pazuello
A militarização dos postos civis no governo Bolsonaro
O caso de Pazuello revela a extensão do corporativismo militar e seu potencial para deixar impunes as ilegalidades
Andrés del Río e Juliana Cesário Alvim Gomes / Folha de S. Paulo
Desde a promulgação da Constituição brasileira, em 1988, os resquícios autoritários da ditadura civil-militar são motivos de críticas.
Isso desde a manutenção do aparato de inteligência consolidado àquela época até o uso da Lei de Segurança Nacional para perseguir opositores, além da permanência da presença militar no aparato do Estado e no processo de tomada de decisão política.
Com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, há um grave aprofundamento desse processo.
Sem precisar de tanques –como da última vez–, os militares retornaram de maneira aberta e desavergonhada à mesa das decisões, aos cargos de alta remuneração e aos espaços que a redemocratização parecia lhes negar.
Nesse processo, um dos aspectos que chamam a atenção é a cooptação e distribuição corporativa dos cargos públicos civis da administração pública entre militares da ativa ou reserva.
No início de 2019, Bolsonaro indicou como ministro da Defesa um militar, o general Fernando Azevedo e Silva. Assim, ele quebrou a designação de um civil para esse ministério desde sua criação, em 1999.
Em fevereiro de 2020, pela primeira vez desde a retomada da democracia, um general passou a ocupar a chefia da Casa Civil, somando-se aos já ocupados Secretaria de Governo e Gabinete de Segurança Institucional.
No final de 2020, cerca de metade dos ministros do governo federal eram militares e havia mais de 6.157 militares na ativa ou na reserva trabalhando na administração pública.
Além de conferirem acesso ao poder político, esses cargos muitas vezes contribuem para um significativo acréscimo financeiro no ordenado daqueles que os ocupam.
EDUARDO PAZUELLO
UM GENERAL À FRENTE DA SAÚDE DURANTE UMA PANDEMIA
Nesse contexto, é representativo o caso do general Eduardo Pazuello, um general da ativa nomeado ministro da Saúde durante a pandemia de Covid-19, apesar de não ter qualquer experiência na área. Com ele, mais de 20 militares passaram a ocupar posições-chaves vinculadas à pasta.
Durante sua gestão, o Ministério da Saúde se opôs a medidas de confinamento e de uso de máscaras e incentivou a adoção de tratamentos inócuos e perigosos, como a hidroxocloroquina.
Como investigações do Congresso Nacional vêm revelando, foram criadas inúmeras barreiras para aquisição de vacinas.
Foi nesse período também que os dados da pandemia, como números de casos e mortes, “sumiram” do acesso público, escondidos da sociedade pelo ministério.
Durante seu tempo à frente da pasta, foram registradas cerca de 260 mil mortes por Covid no país e tragédias como as 28 mortes por falta de oxigênio em Manaus.
Para além da gestão funesta, o caso do general Pazuello revela a extensão do corporativismo militar e seu potencial para deixar impunes as mais evidentes ilegalidades.
Pouco depois de deixar a pasta, com um novo cargo na Secretaria-Geral do Exército, e de depor perante o Congresso, negando as irregularidades em sua gestão, Pazuello participou (sem máscara) de evento político ao lado de Bolsonaro.
Isso apesar da proibição de "manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária" prevista no Regulamento Disciplinar do Exército e no Estatuto dos Militares.
Diante disso, o Exército abriu um processo administrativo para apurar sua conduta.
Embora alguns militares tenham criticado publicamente a conduta do general, Pazuello não sofreu qualquer punição e o processo foi arquivado.
Senadores lamentaram a decisão do Exército de não punir o general e ex-ministro da Saúde.
Mesmo diante de tais reações, o Exército não só deixou de punir Pazuello como estabeleceu um segredo de cem anos sobre o processo relativo ao episódio.
O caso Pazuello revela a importância de se refletir sobre o papel e a responsabilidade de militares no âmbito político, sobretudo em um contexto em que mais e mais se embrenham na vida política e em que inúmeras irregularidades passam a vir à luz, como as reveladas pela CPI da Covid no Senado.
Além da vedação a manifestações públicas político-partidárias, o Estatuto dos Militares prevê a transferência de ofício para a reserva remunerada (aposentadoria) quando o militar "ultrapassar dois anos de afastamento, contínuos ou não, agregado em virtude de ter passado a exercer cargo ou emprego público civil temporário, não eletivo, inclusive da administração indireta".
Restringindo essa hipótese, Bolsonaro editou decreto em junho de 2021 conferindo natureza militar a cargos e funções “exercidos por militares” em diversos órgãos, como o Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia Geral da União (AGU), o Ministério de Minas e Energia e até mesmo empresas estatais.
Com isso, permite que, na prática, militares da ativa se mantenham nesses cargos por tempo indeterminado, ampliando e agravando o processo de ocupação dos espaços administrativos e políticos por membros das Forças Armadas.
DESFILE MILITAR NA ESPLANADA
A NECESSÁRIA REGULAÇÃO DAS FUNÇÕES DOS MILITARES
Como reação a esse processo, surgem iniciativas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 21/21, que proíbe que os militares da ativa ocupem cargos de natureza civil na administração pública, na União, nos estados, no Distrito Federal ou nos municípios.
