Paulo Guedes

Adriana Fernandes: É fake

Governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões; em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

A noção de contas equilibrada foi atualizada pelo governo Jair Bolsonaro. Na publicidade de 400 dias da atual gestão, divulgada nas redes sociais, a mensagem transmitida foi a seguinte: “contas equilibradas, inflação controlada e mais poder de compra para os trabalhadores impactam positivamente na economia”.

Nada mais fake news. O governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões. São “bilhões” e não “milhões”.

Em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

O ano de 2019 marcou o sexto ano de déficit consecutivo de contas do governo federal. Não são rombos pequenos. Ele caiu, é verdade. Mas é alto e tem impedido o governo de avançar em investimentos – que estão em patamares ridículos há anos.

Na melhor das hipóteses, somente no final de 2022, as contas voltam para o azul. As projeções mais fresquinhas da própria equipe econômica apontam que, no último ano do mandato do presidente, o déficit será de R$ 31,4 bilhões. O mais provável – até o momento – é que o cenário de superávit só venha em 2023.

Esse quadro só muda se a economia crescer muito e muito rápido. O que não é o caso, por enquanto. O Brasil patina no baixo crescimento há anos por razões diversas e estruturais.

Por ora, a redução do déficit – comemorada pela equipe de Guedes – se deve muito à receita extraordinária com leilões de petróleo e dividendos pagos por estatais e bancos públicos. Do lado das despesas, o arrocho foi grande nos gastos discricionários (não obrigatórios), que afetou os programas sociais.

A zeragem do déficit – prometida pelo ministro para 2019 – não ocorreu. E todos sabiam que não iria acontecer no ano passado. Guedes se justifica dizendo que quis subir o sarrafo (da meta) para alcançar o melhor resultado.

Mas o corte nos incentivos setoriais, nos “privilégios” do sistema S, benefícios tributários de todos os tipos... esse ficou a ver navios. A força das criaturas do pântano, citada no discurso de posse como uma frente a ser destruída, continua solta por aí.

O governo não atacou esses privilégios. Pelo contrário, enviou ao Congresso um anexo secreto (sem publicidades) com medidas que “podem ser acionadas”. Cumpriu tabela e escondeu o caminho.

O déficit não começou nesse governo. É verdade. Acabar com ele é obrigação.

Com a mensagem dos 400 dias, a sensação que o governo passa à sociedade e ao Parlamento é que está tudo ok. Os sinais de pressão aumentam nesse ambiente. Um presidente fiscalmente responsável jamais faria um desafio aos governadores de zerar impostos sobre combustíveis.

Impossível não comemorar um déficit menor, conta de juros mais baixa e redução da dívida pública. Avanços ocorreram, sem dúvida. Mas o ajuste só estará completo quando as prioridades orçamentárias estiverem direcionadas para a população que mais precisa. Muito a fazer.

O governo reclama de fake news, mas, com todo respeito, desta vez, ele mesmo espalhou.

* É jornalista


Julianna Sofia: O latifúndio de Guedes

Com PPI, superministro administrará da fila do INSS à venda de parques nacionais e Eletrobras

Caso não seja apenas mais um arroubo retórico de Jair Bolsonaro seguido de recuo, o anúncio presidencial de incorporar o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) ao ministério de Paulo Guedes (Economia) será mais uma medida a expandir o latifúndio administrativo a cargo do superministro.

No ano passado, a fusão das pastas da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e do Trabalho foi promovida com o argumento de dar coerência às ações da nova e ultraliberal equipe econômica. O que seu viu, por meses, foi a dificuldade de por em funcionamento uma máquina de proporções gigantescas e com tentáculos mui diversos.

Na reforma agrária ora em curso, o presidente desidrata a já esquálida Casa Civil para tirar poderes e tornar insustentável a permanência de Onyx Lorenzoni à frente do órgão —há uma semana, Bolsonaro impingiu ao ministro-herói Sergio Moro mesmo tipo de fritura, mas a reação contrária das redes à manobra do presidente garantiu blindagem ao ex-juiz da Lava Jato.

A prosperar a migração do PPI para a Economia, Guedes sai fortalecido e concretiza o que planejara na transição de governo, quando tentou absorver o plano de concessões. Uma das possibilidades em estudo é abrigar o programa na secretaria de Salim Mattar (Desestatização), aquele que seria o grande promotor das privatizações federais, mas que pouco entregou até agora.

