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Janio de Freitas: Os mortos de um e os mortos de outro

A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero

 “Periculosidade social na condução do cargo”. Uma qualificação judicial que parece criada para resumir as razões de interdição de Bolsonaro.

Embora a expressão servisse ao ministro Og Fernandes (STJ) para afastar o secretário de Segurança da Bahia, ajusta-se com apego milimétrico a quem incentiva a população a riscos de morte ou sequelas graves, com a recusa à prevenção e ao tratamento ​científico.

Já em seu décimo mês, e sem qualquer reparo das instituições que, dizem, “estão funcionando”, a campanha de Bolsonaro e as medidas de seus militares da Saúde chegam ainda mais excitadas e perigosas ao seu momento crucial.

Quem observou os movimentos reativos que o caracterizam por certo notou que é também dele a vulgar elevação da agressividade quando o medo, a perda de confiança, o pânico mesmo, são suscitados pelas circunstâncias. A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero.

confisco da vacina Sinovac-Butantan pelo governo federal, toda a vacinação concentrada no militarizado Ministério da Saúde, a exigência de responsabilização do vacinado por hipotéticos riscos foram alguns dos foguetes hipotéticos que mostravam um Bolsonaro se debatendo, aturdido. Nem a liberação total para armas importadas abafou a onda crítica.

revelação de participações da Abin na defesa de Flávio Bolsonaro (feita por Guilherme Amado na Época), apesar da rápida e óbvia negação da agência e do general Augusto Heleno, desarvorou Bolsonaro.

Estava em mais uma de suas fugas reeleitoreiras de Brasília, em desavergonhadas advertências de deformações ridículas em vacinados, quando o Supremo desmontou suas trapaças contra a liberdade de ação dos estados e municípios na pandemia.

E, boa cereja, a advogada Luciana Pires confirmou o recebimento de instruções da Abin para a defesa de Flávio, um truque para anulação do inquérito.

A explosão, incontível, não tardou. Na mesma quinta (17), Bolsonaro investe contra a imprensa, atiça as PMs contra jornalistas. Em fúria, faz os piores ataques aos irmãos donos de O Globo. Sem apontar indícios das acusações.

Se verdadeiras, por que não as expôs, para uma CPI, quando na Câmara representava os “militares anticorrupção”? Ou, presidente, não determinou o inquérito, como de seu dever? Nos dois casos, o silêncio é conivência criminosa. Sendo inverdadeiras as acusações, desta vez feitas a pessoas identificadas, sua entrada no Código Penal é pela mesma porta, a dos réus.

O gravíssimo uso da Abin, entidade do Estado, para proteger Flávio Bolsonaro e o desvio de dinheiro público, caiu em boas mãos, as da ministra Cármen Lúcia no Supremo. Troca de vantagens não haverá, medo não é provável.

Isso significa atos mais tresloucados de Bolsonaro. E um problema para e com os militares que, no governo, em verdade são a guarda pessoal de Bolsonaro.

Não só, porque o general Augusto Heleno, o Heleninho sempre protegido e bem situado, está comprometido dos pés à cabeça. A distância pode ser pequena, mas bastante para o autoritarismo militar sacudir a pouca poeira que resta.

A propósito, a menção ao general Heleno no artigo anterior o levou a vários adjetivos insultuosos a mim, concluindo por me dizer “pior como ser humano”. Essa expressão, ser humano, me lembrou uma curiosidade de muitos e que o general é o indicado para esclarecer: quantos seres humanos mortos pesam em suas costas, pela mortandade que ordenou sobre a miséria haitiana de Cité Soleil?

A ONU pediu ao governo brasileiro sua imediata retirada de lá, exclusão sem precedente nas tropas de paz, e a imprecisão sobre as mortes, dezenas ou centenas, perdura ainda.

Já no caso da Abin, pode-se desde logo esperar algumas respostas interessantes. E cáusticas.

O CERTO E O OUTRO

Diretor do Butantan, Dimas Covas venceu a divergência sobre o surgimento das vacinas. Militares da Anvisa só a previam para meado de 2021, até mesmo só no segundo semestre. Muitos pesquisadores e médicos. Dimas esteve só, ou quase, antevendo a vacina ainda para este ano.

Por fim, o Natal vem aí, sim, mas certifique-se. Na quinta, o general-ministro Pazuello disse três vezes, sempre com a segurança de suas estrelas, que “janeiro é daqui a 30 dias”. E depois, sobre a aplicação da vacina: “A data precisa é... janeiro”.

Sem dúvida, é um grande general, como disse Bolsonaro ao apresentá-lo.


Elio Gaspari: Fritada de morcego no menu

Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.

Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.

“gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.

Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.

Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.

O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.

Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)

Trabalhando com um chanceler que se orgulha de ser “pária”, o embaixador levou a excentricidade para o lugar errado. A pandemia expôs a bagunça diante de uma dificuldade que daqui a pouco terá matado 200 mil pessoas. Os brasileiros ligam as televisões e veem cenas de imunização nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Arábia Saudita. Como lembrou Fernando Gabeira, só em Pindorama a vacinação virou tema de debate.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina nem vai tomar. Por isso também acha que o Supremo Tribunal Federal tomou “uma medida inócua”.

O que o cretino não entendeu foi outra frase de Bolsonaro: "Quando se fala em vacinação e saúde, tem que ter uma hierarquia".

Eremildo torce para que o presidente explique como funcionará essa hierarquia e se dispõe a ir de casa em casa levando cloroquina para quem ficar de fora.

Eu apalpo, você fica nervosa

O deputado Fernando Cury (Cidadania) apalpou sua colega Isa Penna (PSOL) ao vivo e a cores diante da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo. (Ela estava de costas.)