A PEC determina que, para exercer esses cargos civis, o (ou a) integrante das Forças Armadas, da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros que conte menos de dez anos de serviço deverá se afastar da atividade. Se contar mais de dez anos de serviço, passará automaticamente para a inatividade no ato de posse.
Atualmente, a Constituição não trata da presença de militares em cargos civis, embora restrinja sua elegibilidade em termos semelhantes (afastamento da carreira para os com menos de dez anos de serviço e passagem à reserva para os com mais), o que demonstra sua preocupação com o envolvimento político de militares da ativa, inclusive como forma de resguardar as próprias Forças Armadas.
Essa preocupação não é descabida.
A militarização do governo, da administração pública e da política ameaça a democracia e os próprios direitos humanos, como evidencia a gestão militar da pandemia de Covid no Brasil.
É fundamental regulamentar e restringir a participação de militares da ativa em cargos e funções civis de administração e governo sob pena de naturalizar a subversão do papel das Forças Armadas e de tornar permanentes e irreversíveis os danos ao equilíbrio das relações entre civis e militares causados pelo governo mais militarizado desde o fim da ditadura militar.
*Andrés del Río
Doutor em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
*.Juliana Cesário Alvim Gomes
Professora-adjunta de direitos humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2021/08/a-militarizacao-dos-postos-civis-no-governo-bolsonaro.shtml
Alon Feuerwerker: Sinal amarelo
À sombra das disputas políticas que desfilam no palco da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19, os números da epidemia no Brasil começam a trazer dados algo precocupantes.
A curva da média movel de mortes ainda é declinante, mas isso convive com uma certa escalada na média móvel de casos, e agora também com alguns sinais, aqui e ali, de que voltou a subir a taxa de ocupação das UTIs (leia).
Será preciso acompanhar a situação nos próximos dias com grande atenção. Será necessário saber se estamos no início de uma terceira onda, qual a variante propulsora, e se é mais transmissível, se é mais letal.
Será mais que nunca obrigatório vigilância para que as autoridades não baixem a guarda, não desativem serviços hospitalares, especialmente na área de cuidados intensivos.
Não podemos repetir os equívocos acontecidos entre a primeira e a segunda ondas.
A CPI está corretamente debruçada sobre os erros passados. Não repeti-los é uma boa maneira de inclusive homenagear a memória das vítimas.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/sinal-amarelo.html
Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, Pazuello vira ‘herói’ do governo na CPI da Covid
Se não convenceu boa parte do público, pode-se dizer que o depoimento de Eduardo Pazuello funcionou em pelo menos um universo: os grupos bolsonaristas no WhatsApp e no Telegram. Entre esses seguidores, a decisão de não usar o habeas corpus fornecido pelo STF para ficar calado e até confrontar os senadores em alguns momentos fez sucesso.
Ao longo de todo o depoimento, as listas pró-Bolsonaro no WhatsApp foram inundadas com mensagens que indicavam a narrativa a ser reproduzida nas redes. “A primeira farsa dos opositores caiu hoje. Apostaram no silêncio, mas o ministro veio preparado e falou muito”, disse um dos textos disseminados nas redes. “O ex-ministro Pazuello está destruindo todas as narrativas fabricadas contra o governo federal naquele circo que está acontecendo no Senado”, diz outra mensagem.
Para o zap bolsonarista, Pazuello – que várias vezes se referiu às declarações e ordens de Bolsonaro durante a pandemia como “coisa de Internet” – “detonou” senadores acusados de corrupção e “provou” que o governo não tem responsabilidade pela tragédia pandêmica.
Solidários ao ex-ministro várias vezes chamado de “herói”, muitas postagens diziam ter sido um ultraje até mesmo a convocação do general, que esteve à frente do Ministério da Saúde no período em que morreram mais da metade das 445 mil vítimas da Covid-19 no Brasil.
“Humilhante para o general Pazuello, um homem sério, ser sabatinado por esses crápulas!”, desabafou um bolsonarista em um grupo do Telegram. “Quero deixar minha indignação aqui com essa CPI. Estão a todo o momento denegrindo (sic) a imagem do ministro Pazuello e do nosso presidente”, escreveu uma apoiadora.
O fato de Pazuello blindar completamente o presidente da República de qualquer responsabilidade pelo fracasso na pandemia também pesou a favor do ex-ministro nas redes. Para os seguidores, o general foi um “guerreiro” que defendeu Bolsonaro de conspiradores.
Dentre eles, o mais atacado foi o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), mas também sobrou para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), e outros parlamentares.
“General Pazuello, um oficial general extremamente bem preparado, conseguiu com sua exposição dos fatos, relacionados à sua atuação como Ministro da Saúde, provocar um golpe certeiro nas armações e manipulações de Renan Calheiros ao longo da CPI”, disse uma mensagem assinada por um suposto comandante militar.
No Telegram, cada vez mais frequentado por bolsonaristas, uma lista de apoiadores de Eduardo Pazuello foi criada na tarde de quinta-feira, enquanto ele falava à CPI.
Setenta pessoas já aderiram e passaram a receber artes e cards com as inscrições #Somos Todos Pazuello e ilustrações já com visual de campanha eleitoral. Até o agravamento da pandemia sacá-lo do cargo, Pazuello cogitava concorrer ao governo de Roraima ou do Amazonas. O grupo também criou um perfil no Instagram para homenageá-lo.