Em 2019, nenhuma das estatais de porte foi privatizada —nem Correios, nem Eletrobras, nem Casa da Moeda— e menos de R$ 100 bilhões foram embolsados com a venda de alguns ativos de empresas públicas. Para explicar o fracasso, entre as justificativas de Salim está o próprio organograma ministerial, com o PPI alojado na Casa Civil de Onyx. Problema superado, Guedes ganhará autonomia para tocar o plano de concessões e privatizações no seu ritmo.

Sob a megalomania do superministro, o INSS voltou —como há muito não se via— a submeter os segurados à tortura das filas de espera.


Alberto Aggio: Há resistências à “guerra de movimento” de Bolsonaro

Paulo Guedes, ministro da Economia do Governo Bolsonaro, se inspira no ditador Augusto Pinochet

Creio que sejam necessários alguns referenciais para compreender a conjuntura política em curso, pelo menos em sua linhas gerais. O centro da conjuntura passa pelas iniciativas permanentes e recorrentes do governo Jair Bolsonaro. É ele quem tem a ofensiva, no momento. O seu método é equivalente a uma “guerra de movimento” (para usar aqui o categorial gramsciano), com objetivos no curto e no longo prazo.

Embora o cenário mundial e nacional seja mais propício à “guerra de posições”, Bolsonaro escolheu a primeira porque se imagina dotado de um “programa” geral de alteração das perspectivas por onde o Ocidente trilhou o estabelecimento e consolidação de uma sociedade democrática. As oposições e a sociedade civil permanecem, por ora, em atitude de “resistência” e, portanto, na defensiva, mas realizam uma “guerra de posições”, em termos políticos e organizativos que poderá se consolidar e dar frutos.

A “guerra de movimento” de Bolsonaro pode ser sinteticamente vista como o que se convencionou chamar de “bolsonarismo” e seu objetivo maior é a alteração do regime político democrático no Brasil. O bolsonarismo é uma especie de pinochetismo meio torto em situação democrática. Não nasceu de um golpe de Estado e, portanto, não pode ter domínio de todo o Estado e da sociedade, mas seu movimento tem precisamente o sentido de estabelecer um regime político iliberal no Brasil. Evitar esse desfecho é essencial para a manutenção da democracia. Cada contenda com o governo tem esse preciso sentido. Talvez o episódio de manifestação de caráter abertamente nazista tenha sido o ápice desse embate. Mas, certamente, seguirão outros.

A movimentação de Bolsonaro é incessante e não tem como ser diferente. As parcas vitórias do governo em termos econômicos não são alçadas como elementos centrais pelo próprio presidente. As razões para isso estão nessa estratégia de “guerra de movimento” e não de “posições”. Os blefes de Bolsonaro em relação a Sergio Moro, Ministro da Justiça, fazem parte da mesma estratégia. Pode ser que Bolsonaro tenha que mudar sua orientação geral, mas isso é bastante improvável.

No final do livro de Thaís Oyama, Tormenta (Companhia das Letras, 2020) no qual a jornalista narra, com competência, momentos significativos do primeiro ano do governo Bolsonaro, a impressão exposta ao final não deixa de revelar a estratégia do presidente. Escreve a jornalista: “No final do primeiro ano de mandato, os lábios de Jair Bolsonaro não tremiam mais, nem seus olhos se movimentavam nervosos de um lado para o outro. Estavam fixos em 2022” (p. 211). Curiosamente, me detive nesse ponto. O final do artigo que escrevi para a revista Política Democrática On-line n. 15 (FAP, no prelo) carrega sentido similar. No inicio de janeiro, quando mandei o artigo ao editor, finalizava o texto da seguinte maneira: ” O “ano 1” de Bolsonaro está focado no segundo mandato. Ele precisa desesperadamente da sua reeleição. Para isso quer nos manter estacionados politicamente em 2018″.

Ao que parece, os anos seguintes de Bolsonaro serão mais do mesmo: movimento incessante de sentido reacionário, errático, mas controlado; atropelos na governança que exigirão reformas tópicas, com substituições aleatórias; blefes e recuos; e que a economia siga sua recuperação estabilizadora – mais do que isso, não é o objetivo deste governo.


