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Paulo Hartung: 2021, ano decisivo para um futuro mais verde

O Brasil tem a chance de se tornar um farol a iluminar o horizonte dessa caminhada global

 “O futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo.” Nos dias que se sucedem neste 2021, a máxima de Saint-Exupéry deve ser observada com preciosa atenção: a significativa agenda ambiental que mobiliza o planeta este ano tem o condão de firmar as bases de um novo futuro, para as atuais e as próximas gerações.

Não podemos mais negligenciar discussões e decisões sobre a sustentabilidade do planeta. A covid-19, que, tragicamente, tem sido muito dura e vem ceifando milhares de vidas, é também fruto do descontrole na relação entre humano e natureza. Temos de agir e aproveitar as oportunidades para acelerar uma retomada verde.

Joe Biden convocou a Cúpula do Clima para o próximo dia 22, com o objetivo de ampliar políticas de combate a desmatamento e redução de emissões de dióxido de carbono (CO2). Também haverá duas Conferências da ONU. A COP-15 da Convenção da Diversidade Biológica, que negociará o novo Marco Global de Biodiversidade. Já a COP-26 sobre Mudança Climática será a chance para, enfim, aprovar o artigo 6.º do Acordo de Paris, que estabelece e regula um mercado global de carbono.

Nacionalmente, Belém (PA) será a sede do Fórum Mundial da Bioeconomia, pela primeira vez realizado fora da Finlândia. Voltar os olhos para o Brasil pode nos dar a chance de protagonizar as discussões e estimular a estruturação de uma economia de baixo carbono.

Para ingressar numa nova economia não podemos mais nos basear nos velhos conceitos que nos guiaram até aqui. O meio ambiente sempre foi pensado sob o olhar de comando e controle, mas chegou o momento de enxergar além e criar estímulos, como o pagamento por serviços ambientais (PSA).

Devemos monetizar a floresta em pé. Essa é uma chance inigualável para o Brasil, que possui a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo. Preservando a Floresta Amazônica e com um comércio regulado de crédito de carbono, há estimativas de que poderíamos ter ganhos de até US$ 10 bilhões por ano. Montante que poderia ser um alento para os 25 milhões de brasileiros que vivem na região e sofrem com a falta de infraestrutura, como saneamento básico, serviços de saúde e de telecomunicações, entre outros.

Tem de se dar o devido valor ao cuidado com os recursos hídricos, lembrando que concentramos 12% da água doce do planeta. A matriz energética brasileira é uma referência, com cerca de 45% de geração limpa, mas com campo para avançar a partir, também, da energia eólica, solar e da biomassa.

Na seara da bioeconomia, não precisamos inventar a roda. Podemos dar escala a experiências de sucesso País afora. Na Amazônia, entre outros exemplos, o açaí movimenta cerca de US$ 1 bilhão por ano, a castanha e o cacau proporcionam sustento às comunidades, com espaço para avançar.

Outras regiões também produzem casos bem-sucedidos. O Brasil destaca-se como o segundo maior produtor de etanol do mundo, até exportando tecnologia. O setor de árvores cultivadas trabalha há anos com os dois pés na bioeconomia. Enquanto planta, colhe e replanta árvores para fins industriais em 9 milhões de hectares, destina outros 5,9 milhões de hectares à conservação, entre áreas de preservação permanente, de reserva particular do patrimônio natural e reserva legal. Juntas, essas florestas removem e/ou estocam 4,48 bilhões de toneladas de CO2 equivalente.

Nossas potencialidades estão postas à mesa. Precisamos transformá-las em oportunidades reais para ingressar nesta nova era da economia verde, que será marcada pelo mercado de carbono e outros mecanismos igualmente transformadores de nossa relação com a natureza.

Política ambiental é tema de Estado, e não de um governo específico ou de um partido. Trabalhar desde já com planejamento é cuidar da sociedade, proteger o meio ambiente e beneficiar até mesmo nossa competitividade internacional, que tem no comércio exterior um dos motores da economia brasileira. São nossas atitudes que farão o mundo confiar novamente no País e valorizar os produtos “made in Brazil”, em vez de criar barreiras comerciais.

Para isso temos uma lição de casa a fazer. Como prioridade, combater as ilegalidades, especialmente na Amazônia. Desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras devem ser coibidos. Em segundo lugar, implementar, de fato, o Código Florestal. Essa lei é moderna, pensada juntamente com a sociedade civil, e dispõe sobre PSA em seu artigo 41. Não é exagero imaginar que seu modelo possa ser exportado, apresentando-se como uma legislação de referência para o mundo.

O Brasil tem em suas mãos a chance de se tornar um dos faróis a iluminar o horizonte da caminhada verde do planeta. Até 2050 o mundo terá 9,7 bilhões de pessoas, que necessitarão de mais alimentos, mais roupas, mais moradias, mais infraestrutura e, sobretudo, uma vida mais sustentável. É preciso que iniciemos de fato a travessia rumo a um outro tempo, “atribuindo um novo sentido à existência de cada um e, também, do planeta”, como preconizou o saudoso geógrafo Milton Santos.

*Presidente Executivo do IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: A necessária resiliência e os aprendizados em travessias tormentosas

Nas palavras de Albert Camus, ‘a única maneira de lidar com a peste é com decência’

Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.

Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.

Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.

Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.

Na série de quatro eventos online que marcam o lançamento e a oferta gratuita do e-book, amanhã, participamos como comentarista dos cinco capítulos da parte 3, Legado para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por seus autores na ocasião.

Em O legado para a governança colaborativa, Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por múltiplos fatores e atores.

Em Covid-19, federalismo e a descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.

Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos, que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes podem ser um contrapeso a desmandos.

Em As lições aprendidas com a resposta do sistema de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções céleres.

Ricardo Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade, registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das conquistas civilizatórias.

A partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em nosso país.

Esse livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros, merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a vida nacional.

*Economista, presidente executivo da IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Uma agenda de múltiplos avanços em 2021

Fica cada vez mais claro que a questão de ESG passa a ser o cerne de uma nova atitude

O ano se inicia iluminado pela necessidade de novas atitudes. Um novo ciclo em que o multilateralismo seja retomado de fato, debates sejam sustentados pela razão e pela ciência e o futuro sustentável do planeta seja uma obsessão de todos.