Fonte:
O Globo
Ruy Castro: Pazonaro, digo Bolsuello, ganhou
Quem não sabe fazer perguntas não tem chance contra respostas que não querem dizer nada
O general Eduardo Pazuello, quem diria, hein? Promovido da chefia do serviço de rodos e vassouras dos quartéis ao posto de ministro da Morte por Jair Bolsonaro, botou no bolso seus inquiridores na CPI da Covid apenas por vencê-los numa arte que se julgava extinta: a oratória. Resposta após resposta, quase se podia ver seu sorriso sob a máscara, ao ouvir sua voz ressoar triunfalmente no auditório sem ser intimado a detalhar ou fundamentar suas declarações.
Se alguém se limitasse ao áudio dos interrogatórios de Pazuello, só escutaria a sua voz —firme, sonora, em alto volume, temperada em anos de ordens na caserna a soldados, cabos e sargentos, com eventuais humilhações a um ou outro ao obrigá-lo a se fazer de mula e puxar carroça na frente da tropa. Em contraposição, tínhamos a elocução tíbia, raquítica, titubeante e súplice dos senadores encarregados de lhe fazer perguntas.
Perguntas essas que só vinham à tona depois de 15 minutos de discurso por parte de cada senador —talvez de grande valia para os anais da CPI, mas de eficácia zero para fazer o inquirido falar. Pazuello foi brilhante ao enrolar, tergiversar, dar voltas e adiar cada resposta de modo a que, ao fim desta, ninguém mais se lembrasse da pergunta. Foi também eficiente ao interromper, transferir culpas, mentir e desmentir antigas declarações e mesmo as que tinha acabado de pronunciar e repetir com tanta ênfase essas negações que parecia até acreditar no que estava dizendo.
Mas o ponto alto era quando Pazonaro, digo Bolsuello, recebia certas perguntas dos senadores e as analisava, criticava, aferia seu grau de precisão e orientava o relator e o presidente da CPI sobre como elas deveriam ser feitas e como ele pretendia respondê-las. “Eu vou explicar de novo e os senhores vão entender”, dizia, soberanamente.
Está certo. Quem não sabe perguntar precisa de alguém que lhe ensine.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/pazonaro-digo-bolsuello-ganhou.shtml
Cora Rónai: Somos todos idiotas
Sendo uma das idiotas que não saem de casa, na gentil descrição do senhor Presidente da República, tenho tido muito tempo para pensar na vida; o que me leva, invariavelmente, a concluir que, num mundo de idiotas, o melhor a fazer é não pensar.
Todos nós, idiotas, estamos cansados. Do isolamento e das restrições da pandemia, da solidão e da monotonia, mas, sobretudo, das notícias que nos chegam a respeito dos outros idiotas, aqueles que se rebelam contra as máscaras, não respeitam distanciamento social e acham que vírus se combate no grito.
Eles não aprenderam que, além dos cientistas que desenvolvem vacinas, ninguém pode fazer nada de concreto contra uma pandemia.
Nós idiotas que ficamos em casa fazemos o possível para evitar que o vírus circule. É pouco, de fato, mas é o que podemos fazer. Ficar em casa quando se pode ficar em casa não é desdouro nem falta de coragem, é consciência social: quanto menos gente houver nas ruas menos o vírus estará em circulação e menos pessoas serão contaminadas.
Não parece difícil de explicar, mas, pelo visto, é impossível de entender. Há alguma mutação genética ou ausência de atividade cerebral que impede que os idiotas, aqueles, compreendam essa verdade basilar. Um dia eles ainda vão ser estudados pela Ciência.
A nossa idiotice de isolados é um sentimento tingido pela melancolia, intenso mas inofensivo. Passamos os dias trabalhando, lendo, cozinhando, lavando louça, participando de lives, cuidando de plantas e de bichos, refletindo e torcendo para que haja vacina logo para todo mundo.
Enquanto isso o idiota lá desdenha das máscaras, aglomera, voa de helicóptero, faz churrasco, anda de moto, cavalga pela Esplanada dos Ministérios e oferece ao mundo o espetáculo da sua estupidez relinchante e orgulhosa de si mesma.
Genocida.
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Desde os tempos em que trabalhei em Brasília, numa outra encarnação, eu já sabia que educação, caráter e hombridade não são requisitos básicos para assumir cargos importantes na administração pública. Mas eu ainda guardava uma ilusão solitária, e imaginava que era preciso ter um mínimo de inteligência e de sofisticação intelectual para ser Ministro das Relações Exteriores.
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A Mauritânia fica na costa africana, ao Norte, logo abaixo do Marrocos e colada à Argélia, em pleno Saara: sua capital Nouakchott, com cerca de um milhão de habitantes, é a maior cidade do deserto.
Eu não sabia disso, e não foi por falta de interesse na região, porque antes da chegada do Exército Islâmico ao Mali cheguei a fazer planos de viajar para o país, ali ao lado. Eu também não sabia que a Mauritânia só aboliu a escravidão oficialmente em 1981 e que conserva o antigo hábito berbere de engordar as mulheres: meninas com 8 ou 9 anos são obrigadas a beber leite de camelo aos litros e, aos 12, já são obesas de 30 anos.
