Paulo Guedes

Elio Gaspari: Tomar dinheiro de desempregado é covardia

O doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo

O doutor Paulo Guedes garantiu a sua presença nos anais da ciência econômica: propôs a taxação dos desempregados para financiar um programa de estímulo ao emprego. Não se conhece iniciativa igual no mundo, nos séculos afora.

Pela proposta da ekipekonômica, os brasileiros que recebem o seguro-desemprego, que vai de R$ 998 a R$ 1.735, pagarão de R$ 75 a R$ 130 como contribuição previdenciária. O sujeito perdeu o emprego, não tem outra renda, pede o benefício, que dura até cinco meses, e querem mordê-lo em 7,5% do que é pouco mais que uma esmola.

Se isso fosse pouco, no mesmo pacote a ekipekonômika desonerou os empregadores que aderirem ao programa do pagamento de sua cota previdenciária de 20%. Tinha razão o poeta Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, mas o doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo.

Tomar dinheiro dos miseráveis era coisa comum no tempo da escravidão. Em 1734, para combater “a ociosidade dos negros forros e dos vadios em geral”, a Coroa cobrava quatro oitavas de ouro a cada bípede livre que vivia na região das minas. Em 1835 a Assembleia da Bahia tomava dez mil réis de todos os negros libertos nascidos na África. Esse imposto rendia um bom dinheiro, algo como 7,6% do orçamento da província. Eram tungas de outra época.

No século 21, a ekipekonômica de Guedes quer arrecadar R$ 11 bilhões em cinco anos com argumentos mais refinados e cosmopolitas. Como o programa de estímulo ao emprego (e à propaganda oficial) gera despesa, deve-se indicar uma fonte de receita para custeá-lo.

Sob o céu de anil deste grande Brasil, os doutores miraram no bolso dos desempregados que conseguem acesso ao seguro, um benefício restrito aos trabalhadores do mercado formal. Em julho, 11,7 milhões de pessoas trabalhavam sem carteira assinada.

O argumento dos doutores pode ser uma girafa social, mas parece matematicamente correto. É intelectualmente desonesto porque o programa de estímulo ao emprego dos jovens durará só até 2022, enquanto a tunga do seguro dos desempregados ficará para sempre.

Há três semanas, neste espaço, Eremildo, o Idiota, propôs que junto com a discussão do fim dos incentivos à energia solar se pensasse também na cobrança de um imposto aos desempregados, pois eles usam os serviços públicos e não contribuem para a caixa da Viúva. Eremildo é um cretino assumido e se orgulha disso.


Pedro Fernando Nery: Guedes quer novo direito

Os brasileiros que nascem herdam juros altos e uma carga tributária maior

Associado a “corte de direitos” (46.400 ocorrências no Google), “retirada de direitos” (47.200) e “perda de direitos” (51.900), Paulo Guedes apresentou a PEC do pacto federativo, que inclui um novo direito no art. 6.º da Constituição (o artigo contém o rol dos direitos sociais). É o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional, que condicionaria os demais.

É como um direito a ter direitos por parte das próximas gerações. Com uma dívida se aproximando de 80% do PIB, os brasileiros que nascem herdam juros altos e uma carga tributária maior, que inibem a criação de oportunidades para que prosperem. Nessa ótica, perdem também direitos, porque cortes em políticas públicas serão necessários para quitar a dívida deixada por gerações anteriores.

A dívida já é de R$ 20 mil por brasileiro. Mesmo com a reforma da Previdência, a dívida seguirá crescendo algo como 1 ponto porcentual por ano na dinâmica atual de PIB modesto. O próprio governo prevê que até o fim do atual mandato seguirá incorrendo em déficits primários (a diferença entre a arrecadação dos tributos e as despesas primárias, isto é, antes de se considerar qualquer gasto com a dívida). Para 2020, o déficit é previsto em cerca de R$ 120 bilhões.

Na verdade, a Constituição já possui mecanismos de proteção a gerações futuras e restrições ao endividamento da geração presente.

Mas eles estão colocados em artigos menos centrais e em linguagem menos acessível do que na proposta de Guedes. O texto original de 1988 proíbe que se deixe dívida sem um legado de investimento – uma ótima definição de equilíbrio fiscal intergeracional. Mas a redação da chamada regra de ouro é demasiado técnica e um convite ao esquecimento por parte dos operadores do direito: “São vedadas a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Há ainda a previsão de equilíbrio atuarial nas previdências, mas as definições não são simples. A PEC da reforma da Previdência definiu como “garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas, apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência e a liquidez do plano de benefícios”. Novamente, não é um texto de ganhar corações e mentes para o problema da dívida.

A PEC de Guedes pauta o tema em um artigo com cláusulas pétreas da Constituição e o associa a um direito: o de nossos filhos e netos. Nessa narrativa, os beneficiários pelo ajuste fiscal e o equilíbrio orçamentário deixam de ser bancos e o mercado para ser as gerações futuras. A saúde das contas não é um fim em si mesma.

O Prêmio Nobel Jean Tirole relaciona a dificuldade de fazer reformas com o que é chamado na psicologia de “efeito da vítima identificável”. Nosso cérebro tem mais empatia com vítimas claramente identificadas (uma pessoa que se aposentará mais tarde, um servidor que terá redução de jornada, uma empresa que perde subsídio) do que com vítimas definidas de forma mais vaga, que seriam “vítimas estatísticas”. Na PEC de Guedes, o equilíbrio das contas passa a ser direito de outros brasileiros, os mais jovens.

