo dias mais tarde, na segunda vez caminhando pela areia como o Messias do seu nome do meio. A cena calculada tem grande potencial simbólico. Horrorizou o mundo em transe pandêmico, mas não envergonhou uma parte significativa do Brasil. Se a eleição fosse hoje, Bolsonaro teria chances consideráveis de se reeleger.

E então, outro gesto aconteceu. Outra imagem ganhou o mundo. A vagina de 33 metros de altura por 16 metros de largura e 6 metros de profundidade da artista Juliana Notari, abrindo em vermelho a terra arrasada pelos canaviais de Pernambuco, se impôs. No noticiário internacional, havia a imagem do presidente com sinais de sociopatia desafiando o vírus e a racionalidade com seu “histórico de atleta”. E, ofuscando esse espetáculo falocêntrico, a vagina vermelha se expandiu, multiplicou-se como imagem e ocupou muito além da terra em que foi esculpida e recoberta por concreto armado e resina. Se não fosse por ela, Bolsonaro mais uma vez abriria o ano controlando a narrativa do Brasil.

Nada poderia ser mais transgressor no país dominado pelo bolsonarismo, o que diz o seu nome e o que não diz, do que essa buceta gigante. Não há maior ato de resistência, no Brasil onde os corpos humanos foram convertidos em obscenidade pela moral dos imorais e, portando, têm sido violados continuamente, do que abrir a terra esgotada, a terra pisoteada, a terra ferida como o corpo de tantas mulheres, com a escultura de uma vagina. A arte, que a obscenidade de Bolsonaro e das milícias digitais de extrema direita tentaram tornar obscena, salvou o início de um ano que quase certamente será ainda mais difícil do que o de 2020. Há disputa. E sabemos onde ela está.

Uma obra de arte não é em si nem para si. Há a intenção do artista e há o que ela se torna no encontro e no confronto com o olhar de cada um, um encontro e um confronto que podem atravessar as épocas, transmutando-se a cada contexto. A arte é aquela que, antes de ser, se torna. E só se torna se for aberta aos mundos.

A pernambucana Juliana Notari há pelo menos duas décadas faz um trabalho muito consistente na intersecção entre o feminino e a violência. Dessa vez, chamou a vagina gigante de “Diva” e definiu-a como uma “vulva/ferida”. Ao divulgar em 31 de dezembro a obra que passou 11 meses esculpindo para a Usina de Arte, um parque artístico-botânico na cidade de Água Preta, em Pernambuco, sofreu um ataque brutal nas redes sociais. Só no Facebook o post já recebeu 27 mil comentários, parte deles reduzidos a agressões. Por romper o cotidiano e atravessá-lo, a artista foi atacada violentamente. A reação já faz parte da obra. Até um “Punhetaço” foi marcado pelas redes sociais pelos machos com medo de buceta. A sua, a nossa Diva, já entrou para a história das vaginas que perturbam o mundo com sua potência.

Escolho me encontrar com a vulva ferida a partir do confronto do ato de Bolsonaro e da obra de arte de Notari. Talvez porque a obscenidade de Bolsonaro, num momento em que a pandemia volta a se agravar também no Brasil, nos feriu logo no irromper de 2021. Calculadamente, ele fez sua demonstração de força para mostrar quem manda e enterrar todas as ilusões de que a virada de um ano possa interromper o exercício do mal. Bolsonaro é o presidente. E, por ser o presidente, não há ninguém no país mais responsável do que ele para conduzir o Brasil na maior crise sanitária em um século. E ele tem nos conduzido para a morte com a cumplicidade de milhões de brasileiros.

Os cúmplices não são apenas os que votaram em Bolsonaro, nem são apenas os que declaram nas pesquisas que seu governo é ótimo ou bom ou mesmo regular, no momento em que mais de 50 países já começaram a vacinar suas populações e o Brasil ainda não conseguiu sequer comprar seringas. Ser bolsonarista é mais do que ter votado ou pretender votar em Bolsonaro. O bolsonarismo virou um modo de agir no mundo que se baseia na produção calculada de mentiras e na imposição da vontade do indivíduo sobre as necessidades do coletivo, portanto pela imposição do mais forte pela violência. É por isso que o bolsonarismo é ainda mais perigoso do que Bolsonaro —e persistirá muito além dele. Tenho me surpreendido com a quantidade de pessoas que aderiram ao bolsonarismo nessa pandemia, ao acreditar que sua pretensa liberdade os autoriza a ameaçar todos os outros. Não existe a liberdade de matar.

Bolsonaro não trabalha com eleitores, mas com seguidores que votam. E é para eles que produz imagens. Desde o início da pandemia, ele atua para fazer uma associação perversa: a de que só os fracos morrem de covid-19. Os fortes, grupo que ele acredita representar, quando contaminados têm apenas uma “gripezinha”. Bolsonaro e o bolsonarismo já deixaram mais do que explícito quem consideram fracos: as mulheres, os LGBTQ+, os negros, os indígenas. Também já tornaram explícito quem são os fortes, os do topo da cadeia alimentar: os homens, “machos” porque héteros, os brancos.