Fica cada vez mais claro que a questão de ESG (sigla em inglês para “ambiental, social e governança”) passa a ser o cerne de uma nova atitude. Este ano será marcado por eventos que reforçam o diálogo global e o trabalho em prol de soluções conjuntas que podem ajudar a tornar viável um mundo melhor.

Em 2021 serão duas conferências das Nações Unidas no mesmo ano: a COP-15 da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que deve negociar a nova Estratégia Global de Biodiversidade Pós-2020; e a COP-26 de Mudança Climática, em Glasgow, que pretende abordar a criação de um mercado global de carbono, conforme o Acordo de Paris, ferramenta fundamental para incentivar a aceleração da economia de baixo carbono. Teremos também, pela primeira vez no Brasil e fora da Finlândia, o Fórum Mundial de Bioeconomia, em Belém, no Pará.

O Brasil tem de saber aproveitar essa movimentação global. Trata-se do país com a maior floresta tropical do mundo, a maior biodiversidade do planeta e um agronegócio sustentável. Temos tudo para transformar nossas potencialidades em oportunidades e para isso há urgências que não podem ser deixadas de lado.

A tarefa mais impositiva é uma resposta adequada e concreta a atos criminosos na Floresta Amazônica, como os desmatamento, as queimadas, a grilagem de terras e o garimpo ilegal.

O setor produtivo brasileiro já tem sido demandado por consultas públicas, como as abertas pelo Reino Unido e pela Comissão Europeia, com o objetivo de criar legislações internas para coibir o desmatamento ilegal nas cadeias de suprimentos. Consumidores e varejistas têm feito movimentos buscando garantir que os produtos escolhidos sejam sustentáveis. Os alertas dos investidores internacionais são sonoros. Larry Fink, presidente da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, sentenciou que países emergentes que não provarem que estão cuidando das pessoas, do meio ambiente e da governança vão pagar juros mais altos.

Para mudarmos esta percepção do mundo precisamos de ações e resultados. E sabemos o caminho a ser percorrido: implementar o Código Florestal em sua plenitude, avançar em tecnologia e transmissão de dados para monitoramento e ação contra atos ilícitos, investir no desenvolvimento da Região Amazônica, para levar infraestrutura básica aos mais de 25 milhões de brasileiros e brasileiras que lá vivem.

Estancando essa crise que prejudica o hoje e o amanhã, o Brasil tem todas as condições para reassumir seu protagonismo no debate mundial sobre sustentabilidade. Não precisamos inventar a roda. Temos dentro do nosso território exemplos claros, que podem ser estímulos e modelos para outros negócios.

O cultivo de árvores para fins industriais no Brasil é um dos faróis dentro da bioeconomia, uma agricultura que tem em sua veia a sustentabilidade e a inovação. Essa agroindústria tem os olhos voltados para o futuro. Planta, colhe e replanta, comumente em terras antes degradadas pela ação humana. No Brasil, com mais de 50 milhões de hectares previamente degradados por outros usos, há muito espaço para continuar produzindo, sem necessidade de abrir novas áreas.

Encurtando cada vez mais a distância entre o futuro e o presente, esse segmento desenvolve novas aplicações da madeira. Entre novas fábricas e expansões, o setor tem anunciado mais de R$ 35,5 bilhões, incluindo dois projetos de celulose solúvel (Bracell e LD Celulose, joint venture entre a austríaca Lenzing e a brasileira Duratex). Sua principal aplicação é na viscose, que vem ganhando espaço na indústria têxtil, um mercado ainda dominado por fibras sintéticas. A Suzano trabalha a celulose microfibrilada em parceria com a startup finlandesa Spinnova para produzir fios têxteis com ganhos de sustentabilidade, redução de uso de água e químicos.

Outro exemplo de inovação verde a partir da celulose microfibrilada (MFC) vem da Klabin. Em parceria com o Senai e a Apoteka de cosméticos, a empresa finalizou, em tempo recorde, os testes para produção de álcool em gel. O novo produto, extraído da madeira, substitui o carbopol, componente da fabricação de álcool em gel de origem fóssil.

O mundo está entrando no movimento ESG, que significa uma nota de corte crescente para produtos, empresas e países. No Brasil já temos empresas e setores que navegam nesse universo há anos. Está na hora de enxergarmos tendências, percebermos potencialidades e construirmos pontes entre a possibilidade e a realidade. Assim fortaleceremos o combate às mudanças do clima, estabelecendo perspectivas de um mundo mais saudável para as atuais e as futuras gerações, produzimos riquezas e criamos empregos para a juventude brasileira, hoje.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: 2020, o ano que não termina

Desafios desta dúzia de meses atormentados ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021

Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.

Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.

Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.

A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.

Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.

Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.

A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.

Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.

Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Cidades inteligentes, sustentáveis e humanas

Que estas eleições sejam mais um passo para fortalecer os valores humanísticos.

Em poucos dias o País vai às urnas para o primeiro turno das eleições municipais. Trata-se de um pleito marcado por peculiaridades importantes. A primeira é que ocorre em meio a uma pandemia agoniante e terrível nos planos sanitário e socioeconômico, exigindo novos protocolos num dos momentos mais desafiantes para as atuais gerações.

Estamos testemunhando o fim das coligações proporcionais, o que deve mudar o quadro partidário nacional, algo necessário e urgente. Há ainda o aumento da inserção de movimentos cívicos. O voto é importante, mas não se encerra aí a participação da sociedade civil. Nestas eleições podemos destacar candidaturas oriundas de iniciativas dedicadas a estimular e formar jovens para o mundo da política, como o Livres, o Raps e o RenovaBR.

Só a partir do RenovaBR se colocaram 1.032 candidatos, sendo 115 a prefeito, filiados a 29 dos 33 partidos brasileiros, em 398 cidades de todos os Estados. É um esforço para preencher o enorme vazio de lideranças no nosso país. A esperança é que os partidos se inspirem e assumam também a formação de novos quadros.

