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Pelé faleceu em decorrência de falência múltipla dos órgãos | Foto: TV Foco

Revista online | Nunca houve ninguém como Pelé

Henrique Brandão, jornalista e escritor*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)

O dia 29 de dezembro começou todo voltado para o anúncio dos novos ministros que vão compor o governo Lula. Aí chegou a notícia de que Pelé havia morrido. Mesmo sabendo-se há dias de seu estado de saúde precário, do câncer irreversível, da morte iminente, a comoção tomou conta do Brasil e se espalhou pelo mundo na velocidade instantânea das redes sociais.

Nada mais natural, dada a dimensão gigantesca da figura que foi Pelé. Para se ter uma ideia do tamanho do mito, 183 jornais mundo afora trouxeram Pelé na capa de suas edições do dia 30 de dezembro. 

O prestígio imensurável de sua persona foi construído em uma carreira futebolística que começa profissionalmente em 1956, no Santos, e termina em 1977, no Cosmos de Nova York. Foram 21 anos encantando o mundo com jogadas geniais e gols maravilhosos (1.282 no total), marcados de diversas maneiras: de falta, de cabeça, com a perna esquerda, com a direita, de bicicleta, de voleio – fora os dribles desconcertantes que aplicava nos adversários – às vezes mais de um – antes de mandar a bola para o barbante. 

O mundo, estarrecido, submeteu-se ao Rei. Foi uma conquista que se deu não na ponta das baionetas, mas no bico das chuteiras mágicas que calçaram os pés de um garoto nascido em Três Corações, no sul de Minas Gerais, em 1940, filho de dona Celeste e de João Ramos do Nascimento, o Dondinho, jogador de futebol que levava o filho Edson Arantes do Nascimento para acompanhar os treinos. O apelido Pelé veio dessa época, uma corruptela do nome do goleiro do time de seu pai, chamado Bilé, que o garoto Edson insistia em chamar de Pilé. A chacota com o guri acabou gerando o apelido que virou sinônimo de fina realeza.

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Mesmo altas autoridades políticas mundiais, ou personagens que fizeram parte da história nos séculos XX e XXI, se curvaram ao prestígio da majestade negra, nascida pobre, apenas cinco décadas depois do fim da escravidão, em um país marcado pelo racismo e pela extrema desigualdade social.  

 “Eu sou Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Mas você não precisa se apresentar, porque Pelé todo mundo sabe quem é", sentenciou Reagan (1911-2004), presidente dos EUA de 1981 a 1989. Andy Wharhol (1928-1987), quando encontrou Pelé em 1978, teve que rever sua profecia: "Você é a única celebridade que, em vez de durar 15 minutos, durará 15 séculos". Pier Paolo Pasolini (1922-1975), cineasta italiano, autor de O Evangelho Segundo São Mateus (1964), disse: "No momento em que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia".

Seus colegas de profissão corroboraram o que os pobres mortais adoradores do velho esporte bretão já sabiam. Pelé paira, soberano, acima dos demais. O técnico argentino Cesar Luiz Menotti não deixa dúvidas sobre o seu lugar no panteão das glórias esportivas: "Maradona só seria um novo Pelé se ganhasse três Copas do Mundo e marcasse mais de mil gols". Da mesma forma, o craque da seleção húngara de 1954, Ferenk Puskas (1927-2006), decretou: "O maior jogador de futebol do mundo foi Di Stefano. Eu me recuso a classificar Pelé como jogador. Ele está acima de tudo". Johan Cruyff, jogador e técnico holandês, foi na mesma toada"Posso ser um novo Di Stéfano, mas não posso ser um novo Pelé. Ele é o único que ultrapassa os limites da lógica". Sigge Parling (1930-2016), zagueiro sueco que jogou a final da Copa de 58, quando Pelé despontou para o mundo fazendo dois gols na vitória da seleção brasileira por 5 a 2, reconheceu o talento do jovem adversário: "Após o quinto gol, eu queria era aplaudí-lo".

A crônica esportiva tupiniquim, acostumada a vê-lo em ação, sempre teceu loas ao Rei. Armando Nogueira (1927-2010), cronista de mão cheia, afirmou: "Pelé certamente teria nascido bola, se não tivesse nascido gente". Nelson Rodrigues (1912-1980), outro observador perspicaz do futebol e da alma humana, foi contundente sobre sua habilidade em livrar-se dos oponentes:  "Quando ele apanha a bola e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento". João Saldanha (1917-1990), com quem Pelé teve rusgas em 1969, quando Saldanha era o técnico da seleção brasileira que viria a ser campeã em 1970, concorda que, dentro das quatro linhas, não tinha outro igual a ele: "Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum".