Ao nadar para ser ungido pelo povo, numa demonstração de força, como fez no primeiro dia do ano, ele é o macho que desafia as ondas, o vírus, as instituições internacionais, a ciência, a ética, a racionalidade e a própria verdade. É o homem sem amarras, livre porque a única vida que importa é a dele. Quando na segunda cena, essa caminhando sobre a areia, ele carrega crianças no colo, a mensagem é a de que só os fortes merecem viver. Se os bebês forem contaminados, os “melhores” sobreviverão. É também por isso que ele pode dizer “e daí?” diante dos mortos ou, mais recentemente, “não dou bola”, referindo-se ao fato de seu governo ainda não ter garantido a vacina à população e estar atrás de tantos países, incluindo a Argentina, que já começaram a imunizar seus habitantes. Quando ele abraça pessoas sem máscara, espalhando perdigotos em seus rostos, ele está dizendo: se você é forte, merece viver; se for fraco, dane-se.

Também não é por acaso que, em suas declarações, ele costuma forjar uma associação pejorativa com raça e gênero. Como ao defender que aqueles que quiserem ser vacinados deveriam assinar um termo de compromisso responsabilizando-se pelos supostos efeitos colaterais. A mensagem é explícita: “Se você virar um chimpanz... se você virar um jacaré, é problema de você [sic]. Não vou falar outro bicho aqui para não falar besteira. Se você virar o super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem começar a falar fino, eles [os laboratórios] não têm nada a ver com isso”.

Bolsonaro já declarou que não tomará a vacina. É o “macho” que nada para abraçar o povo exatamente porque o povo não importa. Toda a sua campanha foi alicerçada no ataque aos corpos que ele considera “errados” ou “fracos” porque não são o seu. Já vamos para o quarto ano, contando o da eleição, sendo violentados pelas declarações de Bolsonaro, que fala obsessivamente de orifícios, de pênis e de ânus, convertendo os corpos em objetos e dividindo o mundo entre aqueles que portam buracos e aqueles que têm o poder de enfiar coisas nos buracos. Para homens como ele, a única relação possível entre um corpo e outro corpo é a da violência. Tanto o pênis quanto as armas são falos empunhados para fazer buracos nos corpos dos que considera mais fracos ou inferiores.

Antes do batismo do macho protagonizado no litoral paulista, sua última declaração midiática foi ironizar a tortura sofrida por Dilma Rousseff pelas mãos de agentes do Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Logo depois do Natal, ele disse a apoiadores: “Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo. Olha que eu não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio-X”.

Não é uma escolha aleatória. A única mulher presidenta do Brasil foi destituída por um impeachment em cuja votação Bolsonaro, então deputado federal, homenageou o mais notável torturador e assassino da ditadura, associado a dezenas de mortes e a centenas de sessões de tortura de opositores políticos. Bolsonaro fez questão de adicionar uma perversão a mais: “Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Enaltecer o torturador, demonstrar prazer com a tortura da mulher que está empenhado em destituir do cargo e depois duvidar de seus ferimentos é o gozo do perverso. É assim que se comportam os torturadores e também os assassinos. Bolsonaro torturou Dilma durante o impeachment e, dias atrás, a torturou mais uma vez. Para mostrar que pode. Porque pôde, no passado, e por isso se elegeu —e porque pode no presente, porque faz tudo isso e segue sem ser perturbado por um processo de impeachment.

Essa é a mensagem que pretende vender e, como faz parte da estupidez de tantos comprar gato por lebre se achando o maior esperto do mundo, milhões de brasileiros acreditam. Como tudo em Bolsonaro, a imagem de força e de potência é só mais uma fake news ou, em bom português, uma mentira. Basta ir ao youtube ver Bolsonaro fingindo fazer flexões de braço para ver que ele é tão atleta quanto é cristão. Na terça-feira (5), afirmou publicamente sua impotência: “O Brasil está quebrado e não consigo fazer nada”. Os mais de 60 pedidos de impeachment que poderiam tirá-lo do governo que corrompe para botar quem consegue fazer alguma coisa estão dormindo na gaveta de Rodrigo Maia (DEM).

A força de Bolsonaro é a dos fracos: a violência, seguidamente armada. Violentar, corromper e mentir é só o que esse arremedo de homem consegue fazer. Bolsonaro fracassou como militar, sua carreira como deputado é uma vergonha e um desperdício de dinheiro público, ao tornar-se presidente, tornou-se o pária do mundo, como afirma seu próprio chanceler, motivo de piada de um lado a outro da Terra que ele acha que é plana.

Como descobrimos, porém, há milhões de brasileiros dispostos a acreditar em qualquer mentira e a chamar de “mito” um mentiroso. Assim, a virada do ano é tempo de balanço e de estabelecer metas de Ano-Novo também para Bolsonaro. Em seus atos, ele garantiu ao seus iguais que poderão seguir abusando de mulheres como Mari Ferrer, vítima de estupro que foi violentada mais uma vez durante o julgamento ao ser tratada como culpada. Em seus atos, o presidente do Brasil está reafirmando que os homens poderão seguir dizendo que o acusado de estupro não tinha condições de perceber que a vítima estava inconsciente e seguir julgando o comportamento da vítima em vez do ato do estuprador. Essa é a mensagem sempre que ele publicamente humilha uma mulher com palavras ou gestos ou decisões.

Na concepção de mundo do bolsonarismo não há relação que não termine com um outro subjugado e desumanizado. Bolsonaro tornou o Brasil um grande experimento pornográfico. O homem no cargo máximo do país brinca de nos matar. Ao mergulhar nas águas do mar, para muitos um ritual de purificação, ele renasce para mais um ano como senhor da morte. Tenho convicção de que as gerações futuras vão nos perguntar por que não fomos capazes de impedi-lo de seguir matando. Essa acusação assombrará os que hoje estão vivos para muito além da vida.