Além dessas peculiaridades do pleito, vale destacar que os gestores vão encontrar um quadro desafiador, agravado pela pandemia, mas não causado exclusivamente por ela. Mesmo antes da covid-19 a capacidade das prefeituras de ofertar serviços e obras já vinha sendo velozmente reduzida. As despesas obrigatórias, que crescem muito mais que o País, vêm esmagando as despesas discricionárias, limitando a possibilidade de construir escolas, unidades de saúde, praças, ruas, etc.

Não vai ser fácil, mas sempre há um caminho, que pode ser efetivamente construído com racionalidade, trabalho incessante e devoção ao interesse comum. Nessa direção, vejo seis passos decisivos, além do básico, que contempla equipes que combinem diversidade, boa técnica e boa política, ferramentas modernas de gestão e planejamento estratégico.

O primeiro passo é a digitalização, que, além de promover o encontro do modus operandi da burocracia com o modus vivendi da sociedade, torna viável a constituição de uma cidade conectada. Com inteligência artificial podemos efetivar uma verdadeira revolução na qualidade de vida, incrementando serviços de educação, saúde, mobilidade urbana e segurança, entre outros.

Um segundo passo é a opção preferencial por investimento nas oportunidades da “economia verde”, com vista a uma cidade sustentável, incluindo desde questões de saneamento até transporte público sem combustíveis fósseis, passando por incubadoras de negócios amigáveis ao meio ambiente.

As chances da economia criativa, incentivando as expertises e as culturas locais, e da nova economia de base tecnológica, com incremento de startups e fintechs, por exemplo, constituem um terceiro passo em direção à inovação e à inclusão como fundamentos da vida produtiva dos municípios.

Nessa caminhada, outro passo decisivo é a atração de investimentos privados. Além de dialogar com todos os pontos anteriores, a parcerias são fundamentais para avançarmos em áreas como saneamento e iluminação pública. As concessões de limpeza urbana e destinação adequada de resíduos são outra frente de parcerias.

Também no caminho da convergência de forças, outro movimento nos leva às organizações do terceiro setor. Em vez de ficar reinventando a roda, a saída é difundir boas políticas públicas já testadas e aprovadas. Há oportunidades na educação (Todos pela Educação, Instituto Ayrton Senna, etc.), na saúde (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS), na segurança (Igarapé) e em gestão pública (Comunitas), entre outras.

Um sexto passo importante é identificar desperdícios e, com o seu combate, obter meios para melhorar a oferta de obras e serviços. A partir de minha experiência, posso afirmar que os ralos que consomem os limitadíssimos recursos públicos são gigantescos.

Sobre esta eleição, também merece destaque a necessária ampliação da agenda do poder local. A segurança pública tem de entrar de vez na pauta das prefeituras e câmaras municipais. É preciso, ainda, que as lideranças eleitas participem do debate das reformas estruturantes, como a PEC emergencial e a reforma administrativa, que precisa alcançar os atuais servidores, melhorando as condições de governabilidade e a conexão entre poderes públicos e interesses dos cidadãos.

Aos novos líderes institucionais dos municípios cabe uma pergunta: que vocação essencial se deve dar às cidades, ainda mais considerando desafios e aprendizados tão ímpares pautados pela pandemia? Uma inspiração assertiva e valiosa é dada pelo arquiteto dinamarquês Jan Ghel, para quem é possível “um novo planejamento que diz que a cidade deve ser para as pessoas”.

O objetivo essencial da república é a vida plena para todas e todos, sendo a cidade – do latim civitas, lugar de cidadãos – o ícone de sua efetividade. Que estas eleições sejam, pois, mais um passo para fortalecer os valores humanísticos e democrático-republicanos entre nós, exatamente onde vive o cidadão, no território em que efetivamente deve vicejar a cidadania, os municípios.

*Economista, presidente executivo da Indústria brasileira de Árvores (IBÁ), membro do conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Ana Carla Abrão Costa e Paulo Hartung: A refundação do Estado brasileiro

Mãos à obra, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros

Francis Fukuyama, em seu livro Ordem Política e Decadência Política (Political Order and Political Decay), faz uma análise do papel do Estado no destino das nações. Nos países onde o patrimonialismo e o clientelismo deram lugar a um Estado voltado para servir o cidadão, o desenvolvimento acelerou-se e foi mais consistente, contribuindo para a consolidação das instituições democráticas e garantindo o bem-estar da população, com níveis inferiores de desigualdade social. Fukuyama, a par de uma ou outra menção ao Brasil, não faz uma análise profunda das bases históricas do Estado brasileiro. Mas sua leitura provoca reflexões que contribuem para um resgate da justiça social e das condições de crescimento por meio da refundação do nosso Estado.

Ao longo dos séculos, a máquina pública brasileira garantiu privilégios a classes específicas, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento econômico de forma sustentável. Baseado num modelo operacional arcaico e voltado para sua autoperpetuação, construímos uma engrenagem de reforço de desigualdades que agora chegou ao limite. Exauriu-se e hoje se vê incapaz de servir à população. Esgarçou sua relação com o servidor público, tamanha a ineficiência que deriva de um modelo concentrador de renda e expropriador.

A baixa qualidade dos serviços públicos, o excesso de gastos e sua trajetória inexoravelmente crescente, a desigualdade salarial e as injustiças internas e externas definem uma espiral que serve a poucos, mas tira muito do País. Essa máquina de desigualdades abriu um abismo entre os que têm acesso à educação de qualidade e a bens e serviços básicos, como saneamento, ou sofisticados, como a tecnologia, e a maioria da população, que depende do Estado para ter alguma possibilidade de ascensão social ou ao menos a melhores condições de vida.

Felizmente, a sociedade brasileira tem demonstrado seu profundo descontentamento com a qualidade dos serviços públicos e a forma atual de organização do Estado. Ela não quer mais conviver com um sistema que divide o mercado de trabalho em dois: o público, em que benesses e privilégios vão muito além da estabilidade – em particular para a elite do funcionalismo; e o privado, sujeito a toda sorte de intempéries. Ela não aceita mais ganhos salariais reais contínuos, garantias de promoções, progressões, gratificações e outras vantagens financeiras desconectadas do resultado e presentes mesmo quando a economia afunda e o mercado privado desemprega e corta salários. Tudo isso se traduz em crescimento dos gastos públicos obrigatórios e também numa máquina que se deteriora, comprometendo as condições de trabalho dos servidores e, consequentemente, a qualidade da prestação de serviços para o cidadão.