Caso aprovada, será apenas a segunda vez que nossa Constituição presentista usa alguma variação do termo “geração”. Hoje, consta somente no capítulo do meio ambiente, que prevê que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as próximas gerações. Por que não estender a lógica a uma economia saudável?

Na coluna Aviões que vão cair, exploramos como direita e esquerda no Brasil têm discursos contraditórios quando o assunto é as próximas gerações. Uma tem se apegado mais ao discurso na questão fiscal, menosprezando a ambiental – e vice-versa.

Contudo, o direito das próximas gerações ao equilíbrio fiscal não é necessariamente uma ideia de direita, embora esteja sendo usada para legitimar o atual ajuste fiscal. O princípio poderia ser usado, por exemplo, para pautar agendas como um aumento da carga tributária focado em grupos subtributados e bem posicionados na distribuição de renda, assim com o corte de renúncias tributárias.

*Doutor em economia


Bruno Boghossian: Excesso de euforia de Guedes cobra um preço político

Com menos verba do pré-sal, agenda do ministro pode ter dificuldade no Congresso

Paulo Guedes insistiu por meses para que o Congresso aprovasse uma reforma da Previdência que representasse uma economia de R$ 1 trilhão em dez anos. O ministro chegou a dizer, mais de uma vez, que poderia deixar o governo se os parlamentares transformassem sua proposta numa "reforminha".

No fim das contas, deputados e senadores entregaram um novo sistema que vai poupar R$ 800 bilhões em uma década. Barraram a redução de benefícios sociais e derrubaram a criação do regime de capitalização --menina dos olhos de Guedes.

A aprovação da reforma foi praticamente um milagre para um governo com capacidade de articulação quase nula. O resultado, porém, mostrou que ambições exageradas costumam pagar um preço político.

A frustração do leilão de áreas do pré-sal também terá um custo. A equipe econômica projetou uma arrecadação que permitiria distribuir para estados e municípios um total de R$ 21,5 bilhões. A ideia era adoçar a boca de governantes e parlamentares para amenizar o amargor de uma agenda de aperto fiscal.

A ausência de interessados em dois dos quatro campos em disputa cortou esse bônus pela metade.
Prefeitos e governadores ainda receberão um bom dinheiro, mas a promessa inicial já era considerada um cheque pré-datado pelos políticos. Agora, eles precisam esperar um novo leilão para saber se receberão o resto.

A aparente euforia de Guedes com a recuperação da economia e com a entrada de investimentos estrangeiros contrasta com o ceticismo de um Congresso que já deu sinais de que não está disposto a carimbar todas as propostas do governo. Com menos verba do pré-sal, o ministro deve ter um pouco mais de dificuldade para convencer os parlamentares.

Guedes aprende, aos poucos, a falar um novo idioma. No ano passado, ele sugeriu uma "prensa" nos parlamentares para aprovar a reforma da Previdência. Nesta quarta-feira (6), deixou a força bruta de lado e disse que não há ponto inegociável em seu pacote de reforma do Estado.


Bernardo Mello Franco: Esses pobres que não poupam

Depois de comparar o Chile à Suíça, Paulo Guedes reclamou que os pobres brasileiros não poupam dinheiro. A frase faz lembrar Justo Veríssimo, o célebre personagem de Chico Anysio

O ministro Paulo Guedes costumava descrever o Chile como um paraíso nos trópicos. “O Chile hoje é como uma Suíça”, derramou-se, ao apresentar seus planos ao jornal britânico Financial Times.

As ruas de Santiago estão em chamas, mas o ministro parece achar que o problema são os manifestantes. Em entrevista à “Folha de S.Paulo”, ele sugeriu que os chilenos reclamam por “tolice”. “Isso é coisa de gente presa no passado”, desdenhou, referindo-se aos protestos contra o modelo neoliberal.

Na visão de Guedes, também é “tolice” criticar o regime de capitalização, que ele tentou replicar por aqui. O sistema de aposentadorias lidera o ranking de queixas dos chilenos. De acordo com pesquisa do instituto Termómetro Social, 95,5% querem mudanças para aliviar a vida dos idosos.

Se fosse consultado, o ministro estaria entre os outros 4,5%. Ele sustenta que a fórmula rejeitada no Chile “educaria financeiramente” os pobres no Brasil. “Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”, afirmou.

No mês passado, o IBGE informou que metade dos brasileiros sobrevive com R$ 413 por mês. Essa é a realidade de 104 milhões de pessoas, o equivalente a seis Chiles ou 30 Uruguais. Entre os 5% da base da pirâmide, o rendimento mensal cai para míseros R$ 51.

Ao sugerir que os pobres não guardam dinheiro porque não querem, Guedes lembra Justo Veríssimo, o célebre personagem de Chico Anysio. Não chega a ser surpresa. O ministro já tentou reduzir o benefício pago a deficientes de baixa renda, defendeu o fim do abono salarial e propôs o fim do gasto mínimo com saúde e educação.

À “Folha”, Guedes repetiu outra tese exótica. Disse que o Brasil passou os últimos 30 anos sob governos de centro-esquerda, incluindo no balaio as gestões Collor e Temer. “Dá pra esperar quatro aninhos de um liberal democrata?”, questionou, referindo-se a Bolsonaro.

O ministro viveu no Chile durante a ditadura do general Pinochet, quando aceitou dar aulas numa universidade sob intervenção militar.


Revista Política Democrática || Marco Aurélio Nogueira: Oposição depende do centro democrático expandido

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar

Não é só como metáfora da modernidade que a imagem do “carro de Jagrená” é eloquente. Disseminada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata-se de uma máquina mítica dos hindus que evolui arrastando consigo tudo o que encontra pela frente, sem que ninguém consiga controlá-la.