A vagina gigante atravessou a farra bolsonarista. De concreto armado e resina, ela é mais real do que o corpo de Bolsonaro nadando de braçada no Brasil. Enquanto o corpo de Bolsonaro se converte em objeto, arma, instrumento de morte, a obra de arte desobjetifica os corpos das mulheres ao denunciar suas feridas e revelar sua potência. Não se encarnasse na terra arrebentada do canavial pernambucano, a vagina não teria efeito algum. Pela potência transgressora da arte, já não era mais uma vulva de concreto e resina, mas as bucetas de todas nós, mulheres brasileiras, mulheres do mundo, pulsando naquele chão. Vermelhas do sangue de nossas companheiras mortas no Natal do feminicídio de 2020, quando o nascimento de Cristo foi homenageado por seis homens com a destruição dos corpos das companheiras. Porque podem.

Bolsonaro chegou ao poder e se mantém no poder porque representa a visão de mundo de milhões de brasileiros. E chegou depois de um processo em que, mesmo antes de ser arrancada da presidência, Dilma Rousseff foi objetificada em adesivos nos quais era exposta de pernas abertas sobre os tanques de gasolina e as mangueiras eram ali enfiadas para estuprar a presidenta. Chegou ao poder por um processo em que milícias digitais como o MBL criminalizaram obras de arte, fecharam exposições, chamaram artistas de pedófilos e foram responsáveis por alguns deles terem sido ameaçados de morte e até hoje estarem sob trauma. O que os brasileiros vivem hoje não aconteceu de repente nem começou com Bolsonaro.

Ele nos governa porque a sociedade brasileira está mentalmente adoecida. Bolsonaro é ao mesmo tempo produto e produtor dessa doença. Sempre tentei compreender como pessoas aparentemente comuns permitiram, algumas vezes na história humana, que o horror de Estado fosse consumado contra outros, às vezes seus vizinhos. Que tipo de loucura as possuiu que fez tantos se calarem, colaborando com o extermínio por ação ou omissão. Estamos vendo isso acontecer há anos bem diante dos nossos olhos, em todas as telas. Responderemos por isso.

A vagina que denuncia essa sociedade adoecida não está em qualquer terra. É esculpida no Brasil violado diariamente por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. É escavada na terra arrasada pela monocultura da cana de açúcar, marca histórica do patriarcado e do coronelismo que moldaram violentamente o Brasil e fincaram raízes tão profundas que até hoje ainda persistem e se renovam. Naquela terra há sangue escravo, há memórias do estupro das mulheres negras, há marcas das botas dos machos e dos joelhos das fêmeas. Antes das mulheres, a natureza foi ali estuprada. Que hoje uma vagina gigante e vermelha como o sangue menstrual habite e ceve essa terra que também é mulher me parece extraordinariamente potente.

Antes dessa Diva, Juliana Notari havia feito, em 2018, a obra que chamou de “Amuamas”. A curadora e professora de arte Clarissa Diniz explica lindamente como foi essa intervenção num ensaio na revista Continente. “Foi num grande e ancestral corpo de uma Sumaúma (árvore sagrada para muitos dos povos da floresta, com a capacidade de absorver água de grandes profundidades e distribuí-la para plantas da vizinhança) que Juliana inscreveu outra de suas feridas. Desta vez, não numa parede, mas num corpo vivo; nas gigantes raízes aéreas da árvore. Por isso, para a artista, Amuamas foi essencialmente um rito. Após entalhar a Samaúma, revelando sua madeira avermelhada, Juliana pintou a ferida aberta com seu próprio sangue menstrual, coletado ao longo de nove meses. Do encontro entre os rubros da árvore e os da artista, forjou-se uma ferida em comum, comungando dores e identificando, no corpo uma da outra, traumas compartilhados.”

Vale lembrar que Bolsonaro declarou em seu primeiro ano de governo que a floresta amazônica é “a virgem que todo tarado de fora quer”, mostrando que tanto a floresta quanto as mulheres são femininos que devem ser violados e esvaziados de sentidos. Árvores como a Sumaúma escolhida pela artista Juliana Notari podem lançar até mil litros de água por dia na atmosfera apenas pela transpiração, num processo de uma beleza extraordinária que faz com que a floresta seja a grande reguladora do clima ao sul do mundo. Bolsonaro, porém, é o homem que inspirou o “dia do fogo” e fez a floresta queimar nas telas do planeta. Ele encarna o personagem do bandeirante e do colonizador, que violenta o corpo da natureza e todos os outros corpos que encontra na natureza, como o dos indígenas. É também aquele que, em plena emergência climática, acha que os recursos naturais são infinitos e que seus amigos podem seguir explorando, arrebentando e matando a natureza. Bolsonaro é fraco justamente porque não aceita limites.

Ao comentar sua mais recente intervenção artística nas redes sociais, a artista Juliana Notari escreveu: “Em ‘Diva’, utilizo a arte para dialogar com questões que remetem a problematização de gênero a partir de uma perspectiva feminina aliada a uma cosmovisão que questiona a relação entre natureza e cultura na nossa sociedade ocidental falocêntrica e antropocêntrica. Atualmente, essas questões têm se tornado cada vez mais urgentes. Afinal, será a mudança de perspectiva da nossa relação entre humanos e entre humano e não-humano que permitirá com que vivamos mais tempo nesse planeta e numa sociedade menos desigual e catastrófica”.