Mirar um futuro diferente do presente e distanciado do passado é incrementar os passos reformistas. Nesse sentido, o gesto tardio e acanhado do governo federal ao enviar uma proposta de reforma administrativa ao Congresso Nacional abre uma possibilidade de avanço. Embora dependente do recebimento dos projetos de lei necessários ao detalhamento da reforma, caberá ao Parlamento a liderança desse processo. Quiçá menos atado às amarras corporativistas que limitaram a proposta enviada, ele poderá estender ao presente os conceitos que são hoje apenas promessas de futuro e promover a necessária mudança estrutural. Mas nessa caminhada imperativa o futuro precisa começar hoje. Não amanhã.

Nosso Estado é arcaico. Ineficaz e oneroso, investe muito mal e gasta para si. É um Estado anacrônico. Em tempos de avanço tecnológico, continua analógico e cartorial. Nosso Estado é cativo, historicamente capturado e patrimonialista, finca suas bases na defesa de grupos de interesse, sejam eles segmentos sociopolíticos e econômicos ou corporações estatais, que de forma hábil e perversa fazem confundir seus interesses particulares com os da Nação, sustentando uma sociedade inaceitavelmente desigual.

A refundação do Estado é, portanto, a única forma de usar suas potencialidades não mais na promoção de privilégios e desigualdades, mas na indução de prosperidade para todos. Nesse contexto, precisamos de uma reforma que vá além da criação do serviço público do futuro, como propõe o governo de forma teórica, mas também reformule as atuais leis de carreiras. Muito mais do que a esperada e desejada redução e racionalização dos gastos públicos, a prioridade é a busca da eficiência e da qualidade na prestação de serviços, além dos necessários ganhos de produtividade, que são precondição para a retomada do crescimento sustentável e da geração de emprego e renda.

A pandemia reforçou essa necessidade ao expor o distanciamento do Estado brasileiro da realidade dos cidadãos, especialmente dos mais empobrecidos. O governo cobra impostos de todos, mas não consegue saber quem são os brasileiros que precisam de apoio.

É preciso refundar o Estado para que ele seja parte e promotor de um novo futuro para o Brasil. Pois, como bem alertou Saint-Exupéry, “o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo”. Mãos à obra na refundação do Estado, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros, finalmente!

ECONOMISTAS


Paulo Hartung: A economia verde pode ter o selo ‘made in Brazil’

Com uma nova atitude em prol da preservação o produto feito no Brasil passa a valer mais

Das trágicas crises, como a que estamos atravessando por causa da pandemia da covid-19, certamente restam dores irremovíveis de nosso coração e de nossa alma. Mas, apesar de ainda estarmos em plena caminhada de travessia deste tempo crítico, já fica evidente uma lição desta quadra dramática da História: é preciso reinventar nossa interface com a natureza.

O movimento de conscientização ambiental, especialmente entre os jovens, tem ganhado corpo rapidamente. Essa é a base de uma sociedade moderna, composta por novos cidadãos e consumidores mais conscientes.

Na Europa, esse olhar foi decisivo para o New Green Deal, plano de recuperação da região com investimento de 750 bilhões de euros. A discussão ecoa pelo mundo. O candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que vai lidar com “as realidades inegáveis e as ameaças cada vez maiores das mudanças climáticas”.

Quando o tema é meio ambiente, o Brasil entra obrigatoriamente em cena, seja por seu potencial, seja pelos fatos danosos que se acumulam nos últimos meses. Enquanto os debates vão na direção da sustentabilidade, o Brasil toma rumo contrário, especialmente na Amazônia, com desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras, entre outras ilegalidades.

No agora já há impacto econômico: o anúncio de retirada de capital do mercado brasileiro de carnes feito pela finlandesa Nordea Asset Management. Para o amanhã precisamos investir nossa energia para tornar a economia verde um dos motores que farão o País ter forças de reação no pós-crise. E nem é preciso reinventar a roda.

A Região Amazônica representa 60% do território brasileiro. Lá se encontram 74% das atividades extrativistas que respeitam o meio ambiente, como as de sementes, frutos, óleos e resinas. O caso mais conhecido é o do açaí, que movimenta US$ 1 bilhão por ano. Cacau, guaraná, seringueira, castanha do Brasil são outros exemplos. Uma série de startups está investindo na região para de lá disseminar pelo mundo uma gama de produtos sustentáveis, como cosméticos, café e chocolates nativos, entre outros.

Mas mesmo com toda essa riqueza em mãos e com rumos evidentes a serem seguidos, a região representa apenas 8% do produto interno bruto (PIB) nacional. Mais de 25 milhões de brasileiros estão na Amazônia, muitos deles vivendo abaixo da linha de pobreza, com dificuldades de infraestrutura, como comunicação e saneamento básico.

Não se pode encarar o desafio amazônico como pauta deste ou daquele governo, mas como uma questão de Estado. Temos a chance de envolver todos os atores interessados em discutir o melhor para o futuro do Brasil, acadêmicos, ambientalistas, setor privado, poder público e, especialmente, os moradores da região, incluindo os de pequenas e grandes cidades, ribeirinhos e povos tradicionais.

É por meio desse diálogo organizado que conheceremos as possibilidades reais de criar meios de tornar o local um polo industrial de bioprodutos, tornando viáveis as condições logísticas, os financiamentos, a capacitação, a tecnologia e a ciência para aquela porção do nosso território.

A iluminar esse caminho, além dos exemplos citados na região, temos casos muito bem-sucedidos de bioeconomia em outras localidades do Brasil, como a indústria de biocombustíveis, atualmente a segunda maior produtora de etanol do mundo. A Raízen exporta tecnologia para produção do etanol de segunda geração. Assim, a companhia mira os royalties, enquanto o meio ambiente é beneficiado.

Outro caso é a indústria de base florestal que trabalha comumente em áreas antes degradadas, cultivando árvores que dão origem a produtos fundamentais no nosso dia a dia, como papel, embalagens de papel e pisos laminados, entre outros. Mesmo consolidada, seus dois pés estão no futuro e da madeira virá uma infinidade de alternativas a materiais de origem fóssil. São fios têxteis com uso de até 90% menos água e químicos, bio-óleos e nanocristais de celulose para telas LCD, entre outros.