Depois do episódio, o presidente da Casa, Cauê Macris, disse que não poderia liberar as imagens. Pressionado pela deputada com um discurso e pelas lideranças partidárias, mudou de ideia.

Casado, Cury foi à tribuna, reiterou um pedido de desculpas e disse que jamais tomou intimidades indevidas com mulher alguma. O doutor tem o benefício da dúvida e empenhou sua palavra.

A porca torce o rabo quando se vê que, no dia seguinte, Cury foi à tribuna e, explicando-se, disse que depois de ter sido apalpada, sua colega “estava nervosa”, “ficou brava” e diante de uma nova tentativa de pedido de desculpas, “ela começou a gritar, a me xingar”. ​

Certo mesmo é que Fernando Cury se defende recriminando a conduta de uma mulher, nervosa, brava, xinguenta e gritona. Está tudo na rede: o vídeo da apalpada, o discurso da deputada e a explicação de Cury.

Forster e Biden

Os trechos conhecidos dos telegramas mandados pelo embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, depois da vitória de Joe Biden ilustram a bagunça que o orgulhoso pária Ernesto Araújo impôs à Casa do Barão.

Forster foi aplicado ao mostrar que Donald Trump pretendia contestar a vitória de Biden. Nesse sentido, fez seu serviço. Em nenhum momento o embaixador sugeriu que Bolsonaro cumprimentasse o vencedor. Poderia ter feito, mas também não sugeriu o contrário.

Os Estados Unidos não são uma ilha perdida, para que o cumprimento ao eleito dependa de sugestão do embaixador. Quem levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden foi Jair Bolsonaro. Forster foi para a linha de tiro pelas convicções bolsonaristas que o levaram ao cargo.

O PREÇO DA XENOFOBIA

A Alemanha bloqueou a entrada da Turquia na Comunidade Europeia por diversos motivos, entre os quais o discreto racismo de uma parte de sua população contra imigrantes.

Há décadas a Alemanha não fazia uma boa figura no mundo da tecnologia como a que conseguiu agora com a vacina desenvolvida pelo seu laboratório BioNtech, para a Pfizer americana. Sediado em Mainz, foi criado por um casal de turcos. Ele, nascido em Iskenderun, ela, filha de uma médico que emigrou.

PROMOÇÕES MILITARES

A bagunça bolsonariana funciona até quando o capitão volta atrás. Três dias depois de ter acabado com as promoções por antiguidade de oficiais aos postos de coronel ou capitão de mar e guerra, ele revogou o ato. O decreto revogado não era um jabuti.

A ideia do fim da promoção por antiguidade nessa patente ampara-se em bons argumentos e foi proposta por autoridades militares que entendem do assunto.

A piada tem um século, mas, quando um oficial disse ao major Joseph Veller, da missão militar francesa, que um colega aprenderia com a experiência, ele respondeu: “O burro do duque de Saxe assistiu a mais de cem batalhas e continuou sendo um burro”.

CONTEM OUTRA

Há algo no ar além do vírus. Quatrocentos empresários tinham marcado para a quinta-feira um almoço em homenagem ao presidente Jair Bolsonaro e seu antecessor, Michel Temer.

No domingo o ágape foi cancelado, diante do aumento do número de casos de Covid. Contem outra. Dias antes do cancelamento, quando os convites circulavam, pela média móvel semanal estavam morrendo 544 pessoas.

BOLSONAVAC

governador João Doria continua sob os efeitos de sua Bolsonavac. Em uma semana, limitou-se a dar uma breve resposta às provocações de Bolsonaro. Preferiu presenciar o desembarque de vacinas.


Reinaldo Azevedo: A democracia brasileira precisa aprender a punir a barbárie

Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade

Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.

Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.

Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: "E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".

É trecho de "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr...

A rigor —e não se trata de uma crítica a Lewandowski, deixo claro—, o ministro nem deveria, como se diz no jargão técnico, ter "conhecido das ações". Sim, leitor, em direito, o "conhecer" é verbo transitivo indireto, no sentido de "tomar conhecimento de". E, no entanto, ao se ver obrigado a fazer o desnecessário, assim como o tribunal, acabou fazendo a coisa certa.

Eis aí um emblema do grande salto civilizatório para trás que é o governo Bolsonaro. O país e as instituições deixam de se ocupar dos desafios do presente com vistas ao futuro —e não se trata de mera retórica— para ter de refazer o que esses depredadores da ordem vão destruindo com sua ignorância truculenta.

Exceção feita à pororoca —à bossa nova, a um Machado, a um Drummond, a um Rosa ou a uma Clarice, que, de vez em quando, brotam em nosso jardim—, já há tão pouco do que nos orgulhar... Como destacou o The New York Times, o mundo da ciência reconhecia um sistema eficiente de imunização em Banânia, mesmo em meio às nossas obscenidades sangrentas.

Um capitão da reserva e um general da ativa, como dois arruaceiros, chegaram arrebentando as portas da excelência, cobrindo com o véu opaco de sua estupidez o que havia de clareza no setor, de modo a obrigar a Corte Suprema do país a decidir o que decidido já está desde a lei 6.259, de 1975 —no tempo em que ainda caminhávamos nas trevas.

Estamos, como sociedade, nos acostumando ao atraso, normalizando o absurdo, normatizando a burrice. A delinquência vai se esgueirando às margens da lei ou contra ela, de sorte que mesmo aquilo que já está sacramentado pela legislação ou pacificado pelo entendimento majoritário de tribunais superiores vai sendo permanentemente desafiado, um pouco por dia, de forma determinada, obsessiva, contínua, constituindo um método, ainda que seja o da desordem.