A metáfora serve bem para que se ilustrem situações como a brasileira, que escapa de avaliações simples e mostra um País flertando com o precipício, com a política em baixa, sem contar com um governo que atenue a carreira alucinada em que foi jogado.

A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas. O primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos. O governo não sabe que País é esse que o elegeu para governar. Não sabe e não se preocupa em querer saber.

O presidente segue pilotando seu Jagrená, indiferente aos estragos que provoca. Faz isso porque não é confrontado por uma oposição que vá além da agitação retórica e do jogo de cena. Como não há iniciativa e unidade na oposição, o governo só é perturbado por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. Movimenta-se sem demonstrar coesão ou a posse de um programa concatenado de ação.

Na economia, por exemplo, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. Mesmo assim, a economia patina e, a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor.

A mistura exótica de ultraliberalismo na economia e ultraconservadorismo nos costumes não está servindo para que se dê um salto para a frente. O governo demoniza a globalização e a revolução tecnológica, mas não sabe decodificá-las, o que faz com que não consiga enfrentar os problemas reais do País, as desigualdades, o desemprego, a desindustrialização, a miséria, a pobreza. Falta imaginação, falta criatividade, falta um mapa de navegação. Há mais disputas internas que articulação. Muito mais ideologia que racionalidade.

A confusão governamental mostra-se às escâncaras na luta entre as facções incrustradas no Incra, como falou o general José Carlos Jesus após ser demitido pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia. A crise amazônica, sufocada entre a “porra da árvore” desprezada por Bolsonaro e a acusação governamental de que tudo não passa de uma disputa pelo minério que haveria em terras indígenas, exibe a céu aberto a inexistência de um plano que coordene a ação do governo na região. Por ali, militares não se entendem com o pessoal do ruralista Nabhan, que também não se entende com a turma do Ministério da Agricultura, cada qual amarrado a seu tronco.

As brigas dentro do PSL, até então tido como esteio parlamentar do governo, mostram uma combinação tóxica de miséria doutrinária com desejo de poder e controle do dinheiro.

Na Educação, o ministro Weintraub consegue a proeza de falar uma barbaridade sempre pior que a anterior. A área se arrasta, sem que haja qualquer indício de que uma luz por fim aparecerá.

Na Cultura, a censura corre solta, movida a guerra ideológica, a ingerências autoritárias, ataques e perseguições, chantagens e sufocamento orçamentário. Vetos a filmes entendidos como “pornográficos” convivem com a defesa de películas que fazem apologia a torturadores, igrejas e “valores cristãos”, no mais completo desrespeito à cultura, à arte, à liberdade de criação.

À margem de tudo, atacada por todos os lados e sendo devorada pela fogueira do governo, a Lava Jato agarra-se à opinião pública, que ainda lhe é favorável, sem poder contar com maiores apoios institucionais, o que a faz girar em falso. Confusões e trambiques como os do senador Flavio Bolsonaro e do ministro Marcelo Álvaro Antonio permanecem na crônica político-policial, sob o olhar plácido de Sergio Moro, outrora um impávido combatente anticorrupção. Pode ser que a Operação sofra algum ajuste e até volte a se fortalecer, mas seu momento atual é de declínio.

A palavra de ordem geral é de desconstrução: terra arrasada. Deseja-se um capitalismo livre de antolhos políticos, de regulação, de moderação, autocentrado e concentrado. Sem governo.

O presidente atira nos próprios pés, atrapalha-se na execução de coisas básicas, não consegue manter um ritmo proativo de gestão, nem administrar a gula de suas bases parlamentares. Sua natureza é o confronto. Está convencido da força de sua retórica e do estado de ânimo das parcelas da população que se retraem à política democrática e se deixam seduzir pelo ilusionismo do “mito”.

A “velha política” continua no comando, por mais que seja atacada por todos os lados. Entendida pejorativamente como sinônimo de práticas tidas como espúrias – entre as quais são enfiados, com mão de gato, o diálogo, o convencimento, a negociação –, a ela é contraposto o confronto como valor permanente, a intransigência, a veemência verbal, a localização de “inimigos”. O ambiente fica contaminado por “polarizações” recorrentes.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema político resiste, chegando mesmo, em alguns momentos, a impulsionar o processo de tomada de decisões e compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte, se contrapõe ao governo e mostra independência; em parte, se consome em seu próprio fogo corporativista.

Algo precisa surgir de suas bordas, onde se aloja o centro democrático expandido: liberais, a esquerda social-democrática, ambientalistas, verdes, cristãos progressistas, humanistas. Não só para nortear a política, permitindo-lhe retomar suas virtudes cívicas e sua capacidade de articulação, mas também para que se possa criar uma oposição consistente, que enfrente o governo, dialogue pedagogicamente com a sociedade, module o “carro de Jagrená” e prepare o caminho para as disputas eleitorais que haverá pela frente.

Se o terreno ficar congestionado de candidatos presidenciais disputando espaço entre si, será difícil sair do túnel em que meteram o País. Alguns, por exemplo, como o governador paulista João Dória, querem monopolizar a centro-direita e isolar Bolsonaro na extrema. Para vencer, porém, Dória terá de atrair parte substancial dos votos da centro-esquerda e dos liberais, que não rezam por sua cartilha. Outros batem no peito para proclamar sua superioridade perante os demais, há quem trabalhe em silêncio para cavar a própria trincheira e quem levante poeira para chamar atenção. Há donos demais, lideranças de menos. E a bandeira do antipetismo já não funciona como catalizador.