O País é o lar da maior floresta tropical e da maior biodiversidade do mundo. Cuidar desses ativos é do interesse dos brasileiros. Com uma nova atitude em prol da preservação, o produto feito no Brasil passa a valer mais para esse novo mundo que quer a sustentabilidade. Engrandece a marca Brasil.

A floresta já tem inúmeros benefícios para a economia brasileira, com serviços ambientais que ajudam na competitividade da agricultura, com regimes de chuvas, permitindo em muitas culturas até três safras por ano.

Que o Brasil mude de vez o rumo de sua interface com o meio ambiente. Temos um patrimônio verde incomparável. Temos oportunidades de produção inclusiva e sustentável a nos inspirar. Temos o clamor pelo respeito à natureza. Agora é preciso reinventar nossa relação com o planeta. Afinal, é da vida que se trata – da minha, da sua, de todas e todos nós, hoje e amanhã.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Visões, possibilidades e tendências do pós-pandemia

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez

O amanhã sempre ocupa a mente humana, ainda mais em tempos de crises angustiantes e desestabilizadoras. Nesse sentido, mesmo que ainda envolvidos numa longa travessia dramática, o cenário atual da pandemia pauta cada vez mais os nossos olhares e pensamentos para o que virá.

O nevoeiro das dúvidas ainda é denso, mas pelo que já se vivia antes da covid-19, e também em função dos comportamentos que estamos experimentando ou incrementando neste momento absolutamente desafiante, já se pode vislumbrar um quadro de possibilidades e tendências para o pós-crise.

A pandemia acabou por evidenciar nossas mazelas e fragilidades socioeconômicas, adicionando ainda mais dor e desamparo a este tempo horrendo. Assim, mais que uma tendência, as reformas estruturantes colocam-se como um dever de casa cívico e institucional do qual não podemos abrir mão se quisermos constituir um Brasil verdadeiramente civilizado.

O Estado precisa se digitalizar, modernizar seu arcabouço legal e se libertar do sequestro secular operado por grupos de interesse instalados dentro e ao redor das máquinas governativas. É urgente melhorar o sistema tributário, atualmente um obstáculo ao crescimento do País.

A educação básica demanda um esforço prioritário de qualificação do processo de ensino-aprendizagem, fundamental para promover a autonomia cidadã e tornar viável a inclusão produtiva. Ciência e tecnologia devem ser vistas como uma fronteira para avançarmos rumo um desenvolvimento amplo e consistente.

A corrosão da globalização, patrocinada por populistas de diferentes estaturas, ganhou novos fatos e argumentos. Para uns, a crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado. O fechamento de fronteiras e a “guerra” entre países por insumos e equipamentos para enfrentar a pandemia adicionaram calor às discussões.

Mas fatos da geopolítica abalam qualquer certeza sobre o enfraquecimento da globalização. O acordo de recuperação econômica da União Europeia reforça parâmetros de integração, assim como as parcerias globais que se firmam para a vacina contra o novo coronavírus.

E temos ainda a disputa eleitoral nos Estados Unidos, que contrapõe projetos antagônicos quanto a temas cruciais – clima, sustentabilidade, acordos comerciais etc. –, estando na dianteira Joe Biden, defensor de soluções articuladas planetariamente. Ou seja, sobre a globalização, a tendência é o acirramento dos debates acerca de seus fundamentos e alcance.

O eco planetário de acontecimentos locais, regionais e nacionais ganhou vigor extraordinário e a pandemia amplifica a agenda do respeito às diferenças e da busca da igualdade social.

A digitalização da vida expandiu-se de modo inédito, colocando-se como alternativa de conexões as mais diversas. Tornou-se importante para questões que vão do universo das afetividades, passando por soluções comerciais, até a viabilização do trabalho remoto nos mais variados segmentos. A digitalidade cria efeito em cadeia em outros segmentos, como o mercado imobiliário, afetando desde o desenho dos centros urbanos, passando por questões de mobilidade, até o design das residências, que estão virando o local de trabalho.

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez. O interesse por processos sustentáveis, que põe os olhos do mundo sobre a tragédia amazônica, por exemplo, deve firmar parceria com outros fatores de vida saudável, como cuidados com a saúde física e emocional e preocupações com questões sanitárias, especialmente a conexão entre zoonoses e segurança alimentar.

As múltiplas carências do País, que já havia entrado na pandemia com fragilidades, ensejaram a dinamização da sociedade civil, fenômeno que se deve consolidar. Um exemplo é o movimento de líderes empresariais, investidores e grupos econômicos junto ao governo em defesa da Amazônia.

A humanidade ocupa-se de pensar o amanhã não por mero exercício de futurologia, mas porque, como observa Santo Agostinho, o futuro – “a esperança presente das coisas futuras” – é uma das marcas cruciais do presente, a única dimensão temporal que verdadeiramente usufruímos para existir.

Além das expectativas do hoje, inspiram o olhar em perspectiva “a lembrança presente das coisas passadas e a visão presente das coisas presentes”. É assim, pois, que seguimos, com a colheita de impressões fortes do que se passou e se passa, a pensar os dias que virão. Afinal, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas o que estamos construindo hoje, em memórias, sonhos, desejos, palavras, projetos e ações.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Democracia, valor universal

Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada

Em meio a uma trágica pandemia, a maior catástrofe vivida pelas atuais gerações, devastadora para vidas humanas e avassaladora para o sistema produtivo, o Brasil se obriga a enfrentar outra frente desafiante: a defesa da democracia como um valor essencial para organizar a nossa sociedade. Espantosa missão, seja porque há pouco mais de três décadas saímos de uma ditadura, seja porque já temos problemas demais a superar, seja porque “estamos em pleno século 21 sendo afrontados com discursos, ameaças e situações medievais”. Inacreditável, mas terrivelmente real.

A partir de 1964, foram 21 anos de arbítrio, com censura à imprensa e às artes, exílio forçado de concidadãos, cassação de direitos políticos, desaparecidos e presos políticos, torturas e mortes nos porões da opressão, supressão de eleições, interdições a liberdades civis e políticas (opinião, reunião, organização, etc.), entre tantas tragédias urdidas nos “anos de chumbo”. Ao fim, o poder civil recebeu o País com um endividamento externo irresponsável e a economia em frangalhos.