Como idiota que sou, tenho fugido da vida real mergulhando em documentários, e foi no canal Tracks, no YouTube, que encontrei uma série holandesa sobre os países do Saara. Ela é apresentada por Bram Vermeulen, e está em inglês; há opção de legendas automáticas. O Tracks é um aglutinador de conteúdo que reúne documentários sobre o mundo todo realizados por emissoras de diversos países, e tem uma coleção extraordinária de vídeos.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/cultura/somos-todos-idiotas-25025013
Maria Hermínia Tavares: Projeto da Câmara é incentivo à degradação ambiental
Patrocinado pelo centrão, saiu da Câmara rumo ao Senado o projeto que, a pretexto de modernizar o arcabouço de regras que norteiam o licenciamento ambiental no Brasil, praticamente destrói o pilar da Política Nacional de Meio Ambiente.
Se virar lei na versão atual, o projeto 37/2004 abrirá alas para a insegurança jurídica, ao transferir a estados e municípios o poder de definir o processo de concessão de licenças.
Ao introduzir exceções à obrigatoriedade do licenciamento ou facilitar a sua obtenção, multiplicará as chances de danos ambientais graves –do desmatamento à poluição do ar e dos rios por atividades industriais mal concebidas e a catástrofes semelhantes às que destruíram Mariana e Brumadinho, poucos anos atrás. Finalmente, elevará à enésima potência os riscos a que já estão submetidos os povos indígenas e quilombolas à medida que isentar de licenciamento os territórios ainda em processo de demarcação.
Muitas atividades podem ser mais bem executadas quando livres de interferência e regulação estatais: a imprensa é uma delas, as artes e a cultura, outras tantas. Não é, de forma alguma, o caso da proteção ambiental. Esta requer que o cálculo de ganhos coletivos futuros –e, por isso, difíceis de aquilatar– tenha precedência sobre interesses imediatos e palpáveis. Aqui, o poder público é insubstituível para definir a norma e fazê-la cumprir, criando incentivos apropriados para os agentes privados.
A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro em prol de mesquinhos objetivos da hora –no caso, contingente não desprezível das bases eleitorais do ex-capitão. Indica também como o país envereda pela contramão do mundo civilizado, onde a preocupação em limitar a mudança climática vai de mãos dadas com medidas concretas –e de forte teor regulatório–, destinadas a proteger as populações dos inevitáveis desastres ambientais que ela já está provocando e poderá ocasionar mais adiante.
O projeto de lei aprovado pelos deputados da coalizão governista é a primeira de quatro medidas com o mesmo propósito estritamente eleitoreiro, que o Executivo encaminhou ao Congresso quando da eleição dos presidentes das duas Casas. Tratam de mineração em terras indígenas, concessões florestais, estatuto do índio e regularização fundiária, apropriadamente conhecido como o “PL da grilagem”. Madeireiros, grileiros, desmatadores e companhia feia, produtores de resíduos tóxicos ou de obras malfeitas agradecem.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Eugênio Bucci: O cerco à universidade
No início do mês a Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) recebeu uma representação em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídicas; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providências que julga devidas.
Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisador reconhecido pelos pares em temas como Direito Constitucional, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S. Paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garante-lhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamente atacado tem o direito, também democrático, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.
Há algo de impróprio, no entanto, na representação feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitária a punição de manifestações públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.
O primeiro está na tentativa de transformar a universidade pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensão do que seja a institucionalidade democrática.
O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representação parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitária. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachantes de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitária de uma sociedade democrática, não é assim que funciona.
Quando se diz que a universidade tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universidade não deve obediência a autoridades que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitárias, pois não têm atribuições para pautá-las. Por certo, a universidade tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.
Por isso, a representação é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitada caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragados num contexto de atordoante anormalidade, ela nos traz preocupações maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramos e nos perdemos fica no ar um travo de intimidação. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressuposto.
Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalistas, chargistas, artistas e intelectuais. Em março, dois professores da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangidos a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquetes orçamentários contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidades, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigações policiais que atingem a administração universitária se paramentam de notas sensacionalistas e espetaculosas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêmica), cuja prepotência trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.
Naquele ano, o cerco em torno de pesquisadores, cientistas e intelectuais ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidade e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldaria as bandeiras do bolsonarismo. Agora a universidade é bombardeada a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representação do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-cerco-a-universidade,70003720292
William Waack: Ordens e internet
É notório que Jair Bolsonaro governa para e pela internet. Com resultado que está ficando muito nítido pelos trabalhos da CPI da Covid: a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. O pecado original foi o papel importantíssimo das redes sociais na vitória dele em 2018. São ferramentas indispensáveis para ganhar eleições, mas instrumentos precários para governar – e é pensando nelas que Bolsonaro baseia suas ações.
“Postagens na internet não são ordens”, disse seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ao depor na CPI da Covid num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Sim, no caso do governo Bolsonaro, são ordens (mas em juridiquês não são). O próprio Pazuello postou um célebre vídeo – na internet – ao lado de Bolsonaro, dando conta de que um manda (o presidente) e o outro (o general intendente) obedece.
“Mas era coisa de internet”, desculpou-se Pazuello. O efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Dedicado como sempre à atividade de animador de redes digitais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. No caso da pandemia, a CPI foi razoavelmente bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoramento governamental que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir.
Ocorre que dualidade de mando paralisa qualquer administração complexa, como é o caso do governo brasileiro. Na prática, Pazuello e seus antecessores se viram divididos entre o que eram as posturas recomendadas pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicamentos, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes – além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprinzip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.
