PEC
O Estado de S. Paulo: Definição de grade de programação da Globo pode acelerar decisão de Huck sobre 2022
Apresentador se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo TSE e uma possível definição na esfera profissional, em meados deste ano
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
Em seu cálculo para uma possível candidatura à Presidência da República em 2022, o apresentador e empresário Luciano Huck se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outro mais curto envolvendo uma decisão na esfera profissional. O apresentador da TV Globo tem dividido sua agenda entre a produção do Caldeirão do Huck, principal atração dos sábados da emissora, 'lives' na internet para debater o cenário nacional, encontros com líderes políticos e empresariais e artigos para a imprensa.
Diante desta atuação em múltiplas frentes, dirigentes partidários e operadores do mercado publicitário aguardam sinais mais claros sobre as intenções do apresentador. Este sinal pode vir até junho deste ano, quando a TV Globo deve definir sua futura grade de programação. O prazo é o mesmo projetado por políticos que mantêm interlocução com Huck para que o apresentador comece a marcar posição no tabuleiro eleitoral.
Com o anúncio do fim do Domingão do Faustão – em dezembro deste ano, quando vencer o contrato do apresentador Fausto Silva -, a indefinição sobre o futuro dos domingos na grade Globo é hoje o principal foco de debate entre os profissionais de mídia das agências, que são os responsáveis por definir a distribuição das verbas dos anunciantes. Huck é considerado um sucessor natural de Fausto Silva nas tardes de domingo. Publicitários ouvidos em caráter reservado pelo Estadão dizem que as pretensões´políticas de Huck estão causando um "rebuliço no mercado" porque a Globo tem poucas "pautas inéditas" para apresentar na grade de 2022 devido à pandemia.
O principal patrocinador do programa Caldeirão do Huck é a rede Magazine Luiza, da empresária Luiza Trajano, que também vem sendo assediada por partidos para entrar na disputa presidencial em 2022. O patrocínio, porém, vale até junho deste ano. Se renovar o contrato, ele valerá até junho de 2022. Isso significa que, caso se filie a um partido em abril, no prazo estabelecido pelo TSE, Huck entraria na política no meio da vigência de um dos principais contratos da Globo e teria que deixar o comando do programa.
Procurada, a assessoria de imprensa da Globo não se manifestou. Segundo fontes do mercado publicitário, as tabelas de preços de patrocínios e comerciais costumam mudar a partir de abril e os anunciantes encaram 2022 como uma grande incógnita.
Precoce
Na cena política, a leitura é que o processo eleitoral de 2022 foi antecipado pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo PT, que colocou o "bloco na rua" com Fernando Haddad, por João Doria (PSDB) e Ciro Gomes (PDT) – que se movimenta para construir uma frente de centro esquerda alternativa ao PT com Rede, PSB e PV. "Está havendo uma aceleração do processo eleitoral. Ele (Huck) deve se decidir até o meio do ano e a grade da Globo é a antessala dessa decisão", disse o ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania, um dos partidos que cortejam o apresentador.
O presidente do PSB, Carlos Siqueira, evita falar em nomes, mas afirma que o partido também busca um "outsider" para disputar o Palácio do Planalto ano que vem. "Estamos com o radar ligado na busca por um nome que unifique as forças sociais", afirmou. Sobre o processo de escolha do nome, o dirigente afirmou que o "ideal" é que ocorra até meados de 2021.
No cálculo para uma eventual candidatura ao Palácio do Planalto são levadas em conta por aliados de Huck fusões de legendas e um arranjo que sustente a proposta de um centro liberal e democrático, capaz de se contrapor à polarização entre bolsonaristas e petistas. Desde o ano passado, ao menos quatro partidos já sondaram o global.
Com o DEM fragmentado e mais governista, uma opção que passou a ser avaliada com atenção extra por aliados do apresentador é o PSB. As conversas ocorrem desde o ano passado e têm sido estimuladas pelo prefeito do Recife, João Campos (PSB), e por sua namorada, a deputada federal Tabata Amaral (SP), que está rompida com seu partido, o PDT. Tabata tem relação próxima com Huck e foi a ponte entre ele e Campos. Os dois jovens políticos integram o RenovaBR, grupo de renovação e formação política que tem o apoio do apresentador.