Expresso na minha última coluna deste 2020 os bons auspícios no modo que segue.

Espero que Bolsonaro e Pazuello, quando fora do cargo, venham a responder por uma tempestade de ações de improbidade administrativa, nos termos em que a medida provisória 966 foi admitida como constitucional pelo Supremo.

Estou entre os que entendem que ex-presidentes e ex-ministros podem responder por improbidade. Há condicionantes muito claras definidas pelo tribunal.

O STF assentou, então, que a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais na área da saúde, constitui "erro grosseiro" e "elevado grau" de negligência. Que os Recrutas Zero da cloroquina paguem por seus feitos. É o que posso desejar de melhor, leitores!

Este escriba tira quatro colunas de férias e retoma a lida no dia 22 de janeiro. Mantenha o distanciamento social e cultive o jardim. Um Voltaire de máscara.


Helena Chagas: A resiliência não tão resiliente de Bolsonaro

É falta de honestidade intelectual acreditar nas pesquisas quando seus resultados nos agradam e contestá-las quando trazem dados adversos. É o que muita gente está fazendo hoje, decepcionada com os números do Datafolha que mostram certa resiliência na popularidade de Jair Bolsonaro, que segue com o seu nível mais alto de aprovação, na casa dos 37% de ótimo e bom. Vamos e convenhamos, não é lá essa Brastemp. É um resultado medíocre, o pior, com um ano de 11 meses de mandato, entre os presidentes eleitos diretamente na redemocratização — com a exceção de Fernando Collor, que a esta altura do campeonato já estava entrando pelo cano do impeachment.

Mas pesquisa é assim mesmo: temos a pesquisa e a narrativa da pesquisa, e ganha quem conseguir torcer melhor os números para comprovar sua tese. No caso de Bolsonaro, é forçoso reconhecer que o número dos que o avaliam como ruim ou péssimo (32%) está menor do que os que o aprovam, enquanto o regular está estável em 29%.

Só que é o próprio Datafolha que traz em si os germes do que pode representar a destruição da popularidade estável do presidente. As pesquisas vem mostrando há meses a relação direta entre o crescimento da aprovação de Bolsonaro junto aos setores de menor renda – teve uma alta de 11 pontos percentuais na faixa até dois mínimos – e a injeção de recursos do auxílio emergencial e outros benefícios dados durante a pandemia.

PANDEMIA

Esse auxílio, porém, foi reduzido à metade e acaba a partir de 31 de dezembro. É razoável supor que, junto com fatores como o desemprego e a segunda onda da pandemia, essa situação se reflita na aprovacão de Bolsonaro. E de forma ainda mais forte do  que no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando houve uma queda na popularidade presidencial, revertida em agosto.

A segunda onda da Covid-19 está sendo tratada pelo governo com o mesmo desleixo mostrado na primeira, mas com o agravante de que, desta vez, outros países do mundo começam a ter acesso à vacinação, enquanto as autoridades brasileiras continuam no bate-cabeças.

Sem vacina disponível, como estará a população daqui a alguns meses?. O Planalto deve estar festejando que 52% dos entrevistados não atribuam ao presidente da República a culpa pelas 181 mil mortes registradas. Mas 46% acham que ele tem responsabilidade por elas.

O resiliente Bolsonaro, a mais de dois anos da sonhada reeleição, pode até comemorar a popularidade medíocre que registra hoje nas pesquisas telefônicas. Mas a realidade é que sua posição é frágil e o horizonte cheio de previsões negativas.


Mariliz Pereira Jorge: 'Para que essa ansiedade?', pergunta Pazuello, o tranquilão

Ministro da Saúde questionou angústia pela chegada da vacina contra Covid-19

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não entende xongas de saúde, não deve fazer ideia de que quatro em cada dez brasileiros tem experimentado algum nível de ansiedade por causa da pandemia. Entre 16 países, somos o que mais sofre, segundo pesquisa da Ipsos.

Talvez esses dados iluminem o titular da pasta que, ao ser questionado sobre detalhes do “plano de imunização” do governo, minimizou a complexidade de proteger 200 milhões de pessoas. “Para que essa ansiedade, essa angústia?” Segundo Pazuello, temos o maior programa de imunização do mundo e somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Ok, conte agora uma novidade. Que dia começa a vacinação?

Ele diz que pode começar em dezembro. Muda para janeiro. Março. A última notícia é de que será em fevereiro. Depois da divulgação do “plano” ficou claro que o único projeto que o governo tem é de extermínio. Não tem plano. O brasileiro que não entrou em negação, se não morrer de Covid, sucumbe ao pânico. Mas o ministro tranquilão não entende por que estamos ansiosos.

Temos mais de 180 mil mortes pela Covid-19. O Brasil está perto de voltar a enterrar mil pessoas todos os dias. Os hospitais estão lotados. Os casos estão explodindo em cidades sem UTI. Para que angústia?

E ainda tem Jair Bolsonaro. Ele tem dado declarações com sinal trocado. No lançamento do “plano” falou sobre a importância de “união para buscar a solução de algo que nos aflige há meses”, um dia depois de ter conspirado sobre a segurança da vacina e de ter dito que não vai tomá-la. O resultado é o aumento da desconfiança na população. Mas pra que ficar ansioso?

Milhares de pessoas passarão as festas de dezembro, assim como já ficaram o ano todo, longe dos seus. Perdemos familiares, amigos, emprego, esperança, mas Pazuello não sabe por que estamos ansiosos por uma bendita vacina.