Fiel ao egocentrismo que os caracteriza, cada pedaço do universo político deseja ter um candidato para chamar de seu. Pode ser que a ideia seja ganhar força e negociar depois. Se tal não acontecer, porém, e o PT insistir em manter a carreira-solo com ou sem Lula, as urnas de 2022 nem precisarão ser abertas para que se saiba o que conterão.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).


Claudia Safatle: Os planos de Guedes e a resistência ao liberalismo

População quer pagar menos impostos, mas não aceita diminuição da oferta de serviços públicos

O programa econômico liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, pegou carona na campanha do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro, mas não levou a chancela dos votos que o elegeram. Isso provavelmente explicaria, por exemplo, o porquê de o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ter descartado a privatização da Eletrobras por aquela casa, na semana passada. A razão, disse ele, é que 48 senadores do Norte e do Nordeste não apoiam o projeto.

No mesmo momento, Alcolumbre também rejeitou qualquer hipótese de ver aprovado um pedido de “fast track” para as privatizações, conforme anunciado pelo ministro. Por esse mecanismo, as vendas de estatais seriam autorizadas em bloco de forma a acelerar etapas das privatizações. “Será caso a caso”, sustentou o presidente do Senado.

Nos grandes valores, como liberdades individuais e direitos civis, pode -se dizer que há uma forte aderência da sociedade com a agenda liberal.

Há, porém, uma distância considerável entre o liberalismo econômico, que preconiza a redução do Estado, e as aspirações populares. A sociedade brasileira credita ao Estado papel fundamental na diminuição da alarmante desigualdade que vigora no país e almeja acesso universal à saúde e educação de boa qualidade. Esse acesso é que dará aos mais pobres condições de competir com os mais abastados por uma vida melhor.

Nos planos de Guedes, que serão colocados em uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser apresentada em duas semanas, constam os três D: desindexar, desvincular e desobrigar o Orçamento da União. Essa é a PEC do pacto federativo. Posteriormente o governo apresentará a PEC da reforma tributária.

Sabe-se que 94% do Orçamento é destinado ao pagamento de despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões e folha de salários dos servidores, dentre outras). E sabe-se, também, que parte relevante dessas despesas é indexada ao salário mínimo e à variação do INPC (Índice de Preços ao Consumidor).

Além do crescimento vegetativo, as despesas obrigatórias crescem de forma autônoma pela indexação. A soma de ambos resulta em um gasto adicional de R$ 62,1 bilhões no Orçamento de 2020.

A PEC trará, ainda, a desindexação do salário mínimo de tudo o que, no Orçamento, não for gasto previdenciário. Ou seja, o salário mínimo - que passará a ter correção pelo INPC e não terá mais aumento pela variação do PIB de dois anos anteriores - continuará indexando os benefícios da Previdência Social, mas não servirá para corrigir os valores do abono salarial nem do seguro-desemprego, dentre outros. “É assim em quase todo o mundo”, disse uma fonte oficial.

Isso vai liberar uma massa de recursos (mais de R$ 50 bilhões) do Orçamento que, pela PEC do pacto federativo, passará a engordar o caixa de Estados e municípios. Esses recursos financiarão também as emendas impositivas.

Essa é, portanto, uma questão que vai esquentar o debate em torno de temas polêmicos, a exemplo da nova política de reajuste do salário mínimo que não mais comporta aumento real. Será interessante acompanhar a discussão no Congresso, onde não deverá faltar o populismo de alguns versus a ortodoxia de outros.

Pesquisa feita no primeiro semestre deste ano pela Oxfam/Datafolha, onde foram ouvidas 2.086 pessoas em 130 municípios de todas as regiões do país, confirma o quanto os brasileiros esperam do Estado: 84% consideram que é obrigação dos governos reduzir as desigualdades sociais no país; 77% acham que é preciso aumentar os impostos sobre os mais ricos para financiar políticas sociais; e mais de 70% consideram que é função do Estado prover educação do ensino fundamental e médio e acesso universal à saúde.

Há um fato inescapável em toda essa discussão: o Estado brasileiro passa por uma gigantesca crise financeira. Está quebrado. Ou seja, há limites físicos para atender às demandas da população.

Para liberar recursos, o governo quer privatizar empresas estatais, até porque em mãos privadas elas serão mais eficientes. A Eletrobras, junto com os Correios, encabeça a lista. Os parlamentares do Norte e Nordeste são contra a alienação da companhia porque ela abastece os políticos de lá com cargos aos seus eleitores.

Roberto Elery, economista liberal e professor da Universidade de Brasília, ajudou o núcleo de Paulo Guedes durante a campanha eleitoral. Segundo ele, o candidato Bolsonaro encarnou o antipetismo e passou ao largo das questões mais polêmicas como privatização, reforma da Previdência e as demais reformas necessárias para a retomada do crescimento.

“Na economia, preto no branco, ainda há muita resistência a uma agenda liberal,” diz. Ele avalia que as pessoas querem desregulamentação, querem tirar o peso do Estado do seu cangote.

Querem pagar menos impostos, mas não aceitam uma diminuição da oferta de serviços públicos. “Não se consegue, aqui, reduzir o gasto público. O máximo que se consegue é reduzir o ritmo do seu crescimento”, sublinha.

Enquanto essa resistência assola o próprio presidente da República, dança-se no último baile da ilha fiscal. Foi assim que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, há poucos dias, que juízes e servidores do Judiciário poderão ser ressarcidos de despesas médicas em até 10% do seu salário. Os militares também querem sua parte, com o projeto de lei da Previdência elevando em R$ 4,7 bilhões os gastos com salários no ano que vem. E a não privatização da Eletrobras representará um buraco de R$ 16, 2 bilhões no Orçamento de 2020.