Huck tem subido vem subindo o tom contra o governo Boslonaro em suas falas. Na segunda-feira, 1, ele disse que é preciso tirar "um entulho do meio da sala", ao se referir à atuação do governo federal diante da pandemia do novo coronavírus. Na fala, o potencial candidato à Presidência em 2022 não citou o nome do atual ocupante do Planalto.
Em outro evento promovido na quinta-feira, 04, pelo RenovaBr, Huck criticou "o não diálogo" no Brasil ao formular uma pergunta ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é apontado como potencial candidato do PSDB ao Palácio do Planalto. "A sensação que eu tenho, Eduardo, é que falta o adulto na sala, sabe? E você a meu ver tem sido uma voz ouvida no cenário nacional hoje em dia, uma voz ponderada, uma voz defendendo a sensatez no trato da gestão pública. E acho que esse é o melhor caminho."
Procurada, a assessoria do apresentador não respondeu.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
Rogério Werneck: Populismo explícito
Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, equipe econômica terá de lidar com o risco de uma guinada populista inequívoca
Não é de hoje que o País anda sobressaltado com a possibilidade de Bolsonaro rasgar a fantasia e abandonar de vez seu suposto compromisso com uma agenda de política econômica liberal.
Em janeiro, houve a tentativa de demissão do presidente do Banco do Brasil, por ter anunciado redução no quadro de funcionários da instituição. A escalada mais recente, da demissão do presidente da Petrobrás, por insensibilidade pelos interesses dos caminhoneiros, configurou episódio bem mais grave.
Como interpretar a súbita disposição de Bolsonaro de se mostrar tão mais truculento no problemático cabo de guerra que, há tempos, vem travando com Paulo Guedes e sua equipe? Em que medida tudo isso levanta incerteza sobre a condução da política econômica no País?
Não há como se agarrar ao autoengano. O episódio deixa mais do que clara a extensão do esgarçamento na complexa relação de Bolsonaro com seu ministro. É inegável que houve constrangedora perda de face de Paulo Guedes e sério comprometimento de sua credibilidade. E, sobretudo, de sua capacidade de articulação, tanto dentro do governo como com o Congresso.
A demissão caiu como uma ducha de água fria no ambiente de negócios no País. Trouxe desestímulo a investimentos relacionados a privatizações e concessões, em que Guedes vinha fazendo muita fé. Um clima de desalento que se fará sentir tanto no timing como no vigor da tão aguardada retomada da economia. Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, a economia terá de lidar agora com o risco cada vez mais palpável de uma guinada populista inequívoca.
O que terá feito Bolsonaro, de repente, partir para tamanha truculência, botando em risco sua relação com Guedes? Em se tratando de quem é, não se pode descartar, claro, a possibilidade de que tenha sido só mais uma decisão desajuizada da qual o presidente já esteja arrependido, mas, como sempre, incapaz de recuar.
Na verdade, o movimento parece ter tido motivação mais fundamentada. Por difícil que seja tentar racionalizar o comportamento de Jair Bolsonaro, vale a pena especular sobre o que o terá movido. A resposta mais óbvia tem a ver com sua crescente apreensão com a provável evolução de sua popularidade nos 19 meses de travessia que ainda tem pela frente, até a eleição presidencial de outubro de 2022.
Na esteira do recrudescimento da pandemia, do surgimento de novas cepas do vírus e da ineficácia das ações do governo na Saúde, o País parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais. O que deverá retardar a recuperação da economia para o segundo semestre, na melhor das hipóteses.
Sobram sinais de crescente indignação da população com o deplorável avanço da vacinação. Impactado pelas cenas macabras de Manaus, Bolsonaro, afinal, se deu conta de como o agravamento da pandemia, antes da vacinação, poderá lhe ser desastroso.