Em uma das fotos, ela posa junto à obra de arte com alguns dos 20 homens que a ajudaram a esculpir a vagina na terra. É uma imagem eloquente: a de uma mulher branca comandando homens negros com uma enxada na mão. Várias pessoas apontaram essa contradição, o que torna a obra ainda mais interessante. A expressão imagética do racismo estrutural do Brasil que pode ter sido reproduzida pela artista que a denuncia em sua obra acrescenta novas camadas e novas questões à Diva. Sobre essa imagem, o compositor e produtor cultural Afonso Oliveira escreveu: “É simbólico ela colocar trabalhadores negros para fazer essa obra. Mas não é apenas simbólico do ponto da perpetuação da escravidão. É simbólico também do ponto de vista da subversão do macho. Sem eles essa buceta não existiria, nem a obra, nem o símbolo”. Já o cineasta Kleber Mendonça Filho, diretor do excelente Bacurau, comemorou no Twitter: “Viva Juliana Notari, por botar homens pra fazer um bucetão de 30 metros na Zona da Mata pernambucana, em plenos anos Bolsonaro. As reações à obra são espelho, um sucesso”.

Houve quem desejasse a Juliana Notari que fosse punida com “uma ferida na vulva” por colocar concreto e resina na terra. Toda a crítica é possível, mas é impossível ignorar que aquela terra já havia sido violada pela monocultura mais emblemática do patriarcado escravocrata e colonialista, a da cana de açúcar. A ferida que a vagina nela abre denuncia essa outra ferida, muito mais antiga e persistente e, ao mesmo tempo, a cura, ao devolver-lhe sentido e portanto vida.

Alguém escreveu lindamente na página de Juliana Notari, no Facebook, que havia mostrado a obra a seu filho de 7 anos. O menino ainda não assombrado pela violência viu ali uma “tulipa, uma piscina, uma rede” onde se jogar. “Não sendo ele (sexo feminino representado na obra) um em si para si, pude vê-lo bem melhor pelos olhos da criança de 7 anos: tulipa, piscina, rede. Flor, água, descanso, pensei. Se não fosse nossa incapacidade crônica de criar lentes (modos de socialização) mais límpidas talvez tivéssemos menos que lidar com as distorções da beleza de uma vagina (lugar de onde todo o ser humano saiu, diga-se de passagem com o perdão do trocadilho) esculpida na terra, num terreno do interior de um estado do Nordeste, que simboliza o tipo de poder e propriedade que engendrou nosso patriarcado em seu modelo mais aviltante das qualidades humanas das mulheres”.

A vagina, também como imagem e como palavra, tem sido violada através dos séculos. Atacada, escondida, censurada, deletada. Essa que é nossa origem de tantas maneiras conta o mundo de ruínas, em ruínas, construído por homens. Em 2013, escrevi nesse espaço uma coluna chamada “Vagina”, sobre os mais recentes escândalos provocados pelos que nela não suportam se ver. “Não é tremendamente instigante que, neste ponto da aventura humana, a vagina das mulheres ainda assombre tanto que a violência contra ela parece ter recrudescido?”, eu perguntava.

Um ano antes, a loja virtual da Apple havia censurado a vagina como palavra, ao silenciá-la com asteriscos no título do livro de Naomi Wolf: V****: uma biografia (Geração Editorial). Também o crítico de arte Jorge Coli teve interrompida a transmissão pela Internet de sua palestra pela Academia Brasileira de Letras. Foi censurado no momento em que pronunciou a palavra “buceta” e mostrou A origem do mundoo famoso quadro do francês Gustave Courbet, que retrata uma vagina entre coxas abertas. Esse quadro, talvez a vagina mais atacada da história da arte, tem uma trajetória que conta os problemas dos homens com a buceta. Ao longo de sua vida, o quadro esteve coberto por um véu, às vezes uma cortina, em outras uma outra pintura. Só foi exposto sem nada ocultando-o depois que a família de seu último dono, o psicanalista francês Jacques Lacan, o doou ao Museu D’Orsay, em Paris.

É possível que Naomi Wolf tenha razão ao dizer que “a revolução ocidental sexual falhou”. Ou, pelo menos, “não funcionou bem o suficiente para as mulheres”. Em sua biografia da vagina, Naomi Wolf a compreende como “o órgão sexual feminino como um todo, dos lábios ao clitóris, do introito ao colo do útero”. Esse todo forma uma complexa rede neural, na qual há pelo menos três centros sexuais —o clitóris, a vagina, o colo do útero, e possivelmente um quarto, os mamilos. Naomi defende que a vagina não é apenas carne, mas um componente vital do cérebro feminino, ligando o prazer sexual amoroso à criatividade, à autoconfiança e à inteligência da mulher.

A conclusão é óbvia e não é nova, nem por isso menos importante: massacrar a vagina —ignorando-a ou tornando-a algo sujo, proibido e chulo, seja pelas palavras ou pelas ações— massacra as mulheres na inteireza do que são. Ao aniquilar a vagina, aniquila-se a mulher inteira, sequestra-se a sua potência. “Ao contrário do que somos levados a crer, a vagina está longe de ser livre no Ocidente nos dias de hoje”, diz Naomi. “Tanto pela falta de respeito como pela falta de entendimento do papel que ela exerce.”

A vagina esculpida por Juliana Notari tornou-se parte dessa história. No Brasil dominado pelo bolsonarismo, os sentidos dos ataques à buceta alcançam camadas ainda mais profundas. Muitos apostam que, com o fim da renda emergencial que contemplou dezenas de milhões de brasileiros, a popularidade de Bolsonaro cairá. É provável. Mas apenas em parte. Como já escrevi num artigo anterior, uma parcela significativa o elegeu para garantir um outro salário: o psicológico. Em 1935, o pensador negro W.E.B Du Bois, um dos maiores intelectuais do século 20 nos Estados Unidos, criou essa expressão para explicar a função do racismo, ao dar ao branco ferrado a sensação de superioridade por ter alguém em situação pior do que a dele, no caso o negro.