Beatriz Jucá: A “angústia” quase ofensiva de Pazuello

Ministro chama de “ansiedade” e “angústia” a cobrança por um plano de vacinação em um país que conta mais de 183.000 mortes, após semanas marcadas por falta de transparência e guerra ideológica

Depois de meses vendo o Governo Bolsonaro mergulhar no negacionismo e abrir mão de um valioso arsenal do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia, o Brasil enfim viu uma luz no fim do túnel nesta quarta-feira. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ampliou o leque de vacinas consideradas no plano nacional e incluiu até a do laboratório chinês Sinovac ―já rejeitado verbalmente pelo presidente Bolsonaro, mas cuja aquisição vinha sendo requisitada por pesquisadores, governadores e prefeitos diante de uma sinalização de resultados promissores. Uma coordenação nacional da vacinação era pleiteada por todos eles. Foram semanas de cobranças sem respostas efetivas, reuniões a portas fechadas, colaboradores técnicos com microfones silenciados e informações difusas disparadas para a população a conta gotas pelo Governo. Ainda assim, um Brasil atormentado por mais de 183.000 mortes causadas pela covid-19 ouviu do ministro: “Para quê esta ansiedade, esta angústia?”.

A declaração foi feita pelo ministro durante a apresentação oficial do plano de operacionalização da vacinação contra a covid-19 no país. Um documento “prévio” de 94 páginas já havia sido enviado a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e aberto uma crise com pesquisadores do próprio corpo técnico do Ministério ―listados entre os elaboradores, mas que só viram o documento publicado na imprensa. Nenhuma menção oficial direta à intenção de adquirir a Coronavac aparecia nos documentos ou coletivas de imprensa, apesar da pressão intensa de governadores e da velocidade que a pandemia voltava a ganhar no país, com os sistemas de saúde de vários Estados funcionando no limite da sua capacidade.

O STF precisou entrar no jogo e obrigar o Governo a apresentar um plano com todas as vacinas e, depois, um prazo para iniciar a vacinação. Só então Pazuello indicou que demoraria cinco dias para fazer as vacinas chegarem aos Estados, a serem contados após registro da Anvisa e entrega aos estoques do Ministério. Enquanto isso, seu chefe Jair Bolsonaro que já havia dito que não compraria a “vacina chinesa do Doria”― ia à televisão afirmar que não tomaria a vacina do coronavírus e que pretendia exigir um termo de responsabilidade aos que fossem ser vacinados. Bolsonaro, que jogou mais desconfiança sobre as vacinas, mudou o tom nesta quarta e pediu união. “Se algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução”, disse. Pazuello também resolveu tentar aplacar a guerra ideológica abraçada pelo Governo do qual participa. “Qualquer fumaça ou discussão anterior ficou para trás. Todos os brasileiros receberão a vacina de forma grátis e igualitária”, afirmou.

Os sinais de que o Governo coordenará a estratégia de vacinação é um alívio para a sociedade brasileira ―que corria o risco de assistir a uma desastrosa disputa entre Estados e uma estratégia desarticulada. O próprio ministro Pazuello agora prega a união entre os três entes federativos, depois de meses com a pasta que conduz seguindo uma agenda ideológica bolsonarista ―da posição contrária às políticas de restrição de circulação implementadas pelos Estados à aposta na cloroquina (ou, como costumam dizer nas coletivas, “o tratamento precoce” que a ciência não reconhece) como ação de combate à pandemia. Diante da apatia da União, foram intensas as movimentações de governadores e prefeitos nos últimos dias em busca de um plano B para antecipar a campanha de vacinação. Pazuello parece ignorar todo este contexto ao dizer, só agora: “Não podemos abrir mão de nos tratar como um país”.

O ministro ―que já projetou várias datas para iniciar a vacinação e, nesta quarta, estimou meados de fevereiro para jornalistas e 21 de janeiro a governadores― ainda critica uma suposta onda de “desinformação” sobre a capacidade do SUS de realizar uma ampla campanha. O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde do mundo e um reconhecido Programa Nacional de Imunização (PNI). Tem dois potentes institutos capazes de produzir imunizantes: a Fiocruz e o Butantan ―com acordos, respectivamente, para produzir a Astrazeneca e a Sinovac. Cientes desta expertise, pesquisadores levaram as mãos à cabeça diante de uma aparente inércia e da falta de transparência do Governo nas últimas semanas. Vários deles alegam que o Brasil saiu atrasado na corrida por um imunizante e agora precisa correr atrás do prejuízo para garantir a entrega breve de vacinas e até a compra de seringas e agulhas. O Brasil planeja uma campanha de 16 meses, e os cronogramas para a chegada de cada vacina ainda são vagos.

“Vamos levantar a cabeça. Acreditem: o povo brasileiro tem capacidade de ter o maior Sistema de Saúde Único do mundo, de ter o melhor plano de vacinação”, animou Pazuello. O ministro pede a confiança de milhares de brasileiros que já viram as armas do SUS serem desperdiçadas neste ano. Um exército de agentes de saúde, presente em praticamente todos os municípios, não foi aproveitado em uma estratégia coordenada de rastreio de casos para frear contágios. O Brasil tampouco conseguiu implementar políticas eficazes no controle da pandemia, mas tem sim um SUS forte e um PNI robusto. Os anúncios desta quarta-feira foram celebrados por pesquisadores, enfim ouvidos pelo ministério. Os próximos passos dependem do registro dos imunizantes na Anvisa e da capacidade do Governo de formalizar as compras e garantir entregas num contexto de escassez global e de produção ainda pequena no país, no momento iniciada apenas pelo Butantan. A Fiocruz deve começar a produção em janeiro. “Precisamos produzir mais e ter a capacidade de controlar a ansiedade e a angústia”, insiste o ministro. O Governo precisa dar respostas a um país que segue amplamente vulnerável à pandemia há quase dez meses e que vê seus profissionais da linha de frente exaustos na iminência de uma nova grande onda de contágios.