Ao continuar se gabando em público de jamais se ter equivocado quanto à pandemia – “não errei nenhuma” –, o presidente parece, de fato, alucinado. Mas a verdade é que Bolsonaro não cospe para cima nem rasga dinheiro. É perfeitamente capaz de perceber as reais proporções das barbaridades que se permitiu cometer diante do avanço da pandemia e teme, a cada dia, quão oneroso tudo isso ainda lhe poderá ser. Não sabe por quanto tempo poderá continuar a confiar no Centrão para se esquivar da conta que acabará lhe sendo apresentada.
Além dessa espada sobre sua cabeça, o que o presidente agora entrevê são muitos meses mais de pandemia e uma recuperação cada vez mais tardia e menos convincente da economia, fadada a deixar a taxa de desemprego ainda assustadoramente alta no seu último ano de mandato.
Não chega a ser surpreendente que, alarmado com essa perspectiva, Bolsonaro tenha decidido, afinal, “entrar (para valer) na política econômica”. Já não esconde de ninguém que quer conduzir a seu modo sua difícil travessia até as eleições. “Se tiver de errar, quero pagar pelos meus erros.”
O que mais estará disposto a fazer, se sua queda de popularidade persistir?
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-RIO
Vinicius Torres Freire: Entenda a recaída do Brasil e por que os EUA afetam dólar e juros por aqui
Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil
Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.
Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.
O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.
A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.
Considerada ainda a volta a alguma normalidade sanitária no segundo semestre, a economia americana tende a acelerar. Haveria perspectiva de volta da inflação e, assim, de alta das taxas de juros de curto prazo, se diz.
Jerome Powell, o presidente do Fed, disse nesta quinta-feira que não, sem convencer “o mercado”. Não seria neste ano que estariam satisfeitas condições para alta de juros: mercado de trabalho recuperado, inflação a 2% e expectativas de inflação que fiquem por aí, ou algo mais, por alguns anos.
O efeito mais imediato dos EUA por aqui é a alta do dólar e dos juros brasileiros de prazo mais longo. Mas dólar mais caro por mais tempo sedimenta expectativas de inflação mais alta. Além do mais, houve aumento grande do preço de commodities (petróleo, grãos) e pressão em preços de bens de consumo por causa dos auxílios emergenciais. O IPCA deve ficar na casa dos 6% entre abril e setembro. A renda do trabalho está sendo carcomida.
A fim de deter essa inflação, o BC brasileiro deve elevar a taxa de juros básica (Selic), ora em 2%, a partir de 17 de março, embora ainda exista controvérsia sobre a persistência dessa carestia. Para Castelar, a Selic tem de ir a 5,5% no final do ano. Para os economistas do Itaú, a 5%. Pela opinião visível no custo do dinheiro na praça financeira brasileira, para algo entre 5,5% e 6%.
Seria uma paulada. Um aperto na atividade econômica. Um aumento no custo de financiamento da dívida pública já enorme, custo extra que ficará notável em 2022. Vai para o vinagre a ideia de que poderíamos ficar com juros reais perto de zero até bem entrado o ano que vem.
O morticínio crescente e o semiparadão também não estavam nas contas econômicas. As restrições oficiais e voluntárias a movimento e comércios não serão tão grandes como no início de 2020. Mas devem ter efeito por pelo menos até abril. É menos crescimento, se algum, até meados do ano. O PIB paulista caiu em janeiro, primeira baixa ante mês anterior desde abril de 2020 (no indicador PIB+30 do Seade). O indicador Cielo de vendas no varejo se recuperou bem até outubro, quando estava em queda de 7,7% ante igual mês do ano anterior. Em janeiro, estava em baixa de 12,6%.
O mundo de novembro de 2020, que deu um alento ao PIB do final do ano, se esfumaçou. Fevereiro foi fraco, março será pior. Sim, Jair Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre. Mas convém prestar atenção nos EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil.