Independentemente de ser uma economia liberal ou intervencionista, o fato é que o dinheiro acabou. Há um teto a ser cumprido para o gasto público e a classe política terá que decidir se aprofunda as regras do teto ou se abre mão delas e seja lá o que Deus quiser.

De pouco adianta tentar queimar o ministro da Economia nos gabinetes do Palácio do Planalto. Um novo ministro não inventará mais recursos para gastar a não ser que se aumentem os impostos.


Adriana Fernandes: O ataque a Guedes

A austeridade fiscal definitivamente não é boa companhia para nenhum presidente da República

Paulo Guedes está sob ataque na Esplanada dos Ministérios e fora dela. A novidade é que a pressão tem sido alimentada pelo Planalto. É o velho e conhecido “fogo amigo”, que já alvejou ministros poderosos da área econômica de governos passados.

Nas últimas semanas, a palavra que mais se ouve em Brasília é “entrega”. Guedes tem sido criticado pela demora em “entregar” a retomada da economia e a redução do desemprego. Sem falar da reforma tributária, que não sai e continua indefinida após a nova CPMF morrer por ordem do presidente Jair Bolsonaro.

A austeridade fiscal definitivamente não é boa companhia para nenhum presidente da República. Principalmente se o presidente, antes mesmo de terminar seu primeiro ano de governo, já se movimenta afrontosamente para garantir a reeleição.

A falta de dinheiro é ponto de partida para as investidas contra o ministro. Mas os ataques, que nascem como reação à política de aperto fiscal, têm nuances bem mais profundas.

A divisão no governo sobre mudar ou manter a regra do teto de gastos expôs claramente as contradições internas entre a agenda do ultraliberal ministro da Economia e a de assessores e ministros mais próximos do presidente, que ajudam a turbinar as intrigas. Eles já viram que, com o teto, o governo não deslancha na velocidade que querem.

O confronto subterrâneo entre os dois grupos vai desde embates na área de privatização de estatais (vide o desgaste com a Eletrobrás) à demora no perdão da dívida do mundo do agronegócio com a contribuição ao Funrural (promessa de Bolsonaro), e passa também pelos rumos do Minha Casa Minha Vida, pela política da Caixa para empréstimos a prefeituras e Estados aliados e pelo enfrentamento com o Judiciário. Só para começar a lista. O que os embates têm em comum é que eles se concentram na articulação errática do governo com o Congresso.

O negócio da tal articulação tem sido no varejo total. A cada aprovação de medidas, o governo é obrigado a reabrir a negociação e o cofre. Isso está custando muito dinheiro, e o confronto com a área econômica cresce.

Depois do teto, o mais recente ruído ocorreu com a proposta de desindexar o salário mínimo e as despesas vinculadas ao piso nacional. Na prática, o governo ficaria desobrigado a dar reajustes ao mínimo, mesmo que só para repor a inflação. Esse é um tema para lá de polêmico e que o time de Guedes pretendia enfrentar, mas foi abortado a mando de Bolsonaro.

Cabeças quase rolaram no Ministério da Economia por conta dos ruídos da semana passada em torno do assunto. Uma saída que, se concretizada, seria evidentemente contabilizada como mais um sinal de perda de autonomia do ministro, depois da queda do secretário especial da Receita Marcos Cintra. A saída do auxiliar do ministro chegou a ser interpretada como enfraquecimento de sua liderança.

Oriundo do baixo clero na Câmara, Bolsonaro tem obsessão em mostrar que é ele quem manda. Já bateu de frente com os militares e com o ministro da Justiça, Sérgio Moro. A demora da “entrega” serve bem a esse propósito. Como mostrou o Estado em reportagem recente, o presidente tem sim cobrado agilidade, mesmo que em público reforce o discurso de que está 100% alinhado com Guedes e que a culpa é da imprensa, que semeia discórdia.

Segundo auxiliares de Bolsonaro, o presidente se diz “agoniado” por estar “amarrado à política econômica”. E teme ver o “risco de o governo morrer por inanição”.

A equipe econômica, ao seu modo, tem se defendido da pressão com o argumento de que entregou muita coisa nesses nove meses de governo. A reforma da Previdência aprovada na Câmara mesmo em meio à desarticulação política, as mudanças no mercado de gás, as negociações internacionais para abertura de mercados, a queda dos juros, a liberação do FGTS, a redução do risco Brasil...

Um dos problemas de Guedes é que ele criou a expectativa de que haveria transformações muito rápidas. Além disso, colocou muitas propostas na mesa ao mesmo tempo sem estarem completamente fechadas. Está pagando o preço por isso. Soma-se a isso a desorganização elevada nos processos de comando na equipe econômica depois da criação do superministério da Economia. Muita arrumação a ser feita.

Para sair da linha de tiro do fogo amigo, o ministro precisa urgentemente frequentar mais o Planalto e falar mais para dentro do governo. Não pode sair de perto da órbita e dos ouvidos do presidente. Conselho que já lhe foi dado.


Míriam Leitão: Guedes: a entrega e a autonomia

Na visão de Paulo Guedes, sua gestão tem vitórias em pouco tempo como a Previdência, os acordos da cessão onerosa e da UE com o Mercosul

O ministro Paulo Guedes acha que em pouco tempo a sua gestão conseguiu vários avanços que não têm sido bem avaliados. Vitórias como a reforma da Previdência, a finalização do acordo Mercosul-União Europeia, a conclusão da difícil negociação que torna possível o leilão da cessão onerosa, a lei da liberdade econômica são vitórias que, na visão do ministro, derrubam na prática a tese de que a “entrega” estaria abaixo do previsto e do desejável. Mas há agora uma dúvida sobre o poder de decisão de Guedes na condução da política econômica.