Essa diferença entre o “Rei dos Gramados” e o homem comum Edson Arantes do Nascimento foi alimentada pelo próprio Pelé, que se referia a si na terceira pessoa. Se os feitos em campo são magistrais, o “mortal” Edson teve altos e baixos na vida. Nos negócios, ganhou muito dinheiro, mas perdeu muito também, por escolhas erradas de investimentos e dos eventuais sócios. Na vida privada, teve três casamentos, sete filhos, sendo que dois deles de relacionamentos extraconjugais. A filha Sandra Regina somente foi reconhecida após exames de DNA e por determinação da Justiça. Com ela, Pelé – Edson, no caso – nunca teve uma relação boa. Sandra morreu de câncer, aos 42 anos, sem estabelecer qualquer relação de afeto com ele, que sequer foi ao enterro da filha.

Na política, que nunca foi o seu forte, Pelé sofreu críticas por ter se deixado usar pela ditadura militar, que explorou a conquista da Copa de 1970. Maradona, em 1997, não o perdoou por ter participado dos esquemas da FIFA: “Pelé é um escravo. Vendeu seu coração para a FIFA. Depois, quando a FIFA o chuta, ele quer amizade conosco, os jogadores”, afirmou. 

Veja, a seguir, galeria:

Foto: Agência Brasil
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No entanto, teve o mérito de, quando ministro dos Esportes do governo FHC, ter abolido a lei do passe, antigo instrumento que dava aos clubes o direito sobre os jogadores, mesmo que o contrato entre as partes estivesse sido encerrado. A Lei Pelé, como ficou conhecida, é um marco na profissionalização do jogador de futebol.

É evidente que, na comparação entre o Edson de carne e osso e o ídolo Pelé, o Rei do Futebol se impõe, pela forte simbologia que representa sua trajetória: um jogador negro, de origem humilde, nascido em um país periférico, que, graças ao seu talento, consegue em poucos anos conquistar o mundo para se tornar a pessoa mais conhecida do planeta. 

As manifestações de carinho e as condolências que chegam de todas as partes não deixam dúvida: Pelé é insubstituível.

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Pelé | Foto: Paulo Whitake/Reuters

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Álvaro José Silva, escritor e jornalista*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)

Não me lembro bem das circunstâncias, mas um dia estava num ônibus que passaria pelo Pacaembu. Havia uma aglomeração em torno da mulher negra, vestida com o uniforme do Corinthians e que estava indo para o estádio onde jogariam seu time e o Santos. O Santos de Pelé.

Conversa daqui, conversa dali, e veio à tona o “tabu”. O Corinthians ficou 11 anos sem vencer o Santos, quase tudo por obra e graça “dele”, como falavam todos, inclusive Eliza, a torcedora símbolo. Perguntaram a ela se o “tabu” cairia naquele dia. “Acho que sim”, respondeu. E se Pelé um dia jogaria pelo Corinthians. “Quando estiver veterano”, apostou. Errou em ambas as previsões e desembarcou logo em seguida no ponto da Praça Charles Muller. O Rei do Futebol jamais jogou no Corinthians e o “tabu” caiu um ou dois anos depois, quando o Santos perdeu por 2 a 0 no mesmo Pacaembu. No dia seguinte a manchete em letras garrafais do jornal Gazeta Esportiva era: “Alegria, acabou o tabu”.

Acho que Eliza viu esse jogo. Não posso afirmar, mas ela ia a todos. Eu não pude ir porque o advogado amigo de papai que me levava chegou muito tarde e não havia mais lugar no estádio. Voltamos correndo para casa e vimos o clássico na TV pois a Federação Paulista de Futebol liberou a transmissão da TV Record ao vivo para evitar qualquer tipo de confusão. Eu, corintiano sempre apaixonado, vi o segundo tempo dos gols de Paulo Borges e Flávio com lágrimas nos olhos. Acabou o tabu!