Ruy Castro: Pazuello já merece uma biografia

Da gerência das cuecas do quartel à morte de, em breve, 200 mil brasileiros

Aos 57 anos, o general Eduardo Pazuello, militar de carreira e ministro da Saúde do governo Bolsonaro por carreirismo, nunca imaginou que, um dia, fosse merecer uma biografia. Oficiais da Intendência do Exército, como ele, não têm muitas ocasiões para usar a espada exceto no dia 7 de setembro. Sua função é prover o suprimento do quartel —aviar a merenda da tropa, supervisionar a lavagem das fardas, manter os mictórios em condições e cuidar da manutenção dos pára-quedas. E também vigiar os transportes de munição, cuidando para que não haja desvio de cartuchos pelo caminho.

Até há pouco, o único episódio na trajetória de Pazuello que poderia justificar uma referência foi quando, em 2005, ao dirigir o Depósito Central de Munição, em Brasília, puniu um soldado sob seu comando, obrigando-o a puxar uma carroça, atrelado a ela por arreios, como uma mula, e transportando um colega na presença dos companheiros. Pazuello era tenente-coronel, mas isso não turvou sua escalada ao generalato.

Ao ser convocado por Jair Bolsonaro para substituir um médico na direção do Ministério da Saúde no meio de uma pandemia, Pazuello tinha duas opções: recusar o convite, alegando incompetência para o cargo e certeza de comprometer a saúde nacional, ou aceitá-lo e ter de mentir, omitir-se e errar perversamente no combate ao vírus. Escolheu a segunda. Ou delirou, achando que daria conta da tarefa, ou dispôs-se a babar e se humilhar para servir ao capitão. Pelo que se vê, vale também a segunda hipótese.

Pazuello na saúde é mais absurdo do que um médico comandando a lavagem das cuecas do quartel. É mais letal. Recebeu o cargo com 15 mil mortos pela Covid e logo nos entregará 200 mil. É injusto chamá-lo de palerma, como fazem. Mais exato será cobrar sua cumplicidade no extermínio promovido por seu chefe.

Pazuello já merece uma biografia. A ser lida sob revolta e náuseas.


Hélio Schwartsman: Luta contra Covid não é só incompetência

O fracasso contra a Covid-19 se deve à sabotagem dos consensos científicos sobre a doença

É impressionante a resiliência de Bolsonaro na pesquisa Datafolha que avaliou as percepções do eleitorado sobre sua performance. Apesar do agravamento da epidemia, a aprovação ao presidente continua em 37%, mesmo nível registrado em agosto, quando a curva das infecções refluía.

Seria tentador decretar que o eleitor é um marciano cego, incapaz de reconhecer a realidade que o cerca, desistir da democracia e sonhar com um déspota esclarecido. Mas não é tão simples. A Covid-19 é corretamente percebida como um problema, e a maior parte dos entrevistados (42%) considera o desempenho do presidente nessa frente como ruim ou péssimo --30% cravaram bom ou ótimo.

Não obstante, a maioria (52%) afirma que o presidente não tem nenhuma culpa pelos mais de 180 mil brasileiros mortos, e 38% dizem que ele tem alguma responsabilidade, mas não é o principal causador dos óbitos.

Há aqui, acredito, um problema de "accountability". Seria um despropósito apontar Bolsonaro como o principal culpado pelas mortes, como fizeram 8% dos entrevistados. O presidente se sai mal em praticamente tudo o que diz respeito ao controle sanitário da pandemia, mas não foi ele que criou e espalhou o vírus, a causa mais direta do morticínio.

Só que isentá-lo de qualquer responsabilidade, como fizeram, vale repetir, 52%, significa ignorar as funções precípuas do Estado contemporâneo, que existe, entre outros objetivos, para dar respostas coordenadas e efetivas a emergências nacionais, sejam elas decorrentes de guerras, desastres naturais, crises econômicas ou epidemias.

O que torna o caso de Bolsonaro especialmente revoltante é que o fracasso do Brasil no manejo da Covid-19 não se deve apenas à incompetência das autoridades, um fato da vida, mas à insistência do presidente em sabotar os poucos consensos científicos sobre a doença a fim de extrair ganhos políticos pessoais. E isso é abominável.


Carlos Andreazza: A pazuellização

Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general?

Um governo que ancorou seu negacionismo frente à pandemia num discurso de compromisso radical com a saúde econômica deveria ser obcecado por vacinar maciçamente a população. Porque só a vacinação destravará a economia.

Este, no entanto, é um governo que só criou — e cria — dificuldades para a vacinação. Na prática, o governo Bolsonaro — força regressiva, dependente de imprevisibilidades, que melhor vigorará quanto maior for a calamidade — lida com a pandemia de forma antieconômica. É um contrassenso. É, pois, a mais pura expressão do bolsonarismo, fenômeno reacionário anabolizado pela dissonância cognitiva.

A principal constituição discursiva de Jair Bolsonaro ante a peste apenas se serviu da preocupação com a economia para fabricar conflitos e difundir teorias da conspiração. Falamos de um presidente que manteve taxa de aprovação acima de 30% mesmo, no auge da pandemia, quando cultivava declarações beligerantes no cercadinho do Alvorada. Ingênuo crer que sua pregação antivacina não resultasse em aumento no número daqueles que não pretendem se imunizar.