Nos anos 1970, na universidade, entrei nos movimentos sociais em busca da retomada das liberdades em nosso país. Nesse tempo de embates e formação política, tive um aprendizado fundamental: a democracia é um valor universal a nortear as formas de conquista e exercício do poder em toda e qualquer sociedade que se queira civilizada e humanística.

Sob a Constituição de 1988, reconstruímos a democracia. Não foi um tempo perfeito, como nenhum foi ou será, até porque a política não é feita por deuses, mas por seres humanos, suscetíveis de erros e imperfeições. Mas é inegável que percorremos um período de avanços socioeconômicos, com o funcionamento do Estado Democrático de Direito e as devidas correções de rumos e penalizações de desvios, por exemplo.

Entre as conquistas, podemos citar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a universalização do acesso à educação básica, a derrocada do flagelo da inflação e a criação do Real, a ocorrência de eleições periódicas e transparentes, com alternância de poder, os avanços nas agendas dos direitos humanos, do meio ambiente e da sustentabilidade, e uma abrangente rede de proteção social (Bolsa Família e outros).

Enfim, ainda que lidando com desafios gigantescos e mal administrando uma impositiva agenda de reformas estruturantes, mas incrementando nossa incipiente experiência democrática, o Brasil tornava-se pouco a pouco um país que jamais tinha sido, em seus mais de 500 anos de História.

Há uma agenda de ajustes? Sim! Pelo nível de suas entregas, temos uma estrutura governamental cara e ineficiente, além de atravessada por vícios de corrupção e assaltada por corporações cercadas de privilégios. Temos um País inaceitavelmente injusto, inseguro e desigual. A educação precisa se qualificar e se tornar contemporânea. A produção deve incrementar a sustentabilidade de seus processos, além de ampliar sua produtividade e competitividade. As instituições precisam se digitalizar, promovendo o reencontro do modus operandi governativo com o modus vivendi da sociedade.

É patente que, em função dessa realidade, agravada por ampliações de privilégios de grupo nas áreas pública e privada, recessão econômica e escândalos de corrupção, há uma insatisfação crescente da sociedade. Mas não há atalho para superarmos os desafios, especialmente atalhos à via democrática. O conserto disso tudo não é substituir a democracia pelo autoritarismo. Até porque os diversos períodos ditatoriais por que passamos não resolveram problemas históricos e quase sempre os agravaram.

A democracia não é um regime pronto e acabado, nem perfeito, mas é o melhor já produzido pela humanidade para organizar o exercício do poder em sociedades livres, igualitárias e fraternas. Como bem resumiu Winston Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas”.

Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada, abrindo espaço a toda sorte de violências, perversões e injustiças que se alastram no submundo da ação política articulada em torno do obscurantismo e da deslegitimação da vontade e do poder do povo.

Como disse recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, a “democracia não é o regime político do consenso, mas aquele em que o dissenso é legítimo, civilizado e absorvido institucionalmente”. E, neste tempo em que tanto necessitamos de lucidez, recomendou: “Precisamos de denominadores comuns e patrióticos. Pontes, e não muros. Diálogo, em vez de confronto. Razão pública no lugar das paixões extremadas. (…) Precisamos armar o povo com educação, cultura e ciência”.

Que a sociedade, a partir do entendimento e mobilização de todas as suas forças vivas, sustente a democracia como um valor central ao Brasil. Que sejamos capazes de superar este tempo excepcionalmente difícil como uma nação livre e plural e, assim, apta a transformar em plena realidade as nossas potencialidades de justiça social e prosperidade compartilhada.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Na travessia da pandemia, o presente e o futuro

É impositivo reformar o Estado, em todos os níveis, tornando-o contemporâneo

Nesta dura travessia, para além da angústia das incertezas e do sofrimento dilacerante das perdas, há que exercitar a altivez do espírito e a grandeza da razão. Isso porque, se não há – e não há – sentido algum intrínseco a esta tragédia, que produzamos um sentido a partir do seu enfrentamento. Só esse duro desafio nos tornará aptos a concluir essa caminhada em pé, e não de joelhos, capacitados para a reconstrução e também para a prevenção de situações como a que nos abate.

Esse é um caminho possível, porque toda crise tem três forças: aprendizados, oportunidades e finitude. Além disso, as mais bem-sucedidas travessias de tempos trágicos, ou seja, as que implicaram menos perdas e possibilitaram uma reabilitação mais rápida e com uma sociedade mais preparada, tiveram o dom de dar prioridade às demandas do momento e ao olhar no pós-crise – mais que o olhar, o agir em prol do futuro.

Nesse sentido, sempre no espectro dos valores democrático-republicanos e humanísticos, o atual enfrentamento consolida certezas como a prioridade absoluta de salvar vidas, cuidar dos vulneráveis, preservar empregos, empresas e atividades econômicas. Há também a consciência de que devemos ter humildade diante deste obscuro mal, investindo nas melhores ferramentas da ciência e nas virtudes da prudência, da generosidade e da justiça.

No campo dos aprendizados e das oportunidades que a crise enseja, há pontos importantes. A pandemia escancarou a infâmia da desigualdade social no Brasil. Num país que ainda debate sobre a necessidade ou não de quarentena, há mais de 30 milhões de irmãos nossos sem acesso regular a água tratada. Não se trata de discutir distanciamento social, mas de não ter água dentro de casa para lavar as mãos. Mais: 100 milhões não estão conectados aos sistemas de coleta e de tratamento de esgoto. Assim, além do aspecto humanitário e sanitário, os investimentos em saneamento são uma oportunidade, seja para gerar ocupação e renda, seja para enfrentar um dos maiores desafios de nossa secular desigualdade socioeconômica.

A superação dessa desigualdade tem no investimento em educação básica o seu mais potente recurso. Uma educação qualificada promove a autonomia cidadã, é agente de prosperidade compartilhada. E nem é preciso reinventar a roda. Há experiências bem-sucedidas, como as de Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, entre outras, assim como há exemplares movimentos da sociedade, como o Todos Pela Educação e os Institutos Unibanco, Ayrton Senna, Natura, ICE e Sonho Grande.