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Era assim que o futebol vivia ainda nas décadas de 1960/70. Gravitando em torno do Santos e de Pelé. E os jogos entre os chamados grandes lotavam os estádios quando aconteciam. Quase invariavelmente os santistas eram favoritos. Na rua onde eu morava, no bairro da Aclimação, São Paulo, éramos vizinhos de uma família de italianos. Luiz, o filho mais velho do fabricante de estátuas de alabastro era, claro, palmeirense. O irmão mais novo, Ricardinho, não. Contra a vontade da família toda torcia pelo Santos de Pelé. E isso acontecia com milhares de outros garotos em São Paulo e inúmeros outros lugares do Brasil e até mesmo do exterior já naquela época.

Antes do surgimento do maior jogador da história, o Santos era um clube médio, de um balneário muito procurado. Com Pelé, ele ganhou uma projeção nunca antes imaginada por ninguém. Afinal, era o endereço de Pelé e seus súditos: virou grande entre os grandes e começou a conquistar títulos em profusão. Também se tornou dono de uma das maiores torcidas de São Paulo, com adeptos apaixonados espalhados pelo Brasil todo e pelo exterior também. Eram os torcedores de Pelé, os admiradores do Rei que, quando vestia a camisa da Seleção Brasileira acabava reverenciado em todos os lugares. A marca Santos se tornou mais perene que a do Botafogo de Garrincha. E os dois viveram mais ou menos na mesma época.

O que Pelé tinha e os outros, não? Ele simplesmente era completo. Passava a bola, armava jogadas, chutava, dava assistência, cabeceava, cobrava faltas, escanteios, batia pênaltis, orientava os mais novos e até os mais velhos, discutia tática de jogo até com os técnicos. Sempre com genialidade. Em consequência disso tudo, tornou-se um grande conquistador de mulheres. Ia encerrar a carreira no Santos, mas não conseguiu resistir a uma proposta financeiramente imensa do New York Cosmos. Foi embora para tornar o futebol popular nas terras do basquete, do rugby, do beisebol e de outras modalidades meio estranhas a nós, os brasileiros.

Há uma diferença abissal entre Pelé e os jogadores de sua época e os atuais. E não apenas em termos de qualidade técnica, mas também em conscientização sobre o valor que cada um deve ter e dedicar ao exercício da atividade. Pelé jogou na época de Coutinho, Mengálvio, Pepe, Dorval, Zito e mais craques. E não apenas os do Santos, mas também Leivinha, Dudu, Ademir da Guia, Dino, Rivelino, Flávio e muitos outros. Tantos que a gente se esquece e nem tem espaço para falar de todos eles. Cito uma diferença fundamental: eram pessoas que vendiam sua arte despida de tudo o mais, menos os uniformes de jogo. Não eram árvores de falso Natal cobertas de tatuagens de cima abaixo. E nem aproveitavam os jogos de Copas do Mundo para saborear filés com ouro nos intervalos de uma para outra partida.

A exemplo de Neymar, Pelé tomava muitos trancos. Mas devolvia. Ao longo da carreira eu o vi nos estádios – sim, eu o vi ao vivo! – fazendo sinal de “aguarde o troco” para o adversário que o havia agredido. E não era de ficar caído no chão, rolando como uma bola. Levantava-se imediatamente como mola. Na Copa do Mundo de 1970, no México, atrasou um pique para esperar o adversário uruguaio que o estava caçando em campo. Deu-lhe uma cotovelada tão forte na cara que quase arrancou a cabeça do sujeito. Procópio, jogador do Cruzeiro, teve a perna fraturada num revide de Pelé. Giesemann, jogador da Alemanha, da mesma forma. Então os adversários sabiam que era perigoso caçar Pelé em campo. Por consequência, tentavam parar aquela máquina de jogar com futebol limpo. E ele retribuía da mesma maneira.

A gente pode argumentar: então o nosso Rei era violento? Sim, quando necessário. O gênio da bola estava longe de atuar como um monge budista. Num passado mais recente, quem chegou mais próximo da excelência dele foram jogadores como Zico e Sócrates, para ficarmos em apenas dois exemplos. Ambos eram virtuoses em sua profissão. Sócrates, tanto na bola quanto no copo, mas ninguém ligava para isso porque o retorno em campo estava garantido. Ironia do destino: nenhum dos dois foi campeão do mundo.