O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriormente setores como economia ou política externa (mas não só). Na economia, por exemplo, Bolsonaro promoveu grande alarido, com enormes prejuízos para a Petrobrás, ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíveis. Repetiu a “fórmula” com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupados sobre qual seria, afinal, o limite da intervenção estatal. Era o que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na internet?
Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrênica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China. Valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultura) e governadores (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportações e suprimento de insumos para vacinas?
Bons observadores que são da cena brasileira (Pequim sabe cuidar de seus interesses), talvez os chineses se orientem pelo comportamento de duas instâncias políticas hábeis até aqui em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos e pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e que não mais responde às provocações feitas por ele através das redes digitais.
Outra instância política é a do Centrão, que congrega notórios especialistas em sobrevivência política e defesa dos próprios interesses. Os articuladores da base de sustentação de Bolsonaro no Legislativo chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuição de verbas entre parlamentares: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvimento Regional e o da Economia, por exemplo.
O resto é Bolsonaro falando para a internet.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-e-internet,70003720588
Malu Gaspar: Para escapar da CPI, Pazuello inventa a ‘coisa de internet’
Depois de muito tentar se esquivar da CPI da Covid, o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus para ficar em silêncio e evitar se incriminar. Mas a ordem do ministro Ricardo Lewandowski foi expressa: Pazuello podia, sim, ficar quieto sobre as coisas em que se envolveu, mas não podia mentir quanto aos atos de outras pessoas.
Criou-se então um dilema para o general. Ficando em silêncio, ele estaria dando à CPI o roteiro de seus crimes. E, não podendo mentir para proteger terceiros, seria obrigado a apontar as responsabilidades de Jair Bolsonaro no fracasso do combate à pandemia. Pazuello tinha ainda a opção de ficar quieto o tempo todo. Não teria sido o primeiro a fazê-lo numa CPI. Mas investiu-se de brios de militar e decidiu que não passaria para a história como um covarde. E, assim, produziu uma inovação simbólica dos tempos que vivemos: a “coisa de internet”.
Cada vez que alguém o questionava a respeito de uma ordem de Bolsonaro contra a vacina ou pela adoção da cloroquina como instrumento de política pública, lá vinha Pazuello dizendo que aquilo era “coisa de internet”, “postura de internet” ou algo do gênero.
Foi como ele explicou a resposta de Bolsonaro a um seguidor no Facebook. Pazuello acabara de anunciar a compra de 46 milhões de doses de CoronaVac numa reunião com governadores, mas o bolsonarista apelou na rede social para que o presidente não comprasse a vacina chinesa. “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, escreveu Bolsonaro. “Qualquer coisa publicada, sem qualquer comprovação, vira TRAIÇÃO”, arrematou.
Para Pazuello, não foi nada demais: “Aquilo foi apenas uma posição do agente político na internet”. O próprio general teria cometido apenas uma coisa de internet ao declarar o inesquecível “um manda, o outro obedece”, no vídeo em que aparece prestando vassalagem ao capitão, logo depois de ter sido desautorizado via Facebook.
Segundo o que se depreende do discurso do ex-ministro-general, o que o presidente diz nas redes sociais ou em suas lives não tem caráter de ordem e não precisa nem ser verdade. São balelas que nem ele mesmo, Pazuello, levava a sério.
Teria sido melhor para o Brasil que fosse mesmo assim. Bolsonaro faria sua bravata virtual, os minions se agitariam e aplaudiriam, e no dia seguinte tudo voltaria ao normal.
Acontece que não é.
Se o que presidente da República fala nas redes ou aos microfones fosse apenas “coisa de internet”, o Butantan não teria feito três ofertas de vacinas ao Ministério da Saúde e ficado sem resposta. Pazuello não teria levado cinco meses para finalmente assinar o contrato com o Butantan e nem ignorado as ofertas da Pfizer por sete meses. O Exército brasileiro não teria iniciado a produção de 3 milhões de doses de cloroquina, mesmo sem demanda nem comprovação de eficácia em pacientes de Covid.
Se, no governo Bolsonaro, “coisa de internet” não fosse para valer, Paulo Guedes não teria sido obrigado a demitir um secretário da Receita que defendeu a volta da CPMF, o imposto do cheque. Tampouco teria recuado da tentativa de trocar o nome do Bolsa Família para Renda Brasil. E os fiscais do Ibama que, numa ação legal, inutilizaram o maquinário de comerciantes de madeira clandestina extraída da Amazônia, em 2019, não teriam enfrentado um procedimento administrativo por parte da chefia.
São apenas alguns exemplos entre muitos. Diga Pazuello o que quiser, nada mudará o fato de que Jair Messias Bolsonaro foi eleito fazendo “coisa de internet” e governa à base de “coisa de internet”. O compromisso do presidente com as “coisas de internet” é tão sério que suas lives de quinta-feira nunca falham, esteja ele onde estiver. É na internet que ele dá ordens, grita, desautoriza e constrange. É pela internet que ele convoca manifestações contra as mais diversas ameaças a seu sempre perseguido governo patriótico. E claro, é também via internet que se constata quais de suas “coisas de internet” são mesmo só bravatas que não devemos levar a sério.