O fenômeno dos déspotas eleitos —como Bolsonaro, Donald Trump e outros— pode ser explicado por esse conceito ampliado para as mulheres e para os LGBTQ+. Para que o salário psicológico tenha efeito, é preciso seguir subjugando um outro, em especial num momento em que os subjugados habituais passaram a protestar com mais veemência. Também por isso Bolsonaro se disciplina para manter constantes os ataques racistas, homofóbicos e misóginos. Bolsonaro calcula e cria notícias para manter o valor de compra e venda do salário psicológico.

Assim como os Estados Unidos vão lidar com o que Trump representa para muito além do governo de Joe Biden, o adoecimento mental da sociedade brasileira, do qual Bolsonaro ao mesmo tempo é produto e produtor, ainda poderá lhe dar um segundo mandato. Tanto Trump quanto Bolsonaro não são apenas um, mas muitos. Não basta tirá-los do poder pelo impeachment, pela responsabilização de seus crimes ou pelo voto. É necessário mudar a cultura que deforma as mentes, fazendo com que vejam monstruosidades em vaginas e passem a destruir mulheres de várias maneiras e também literalmente, como aconteceu com Marielle Franco. O mais importante é educar pessoas para que não sejam dependentes de salário psicológico, dependentes a ponto de aderir àquele que as destrói. As subjetividades não são efeitos colaterais. Ao contrário: elas movem o mundo.

Sim, a obra criada por Juliana Notari é uma ferida de 33 metros que denuncia uma ferida imensamente maior. Pela potência da arte, essa ferida feita de concreto armado e resina se converte em carne, vagina. E gera vida nesse Brasil esmagado pela banalização da morte de quase 200 mil pessoas. A gigantesca vagina vermelho-sangue salvou nosso Réveillon do Nado do Macho que Mata depois do Natal do Feminicídio. Apontou onde está a cura do Brasil.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Ascânio Seleme: Filhos e netos se apropriam do capital político da família para pedir votos

Em Recife, onde uma neta e um bisneto de Miguel Arraes disputam o segundo turno

A história eleitoral brasileira está repleta de casos de filhos e netos que se apropriam do nome e do capital político do patriarca da família para pedir votos e quem sabe passar o resto da vida pagando suas contas com dinheiro público. Quanto mais próximo do primeiro político, melhor. Foi assim com os três zeros pouco qualificados de Bolsonaro, que se elegeram vereador, deputado e senador. Nas eleições municipais deste ano, há um caso que não chega a ser inédito, mas prova que as pessoas apostam mesmo no nome da família para ganhar um cargo. Trata-se de Recife, onde uma neta e um bisneto de Miguel Arraes disputam o segundo turno.

A neta, a deputada petista Marília Arraes, já tem um pouco de estrada e tentou uma outra vez ocupar um cargo executivo. Em 2018, mesmo liderando as pesquisas, teve sua candidatura abortada pelo diretório nacional do PT. O bisneto, João Campos, tem apenas 26 anos. Além de ser neto de Arraes, ele é filho do falecido governador Eduardo Campos. Ungido por dois sobrenomes, foi o deputado federal mais votado em 2018, aos 24 anos, e agora quer ser prefeito. Sua qualificação? É engenheiro, mas nunca exerceu a profissão. Graduou-se em 2016, mas aí já era secretário do governador que sucedeu seu pai dois anos antes.

Em São Paulo, outro neto disputa a eleição. Bruno Covas, neto do ex-governador Mario Covas, está no segundo turno e pode acabar eleito para um mandato inteiramente seu. No primeiro, foi vice de João Doria, que saiu para se candidatar a governador. Bruno foi deputado estadual, deputado federal e secretário estadual de Meio Ambiente no governo de Geraldo Alckmin. Mas aí, nenhum mérito. Até o nefasto Ricardo Salles foi secretário de Meio Ambiente de Alckmin. No Rio, o sobrenome Garotinho não rendeu votos para Clarissa, que chegou em 11º lugar com apenas 12.178 votos. No caso, o sobrenome mais atrapalha do que ajuda a deputada filha de dois ex-governadores encrencados.

Muito raramente os filhos e netos são tão eficientes ou bons quanto a quem deu origem à estirpe política. Há um caso emblemático no Brasil que mostra ser possível passar qualidade política geneticamente. Estou falando do presidente Tancredo Neves e de seu neto, o deputado Aécio Neves. Tancredo foi político de habilidade incomum e tornou-se um dos mais importantes brasileiros de todos os tempos. Artífice da redemocratização do Brasil em 1985, morreu sem tomar posse, virando quase um mártir político. Seu neto elegeu-se deputado, governador e senador. Muito eficiente e quase tão hábil quanto o avô, conseguiu ser eleito presidente da Câmara, o que não é trivial, e foi candidato a presidente. O problema é que seu futuro desapareceu quando descobriu-se que ele era um escroque.

Há diversos casos de transmissão familiar de prestígio político no país. Exemplos: Nelson Marchezan e Nelson Marchezan Jr., no Rio Grande do Sul; Esperidião Amin, Angela Amin e João Amin, em Santa Catarina; José Richa e Beto Richa, no Paraná; Antônio Carlos Magalhães, Eduardo Magalhães e ACM Neto, na Bahia; Jader e Helder Barbalho, no Pará; Renan Calheiros e Renan Filho, em Alagoas; Nelson e Nelsinho Trad, no Mato Grosso do Sul; os incontáveis Alves de Melo, no Rio Grande do Norte; e os inacreditáveis Iris e Iris Rezende (marido e mulher), em Goiás. E no Rio há ainda os Maia, o pai Cesar e o filho Rodrigo.