Reinaldo Azevedo: No banquete de Bolsonaro, somos 210 milhões de leitões no espeto
Parte do STF ajudou a pavimentar o caminho para a terra dos mortos. E agora? Como enfrentar a necropolítica?
Na terça (2), houve recorde de mortes por Covid-19 no país, já superado por outros. Jair Bolsonaro estava num almoço festivo no Alvorada com políticos mineiros. Peça de resistência do cardápio: brasileiro no espeto. Estávamos lá na forma de um leitão esturricado. Somos a carne barata do capitão tresloucado, cercado de generais por todos os lados.
Nesta quinta, com um novo marco de cadáveres, ele conclamou os brasileiros a cair na vida para entrar na morte. "Chega de mimimi", exortou. Afirmou que, na Bíblia, a expressão "não temas" aparece 365 vezes. Teve de consultar um papel. Não conseguiria reter na memória tanta informação. Disse o troço olhando estranhamente para o lado, como se fizesse o download de algo que não era deste mundo.
Vamos a uma indagação que fez história: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" É um dos tuítes golpistas que o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, dirigiu ao STF no dia 3 de abril de 2018. Mais de 260 mil mortes depois, será que ele tem a resposta?
A intimidação tinha como alvos os ministros do STF. Queria que endossassem o voto de Edson Fachin, relator do HC de Lula, que mantinha o ex-presidente na cadeia contra a Constituição e contra o Código de Processo Penal. O resultado saiu ao gosto da caserna. Fachin não soltou nem Lula nem um pio. Três anos depois, o jacobino tardio anuncia que a democracia está sendo ameaçada por militarismo, intimidação aos Poderes, depreciação do voto, ataques à liberdade de imprensa, armamentismo, recusa antecipada ao resultado das eleições e, claro!, corrupção.
Os seis primeiros itens servem apenas para lavar o sétimo. O paladino do moralismo em que jaz a moral continua a fazer a defesa incondicional da Lava Jato e de seus métodos criminosos. Em offs nada sutis, o ministro tem especulado que a suspeição de Sergio Moro —e, pois, a anulação da condenação de Lula no caso do tríplex— pode ter um efeito cascata, atingindo outros casos. A sugestão implícita é clara e indecente: mantenha-se a sentença insustentável para salvar o sistema.
Fachin é o emblema de um tempo em que o Supremo, por sua maioria, faltou miseravelmente ao país, permitindo que o Estado de Direito se esboroasse no grau zero da legalidade, fragmentando-se em solipsismos de suposta vocação redentora, com o alegado propósito de excluir malfeitores da vida pública. Bolsonaro e os milicos souberam percorrer a trilha que unia a destruição do devido processo legal à terra dos, em breve, 300 mil mortos.
O tribunal que ajudou a promover —por sua maioria, não por unanimidade— a razia na política se queda inerme e perplexo diante da devastação produzida pelo presidente da República e por alguns de seus ministros. No que lhe tem sido dado arbitrar, é verdade, tem feito a coisa certa em relação à Covid-19. Ocorre que há pouca margem de manobra.
Como esquecer? Políticos se tornaram réus, alguns defenestrados da vida pública, porque a corte acolheu denúncias segundo as quais doações então legais a campanhas eram formas veladas de corrupção, bastando para tanto as delações premiadas arrancadas no cárcere por procuradores dispostos a fazer com que seus reféns "mijassem sangue". Mistificação, demagogia e truculência abriam a picada para os cemitérios.
O delírio punitivista em que se perdeu o Judiciário, em especial o STF —e Fachin continua caudatário desse desastre—, não protege, como se vê, os brasileiros da sanha homicida do Poder Executivo; de sua incompetência; da negação do saber científico; da distribuição de drogas sabidamente ineficazes no combate à Covid-19; da negligência no trato com as vacinas; da, para ser sintético, necropolítica.
O impeachment de Bolsonaro não está no horizonte. Pergunto-me: o que mais pode fazer o Estado legal, de que o STF é a expressão maior e o intérprete final, para impedir que o presidente da República trate 210 milhões de brasileiros como leitões no espeto?