Infelizmente para os brasileiros, as atitudes de Bolsonaro na condução da pandemia não estão entre as “coisas de internet” que devemos ignorar. Pazuello, pelo menos, não o fez. Preferiu dar uma desculpa esfarrapada a deixar transparecer, mesmo que de forma oblíqua, em que momentos o capitão mandou, e ele obedeceu, e em que outras ocasiões — se é que houve — ele foi apenas mais uma vítima do negacionismo presidencial. Com isso, o general afrontou a inteligência do distinto público, mas não decepcionou seu capitão. Provou na prática que, até hoje, o presidente manda e ele obedece. E isso, definitivamente, não é coisa de internet.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Não há chance de dar certo
Além das mentiras já comprovadas do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que o noticiário em tempo real já explora desde ontem, e os jornais de hoje estão certamente aprofundando, os depoimentos à CPI da Covid até agora estão desvelando a maneira primitiva com que as decisões não são tomadas no governo Bolsonaro.
Juntando com a operação da Polícia Federal realizada ontem sobre a venda ilegal de madeira para os Estados Unidos, denunciada pelo próprio governo americano, temos a prova cabal de que não é apenas a questão ideológica que interfere na formação de um governo totalmente disfuncional.
O (ainda?) ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e diversos escalões do Ibama, inclusive seu presidente, foram apanhados por uma investigação sigilosa que incomodou Bolsonaro, que fez trocas no Ministério da Justiça e na Polícia Federal na tentativa de controlar as instituições do Estado brasileiro e viu-se surpreendido com a independência da PF.
Um exemplo típico, e fundamental, dessa disfuncionalidade é a crença de que as palavras de Bolsonaro nas redes sociais e nas lives fazem parte apenas do seu “etos político”, e não representam orientações do governo. Ao explicar a famosa frase “um manda, outro obedece”, Pazuello disse que era “uma frase de internet”, isto é, uma resposta para ajudar o político Bolsonaro, que estava sendo criticado por seus seguidores nas redes sociais porque o Ministério da Saúde havia anunciado a compra da CoronaVac, a “vacina chinesa” do Doria.Seria uma releitura abrutalhada de Maquiavel, que separava a ética política da ética moral, ou então de Max Weber, uma referência para os que querem ser servidores públicos conjugando a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política.
Se houvesse um lado B de Bolsonaro, que para fora do governo enviasse uma mensagem, e agisse com bom senso, não teríamos tido a tragédia sanitária de que Pazuello é cúmplice. Basta assistir ao vídeo da famosa reunião ministerial que precipitou a saída do ex-ministro Sergio Moro para ver que o Bolsonaro das redes sociais é o mesmo nas entranhas do governo.
Ao mentir na CPI, tentando livrar a cara do presidente, o ex-ministro da Saúde comete um “crime continuado”, mesmo fora do governo. Os fatos o desmentem. O caso do avião oferecido pelos Estados Unidos para levar oxigênio para Manaus, na crise sanitária ocorrida dentro da pandemia no Brasil, é exemplar da incapacidade de trabalho em equipe deste governo.
O ex-chanceler Ernesto Araújo não falou com o governo da Venezuela, nem com o dos Estados Unidos, por questões ideológicas. E também não encaminhou, segundo Pazuello, um pedido formal com as características dos cilindros que seriam apanhados na Venezuela para levar a Manaus. Já havia feito isso quando recebeu a carta da Pfizer oferecendo vacinas. Não comunicou ao presidente Bolsonaro porque supôs “que o governo tinha recebido a carta”.
Pazuello soube que havia um avião dos Estados Unidos pronto para trazer oxigênio, mas não fez nada, pois não lhe perguntaram nada, só informaram. Ernesto Araújo disse que cabia ao Ministério da Saúde dar as informações técnicas para o voo. Os dois não se falaram, demonstrando que as autoridades do governo tiveram comportamentos burocráticos durante a crise humanitária em Manaus.
Pazuello reafirmou uma visão provinciana das negociações internacionais sobre as vacinas. Disse que mostrou ao representante da Pfizer o tamanho do Brasil num mapa, assim como o presidente Bolsonaro dissera anteriormente que o mercado brasileiro era tão grande que poderíamos negociar o preço das doses. Deu tudo errado, e, ao final, compramos a vacina da Pfizer pelo preço definido no início das negociações, perdendo tempo e prioridade na distribuição das doses.
É um governo completamente disfuncional. Com esses depoimentos e declarações, não há a menor chance de dar certo.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nao-ha-chance-de-dar-certo.html
Ricardo Noblat: Pazuello chegou mentindo na CPI da Covid-19 e saiu mentindo
Missão dada ao general da ativa Eduardo Pazuello, missão cumprida. Quando nada porque, segundo ele, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Obrigado a depor na CPI da Covid-19, ele cumpriu a missão que lhe deram de blindar o presidente Jair Bolsonaro – afinal, quem manda em todos que o servem é o presidente, e Pazuello, ajuizado, sempre respondeu “sim, senhor”.
Pazuello entrou no Congresso para mentir a seu favor e a favor do presidente, e saiu de lá mentindo ao negar que tivesse passado mal, tamanho foi o esforço de disfarçar o nervosismo por mais de cinco horas. Foi como se tivesse esquecido de desativar o modo mentira. “Não passei mal. Não aconteceu nada. Amanhã o depoimento continua”, disse aos jornalistas ao despedir-se.
O general é um homem frágil. Não aguenta pressão. E a mentira cobrou seu preço. Alertado por um assessor da CPI, o médico e senador Otto Alencar (PDS-BA) encontrou Pazuello sentado em um sofá, com os pés no chão e muito pálido. Deitou-o e, em seguida, o pôs na Posição de Trendelenburg, onde a parte superior do dorso é abaixada e os membros inferiores elevados.