No enfrentamento emergencial da desigualdade, tão manifestamente exposta pela crise da covid-19 e sua gigantesca demanda por suporte e amparo aos mais carentes, resta evidente que é preciso unificar os programas sociais do País e criar um bem estruturado programa nacional de renda mínima, dando prioridade ao socorro aos mais empobrecidos.

A tragédia do saneamento insere-se na grave desorganização da infraestrutura no País, incluindo rodovias, ferrovias, aeroportos, energia, transmissão de dados e portos. Esse setor tem uma demanda urgente de atualização de marcos regulatórios, conferindo-lhe diretrizes modernas, segurança jurídica e atratividade para os investidores nacionais e estrangeiros. Aqui, além de incrementar as bases da produtividade e da competitividade, dinamizando a produção de riquezas, vale notar também a oportunidade de geração de emprego.

O coronavírus tem mostrado também o atoleiro analógico em que está imerso o Estado brasileiro. Revelando mais uma faceta de uma estrutura governativa cara e ineficiente, na hora de se conectar com os milhões de trabalhadores informais para a ajuda emergencial o governo simplesmente não tinha redes nem bancos de dados desse contingente que, apesar de pagar tributos, é desconhecido por esse implacável cobrador de impostos. Ou seja, é impositivo reformar o Estado, em todos os níveis, tornando-o contemporâneo do nosso tempo, incrementando sua interface com a digitalidade, libertando-o do cativeiro imposto por corporações e grupos de interesse, enfim, conferindo-lhe agilidade e eficácia.

Esta travessia, além de destruir riquezas, evidencia algumas tendências para o pós-crise, entre elas, o fortalecimento da ciência, o valor da cultura, o enfraquecimento do populismo autoritário e o incremento inédito da digitalidade em campos como trabalho, consumo, educação e medicina, entre outros. Esperamos que as questões climáticas também entrem de vez na pauta de todo o planeta.

Em meio a tanta dor e desolação, que, paralelamente à luta sem trégua, sejamos capazes de aprender e, assim, possamos sustentar nossa caminhada com o saber e a sabedoria das superações, as de hoje e as do ontem. Esse é o caminho para que possamos resistir com o menor sofrimento possível e para concluir essa travessia tormentosa com rumo, bússola, mapa e energia para investir cada vez mais na dignidade humana e no bem-estar coletivo, de modo socialmente inclusivo, economicamente sustentável e politicamente democrático.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, ex-governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: Tecnologia brasileira para mudar o mundo

A vanguarda produtiva mantém essencial e forte conexão com a sustentabilidade

Enquanto alguns negam as mudanças climáticas, muitos optam por trilhar um caminho de criação de valor e investem para ser parte da solução desse desafio global. Nesse caminho, o Brasil tem, dentro de casa, tecnologia, conhecimento e recursos naturais para ser protagonista da bioeconomia.

São empresas que podem mudar o status do País na engrenagem econômica mundial, com um portfólio inovador de fontes renováveis, como a cana-de-açúcar ou as árvores cultivadas, que ajudarão a reduzir as emissões e a diminuir impactos ambientais.

Entre as inovações brasileiras que podem mover um novo mundo, podemos citar a transição energética, de uma economia baseada em combustíveis fósseis para a energia renovável. O País é líder nessa tecnologia e já está fazendo mais, desenvolvendo biocombustíveis produzidos a partir de biomassa renovável, com grande potencial para substituir boa parcela de derivados de petróleo.

Segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), cerca de 45% da energia e 18% dos combustíveis consumidos no Brasil já são renováveis. No resto do mundo, 86% da energia vem de fontes fósseis. Pioneiro no uso de biocombustíveis, o Brasil alcançou uma posição almejada por muitos países. Já a energia gerada pela biomassa responde por 6% da matriz nacional, o que coloca o País mais uma vez na vanguarda mundial. Em comparação com os combustíveis fósseis, a biomassa gera menos emissões de gases de efeito estufa.

Temos também o etanol, o biocombustível de base florestal e o etanol de segunda geração que a Raízen já materializou, tornando-se uma das poucas plantas do mundo a produzi-lo estavelmente em escala comercial, em Piracicaba (SP).

Chamado de etanol 2G, este é um combustível obtido pela fermentação controlada e posterior destilação de resíduos vegetais, como o bagaço da cana-de-açúcar. Esse novo processo de produção de etanol consegue reduzir a formação de dejetos e aumenta a eficiência da empresa.
A Suzano, a maior empresa de celulose de mercado do mundo, em seu recém-apresentado plano de longo prazo fala numa arrojada expansão de negócios, com atuação em bio-óleos, biocombustíveis e bioquímicos.

O movimento é de oferecer substitutos de parte dos derivados de petróleo por celulose em materiais compostos, os chamados compósitos. Além disso, quer aumentar em 50% a venda de energia para o sistema nacional, produzida, entre outras fontes, pela queima do licor negro, aproveitando esse subproduto da indústria de papel e celulose.

O setor de árvores cultivadas brasileiro, por sinal, é um segmento que soma positivamente para o enfrentamento das questões climáticas. Só a área cultivada de pinus, eucalipto e outras culturas no Brasil estoca um volume de CO2eq superior ao que o País emite num ano.

O potencial de transformação por meio da biotecnologia faz das fibras de base florestal o insumo do futuro. Um grande passo é a substituição do poliéster, de fonte fóssil, por fibras têxteis de celulose, como a viscose, e novas tecnologias como a celulose microfibrilada (MFC). A Suzano vê aí um mercado potencial de US$ 9 bilhões por ano.

Esses são exemplos de setores que rompem com um histórico papel brasileiro de exportar produtos com pouco valor agregado e importar tecnologia. São inovações que podem colocar o Brasil e o mundo em outro patamar.

Para a concretização e ampliação desses projetos serão fundamentais políticas econômicas e ambientais efetivas, como o mercado de carbono. A criação desse mercado, em caráter global, é uma das premissas do Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário.