Bruno Boghossian: Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?
Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?
Pela manhã, Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi até a Base Aérea de Brasília. Antes de decolar, repetiu nas redes sociais a propaganda de sua caçada pelo spray nasal israelense contra a Covid, que ainda não tem eficácia comprovada. Quando o avião presidencial deixou a pista, 600 pessoas já tinham morrido da doença no país, segundo a média dos últimos dias.
Às 9h15, o presidente pousou em Uberlândia (MG). Durante o voo, outros 55 brasileiros morreram. Antes de seguir para Goiás, Bolsonaro parou para conversar com apoiadores. A cidade tem 100% dos leitos de UTI ocupados, mas o governo montou um cercadinho no setor de cargas e causou aglomeração no aeroporto.
Ali, o presidente disse que quem cobra dele a compra de vacinas é "idiota". "Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo", completou. Ele deixou o aeroporto de helicóptero, por volta das 10h da manhã, 55 mortes depois.
Em meia hora, Bolsonaro chegou a São Simão (GO) para inaugurar um trecho da ferrovia Norte-Sul. Antes de subir no palanque, ele entrou numa locomotiva, sorriu para fotos e conversou com os convidados. Quando o hino nacional começou a tocar, a conta de vítimas da pandemia havia subido em 168. Quando soou o último acorde, eram mais quatro.
Nos discursos de empresários e autoridades, 74 vidas ficaram para trás, e mais uma se foi quando Bolsonaro descerrou placa comemorativa da obra. Foram mais quatro mortos até que o presidente dissesse: "Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?". Depois de 21 vítimas, ele voltou a incentivar o uso de cloroquina e, com outros quatro mortos, encerrou o evento.
O presidente pousou em Brasília às 15h30, quando o país somava quase 1.150 óbitos no dia. Ele apareceu de novo 260 mortes depois, em sua transmissão semanal nas redes. Repetiu dados falsos sobre máscaras e atacou medidas de restrição, enquanto o país contava mais 74 vítimas. Até o fim da quinta-feira, outros 300 brasileiros estariam mortos.
Hélio Schwartsman: Os sapatos de Bolsonaro
Bolsonaro se comprometeu com obrigações com as quais agora está se omitindo
Você deceparia seu dedo mindinho para curar a enxaqueca de 5 milhões de pessoas na Ásia? E se for para salvar a vida de cinco desconhecidos em sua cidade? E para salvar seu filho?
Essa incomensurabilidade das dores (e dos prazeres) é um dos problemas que assombram o utilitarismo em particular e as éticas consequencialistas em geral. O fato de a dificuldade ser real não implica que não existam situações concretas em que a solução é óbvia. Todos, afinal, reprovamos a atitude do campeão de natação que deixa de resgatar uma criança que se afoga apenas para não estragar seu par de sapatos novos.
Faço essas considerações a propósito da imposição/retirada de restrições na epidemia de Covid-19. Embora não chancele, compreendo a posição do dono de restaurante prestes a falir que se insurge contra um "lockdown". Ele está, "mutatis mutandis", na situação do sujeito que pode salvar desconhecidos cortando o próprio dedo. Fazê-lo é a coisa certa, mas não obrigatória.Bem diferente é o caso do indivíduo que se recusa a usar máscara. O incômodo de fazê-lo é real, mas mínimo.
A analogia cabível é com o campeão de natação devoto de Herodes. É com preocupação, portanto, que leio nos jornais que o Texas, onde ainda ocorrem 7.600 novas infecções e 270 óbitos por dia, revogou a obrigatoriedade das máscaras e que o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em sabotar a vacinação e militar contra "lockdowns", resolveu espalhar "fake news" sobre esses equipamentos de proteção de eficácia comprovada.
Eu não sei se mandaria o nadador para a cadeia. O que esse indivíduo fez merece vívida condenação moral, mas ele em nenhum momento assumiu o compromisso de zelar pelos outros. Já Bolsonaro, quando aceitou a Presidência, se comprometeu com obrigações constitucionais e legais em relação às quais está agora se omitindo. E, pior, nem tem a desculpa de que não quer sujar os sapatos.