Com isso, o sangue corre mais depressa em direção ao cérebro, o que previne outros tipos de males súbitos e facilita a recuperação do paciente. Deu certo. Pazuello recuperou-se e saiu amparado por agentes de segurança. Dispensou o amparo ao cair no radar dos jornalistas. A imagem do general abatido pegaria mal para ele. O que não seria escrito a seu respeito?
Das mentiras apregoadas por ele, essa foi a menor. Pazuello mentiu quando disse: “Eu tomei conhecimento do risco [de falta de oxigênio] de Manaus no dia 10 [de janeiro de 2021] à noite, em uma reunião com o governador do Amazonas e o secretário de Saúde”. O governo federal foi avisado no dia 8 que o sistema de saúde de Manaus estava perto de colapsar com a falta de oxigênio.
Mentiu quando disse que o Supremo Tribunal Federal limitou a atuação do governo federal nas ações estratégicas contra a pandemia da Covid-19. De fato, em três ações distintas, o tribunal decidiu apenas que a União não poderia interferir em medidas adotadas por governadores e prefeitos no combate à pandemia. Se dependesse da União, sócia do vírus, não haveria nenhuma.
Mentiu quando disse que não foi desautorizado por Bolsonaro depois de anunciar que a Coronavac seria “a vacina do Brasil”. No dia seguinte ao anúncio, Bolsonaro afirmou que não compraria “essa vacina” porque o presidente era ele, e dele é a caneta cheia de tinta usada para assinar decretos. Na ocasião, Pazuello, sorridente, comentou: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Mentiu quando disse desconhecer quem ordenou o aumento da produção da cloroquina no país. Foi Bolsonaro quem ordenou, e isso é público e notório. Ordenou às Forças Armadas, e por meio do Ministério da Saúde, à Fundação Oswaldo Cruz. O ex-ministro Henrique Mandetta foi demitido por ser contra. E o ex-ministro Nelson Teich demitiu-se pela mesma razão.
Foi no que deu a recusa do senador Omar Aziz (PDS-AM), presidente da CPI, em prender por mentir o ex-Secretário de Comunicação Social do governo, Fabio Wajngarten. Embora se queixe das mentiras que escuta, Aziz liberou geral para que mintam. E Pazuello sentiu-se à vontade para mentir. Foi treinado – e bem treinado – para isso. Hoje, seguirá mentindo.
Operação contra ministro do Meio Ambiente tem dedo americano
Autoridades dos EUA barraram a entrada de madeira contrabandeada do Brasil e assim deflagraram a operação policial que atingiu Salles
Qual ministro do governo Bolsonaro poderá bater no peito com orgulho e proclamar que foi alvo de uma operação da Polícia Federal deflagrada com a ajuda de autoridades norte-americanas?
Não é para qualquer um, mas o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, poderá dizer. Essas coisas têm lá os seus aborrecimentos, mas nada que lhe custe o emprego.
Bolsonaro gosta dele. Bolsonaro gosta de todos que obedecem às suas ordens. E é somente isso o que faz Salles. Uma vez que captou o que o presidente quer, adianta-se a todos os seus desejos.
Salles está entre os investigados pela Polícia Federal por envolvimento num “grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais” para os Estados Unidos e outros países.
Nunca antes na história um ministro do Meio Ambiente brasileiro foi investigado por supostas violações à natureza. Endereços de Salles em Brasília e São Paulo foram vasculhados pela polícia.
Quem autorizou foi o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, uma vez que Salles, por ser ministro de Estado, tem direito a foro privilegiado.
Moraes mandou quebrar o sigilo bancário e fiscal de Salles e de outros investigados, e suspendeu uma portaria dele que permitia a exportação de produtos florestais sem a emissão de autorizações.
No despacho de Moraes, consta:
A situação que se apresenta é de grave esquema criminoso de caráter transnacional. A empreitada criminosa não apenas realiza o patrocínio do interesse privado de madeireiros e exportadores em prejuízo do interesse público, mas cria sérios obstáculos à ação fiscalizatória do poder público no trato das questões ambientais com inegáveis prejuízos a toda a sociedade.
As investigações da Polícia começaram em janeiro último, quando autoridades norte-americanas recusaram a entrada de madeira no país com base nas regras de exportação criadas por Salles.
É comum que ministro do Supremo ouça a Procuradoria-Geral da República antes de autorizar uma operação policial contra um ministro de Estado. Moraes não ouviu. E por quê?
Porque temeu que Augusto Aras, o Procurador-Geral da República, vazasse a informação para Salles e Bolsonaro. Aras está de olho em uma vaga de ministro do Supremo. Sabe como é…
Sem amparo em fatos, o presidente diz e repete que não há e nunca houve corrupção no seu governo. E que por isso ele pôs fim à Operação Lava-Jato. Está aí Salles para desmenti-lo.
Fonte:
Metrópoles
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli: Governo fraco, soluções ruins
Uma leitura atenta do noticiário nacional, ao longo das últimas semanas, identifica sintomas eloquentes de uma sociedade que, envolta em conflitos internos, mergulhou voluntariamente na estagnação há quatro décadas. Somente as eleições de 2022 oferecem alguma esperança de correção de rumo, mas o quadro atual não permite alimentar grandes esperanças.