Isso passa, contudo. Reverte-se. No caso da Covid-19, é ter as doses nos postos para que a desconfiança dos que dizem que não se vacinariam se converter em braço esticado. Sim: teremos os antivacinas vacinados. E continuarão bolsonaristas. Ok. O problema é a cisão social derivada da descrença; o eco influente da desinformação — sim, genocida — sobre outrora sólida cultura vacinal. Voltou o sarampo. A estúpida campanha antivacina produz atraso objetivo quando o estúpido é o presidente da República.

No mundo real, vários países iniciam seus programas de vacinação já neste dezembro. O Brasil não poderia mesmo formar entre os primeiros. Não é o Reino Unido. A questão é se precisaria ficar tão atrás. Há países em condições político-econômicas piores que começarão antes. Isso é produto da incompetência; da pazuellização do Brasil. O governo brasileiro é péssimo de serviço, o que foi potencializado — esta ruindade sabotadora — pela doença ideológica bolsonarista.

Meses de delinquência criaram a lama para este ambiente de caos anestesiado. De modo que o governador Ronaldo Caiado, de Goiás, deveria calibrar melhor a leitura das razões para o que diagnosticou — corretamente — como corrida maluca por vacinas. E pensar sobre quem prospera investindo na loucura.

Não há corrida maluca porque um governador — diante, por exemplo, de empecilhos forjados por uma Anvisa a serviço de um projeto de poder — tomou a frente para assegurar a vacinação dos seus. Há corrida maluca porque o governo federal — por meio de atitude sociopata — recusou-se, boicotando qualquer esforço coordenado, a comandar o processo. O governo Bolsonaro plantou o cada um por si.

Caia quem quiser na armadilha polarizadora sobre quem teria politizado primeiro; se Bolsonaro ou Doria. Políticos politizam. Claro que olham para 2022. Normal. Todos o fazem, inclusive Caiado. Com uma diferença: tudo o mais constante, só um entre os politizadores terá vacina para aplicar em janeiro. É uma diferença civilizacional.

O pânico, esta é a palavra, quem promove agora, por medo de natureza político-eleitoral, é o governo federal reativo, cujo plano nacional de vacinação — um catadão vergonhoso cuspido no papel — só existe porque obrigado, feito às pressas sob a vara de um Supremo que se deixa enganar. Como acreditar que um Ministério da Saúde inconfiável, que se prestou a cavalo de um mistificador, cavalo também sendo o Exército, e que nada planeja desde abril, seria — será — capaz de conceber um programa vacinal em semanas?

Foram meses de escolhas cretinas. A começar pela inexistência de convênios com todos os grandes produtores de vacina. Precisaríamos de todas. O governo, porém, preferiu restringir-se a um só fabricante, incapaz de atender a toda nossa demanda — e de que ficaríamos cativos em caso de alguma delonga no trâmite de aprovação de seu imunizante. Foi o que ocorreu.

Acontece. Ninguém obrigou o Brasil a se atrelar ao destino de um só laboratório. Quem dera, porém, fosse apenas esse o nosso espeto... Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general? A questão é quando. Questão — quando? — que projeta fosso de negligência em que milhares morrerão.

Nunca tive dúvida de que, havendo vacinas, o governo federal correria para comprar todas, inclusive a CoronaVac, aquela chinesa, a comunista etc. Aquela que Bolsonaro disse que não compraria. Comprará. O mundo real se impõe. Nunca duvidei de que o governo safado testaria até a tese do confisco; a surpresa sendo um macaco velho como Caiado, pazuellizado, deixar-se servir por boi de piranha da barbárie.

O mundo real se impõe. E a lei se imporá, inclusive para tornar a Anvisa bolsonarista irrelevante... A lei se imporá também ao processo de pazuellização da vida pública. O revés é o tempo perdido —sempre ele. Veja o caso da vacina da Pfizer. O Ministério da Saúde, leviano, arrotou várias dificuldades, antecipando-se para difamar um imunizante porque exigiria geladeiras especificas. E agora é o “ai, Jesus” — com Pazuello, talvez já convencido de que haja demanda, anunciando acordo para aquisição de milhões de doses antes mesmo de o contrato assinado.

Compraremos todas, qualquer que seja o preço. E esperaremos — no fim da fila. O mais caro preço. Párias e otários.


Fernando Gabeira: Aquele abraço

O general que confunde invernos e entraria em mais frias que Napoleão não se lembrou de comprar seringas

Quando William Shakespeare tomou sua vacina no histórico 8 de dezembro, confesso que o invejei. A primeira coisa que me veio à cabeça foi abraçar, depois de tantos meses, minha filha que vive longe daqui. Imaginei imediatamente quantos abraços e beijos estão congelados a 70 graus negativos, esperando o momento da vacina.

Mas aqui, caro Shakespeare, a vacina ainda é sonho de uma noite de verão. Gostaria também de voltar à estrada, passar longos dias no mato, voltar ao escurecer, com os curiangos voando diante do para-brisa, as primeiras luzes se acendendo na periferia da pequena cidade.

Aqui, William, somos reféns de um governo obscurantista, que não só negou a Covid-19, como o governo britânico no início, mas, ao contrário dele, nunca mudou de posição.

Não vou te cansar com detalhes biográficos. Para quem conheceu Hamlet, o nome Bolsonaro e seus dramas acabariam aborrecendo pela vulgaridade.

O fato é que ele acredita mais num remédio do que na vacina contra o coronavírus. Primeiro, importou da Índia insumos para hidroxicloroquina, e ela encalhou nos laboratórios do Exército. Depois, ao lado um astronauta, investiu milhões em pesquisa sobre um vermífugo chamado Anitta. Fracasso.