O ministro é sempre cobrado pelo seu desempenho — aqui mesmo nesta coluna — e uma das razões foi ter prometido vender estatais e imóveis públicos para zerar o déficit público. Hoje diz que isso são apenas “diretrizes” gerais que perseguirá no seu trabalho no Ministério. É público que durante a campanha ele disse que zeraria o déficit no primeiro ano, mas está previsto resultado negativo até para o último ano do governo, em 2022. Ele define assim as diretrizes: “zerar o déficit se possível e não aumentar impostos.”

Na lista das conquistas da sua administração, ele inclui pontos que não têm muita visibilidade, mas que podem fazer enorme diferença na vida do cidadão, como a “digitalização de 90 dos 97 serviços do INSS”. Diz que era “crueldade a prova de vida física”. Por enquanto, ainda está sendo exigida, mas quando isso realmente estiver em funcionamento será o fim de um tormento para os mais idosos e com dificuldades de locomoção.

Na visão de Paulo Guedes, a liberação de saques no FGTS tem um alcance muito maior do que parece. No governo petista foi criado o FI-FGTS, ou seja, com o dinheiro do trabalhador se construiu um fundo que emprestou para grandes empresas a custo baixo. O que houve no governo Temer foi um saque único, das contas inativas, uma renda transitória. Agora, a medida que comandou pode virar “renda permanente e consumo, uma espécie de 14º salário”.

Paulo Guedes lembra em conversa com seus interlocutores que o governo Temer, apesar de ter aprovado a emenda do teto e a reforma trabalhista, “não entregou o principal”, a reforma da Previdência, em tramitação agora no Senado. Além disso, Temer “comprou aceitação através de aumento de salário”. O governo anterior de fato deu reajuste aos funcionários em parcelas que chegaram até o primeiro ano da atual administração, apesar da grave crise econômica e da aprovação da emenda do teto. Guedes tem dito que o governo conseguiu a aprovação da reforma na Câmara mesmo não tendo base de sustentação.

Nas aparições públicas do ministro, ele tem feito declarações polêmicas que galvanizam a atenção, que acaba ficando longe da apresentação que ele tem feito do que a sua equipe “entregou” no curto período de menos de nove meses. E lembra que parte do tempo da equipe é gasto em desarmar bombas fiscais em negociações constantes com o Congresso, TCU e até o STF.

Em algumas áreas houve grandes avanços no governo Temer como a negociação do acordo do Mercosul com a União Europeia. Mas quem de fato removeu os últimos obstáculos foi o atual governo. O acordo quando for posto em prática significará um passo na abertura comercial. O risco é, como já disse aqui, que o acordo volte a ser travado pela crise ambiental e a maneira desastrosa como o governo Bolsonaro entende a questão climática e ambiental. Não é uma briga com a França. É a economia. Ela tem novos paradigmas. A negociação entre a Petrobras e o Tesouro sobre a cessão onerosa também caminhou no governo passado, mas foi concluída na atual gestão e a expectativa é que o leilão das áreas excedentes atraia muito interesse, ainda mais agora com a crise da Arábia Saudita. O ministro não admite a crítica de que realizou pouco nesse período.

Há, contudo, outra dúvida surgindo sobre a real dimensão da autonomia de Paulo Guedes. Ele já teve que aceitar duas demissões que vieram diretamente do presidente Jair Bolsonaro: a do ex-presidente do BNDES Joaquim Levy e a do ex-secretário da Receita Marcos Cintra. Esta semana, Guedes definiu Cintra como “valente morto em combate” e defendeu a CPMF como sendo o caminho pelo qual se conseguiria reduzir alguns impostos e estimular a criação de emprego. Na campanha, Bolsonaro dizia que a economia estava totalmente delegada a Guedes. A prática comprova que sua autonomia encolheu.


Bernardo Mello Franco: Nova CPMF é estelionato eleitoral

Paulo Guedes inventou uma nova sigla para ressuscitar a velha CPMF. Em entrevista, ele admitiu que o imposto é “feio” e “chato”. Faltou dizer que sua volta seria um estelionato eleitoral

Paulo Guedes inventou uma nova sigla para ressuscitar a velha CPMF. Em entrevista ao “Valor Econômico”, o ministro admitiu que o imposto, agora rebatizado de ITF, é “feio” e “chato”. Faltou dizer que seu retorno seria um estelionato eleitoral.

Como deputado, Jair Bolsonaro passou duas décadas atacando a CPMF. No governo FH, chamou a contribuição de “desgraça” e “maldita”. No governo Lula, disse que um deputado favorável à cobrança merecia o “troféu cara de pau”.

Como presidenciável, ele declarou diversas vezes que não recriaria o imposto. “Não admitiremos a volta da CPMF. É um imposto ingrato, que incide em cascata e não é justo. Não existirá a CPMF”, garantiu, às vésperas do primeiro turno.

Ao assumir o poder, Bolsonaro mudou o tom. Com o caixa apertado, ele permitiu que a equipe econômica defendesse a recriação do imposto. Na semana passada, passou a dizer que topa a “nova CPMF” se houver “uma compensação para as pessoas”. Não explicou se ela viria na forma de abraço ou de tapinha nas costas.