A reforma tributária, o mais importante item da pauta econômica em debate no momento, encontra-se num atoleiro. O relatório da Comissão Mista da Reforma Tributária divulgado pelo relator, deputado Agnaldo Ribeiro, mostra que o Congresso vem amadurecendo a compreensão do complexo tema. Até questões que costumam suscitar resistências de pessoas tão bem intencionadas quanto mal informadas, como a necessidade de haver uma alíquota única do IVA para todos os bens e serviços comercializados num mesmo município, parecem ter sido compreendidas por muitos legisladores.
Mas a aprovação de uma reforma tecnicamente consistente, sem graves concessões que comprometam sua eficácia, exigiria uma liderança e habilidade políticas inexistentes num governo capitaneado por Bolsonaro. Como pior do que manter temporariamente a desordem tributária atual seria aprovar definitivamente uma reforma ruim, tudo indica que o tema ficará para um futuro governo.
A sempre adiada privatização da Eletrobras segue no mesmo rumo. A MP original enviada pelo governo sofreu profundas alterações no Congresso que reduzem a atratividade da empresa para potenciais compradores privados, assim como criam incertezas que afetam outras empresas do setor elétrico.
Na nova versão da MP, a Eletrobras passaria ao setor privado, mas em seu lugar surgiria outra estatal gigantesca – a Eletronuclear – que herdaria as usinas nucleares e também Itaipu, além de ser obrigada a construir termelétricas movidas a gás em locais onde sequer há gasodutos. Dessa forma, a rentável Itaipu geraria os recursos para sustentar termelétricas economicamente inviáveis, além de outros penduricalhos, o que constituiria um subsídio cruzado injustificável.
Da mesma forma que no caso da reforma tributária, pior do que preservar por mais algum tempo a Eletrobras na mão do Estado seria aprovar uma privatização mal feita, de modo que tudo indica que a privatização ficará para um futuro governo.
Na Petrobras, a intervenção de Bolsonaro destinada a mudar a política de fixação de preços de combustíveis, baseada na paridade com os preços internacionais, apenas no intuito de agradar seus eleitores caminhoneiros, até agora não resultou em mudança naquela política. Isto porque o novo presidente, ao assumir o cargo, descobriu que não há outra política de preços economicamente viável. Mas já se pode prever que, como compensação ao capitão, a atual direção da empresa adiará as privatizações de refinarias, embora já haja uma decisão do Cade – bem como um Termo de Compromisso de Cessação de Prática assinado pela Petrobras – que prevê as privatizações.
Tampouco outras privatizações deverão avançar. Após o Ministério da Economia divulgar um detalhado inventário de participações acionárias da União que surpreendeu pela sua amplitude, as poucas privatizações ocorridas limitaram-se a vendas de subsidiárias de empresas estatais, bem como a licitações que transferiram ao setor privado a exploração de ativos – como aeroportos – de estatais mantidas. O estatista Bolsonaro repete a estratégia do PT que fazia concessões aos mercados de capitais, promovendo a contragosto algumas privatizações perfunctórias, mas limitava-as aos casos em que podia transferir ao setor privado apenas a exploração do serviço preservando a propriedade estatal do bem de capital.
No momento em que o Congresso discute a espinhosa PEC da reforma administrativa, cujo objetivo é racionalizar os elevados gastos com pessoal, o mesmo governo que enviou a PEC divulga um decreto oficializando o descumprimento do teto constitucional de remuneração de servidores. O próprio presidente da República é beneficiário direto do decreto. E a reforma proposta só valeria para novos funcionários, atrasando em décadas um ajuste necessário e o corte de privilégios.
As disfunções e a paralisia decisória ilustradas acima são o resultado de um governo sem maioria parlamentar chefiado por um político tosco sem convicções claras, além de um conservadorismo algo difuso mas extremamente reacionário. Após fomentar os mais diversos conflitos e tratar a pandemia com indescritível irresponsabilidade, Bolsonaro precisou buscar apoio no velho Centrão – que negou e atacou inúmeras vezes antes de abraçá-lo -, um bloco composto de 1/3 dos deputados para conseguir escapar do impeachment. Mas seus novos parceiros agora lhe impõem o preço do apoio sob forma de exigências cada vez mais caras, o que perpetua a paralisia.
Com a aproximação do calendário eleitoral, a sociedade se vê diante de um quadro desanimador. A principal candidatura de oposição, até o momento, é a de um ex-presidente envolvido em inúmeros escândalos de corrupção que governou durante um grande boom de commodities, o que lhe permitiu entrar para o imaginário popular como grande administrador e eleger uma neófita na política. As políticas equivocadas e distorcivas do segundo governo Lula foram aceleradas e ampliadas, por Dilma Rousseff. A Nova Matriz Econômica mergulhou o país numa profunda crise econômica que abriu espaço para a eleição de um primitivo anti-democrata, que não tem qualquer projeto significativo hoje além de sua sobrevivência política a qualquer preço.
Lula elegeu Dilma que, por sua vez, elegeu Bolsonaro. É preciso evitar que Bolsonaro eleja Lula. Não se pode escolher um projeto ruim, que provavelmente manterá o país em conflito e estagnado, substituindo-o por outro também ruim que deu errado no passado.*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento**Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/governo-fraco-solucoes-ruins.ghtml