Merval Pereira: Amazônia sustentável

Fala de Guedes proporcionou um debate sobre uma política de desenvolvimento que gere renda e preserve a floresta

A frase do ministro da Economia, Paulo Guedes, justificando, não necessariamente apoiando, o desmatamento da floresta amazônica com a necessidade de alimentar a população que vive na região, cerca de 25 milhões de pessoas, proporcionou um debate sobre uma política de desenvolvimento sustentável da Amazônia que gere renda e preserve a floresta.

Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), fez carreira acadêmica na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, da qual tornou-se professor titular em 2001, e Ronaldo Seroa da Motta, professor de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), são especialistas no tema que têm pontos em comuns na visão do problema, e algumas discordâncias sobre a possibilidade de implementação de uma politica econômica sustentável na região.

O principal erro dos que toleram, compactuam ou promovem o desmatamento, diz Abromovay, é não se darem conta de que desmatar a Amazônia não produz nem riqueza, nem bem-estar. “Na verdade, o desmatamento é o mais importante vetor da perenização do atraso e das precárias condições de vida na região”. Ronaldo Seroa da Motta define esse processo como “a lógica do “boom-colapso”: “Desmatamento se vale da mão-de-obra barata, mas não remedia a pobreza”.

Num primeiro momento, diz ele, o acesso fácil aos recursos naturais produz uma explosão de riqueza no município, concentrada nas mãos de poucos, mas que se esgota em poucos anos, deixando para trás terras degradadas e conflitos sociais.

A criminalidade que lidera as operações ilegais, desde a invasão de terras, pistas clandestinas, madeireiras ilegais, destrói não apenas a floresta, mas o sentimento cívico da região.

O professor Ronaldo Seroa da Motta mostra que não há conflito entre produção agropecuária e preservação da floresta. Ele cita que, entre 1975 e 2017, a produção de grãos, que era de 38 milhões de toneladas, cresceu mais de seis vezes, atingindo 236 milhões, enquanto a área plantada apenas dobrou. O número de cabeças de gado bovino no país mais que dobrou nas últimas quatro décadas, enquanto a área de pastagens teve pequeno avanço. Em determinadas regiões houve até redução de terras destinadas ao pasto.

Para Ronaldo Motta, em que pese a ampliação do sistema de comando e controle do desmatamento, é preciso alterar o principal incentivo para conversão da floresta em terras devolutas. Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e, portanto, não havendo registro de propriedade do imóvel em favor do Estado, o terreno pode ser usucapido. Quase metade da área da floresta Amazônica é terra devoluta.

Essa indefinição de direitos de propriedade cria oportunidade de que, com o desmatamento, se criem direitos privados de propriedade da terra. Tal processo seria virtuoso se resultasse em progresso. Mas, não é isso que se observa.

Ricardo Abromovay lançou recentemente um livro intitulado “Amazônia – Por uma economia do conhecimento da natureza”, que o cientista Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe demitido por Bolsonaro, diz que é uma resposta aos críticos da preservação da floresta, que argumentam que o desenvolvimento sustentável, baseado em sua biodiversidade, dificilmente será economicamente viável e é de lenta implantação, não dando resultados dentro do prazo necessário para resgatar economicamente a população amazônica.

O professor Ronaldo Seroa da Motta é dos que acham que mesmo que se amplie a produtividade com assistência técnica, logística e desenvolvimento de cadeias produtivas, essa diferenciação vai gerar vazamento/deslocamento do desmatamento de uma área para a outra. O mesmo ocorreria com os resultados da bioeconomia, ainda mais que nesse caso a apropriação dos benefícios seria ainda mais concentrada no setor industrial e energético.

“Assim sendo, não há como prescindir de pagamentos por serviços ambientais associados à comercialização de créditos de carbono por redução de desmatamento”. A posição brasileira na COP 25 em Madrid parecia indicar que o país estaria disposto a seguir essa opção. Mas, lamenta, desde então nada mais foi discutido ou mencionado. (Amanhã - Projetos econômicos viáveis).