Mas não por ironia, Neymar também não será. O futebol que ele joga, e muitos dos nossos craques atuais vivem, muito mais de autopromoção do que de responsabilidade profissional. Querem ser astros sem história. Eu disse no início que Pelé gostava muito de mulher. Mas ele não se envolvia em escândalos, ao que consta jamais cometeu violências e, por consequência, nunca enfrentou um problema nessa área. Muito parecido com Sócrates, que mantinha a vida privada como coisa somente sua. Diferente de Zico, a vida toda casado com sua Sandra e somente com ela.

Vini Júnior, muito novo, talvez viva no futebol tempo suficiente para desembarcar no Brasil com o troféu da Copa do Mundo. Mas terá que rever seus princípios, sua maneira de viver e de encarar a profissão. Não basta apenas saber jogar para chegar ao Olimpo. O Palmeiras tem hoje Endrich, menino menor de idade e com um futebol fabuloso, tanto que já foi negociado para a Europa. Seria vital se as pessoas conseguissem enfiar na cabeça dele que a receita do sucesso passa por Pelé e não por Neymar. Também seria de bom tom explicar isso a Raphinha e a Richarlison, embora esse último seja apenas um rompedor. Problema nenhum porque Vavá também era e foi campeão do mundo pelo Brasil.

Nós ainda temos muito potencial, mas ele está sendo perdido por causa do descompromisso dos jogadores com a responsabilidade que o futebol cobra de seus profissionais. E isso hoje tem muito a ver também com os treinadores, já que eles aceitam situações que no passado seriam impensáveis. Dizem: fora de campo a vida dos jogadores é problema deles. Não é.

Pelé, muito jovem, teve a oportunidade de jogar uma vez pelo Vasco, seu time do coração na infância, antes de ser tomado de amores pelo Santos. Interessante, mas o clube do bairro carioca de São Januário também tinha uma mulher, Dulce Rosalina, como sua torcedora símbolo. E, ironia do destino, foi no Vasco do goleiro Andrada que o Rei marcou seu milésimo gol, numa cobrança de pênalti, em pleno Maracanã que o reverenciava.

Veja, a seguir, galeria:

Foto: Divulgação/Instagram do Pelé
Foto: Neil Hall/Anadolu Agency/Getty Images
Foto: Ronaldo Kotscho/Revista Placar
Foto: Reprodução/Twitter do Pelé
Foto: Reprodução/Divulgação Santos FC
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Foto: Francois Guillot/AFP
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Mas quem não fazia isso era o goleiro Mão de Onça, do Juventus. Nascido Durval de Moraes em 1931 e ainda vivo hoje, negro que chegava a brilhar, tinha um medo paranoico de Pelé. Quando jogava contra seu maior algoz, começava a gritar com os companheiros, tão logo o jogo começava: “Segura o Negão! Porrada no Negão! Cerquem o Negão! Marquem o Negão!” e ia por aí. Invariavelmente o Negão vencia e o pobre Mão de Onça ia buscar a bola no fundo das redes. Hoje há uma estátua de Pelé no estadinho do clube no bairro da Mooca, na Rua Javari, em São Paulo.

Mas não por causa de seu goleiro. É que foi lá, em 2 de agosto de 1959, que o Rei marcou aquele que ele próprio considerava seu maior gol. Recebeu a bola na entrada da área, deu um chapéu no primeiro adversário, em seguida deu outro no segundo e, com Mão de Onça no ar, saltando para evitar o gol, ainda teve como dar um terceiro nele e depois tocar de cabeça para o gol diante de incrédulos torcedores que se levantaram para aplaudir de pé.

Quando ele jogava bem não dava para segurar o Negão!       

Sobre o autor

*Álvaro José dos Santos Silva é escritor e jornalista.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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O Rei do Futebol nos deixou aos 82 anos de idade Foto: REUTERS/Andrew Kelly

Morre Pelé, o Rei do Futebol, aos 82 anos

Estadão*

 Aos 82 anos, o melhor jogador de todos os tempos não resistiu ao tratamento de um câncer no cólon. Ele estava internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Seu coração bateu pela última vez de forma lenta e pausada, sem que seu corpo sentisse qualquer dor. Estava sedado. Pelé morreu sereno, tranquilo e calmo, como sempre se comportou diante dos zagueiros e goleiros que tentaram impedir seus gols. Tudo o que era possível fazer, foi feito.