Alon Feuerwerker: Pax Legislativa?
O governo venceu facilmente a batalha no Senado pela PEC que permitirá o pagamento do auxílio emergencial, e traz também mecanismos compensatórios de controle de gastos. Como sinal da correlação de forças, o destaque que eliminava o teto de 44 bilhões para despesas com o auxílio perdeu por 55 a 17.
Quem assistiu à sessão notou também um clima político, por que não dizer?, ameno entre situação e oposição. A oposição chegou até a sugerir ao presidente da Casa que adiasse o segundo turno da votação quando viu risco de não dar quórum. Sugestão naturalmente aceita.
A oposição poderia, por exemplo, ter lutado para derrubar a PEC e daí trabalhar para uma alternativa "pura": dar o auxílio e só. Sem contrapartidas. Mas na prática ajudou o governo. Talvez por saber que não tinha força para impedir. Mas poderia ao menos ter aproveitado para desgastar o oficialismo. Fazer um pouco de teatro.
Vamos aguardar agora a Câmara dos Deputados. Se tudo correr bem para o Planalto, será um sinal, mais um, de que o cenário no Legislativo está neste momento sob controle. O "neste momento" é fundamental quando se discorre sobre a política brasileira, mas não deixa de ser uma variável.
E como anda a sustentação do governo na Câmara? Se depois de todo o auê a deputada Bia Kicis (PSL-DF) for mesmo eleita para presidir a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, a mais importante da Casa, e por onde passam todos os projetos, será um indicador.
Cada um que tire suas conclusões.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Alessandro Vieira: Auxílio emergencial - A guerra de narrativas que mata
O Congresso constrói soluções urgentes para o país, como o restabelecimento do auxílio emergencial - essa obra do parlamento em parceria com o Executivo que, em plena pandemia, reduziu a taxa de pobreza do nosso país a níveis históricos. Como é de conhecimento público, fui diagnosticado com covid-19, o que não permitirá, por alguns dias, que eu participe presencialmente das negociações em curso no Senado Federal. Claro que nada disso me impedirá, com a ajuda de minha equipe, de ser parte dessa solução tão importante para o país.
Mesmo à distância, estou defendendo os interesses de quem mais precisa, sem abrir mão da responsabilidade e do rigor técnico.
De cara, reconheço e elogio o esforço do colega senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial e do líder do Governo, senador Fernando Bezerra (MDB-PE). Porém, mesmo avançando muito, ainda temos problemas relevantes, o que é natural dada a complexidade do tema. Para piorar, vozes externas não têm contribuído com o debate.Leia mais
O ministro Paulo Guedes, por exemplo, nos convida a dar “sinais” para o mercado de respeito à responsabilidade fiscal. Está correto na tese. Não percebe o ministro, porém, que ele mesmo manda “sinais” trocados ao incentivar uma visão catastrófica sobre os impactos da retomada do auxílio emergencial. Da mesma forma, ao insistir em vincular a retomada do auxílio à PEC Emergencial, coisas absolutamente distintas.
Como já demonstraram técnicos relevantes, a exemplo de Felipe Salto, do IFI, da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, não cabe essa vinculação. Se o objetivo desta mistura é pressionar o Congresso, com todo respeito, a tática é tola e com efeitos limitados às já conhecidas guerras de narrativa.
Precisamos urgentemente do auxílio, como precisamos das vacinas, hoje entregues a conta gotas enquanto os hospitais superlotam. E não existe nenhuma divergência sobre essas necessidades.
Já os demais pontos da PEC são medidas de ajuste fiscal que precisam tramitar com celeridade, assim como as reformas estruturantes, mas sem o caráter de calamidade.
Por isso persisto no pedido de “fatiamento”, na linha de emendas minhas e do senador José Serra. Assim teremos a aprovação imediata das cláusulas de calamidade para retomada do auxílio e faremos a remessa das cláusulas de protocolo fiscal para calendário especial na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o que será regrado pelo presidente Pacheco. Registre-se que sugeri duas semanas para essa tramitação especial.