Guedes tem apetite. Ele calcula que o imposto “feio” e “chato” pode render até R$ 150 bilhões por ano ao Tesouro. Seria dinheiro suficiente para suspender julgamentos estéticos e empurrar a cobrança goela abaixo da população.

O ministro também já começou a mudar o discurso. Para exaltar a “nova era”, ele costumava desprezar todas as iniciativas dos antecessores. Agora diz que a CPMF, criada por tucanos e mantida por petistas, “arrecadou bem e por isso durou 13 anos”.

Ao defender a recriação do imposto, Guedes se filia a um tipo conhecido dos brasileiros: o economista que abandona a cartilha liberal na primeira chance de morder o bolso do contribuinte.

Na entrevista ao “Valor”, ele disse que a ressurreição do tributo poderá ser trocada por uma nova desoneração da folha de pagamentos. Mais uma vez, os empresários levarão o refresco enquanto os pobres e a classe média pagam a conta.


El País || Brasil afasta fantasma de recessão técnica de olho na China e Argentina

Temores de crise global entram no radar do país, que não teve o “tsunami de investimentos” esperado com o encaminhamento da reforma da Previdência. PIB do segundo tri será divulgado dia 29

O Brasil coleciona um rosário de preocupações na economia que travam a retomada dos negócios e a recuperação do emprego. Hoje o país tem 12 milhões de pessoas desempregadas. Mesmo com reformas da Previdência e tributária em andamento, e o cenário político interno relativamente controlado, o cenário global se complica. A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China se acirra, ao mesmo tempo que o gigante asiático desacelera, e os temores de uma crise mundial avançam. A Alemanha, por exemplo, flerta com a recessão técnica, e há dúvidas em relação à economia norte-americana.

Por ora, o temor da crise global estimulou a fuga de capitais da bolsa brasileira. De janeiro até o dia 15 de agosto já haviam saído 19 bilhões de reais de investidores estrangeiros, o maior volume desde 1996, como constatou o jornal Valor Econômico. Para além dos temores nos países desenvolvidos, há problemas domésticos e na vizinhança que teriam poder para contagiar o Brasil. A já debilitada economia argentina, o parceiro comercial mais importante do Brasil na região, passa por uma nova turbulência após as primárias revelarem o favoritismo de Alberto Fernández, nas eleições presidenciais. A Argentina está no radar imediato do Brasil. A instabilidade que se instalou no país vizinho após a vitória do Alberto Fernandez nas primárias eleitorais tem potencial para contagiar o Brasil. Nos cálculos do Itaú, para cada 5% de queda na produção industrial argentina, a exportação do Brasil cairia 25%, o que significaria uma queda de 0,2% no PIB.

O economista Luka Barbosa, do Itaú, ressalta, no entanto, que a situação econômica da China importa mais hoje do que a do país vizinho, uma vez que a queda de crescimento do país asiático afeta a economia brasileira tanto pela diminuição das exportações quanto no preço das commodities. “O que acontece na China é muito mais importante para o Brasil do que está acontecendo com a Argentina”, afirma Barbosa. O economista lembra que 30% das exportações do Brasil vão pra China, 20% pros Estados Unidos e apenas 5% para a Argentina.

Internamente, a cautela das empresas para investir dificulta a retomada. “A Previdência não gerou um tsunami de investimentos no Brasil, embora fosse essa narrativa. Falta narrativa de urgência”, observa o analista Thiago de Aragão, que transita entre Washington e Nova York, de onde conversa com fundos globais semanalmente. Aragão aponta a necessidade de microrreformas para destravar investimentos, como o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 79 que atualiza a Lei Geral das Telecomunicações e tem potencial para atrair mais recurso de longo prazo.

Aragão lembra que o Brasil depende de dois tipos de investidores: os que conhecem o Brasil de verdade, e filtram informações negativas, e outros sazonais que dependem “da sensação térmica” do mundo. “Para esses, quando tudo vai bem, incluindo os Estados Unidos, se permitem testar em novas águas. Mas quando o mundo não está bem como o esperado, temem mais os emergentes como o Brasil”, completa. O Governo Bolsonaro, no entanto, decidiu apostar primeiro num programa ambicioso de privatizações para entrar no radar dos investidores. Na semana passada, anunciou que 14 estatais serão privatizadas com a expectativa de arrecadar 2 trilhões de reais. O pacote inclui os Correios e até a Casa da Moeda.

Na avaliação de Silvio Campos, da consultoria Tendências, a demanda ainda está muito comprometida pela situação financeira das empresas e das famílias em um quadro fiscal complexo em que o Governo está sem espaço para estímulo. "O que resta é apostar em uma agenda competitiva. Algo que o país já esta fazendo há um tempo, desde a reforma trabalhista de 2017 e a lei da terceirização. Agora temos cadastro positivo, a reforma da Previdência, a medida provisória (MP) da liberdade econômica, a reforma tributária. São todas tentativas de tirar travas, criar um ambiente de negócios melhor", afirma. Sem recursos para o investimento público, o país perde uma importante válvula de escape, segundo Campos. "Perdemos este escape via financiamento subsidiado, ele se esgotou pela situação fiscal", afirma.

O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, concorda que o investimento público hoje está parado, representa apenas 0,5% do PIB e deve continuar achatado por conta da regra do teto de gastos. "A equipe econômica foi afoita ao pensar que as concessões e leilões iriam deslanchar rápido e aquecer a economia. Tudo tem seu tempo. E hoje os investimentos privados estão parados também porque as empresas têm uma capacidade ociosa enorme. Estamos num processo de retomada lenta há muito tempo", explica.