Pelé nunca desistiu da vida. Ela sempre lhe deu muito. E ele a todos nós. Pelé queria viver mais. Ele terminou os seus dias amparado pela mulher, Márcia, com o carinho dos filhos e rezando no quarto do hospital, um hábito que sempre o acompanhou, mas que nos últimos tempos era quase uma obsessão. Pelé rezava com os médicos. Levou sua fé até o fim e a Deus nunca deixou de agradecer pelo dom dado sem pedir nada em troca.

O futebol está de luto. O dia de sua morte será lembrado para sempre, assim como sua história. “Pelé morreu” vai ser a frase mais dita nos próximos dias em Três Corações, Bauru, Santos, São Paulo, Brasil e em todos os cantos do planeta. Seu corpo será velado na Vila Belmiro. A família pediu para o corpo ser cremado. Haverá muita gente incrédula com a notícia. Mas ninguém indiferente a ela. Sua história continuará sendo contada de geração em geração até o fim dos tempos. Reis, rainhas e presidentes vão chorar sua morte e reverenciar o que ele fez em vida. O futebol vai demorar para entender o que essas duas palavras significam: “Pelé morreu”. A notícia vai correr o mundo. Não se sabe se um dia o futebol deixará o luto. Suas histórias vão virar lenda. Pelé está morto.

O Brasil ainda não sabe o que sua morte significa. Vai descobrir com o tempo, em meio à dor da perda de um filho pródigo e de um vazio inigualável. Inigualável porque Pelé foi o maior jogador da história do futebol. Não há nem haverá outro como ele. A notícia de sua morte, dada pelo Estadão, vai ecoar pelo mundo. Onde há uma bola, há reverência a Pelé, seu talento e história. O futebol chora sua morte. Pelé está morto.

Ele deixa milhões de admiradores e seguidores nas redes depois de viver os últimos anos numa luta quase que diária com suas doenças. Há anos, sua saúde estava cada vez mais debilitada, de altos e baixos, com momentos estáveis e outros nem tanto. Pelé foi definhando em vida, longe da bola e cada vez mais distante dos compromissos profissionais. Em seus últimos momentos, nem de longe lembrava aquele atleta esbelto e dono de movimentos precisos. Mas Pelé reinou absoluto até o fim. Ele deixa mulher e sete filhos. Um câncer o derrubou, mas não somente. Ele tinha outras doenças graves, uma delas nos músculos das pernas. Tentou um tratamento nos EUA, mas não deu certo. Também tinha enfermidades no coração.

Neste dia em que não haverá notícia maior e mais sentida do que sua morte, Pelé se junta a outros gênios da humanidade, como Leonardo da Vinci, William Shakespeare, Albert Einstein, Villa-Lobos e alguns mais por quem o mundo se dobrou. Os feitos de Pelé como jogador correram o mundo e se tornaram maiores do que ele próprio, um sujeito simples que gostava de reunir a família em volta da mesa aos domingos, de cantar e contar histórias. Sua fama o precede desde os 17 anos, quando estreou pela seleção brasileira na Copa de 1958. Nascido Edson Arantes do Nascimento, Pelé foi homem e deus ao mesmo tempo. Em vida, recebeu muitos homenagens. A última delas, uma coroa na camisa do Santos. Em sua morte, recebe gratidão. Pelé está morto.

O Rei estava internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ele acompanhou alguns jogos da Copa do Catar, ‘abraçou’ Neymar após a eliminação do Brasil e festejou a conquista da Argentina, do amigo Messi. Um dos últimos boletins médico relatava um Pelé mais enfraquecido e debilitado. “Internado desde 29 de novembro para uma reavaliação da terapia quimioterápica para tumor de cólon e tratamento de uma infecção respiratória, Edson Arantes do Nascimento apresenta progressão da doença oncológica e requer maiores cuidados relacionados às disfunções renal e cardíaca. O paciente segue internado em quarto comum, sob os cuidados necessários da equipe médica”, informava o boletim do dia 21 de dezembro assinado pelos médicos Fabio Nasri, geriatra e endocrinologista, Rene Gansl, oncologista, e Miguel Cendoroglo Neto, diretor-superintendente médico e serviços hospitalares, todos do Einstein e que assistiram ao paciente em seus últimos dias. Familiares também estiveram com ele. Sua última mulher, Marcia, foi a grande companheira à beira da morte.