Ele escolheu um general para comandar essa guerra. É um especialista em logística que deixa milhões de testes contra Covid-19 adormecidos num galpão de São Paulo.

Esse general talvez fosse um personagem. Ele acha que o inverno brasileiro do Nordeste coincide com o europeu. E promete comprar vacinas se houver demanda, como se nenhum de nós sonhasse com o seu 8 de dezembro, William.

A única preocupação do homem que preside o país é que a vacina não seja obrigatória. Mas como poderia ser, se levaremos mais de um ano para vacinar todo mundo? Como tornar obrigatório algo que não está disponível. A liberdade será preservada.

Vejo nas redes sociais que seus seguidores temem que a vacina, sobretudo as que trabalham com RNA, possam mudar o código genético. Temem a vacina que você tomou, a da Pfizer, como se depois dela William Shakespeare deixasse de escrever e se tornasse lenhador na cidade de Warwick.

O Brasil talvez seja o único país onde as vacinas têm um peso ideológico. As chinesas são preteridas pelo governo porque são chinesas, têm o olho apertado e podem nos transformar numa multidão de fanáticos do comunismo invadindo as ruas com o livrinho vermelho na mão.

O general que confunde invernos e entraria em mais frias do que Napoleão não se lembrou ainda de comprar as seringas e agulhas, dessas que foram usadas aí, William, nessa terça-feira histórica.

Para não dizer que tudo aqui é cinzento e sem esperança, registro que podemos ver o terno e o vestido que o presidente e sua mulher usaram na posse, em 2019. Eles estão expostos, a entrada é grátis, e foram inaugurados com pompa, discursos sobre estilo e Jesus Cristo, ou como definir as medidas de um enviado dos céus.

Indiferente a tudo, o vírus avança. Nada mais fácil do que enlouquecer um país antes de destruí-lo.

O governo vai amarrar ao máximo o processo de vacinação, simplesmente porque não acredita nele. Em 1904 houve uma revolta contra a vacina. Será preciso uma outra revolta, desta vez para que as vacinas sejam usadas o mais rápido possível.

Será preciso lutar não só para a retomada econômica, mas para que nossas vidas sentimentais sejam reatadas como antes. Isso é até secundário, se consideramos o número de doentes e mortos que o atraso produz.

Contamos com alguns governadores, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não se pode dizer que sejam rápidos ou solícitos para entrar nessa luta. Mas são o que temos. Se for necessário, que se faça uma pressão sobre todos. Pode chegar o momento em que fique claro que não só o vírus, mas a elite burocrática e política brasileira, é um obstáculo de vida ou morte.

Se no combate contra um vírus há tanta hesitação, imagino em casos mais graves como numa guerra. O Exército, que na origem era aliado da ciência, produz um general obscurantista como Pazuello, o presidente que foi escolhido por milhões dedica-se a expor numa vitrine iluminada um terno escuro e o vestido que a mulher usou na posse.

Nem todos os que se sentem mumificados podem entrar num museu. Há critérios: é preciso tempo e história, até para um lugar no museu de horrores.


Eliane Cantanhêde: Troféu dos 180 mil vai para...

Com plano confuso de vacinas, Saúde quer mesmo é desovar cloroquina contra o 'bichinho'

Acerta o ministro Paulo Guedes em deixar de lado o foco fiscal e se dispor a destinar até R$ 20 bilhões para a vacinação em massa contra a pandemia. Erra o ministro Eduardo Pazuello ao entrar numa guerra política insana e planejar gastar R$ 250 milhões na distribuição de um remédio encalhado e desautorizado para a covid em todo o mundo. 

Tão fundamental, o equilíbrio das contas públicas é sempre ignorado pelo Brasil, entra governo, sai governo, mas não é hora de pensar nisso e, sim, em como combater o maior mal do século. Dinheiro para vacinação não é gasto, é investimento: na vida, na volta à normalidade, na sustentabilidade do sistema público e privado de saúde, na recuperação da economia e na volta dos empregos.

Não basta, porém, a decisão de investir, é preciso ter no que investir. Ou seja: é obrigatório ter planejamento, cronograma, meta, acordos com fornecedores de luvas, seringas, embalagens, refrigeradores e, o mais importante, vacinas. O Ministério da Economia diz que tem dinheiro, o da Saúde tem o plano? Qual a consistência do que foi entregue ao STF?

Perdido, depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro a negociar a vacina do Instituto Butantã, Pazuello joga datas ao léu e agora fala em dezembro. Mas, se o presidente diz que a pandemia “está no finalzinho”, o que está mesmo no finalzinho é dezembro, é 2020. O que foi feito, foi; o que não foi, não foi. Com o mundo inteiro desesperado por vacinas, os países que chegaram primeiro nas farmacêuticas chegam primeiro aos seus cidadãos. O resto fica chupando dedo.

Sem vacina em tempo e em quantidades seguras, o Ministério da Saúde imagina atalhos espinhosos, como “requisitar” (ou confiscar?) vacinas de quem foi mais diligente e criar um “kit covid” para desovar os estoques de cloroquina encomendados teimosamente por Bolsonaro ao amigão Trump e aos laboratórios das Forças Armadas. Senão, vai ter de prorrogar a validade da cloroquina, como a gente não faz com o iogurte da geladeira, mas eles fizeram com os 7 milhões de testes jogados no almoxarifado da incompetência.

Agora, é torcer para a pressão que partiu de São Paulo chegar ao resto do País e gerar senso de urgência e ação, porque somos 210 milhões e é necessário apostar no máximo de vacinas, com rapidez, segurança e a confiança da população na nossa Anvisa, de tão boa imagem, serviços prestados e quadros de excelência.