Embora a prática se espalhe pelo Brasil de maneira incontrolável, a herança política não é uma jabuticaba genuína. Nos Estados Unidos, desde a mais tenra idade da maior democracia da terra, pais já passavam prestígio para seus filhos. John Adams, um dos fundadores da pátria, foi o segundo presidente dos EUA sucedendo George Washington. Seu filho John Quincy Adams foi o sexto presidente americano. A dinastia Kennedy foi forjada pela tenacidade do patriarca da família e emancipada pelo lendário presidente John F. Kennedy. Até os Bush fizeram escala familiar, com George e George W. E os Clinton, Bill e Hillary, também tentaram, mas foram malsucedidos.

Filhos, netos e outros familiares têm o direito de exercer cargos eletivos depois que o patriarca fez sucesso na política? Legalmente, sim, porque a todos é dado o acesso a uma função pública, desde que cumpridos os requisitos de idade e idoneidade e que tenham concorrido democraticamente para o cargo. Moralmente, não, porque a beleza da democracia é que ela deve dar a todos as mesmas chances e oportunidades, e os que vão para uma disputa ocupando orgulhosamente o papel de filhinho do papai ou de netinho do vovô, já saem na frente e quase sempre com vantagem que todos os demais concorrentes não têm.


El País: Os rebeldes sem armas emboscados por um agente duplo da ditadura

Em tempos de delação premiada, obra de jornalista retrata o massacre da granja São Bento, de 1973, e traz a história de um dos famosos dedos-duros da ditadura, cabo Anselmo

Quantas pessoas você trairia para se livrar da prisão e de sessões de torturas? Quantas delas entregaria as vidas para assassinos vestidos de fardas e uniformes policiais? José Anselmo dos Santos, ex-marinheiro brasileiro conhecido como cabo Anselmo, foi um dos principais agentes duplos da ditadura militar e delatou ao menos 200. Sendo que cerca de cem perderam suas vidas. Seis delas durante uma chacina no então município de Paulista, em Pernambuco. É a história deste assassinato múltiplo que é retratada no livro O Massacre da Granja São Bento, lançado no último dia 29, em Recife.

Os minuciosos detalhes deste caso, ocorrido em janeiro de 1973, finalmente vieram à tona na obra assinada pelo jornalista e mestrando em antropologia Luiz Felipe Campos. Justamente em um momento em que os delatores são apontados no Brasil como uma espécie de heróis. A diferença, é que nos dias de hoje, eles desvelam casos de crimes de colarinho branco envolvendo a cúpula política e empresarial. Nos anos da ditadura militar, contribuíram para o cometimento de centenas de homicídios e torturas de presos políticos.

No livro, o autor relata como cabo Anselmo articulou uma falsa reestruturação de um grupo revolucionário armado em Pernambuco e os entregou para serem aniquilados por policiais e militares na área rural da então cidade de Paulista. Entre os assassinados estava a mulher com quem Anselmo viveu maritalmente em Recife, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma.

Motivado por contar um caso regionalmente conhecido, mas pouco explorado por jornalistas e historiadores nacionalmente, Campos juntou cerca de 2.000 páginas de documentos em cinco anos de investigações que resultaram na obra. Ao menos 50 pessoas foram entrevistadas no período. Os principais relatos foram dados por um dos sobreviventes da chacina, o paraguaio Jorge Barrett, cunhado de Anselmo. “Percebi que essa era uma história que não estava bem contada. Tinha muito da versão oficial, algumas tentativas de desconstruir a versão de que chamava as vítimas de terroristas, mas nada que tentasse juntar todos os elos”, afirmou o jornalista ao EL PAÍS.

No livro, ele vai além: “No caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em Pernambuco, a guerrilha nunca chegou a existir: desde sempre teve suas pernas amputadas e uma sentença de morte sobre as costas. Com os seis mortos foram enterrados também os sonhos de toda uma geração de guerrilheiros que, a seu modo, buscavam uma Sierra Maestra para chamar de sua no Brasil”.

Em um ritmo de thriller policial, a obra orbita em torno do cabo Anselmo. Mostra como ele reuniu no Pernambuco seis militantes contrários à ditadura sob a justificativa de reiniciar a luta armada urbana contra o regime. Segundo essa aprofundada pesquisa que gerou o livro, o ex-militar queria dar um tiro de misericórdia na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e em todo outro grupo que tentasse se articular contra os ditadores. “Em 1971, a luta armada de esquerda estava desmobilizada. Anselmo concordou em ser usado pelo regime para dar esse tiro de misericórdia. Era para passar um sinal para os outros grupos de que a luta armada não valeria a pena”, explica o autor. Um dos “comandantes” de Anselmo nessa trama foi o famoso delegado torturador Sergio Paranhos Fleury, um obstinado perseguidor de rebeldes que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo.

As vítimas do massacre da granja São Bento foram Soledad Barret, Jarbas Marques, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Pauline Reichtsul e José Manoel da Silva. Todos foram traídos por Anselmo. Por quase um ano articularam maneiras de como unir forças para combater o regime militar. Não conseguiram adquirir uma só arma. Mas morreram identificados como terroristas, conforme estamparam em suas manchetes os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, em uma clara adesão à versão oficial.

Entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973, os seis foram presos. Seus corpos foram encontrados crivados de balas nas proximidades da chácara São Bento, no dia 9. Dos 32 projéteis encontrados nos corpos, 14 estavam alojados nas cabeças das vítimas. Diversas armas foram espalhadas ao redor dos cadáveres. A polícia, na ocasião, disse que desbaratou um congresso de militantes da VPR. Trocou tiros com eles. Matou todos. E nenhum policial saiu ferido, nem de raspão.

Uma das razões para a chacina ter ocorrido foi que o jogo duplo de Anselmo começou a ser desvendado. Na antevéspera do massacre, Soledad, a mulher dele, recebeu uma carta em que o comando da VPR que estava exilado no Chile alertava sobre a possibilidade da traição de Anselmo. Ingenuamente, ela mostrou a carta para o ex-militar. Foi sua sentença de morte e dos outros cinco companheiros dela. Assim que o sexteto foi preso, Anselmo deixou Recife da mesma forma que chegou, clandestinamente.

Na obra, o jornalista Campos também relata a luta das famílias em conseguir a reparação do Estado brasileiro e o reconhecimento de que todos foram vítimas da ditadura. Vários conseguiram, mas as marcas deixadas em alguns, jamais foram apagadas.

O LIVRO

O Massacre da Granja São Bento
Autor: Luiz Felipe Campos
Editora: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco
Preço: 30 reais
Páginas: 214
 


1817: Revolução com as cores de Pernambuco

Publicado no Jornal do Commercio em 06/03/2017

A Revolução 1817 completa dois séculos, nesta segunda (6), mas ainda é episódio pouco explorado na história do Brasil

Por: Diogo Guedes e Marcela Balbino

Eram 10h da manhã do dia 6 de março de 1817 e o clima no Recife parecia calmo. Sinais de insatisfação com a Coroa Portuguesa vinham sendo emitidos, mas nem de longe se tinha a sensação de que estava prestes a irromper um dos movimentos mais emblemáticos da história pernambucana. Uma hora depois a aparente tranquilidade foi cortada com golpe de espada. O sangue derramado sobre o peito do brigadeiro Manoel Joaquim Barbosa de Castro foi o estopim para o início da revolução, que vinha sendo maturada em fogo brando, mas que explodiu antes da data prevista. Pela cidade, ressoavam os gritos de “Viva a Pátria! Mata Marinheiro!”. Era desse modo que os brasileiros se referiam aos portugueses. A essa altura, nos primeiros disparos, o governador da província já tinha fugido para se abrigar no Forte do Brum, de onde sairia direto para o Rio de Janeiro. Os revoltosos montaram um governo provisório e deram a chance ao governador de sair da província sem confronto. Apesar de registros o apontarem como bom administrador, a coragem não era traço marcante da personalidade de Caetano Pinto.

O relato da cena foi contado há 200 anos pelo comerciante francês Louis-François Tollenare, que viveu no Recife entre 1816 e 1818. Nesta segunda-feira (6), a revolução completa dois séculos, mas ainda é um episódio pouco explorado na historiografia brasileira.

Em 1817, o caldeirão da insatisfação fervia na província de Pernambuco, que tinha histórico de movimentos nativistas, como a expulsão dos holandeses (1654) e a Guerra dos Mascates (1710). O desembarque da Família Real no Rio de Janeiro em 1808 só aumentou a fervura da indignação. Havia uma forte discrepância social entre a vida na Corte e nas províncias – o que se arrecadava aqui era enviado para o Rio a fim de manter o estafe de Dom João VI. Fora isso, uma seca devastadora assolou a região em 1816, no mesmo momento em que a produção de açúcar em outros países fez o preço do produto nordestino despencar. “Paga-se em Pernambuco um imposto para iluminação do Rio de Janeiro, quando as do Recife ficam completamente às escuras”, descreveu o inglês Henry Koster, que viveu no Recife no período.

E foi neste caldo que a luta estourou.

Não à toa, a revolta também é chamada de Revolução dos Padres, uma vez que o Seminário de Olinda foi o nascedouro do movimento. Letrados e com acesso à informação, os religiosos tiveram papel crucial na formação do governo provisório, que durou 75 dias. O padre João Ribeiro, um dos líderes do movimento, tinha uma biblioteca fora dos mosteiros e abria o espaço à comunidade, conta Betânia Corrêa de Araújo, presidente do Museu do Recife. No Forte das Cinco Pontas, onde funciona o Museu, estreia dia 12 uma exposição sobre o período.

“A Revolução Republicana de 1817 se destaca não só por ter sido o primeiro movimento efetivo no sentido da independência do Brasil, mas também porque foi a única insurreição anticolonial que conseguiu tomar o poder em toda história da monarquia portuguesa”, explica o historiador George Cabral, professor da Universidade Federal de Pernambuco e presidente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

Apesar da onda de insatisfação à época, o movimento vinha sendo pensando para a Semana Santa de 1817, em abril, mas foi adiantada por causa de um decreto de prisão emitido pelo governador Caetano Pinto Montenegro. A lista vazou e os revolucionários reagiram à ordem. A morte do brigadeiro por Leão Coroado deflagrou o movimento.

A partir daí, instalou-se o governo provisório que tomou várias decisões para garantir os direitos de cidadania e as liberdades individuais dos novos republicanos – formado em sua maioria pelos senhores de engenho, padres e comerciantes. Uma lei orgânica com 28 artigos norteou os revolucionários e a liberdade de imprensa foi uma das conquistas. O Preciso foi um panfleto divulgado na época que propagou a revolta.