Vale ressalta ainda que, embora devêssemos celebrar os efeitos positivos gerados pelas reformas que estão bem encaminhadas - principalmente a da Previdência –, o presidente Jair Bolsonaro não ajuda porque traz muito ruído no processo de retomada econômica. "Quando ele começa a falar sobre desmatamento e meio ambiente e usa um tom agressivo com países como a Alemanha, ele pode estar colocar em risco o próprio acordo comercial com a União Europeia. Bolsonaro tem potencial de impactar futuras parcerias comerciais". Nesta semana, o presidente francês, Emmanuele Macron já deixou claro que pode bloquear o acordo da União Europeia com o Mercosul depois da crise aberta com as queimadas na Amazônia.

Para Vale, como não há espaço para que o Governo produza novos estímulos econômicos, o que poderia ser colocado em discussão é a diminuição do spread bancário - a diferenças entre os juros que os bancos pagam quando você investe seu dinheiro e os juros que eles cobram quando fazem um empréstimo. "Não adianta reduzir a taxa básica de juros se ela tem pouca efetividade para a pessoa física. Hoje a média do spread bancário é de quase 40%, uma taxa muito elevada. É preciso aproximar de uma média mundial que é de 3%. Indo nessa direção você pode estimular consumo e crescimento", explica.


Julianna Sofia || O fantasma do 'shutdown'

No atoleiro fiscal, a receita patina enquanto a máquina administrativa afunda

Embora soasse disparatado, tão logo assumiu-se Posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes (Economia) prometeu zerar o déficit primário (que exclui os juros da dívida) das contas públicas ainda no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro.

Passados oito meses, não foi que deu ruim —porque todos sabiam se tratar de promessa vã. Apesar dos bilhões esperados com o leilão de excedente do pré-sal, apesar de privatizações no setor elétrico, apesar de estupendos dividendos de estatais, apesar de tudo, para cumprir o feito seriam necessários R$ 140 bilhões em receitas extras, além de uma recuperação econômica vigorosa para melhorar a arrecadação de tributos.

Mas a economia flerta com uma recessão técnica. Passada a fase mais difícil de aprovação no Legislativo, a reforma da Previdência —solução para todos os males!— já foi precificada, mas os investimentos que poderiam estimular a economia não se concretizam. Haverá desconfiança dos donos do dinheiro enquanto durar o “freak show” diário de Bolsonaro nos portões do Alvorada.

No atoleiro fiscal, a receita patina enquanto a máquina administrativa afunda. Em vários setores, há risco de paralisia na prestação de serviços. Bolsas do CNPq foram suspensas e 84 mil pesquisadores podem ficar sem receber já em setembro. A emissão de passaportes na Polícia Federal será afetada se não forem desbloqueados R$ 61 milhões do valor previsto para este ano. Construtoras do Minha Casa, Minha Vida reclamam de R$ 470 milhões em atraso.

Desde 2014, todos os anos o fantasma do “shutdown” ronda a Esplanada em agosto. “Os ministros estão apavorados, estamos aqui tentando sobreviver no corrente ano. (...) Não é maldade da minha parte. Não tem dinheiro, só isso”, disse o presidente.

O Orçamento de 2019 foi herdado de Michel Temer. O próximo será 100% de Bolsonaro. A má notícia é que as amarras do teto de gastos e o aumento das despesas obrigatórias comprimirão ainda mais o custeio e o investimento. A assombração voltará a aterrorizar em 2020


Bruno Boghossian: Guedes se apressa e já encara risco de crise como uma marolinha

No jet ski desgovernado de Bolsonaro, ministro age de maneira pouco pragmática

Um ministro da Economia que não exagera nas doses de confiança certamente está no emprego errado. Paulo Guedes disse numa palestra para investidores que o Brasil não tem motivos para se preocupar com as turbulências na Argentina e com a desaceleração em alguns dos principais países do mundo.

“Não tenho receio nem do balancê da Argentina, nem dessa briga comercial. Não tenho receio de ser engolido pela dinâmica internacional”, afirmou. “O mundo estava acelerado, e a gente estava descendo. Se o mundo desacelerar, tudo bem.”

Guedes tentou convencer a plateia de que os planos do governo Jair Bolsonaro serão suficientes para blindar o país de qualquer alvoroço no mercado internacional. Já enxergou uma marolinha numa crise que mal começou a se desenhar.

Em 2008, quando o colapso imobiliário americano ameaçava se espalhar pelo mundo, o então presidente Lula se saiu como um bom animador de auditório: “Lá, ela é um tsunami. Aqui, se ela chegar, vai chegar uma marolinha que não dá nem para esquiar”. Sua equipe adotou medidas para absorver os choques. O país pagou a conta anos depois.

Desta vez, o Brasil tem menos opções dessa natureza para fazer frente a um esfriamento da economia global, mas o ministro encara os riscos de uma maneira pouco pragmática.

No caso dos argentinos, Guedes decidiu montar na garupa do jet ski desgovernado de Bolsonaro para enfrentar a onda. Fez pouco caso do comércio com o país vizinho e perguntou: “Desde quando o Brasil, para crescer, precisou da Argentina?”
.
O país é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Exportadores de automóveis e calçados já começam a sentir o balancê por aqui. Nem Eduardo Bolsonaro conseguirá convencer os EUA a comprar o que ficar encalhado nesses estoques.

O ministro tem razão quando questiona a eficiência do Mercosul caso a chapa de Cristina Kirchner vença a eleição no país e feche a economia, mas também ecoa o que há de pior no discurso ideológico de seu chefe.