Pelé iniciou tratamento contra um tumor no cólon em 2021. Ele precisava ir ao hospital com frequência para dar seguimento ao atendimento e fazer avaliações. Já havia sido submetido a uma cirurgia para retirada do tumor no mesmo hospital em setembro daquele ano. No início de 2022, os médicos constataram metástase que atingia o intestino, o pulmão e o fígado. Pelé nunca se entregou. Morreu sedado e sem se entregar.

Texto publicado originalmente no Estadão.


Cacá Diegues: O mistério do galo

Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse

O brasileiro Edson Arantes do Nascimento acaba de completar 80 anos de idade, o que passaria despercebido se Edson não fosse o Pelé, como é conhecido no mundo inteiro. Nelson Rodrigues comparava o maior atleta do século XX a gênios como Homero e Leonardo. Mas, acima de tudo, Pelé era a representação de nossa alegria e graça; de nossa superioridade produzida pelo drible, o risonho engenho de dobrar o outro; pelo gol inevitável e fatal, nunca igual e nem mesmo semelhante; pela festa dos estádios celebrando o que ele fazia por nós. Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse.

Como escreveu outro craque, Tostão, “a perfeição não é humana, Pelé é uma exceção”. Dessa perfeição, uma exceção, tirávamos nossa desforra de tudo o que nos maltratasse, da fome do povo à namorada que nos traía, do político mentiroso à nota baixa em filosofia, do subdesenvolvimento à praia sem sol. Pelé era o gol que nunca perdemos, mesmo que tomássemos de goleada no cotidiano. Direto de Vila Belmiro, ele nos trazia a esperança da chegada de um novo país igual a ele. Igual ou parecido, que parecido já estava muito bom.

Esse país nunca chegou e talvez nem chegue mais, pois Pelé já está fazendo 80 anos, e ninguém tem notícia de um Brasil igual ou parecido com ele: maneiro e correto, cordial e guerreiro, capaz de mudar sua própria história numa única, inventiva e solitária jogada, ou de se misturar com a equipe para reescrever a história da civilização. Não estou inventando nada, perguntem a quem jogou com ele, como Jairzinho e Tostão, como Coutinho ou Pepe. Era muito mais fácil fazer gol com Pelé no time, contando com sua íntegra solidariedade com os companheiros de valor.

Durante todo o século XX, a cultura brasileira sempre oscilou entre a procura de uma identidade nacional e o desejo de uma integração cosmopolita na ponta do mundo contemporâneo. Essa busca não foi só um empenho de poetas e artistas, de intelectuais e pensadores. Mas também de brasileiros de várias outras atividades, empenhados em nossa originalidade funcional e afetiva, capaz de nos diferenciar no mundo daquele tempo, dominado apenas por duas únicas ideias mandonas.

Nossa cultura sempre viveu dessa dualidade, entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Orgulhosos de nossa exuberância e sensualidade, começamos por nos extasiar diante do barroco colonial. Quase nunca lembramos que essas igrejas douradas eram construídas por milhões de pretos escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime social de que se tem notícia no continente. E depois, pela cor de sua pele e por sua condição social, nem permissão tinham para entrar nos templos que haviam construído.

Foi com esse “barroco espiritual” que nascemos para o resto do mundo ocidental, com nossa fama solar às vezes contestada, mas sempre defendida por alguma versão oficial. Se Gregório de Matos e Antônio Vieira nos remetiam à miséria e à podridão, ao inferno social e moral que encontravam aqui, o padre Simão de Vasconcellos foi levado ao tribunal da inquisição por afirmar que o paraíso terrestre se encontrava no Brasil.

Talvez seja o caso de levantar a hipótese de que essa originalidade nunca tenha se manifestado pra valer em nossa história social, mas ela pode ser o mais belo, profundo e secreto projeto inconsciente do povo deste país. Um projeto de invisíveis, sempre inviabilizado pelo Brasil dos infernos, às vezes detectado por mestres mediúnicos. Como Pelé. Afinal de contas, o mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer.

Nem todos os brasileiros são ou serão Pelé. Mas basta que os tenhamos em número suficiente para evitar que nossos pobres ministros ignorantes discursem, para seus jovens diplomatas, contra João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Que a vacina chinesa, como tudo mais inventado por lá, papel, pólvora, macarrão, bússola etc., seja condenada como imprestável por ter nascido na China. Que um manda, o outro obedece, e pronto. Para evitar, enfim, que Pelé seja apenas um retrato nostálgico na parede, mas que ele seja um exemplo poderoso do que o Brasil um dia ainda será. Love, love, love.