Essa decisão, desde que bem comunicada e com lealdade por parte dos negociadores, será recebida sem sobressaltos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pode firmar calendário estreito, com compromisso de todos pelo não uso de estratégias protelatórias, como aliás fizemos na PEC da Previdência.
O sinal de que o Brasil precisa é o de respeito às vítimas e suas famílias, não de eterno cortejo a especuladores ou a adeptos da narrativa fratricida do nós contra eles.
Já passou da hora do Congresso Nacional demonstrar o alinhamento com as pautas populares e se debruçar no que milhões de brasileiros realmente precisam: o retorno do auxílio e uma vacinação rápida e para todas. Separando as matérias conseguiremos, sem mais atrasos, devolver aos brasileiros a esperança de dias melhores e o mínimo de dignidade que eles merecem.
Cada dia que passa é mais um dia de fome na casa de milhões de brasileiros. E, quem tem fome, tem pressa. Para isso, peço a ajuda e o apoio de cada cidadão brasileiro, esteja onde estiver.
*Alessandro Vieira (SE) é líder do Cidadania.
Zeina Latif: Credibilidade que se esvai
Não deveria ser surpresa a dificuldade do governo Bolsonaro com políticas econômicas de cunho liberal. Além do histórico antirreformas como parlamentar, já na campanha eleitoral seu discurso conflitava com o de Paulo Guedes, que tinha lá suas inconsistências. Como esquecer a inexequível promessa de receita de trilhões com a venda de ativos estatais?
O “piloto automático” no Brasil é o intervencionismo estatal e a expansão de gastos públicos. Romper esse padrão demanda um mínimo de convicção do presidente e, certamente, muita capacidade política.
Depois dos avanços no breve governo Temer, seria importante Bolsonaro ao menos preservar o compromisso com a disciplina fiscal. E não só pelas consequências de curto prazo — já temos assistido aos efeitos do descontrole fiscal no mercado financeiro e no ambiente econômico. É preciso uma sequência de governos responsáveis para consolidar valores da sociedade e boas práticas na gestão pública, de modo afastar desvios perigosos de rota, como o do governo Dilma. Além disso, o compromisso depende de reformas estruturais para conter despesas obrigatórias, o que abriria caminho para melhorar a qualidade do gasto público e, em um futuro ainda distante, reduzir a carga tributária, muito mais elevada do que de outros emergentes.
As despesas obrigatórias comprometem quase a totalidade do orçamento da União e crescem automaticamente — por conta de indexações (como a correção de benefícios previdenciários ao salário mínimo), vinculações e gastos mínimos (como na educação), regras do funcionalismo (ajustes de salários e progressões na carreira) e o próprio envelhecimento da população.
A pandemia agravou o problema fiscal e a falta de perspectivas de superação da crise de saúde alimenta a pressão por aumento de gastos. Para que as novas gerações não sejam prejudicadas ainda mais — crianças e jovens mais pobres já são muito penalizados com a falta de educação e empregos —, é crucial conter o aumento da dívida pública.
A disciplina fiscal não significa fechar os olhos aos vulneráveis. Afinal, os mais pobres não podem arcar com as consequências da temerária gestão saúde agravada pelas atitudes do presidente estimulando o descuido de cidadãos. Tampouco se trata de forçar um ajuste rápido das contas públicas — nem seria possível com regras que regem o orçamento público. A ideia é buscar medidas compensatórias ao socorro aos vulneráveis, mesmo que com efeitos apenas no médio-longo prazo. O importante é mudar o cenário atual de crescimento a perder de vista da dívida pública.
Flexibilizar a regra do teto para retomar o auxílio emergencial sem contrapartidas sólidas será um grande equívoco e é um risco concreto que a PEC Emergencial oferece. Há ameaças de todos os lados. O próprio líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, admitiu, em entrevista à Folha, o risco de outras medidas criadas na crise pegarem carona no projeto.