Outra marca presente até hoje é a bandeira de Pernambuco – composta por um fundo azul e branco. Sobre a faixa azul, figuravam um arco-íris, como símbolo da união, três estrelas (representando Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte) e o sol da liberdade.

Escravidão x Abolicionismo

Embora embebida dos ideais da Revolução Francesa, que estourou 28 anos antes, a Revolução de 1817 não tocou no regime escravocrata. O tema é, inclusive, alvo de discussão na academia. Os líderes tinham ideias abolicionistas, mas para levar o pensamento adiante era preciso romper com o status quo da época. “Era algo muito capilarizado e mexer nesse estrutura era tocar em algo essencial dessa sociedade e é onde se encontram os limites da revolução. Haviam boatos que iriam abolir a escravidão, mas o governo provisório precisou publicar uma nota informando o contrário”, explicou Cabral. No texto, o governo dizia: “A suspeita de vocês muito nos honra, porque a escravidão é ruim, mas vamos respeitar as propriedades privadas, mas desejamos abolir a escravidão gradualmente”, pontua o professor.

“A escravidão é o grande bode na sala da Revolução Pernambucana. Seus documentos defendiam ideais republicanos e liberais, inspirados pela Revolução Francesa, e propunha que todos os seres humanos nasciam livres e com direitos iguais. Apesar disso, em momento algum as proclamações de 1817 sugerem o fim do tráfico negreiro ou a abolição. O motivo é bem simples: alguns dos principais líderes do movimento eram senhores de engenho. Pertenciam, portanto, à mais fina flor da aristocracia rural escravagista da época. Um dos filhos do líder revolucionário Domingos José Martins, homônimo do pai, se tornaria alguns anos mais tarde o maior traficante de escravos na costa do Benin, na África, onde até hoje existe uma numerosa família de descendentes dele. Havia, claro, gente com simpatias abolicionistas no movimento, mas o tema era explosivo demais para ser defendido publicamente”, destaca o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor do livro “1808” sobre a chegada da família real portuguesa ao Brasil.

Foram 75 dias da República Pernambucana, que caiu por terra diante da falta de apoio das outras províncias, pelas falhas na organização militar do território e por contradições internas, mas os princípios de liberdade, ética e a ampliação dos direitos do cidadão perpassaram os séculos e continuam vivos.

Os líderes foram mortos ou presos e documentos históricos foram destruídos a mando do Rei para evitar novas revoltas. Pouco explorada pela história brasileira, a Revolução de 1817 é considerada de suma importância para os ideais de Independência, em 1822. Pelo seu caráter regional, Paraíba, Rio Grande do Norte e parte do Ceará se juntaram ao movimento, mas capitularam rapidamente.

Em 19 de maio, uma força de oito mil homens cercou Pernambuco e executou os envolvidos. Como punição, a Coroa tirou de Pernambuco o território de Alagoas. “Celebrar o Bicentenário da Revolução de 1817 é também relembrar a importância destes valores para os nossos dias”, defende George Cabral.


Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br


200 anos revolução pe

Os 200 anos da Revolução Pernambucana de 1817

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP), do PPS, promoverá, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e com o Centro Josué de Castro (CJC), no próximo dia 9 (quinta-feira), às 17 horas, no Auditório Calouste Gulbenkian (Av. Dezessete de Agosto, 2187, bairro Casa Forte), no Recife, um Seminário para relembrar a Revolução Pernambucana de 1817, considerada um dos mais importantes movimentos de caráter revolucionário do período colonial brasileiro e que teve ricas consequências para o País.

200 anos revolução de 1817

O evento, 1817 – A Contestação da Ordem Monárquica, será aberto pelos presidentes das instituições organizadoras, no caso o senador Cristovam Buarque, presidente do Conselho Curador da FAP; o advogado ‎Luiz Otávio de Melo Cavalcanti, presidente da Fundaj, e o sociólogo José Arlindo Soares, presidente do CJC. Na sequência, farão suas palestras os historiadores e professores Socorro Ferraz, abordando o tema “Os Contos Loucos e as Fantásticas Carrancas”; Flávio Cabral, com o tema “A Missão Cabugá nos EUA: Uma página da Revolução Pernambucana”; e José Luiz Mota Menezes, “Um Campo do Erário Régio, Dois Pátios e uma Revolução Republicana”. Em seguida, as pessoas presentes, mediante inscrição, poderão fazer curtas intervenções ou fazer perguntas aos palestrantes.

O governo provisório instalado pela Revolução declarou independência de Portugal e proclamou a República; decretou liberdade religiosa e de imprensa, mas não alterou as relações de trabalho escravo dominantes na produção canavieira. Os sublevados resistiram, por mais de dois meses, à ofensiva de dom João VI, instalado no Rio de Janeiro, que enviou cerca de 8 mil homens e uma frota naval para bloquear o porto do Recife, conseguindo esmagar o movimento republicano no dia 19 de maio.

A Revolução Pernambucana de 1817 foi liderada por destacados membros da maçonaria, como o comerciante Domingos José Martins; por militares, como José de Barros Lima, conhecido como o Leão Coroado, e Pedro da Silva Pedroso, além de vários religiosos, Muniz Tavares, João Ribeiro, Padre Roma e Padre Miguelinho.

O historiador Carlos Guilherme Mota considera a Revolução de 1817 como o maior movimento de contestação à ordem monárquica até então ocorrido no mundo afro-luso-brasileiro.