Enquanto isso, o País e os próprios governadores se dividem. Ronaldo Caiado (GO), errático, está irado com João Doria (SP) – que “criou dois Brasis, um com e outro sem vacina”, ao anunciar para 25 de janeiro uma vacina ainda sem autorização da Anvisa –, mas passa a mão na cabeça de Bolsonaro, quem efetivamente criou esses dois Brasis.

(Detalhe: médico ortopedista, Caiado já fez 32 testes, todos negativos, mas sua mulher e duas filhas estão com covid. Nenhuma das três tomando cloroquina...)

O curioso, ou drástico, é como as situações se confundem nos Estados Unidos e no Brasil, onde o coronavírus ganha a guerra e vai fazer uma grande festa no Natal e no ano-novo. Há, porém, duas diferenças. Nos EUA, a vacinação está para começar e tudo muda de figura em janeiro. Lá, há definição e horizonte. Cá, indefinição e nebulosidade.

À Globonews, na sexta-feira passada, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta previu uma segunda onda em março/abril e contou como fez de tudo para tentar convencer Bolsonaro da gravidade do vírus, desde um denso documento até explicar que é “um bichinho que entra pelo nariz e passa de uma mão para outra”. E avisou: no pior cenário, se nada fosse feito, o Brasil chegaria a 180 mil mortes em dezembro. Bolsonaro optou pelo ego e os terraplanistas. Para quem vai o troféu dos 180 mil?


Míriam Leitão: General não sabe preparar a guerra

O general está errando na estratégia de guerra e falhando na execução de sua missão. Ao ministro general Eduardo Pazuello foi entregue a tarefa de proteger a saúde dos brasileiros em plena pandemia. Isso é uma guerra. O inimigo é altamente letal, já foram 179 mil os brasileiros mortos. Pazuello deveria usar toda a munição e todas as armas disponíveis, mas escolheu apenas algumas. Ele nos desarma diante de inimigo perigoso ao desprezar a vacina do Instituto Butantan e demonstra ter dúvidas se haverá demanda por proteção entre as potenciais vítimas do coronavírus.

Ontem Pazuello tentou consertar o que havia dito na véspera, mas os últimos dias foram esclarecedores para quem tinha alguma dúvida de que o governo escolheu mal o general desta guerra. E escolheu mal porque o próprio presidente demonstra não se importar com os efeitos da pandemia, desde o começo.

Na reunião com os governadores na terça-feira ficaram claros os erros de estratégia, de avaliação, de planejamento e de logística do ministro da Saúde. Diante de um inimigo perigoso e desconhecido, um bom comandante não faz o que ele fez. Até agora ele escolheu uma única vacina, a Oxford AstraZeneca, e admitiu comprar a da Pfizer. Só que ele mesmo disse que as quantidades de vacinas que os laboratórios podem oferecer são “pífias”. Nesse contexto de escassez de oferta, fica ainda mais difícil entender por que ele desfez o acordo que havia firmado em outubro com a vacina Coronavac. Na briga com o governador de São Paulo, João Dória, Pazuello disse que o Instituto Butantan não é de São Paulo, e sim brasileiro. A verdade é que ele é administrativamente paulista porque há um século foi fundado pelo governo de São Paulo. Ao mesmo tempo, é de todo o país pela confiança que a população brasileira tem no nosso maior fabricante de vacinas. Mas, diante da afirmação de Pazuello, ficou mais claro que o governador João Dória fez a pergunta certa. Por que discriminar a vacina na qual trabalha o Instituto Butantan?

Todo general sabe, por dever de ofício e longo treinamento, que é preciso, numa guerra, manter a união. Pazuello até falou que não devemos nos dividir. Perfeito. Mas quem tem dividido o país desde o começo é o presidente. Ou é preciso lembrar as vezes em que ele atacou governadores? A demora de tomada de decisão do governo federal está provocando essa divisão, com cidades e estados indo procurar diretamente a forma de proteger sua população. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, procurou o governo de São Paulo. Vários governos estaduais, também. O governador Flávio Dino foi ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Se o ministro tivesse desde o começo assumido o papel de liderança que o governo federal sempre teve em programas de imunização, se mantivesse diálogo contínuo com os governadores, se tivesse mostrado senso de urgência e discernimento, não precisaria pedir por unidade. Ela aconteceria naturalmente e sob o comando do Ministério da Saúde. Quando os governadores pedem uma reunião com o ministro para discutir o programa nacional contra o coronavírus é a prova de falha da liderança. O ministro já deveria ter transformado esses encontros em rotina, deveria ter apresentado seu programa, deveria ter adotado a estratégia comum em todos os países de apostar em várias vacinas viáveis. Ou seja, seu dever no cumprimento da missão era usar a melhor estratégia da guerra, manter todos unidos contra o inimigo comum e usar todas as armas e munições.

A referência bélica é em sentido figurado. Armas e munições são as vacinas que nos garantirão a vida e o funcionamento normal da economia. Não apenas o imunizante, mas as seringas, agulhas, cronograma, planejamento, capacidade de estocagem e de transporte. A logística da imunização, enfim. Mas a prioridade de Bolsonaro é literal. Ontem o governo levou a zero as alíquotas de importação de revólveres e pistolas.

O governo atende ao desejo dos clubes de tiros, mas o general da Saúde tem dúvida se há interesse da população em se defender do vírus. “Se houver demanda”, disse e repetiu Pazuello. Ele assim o fez para mais uma vez demonstrar que segue na tropa do presidente da República que sempre negou a gravidade da pandemia e a necessidade de proteção contra o inimigo. O general está perdido no tiroteio.