Além dessa negociação, vários países e Estados estão implementando alguma forma de precificação de carbono, incluindo a União Europeia, a China, e o estado norte-americano da Califórnia. Essas iniciativas movimentaram US$ 82 bilhões em 2018. No Brasil existe um estudo em andamento, PMR – Partnership for Market Readiness, uma parceria entre o Ministério da Economia e o Banco Mundial.

Ponto de atenção é a criação de taxa de ajuste de fronteira (carbon adjustment taxes), uma espécie de barreira financeira na importação para produtos de países que não têm metas de redução de emissão. A Europa já sinalizou querer seguir por esse caminho.

Essas discussões e a busca por redução das emissões de gases de efeito estufa devem ter impacto direto para o Brasil. E vale notar que até mesmo empresas de finanças estão aderindo ao movimento, como a BlackRock, que anunciou compromisso de descarbonização.

Consumidores estão mudando hábitos, nações se mobilizam, o mundo corporativo vem se transformando. Este é o momento para o Brasil assumir seu papel de liderança nessa nova fronteira. Que as políticas públicas nacionais e os nossos acordos internacionais façam deste um tempo de oportunidades, e não de riscos e atrasos. A vanguarda produtiva mantém essencial e forte conexão com a sustentabilidade. Por potencialidades e experiências concretas, nosso lugar é na dianteira, ajudando a definir os padrões de uma nova revolução industrial, a bioeconomia.

*Economista, Presidente Executivo Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Paulo Hartung: No fomento de novas lideranças, a chance do Brasil

País não merece ser refém de uma arcaica vida política com visões estreitas de mundo

Na arena política, o País experimenta uma carência que descora a democracia e empalidece o horizonte nacional. Há muito o Brasil não vem sendo capaz de renovar substancialmente o conjunto de suas lideranças. Na superação dessa comprometedora falha republicana se encontra exatamente uma das melhores chances de promovermos um outro tempo para a Nação, distante dos erros do passado, antenado nas questões do presente e conectado às oportunidades do futuro.

Há décadas o País atravessa um deserto quanto ao surgimento de líderes que inspirem, pautem e ensejem o novo, a inovação e a vanguarda em termos socioeconômicos e político-culturais. Uma demanda que, se não bastasse o acúmulo gigantesco de dívidas históricas quanto à prosperidade compartilhada, é radicalmente potencializada pelo terremoto político, tecnológico e comportamental que redesenha o planeta sem forma nem esboço.

O Brasil preparou muita gente de todas as posições políticas no entorno de 1964. Depois veio o vácuo instaurado pela ditadura militar. Com a redemocratização o País voltou a formar lideranças em todos os campos do pensamento político – é daí que venho, meu treinamento foi na luta pela volta das liberdades. Nesse meio tempo se instalou um vazio quanto ao surgimento de líderes políticos.

As motivações desse hiato podem ser inúmeras, desde o tsunami sociotécnico e cultural que varre o planeta, passando pela ocorrência de tormentosos escândalos de corrupção mundo afora, até o ataque ideológico à política democrático-republicana como via de se projetar e constituir a dignidade humana sob os paradigmas da liberdade, igualdade, fraternidade, diversidade e sustentabilidade.

Em meio a essa conjuntura planetária, que dialoga perfeitamente com a nossa realidade, uma questão nacional deve ser destacada na produção desse deserto de novas lideranças: um país que tem mais de 30 partidos não tem representação partidária. Só uma efetiva reforma do sistema político promoverá mudanças que possam dar uma direção racional e programaticamente assertiva à vida político-partidária no País, contribuindo até para que os próprios partidos retomem a função de formar lideranças – tarefa que não é sua exclusividade, mas é um de suas mais fortes razões de existir.

Nessa cena desoladora, onde vicejariam as novas lideranças políticas? No vácuo das agremiações partidárias, mas não em sua substituição, obviamente, encontram-se movimentos cívicos a dar vazão à demanda por formação de líderes. Temos o RenovaBr, de que sou conselheiro, como parte de minhas atividades voluntárias, o Livres, o Raps. Esses e outros exemplos são importantes iniciativas a abrir espaço a uma meninada arejada, independentemente se à direita, à esquerda ou ao centro do espectro político, usando a velha linguagem.

O fundamental é que novas lideranças surjam, tenham boa formação e estejam capacitadas a operar com os desafios e os propósitos da vida política, habilitadas a debater ideias, conviver com a diferença, negociar, construir consensos, etc. Não se nasce com as capacidades e habilidades da liderança. Não é só questão de vocação. Boa parte é treinamento, aprende-se a fazer, como já ensinou a Grécia clássica.

O RenovaBR foi fundado em outubro de 2017. Já em 2018 foram 4 mil inscritos, com 133 alunos formados. Dos participantes, foram 17 eleitos (9 deputados federais, 7 estaduais, 1 senador). Em 2019 o movimento teve 31 mil inscritos, com 1.400 alunos matriculados e 1.170 formados; 40% não tinham filiação partidária e dentre os filiados havia representantes de 30 dos 33 partidos existentes hoje no Brasil. Dada a forte demanda, abrimos no início de janeiro uma turma, com inscrições até este 7 de fevereiro.

“Arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas.” O saudoso geógrafo Milton Santos deixou-nos como um de seus mais importantes legados a definitiva conceituação do que seja a política, considerando que a civilização é um projeto em constante movimento, permanentemente desafiado pela conjuntura socioeconômica, tecnológica e político-cultural.

E a política de verdade não se faz sem lideranças capazes de inspirar e mobilizar a cidadania. Segundo o historiador Paul Johnson, a vida de Winston Churchill passa ao menos cinco lições importantes sobre liderança: pense sempre grande, nada substitui o trabalho árduo, nunca deixe que erros e desastres o abatam, não desperdice energia com mesquinharias e, por fim, não deixe que o ódio o domine, anulando o espaço para a alegria na vida.

Pode haver vários caminhos para pôr o País novamente no rumo do desenvolvimento socioeconômico inclusivo e sustentável, mas parece impossível vislumbrar novos horizontes sem a formação de uma nova geração de líderes, algo indispensável à superação da aridez que vem assolando a política nacional. O Brasil não merece e não pode ser refém de uma arcaica vida política baseada em visões estreitas e ultrapassadas, quando não incivilizadas, de mundo.

*Economista, presidente executivo Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)]