Enquanto isso as contrapartidas encolhem. A crise atual deveria elevar a barra de exigências, mas o que ocorre é o contrário. O projeto atual preserva, em boa medida, o funcionalismo, diferentemente da proposta original do Executivo, de dezembro de 2019.
A PEC Emergencial apresenta regras demais e instrumentos de menos para o efetivo corte de despesas. A ideia de estabelecer uma trajetória para o endividamento público, por lei complementar, poderá reduzir a força da regra do teto, que, de tantos furos, poderá ter o mesmo fim da “regra de ouro” — descumprida seguidamente, sem maiores consequências.
Além disso, poderá atrapalhar a condução da política monetária pelo Banco Central. Os gatilhos para medidas de ajuste quando as despesas sujeitas ao teto atingirem 95% da despesa total poderão se mostrar inócuos na prática.
O cenário mais provável é que a atual gestão contribua quase nada para o ajuste fiscal, deixando a batata quente para o próximo governo. Além disso, pela proposta, nada impediria novos decretos de calamidade pública adiante, inclusive em 2022, abrindo espaço para mais gastos.
Muitos parlamentares defendem aprovar a liberação de recursos agora e deixar a votação das contrapartidas para depois. A depender do conteúdo final, de tão tímidas as contrapartidas, o fatiamento da PEC não faria grande diferença.
A reação negativa dos mercados poderá constranger Executivo e Congresso. O fato é que os anúncios do governo perdem credibilidade a olhos nus.
Bernardo Mello Franco: O levante dos governadores
Depois de atirar contra o Congresso, o Judiciário e a imprensa, Jair Bolsonaro voltou a culpar os governadores pelo descontrole da pandemia. No domingo, o presidente atiçou sua matilha virtual com números distorcidos. O ministro Fábio Faria completou o serviço. Tuitou que os estados tiveram “tempo e dinheiro sobrando” para conter a tragédia.
As contas do capitão estavam turbinadas. Ele somou repasses obrigatórios, verbas do Fundeb e até royalties do petróleo destinados aos estados. Num dos truques de ilusionismo, Bolsonaro disse aos eleitores que o Espírito Santo recebeu R$ 16,1 bilhões de Brasília. Os repasses extraordinários não passaram de 10% disso, esclareceu o governador Renato Casagrande.
Além de não entregar as vacinas prometidas, a União deixou de financiar cerca de nove mil leitos de UTI desde dezembro, segundo os secretários de Saúde. O dinheiro sumiu no momento em que os hospitais voltaram a lotar. No fim de semana, a ministra Rosa Weber ordenou a liberação dos repasses a três estados. Ainda é pouco para desarmar a sabotagem em escala nacional.
A provocação de Bolsonaro é tosca, mas aumentou a pressão sobre os governadores. Ontem dois deles se deixaram envolver num bate-boca rasteiro. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, acusou Ronaldo Caiado, de Goiás, de ter “problemas psiquiátricos”. Ouviu de volta que “só pensa em negociatas”. Ambos são aliados do Planalto.
A estratégia de dividir para conquistar ajudou Bolsonaro a vestir a faixa. Ao exagerar na dose, ele arrisca enfrentar um levante inédito. Diante de uma oposição inerte, os governadores começaram a ensaiar uma união para enquadrar o Planalto.
Na segunda, 19 deles acusaram o presidente de fabricar “informação distorcida” para “atacar governos locais”. Entre os signatários da carta, estão três bolsonaristas. O texto foi redigido pelo gaúcho Eduardo Leite, que votou no capitão e agora diz que ele “despreza a sua gente”.
Vera Magalhães: Tribunal da História é já
O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.
Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.
Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.
Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.
Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?
Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.
Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.
Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.
Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.
Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.
Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.
Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.
Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.
Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.
Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.
Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.
Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.
Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'
Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação
Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.
As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.
A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.
Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.
A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.
É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.
O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.
A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.
Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.
O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.
"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.
A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.
No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?
Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.