 

 


Celso Rocha de Barros: Guedes

Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois

O único lado racional do governo Bolsonaro é o lado de fora. Ninguém que se propôs moderar o bolsonarismo por dentro teve, até agora, qualquer sucesso. Pelo contrário, foram todos rebaixados ao nível do chefe.

O ministro da Economia disse que entende por que os bolsonaristas pedem um novo AI-5. Segundo Guedes, os apelos por fascismo se justificam porque Lula pode convocar protestos que, inspirados em Leonardo Di Caprio, taquem fogo em tudo. A mera ameaça de algo assim já teria, ainda segundo o ministro, derrubado a reforma do serviço público.

No meio da conversa, Guedes pediu que todos aceitassem o resultado da eleição.

Na verdade, Bolsonaro abortou a reforma porque nunca quis fazê-la. Guedes fingiu que acreditou que a culpa fosse de Lula porque também precisava de uma desculpa: nunca conseguiu aprovar reforma que Rodrigo Maia não lhe tenha entregado pronta.

Não há protestos, violentos ou pacíficos, acontecendo no Brasil. Se houvesse, a democracia lidaria com eles como lidou com 2013, com 2015 e com a greve dos caminhoneiros de 2018.

Quanto a aceitar o resultado da eleição, ministro, faz só um ano, não deu tempo para esquecer: durante a campanha do ano passado, Bolsonaro disse repetidas vezes que não aceitaria o resultado em caso de derrota.

Em uma entrevista a José Luís Datena no hospital, Bolsonaro disse: “eu não posso falar pelos comandantes militares, respeito todos eles, mas pelo que eu vejo nas ruas, eu não aceito resultado diferente do que a minha eleição”.

Ministro, o senhor tem qualquer interpretação desta frase que não implique que seu chefe teria tentado um golpe de estado contra o presidente Fernando Haddad, com ou sem o apoio logístico do astro de “Titanic”?

Na verdade, Bolsonaro não é mais um “risco” para a democracia brasileira. A escalada autoritária já está em curso. A desmontagem da democracia brasileira está acontecendo agora, diante de nossos olhos.

A guerra à imprensa livre não tem igual na história do Brasil democrático. O governo Bolsonaro está tentando estrangular financeiramente todos os órgãos de imprensa que denunciem seus crimes. A Folha foi excluída de uma licitação, e a distribuição de verbas publicitárias para a TV foi alterada para punir a Rede Globo. É a mesma estratégia usada na Hungria pelo governo Orbán. Eduardo Bolsonaro, lembrem-se, voltou de Budapeste no começo do ano dizendo que havia aprendido como lidar com a imprensa.

E o aparato repressivo está sendo montado. Excludente de ilicitude na repressão a protestos é pouco sutil mesmo para Bolsonaro.
Na primeira versão desse texto eu terminava pedindo que o empresariado, os militares e a turma de Sergio Moro se pronunciassem oficialmente, em voz alta, em público, contra o autoritarismo bolsonarista. Eu sei, pode rir, eu também comecei a rir alto enquanto escrevia, por isso apaguei.

De qualquer maneira, deixo uma dica para os ricos brasileiros, uma dica que eles não merecem.

Como mostrou o artigo de Laura Carvalho na Ilustríssima de ontem, nenhum outro populismo de direita da onda Orbán é liberal em economia como Guedes lhes prometeu que Bolsonaro seria.

Quanto mais os bolsonaristas se consolidarem no poder, menos vão precisar do apoio de vocês. Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois. Como da última vez.

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Bernardo Mello Franco: O deboche de Guedes

Ao banalizar ameaça de um “novo AI-5”, Paulo Guedes voltou a mostrar desapreço pela democracia. Antes de virar ministro de Bolsonaro, ele trabalhou para a ditadura de Pinochet

O ministro Paulo Guedes pode ser acusado de muitas coisas, menos de esconder o que pensa. Na segunda-feira, ele voltou a mostrar desapreço pela democracia. Banalizou a ameaça de um novo AI-5, feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro.
Em Washington, Guedes falou em medidas de exceção em caso de protestos violentos contra o governo. “Não se assustem se alguém então pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse.

Questionado por uma repórter sobre a gravidade da declaração, ele adotou tom de deboche: “Mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto, jamais apoiaria o AI -5. Isso é inconcebível, não aceitaria jamais isso. Está satisfeita?”.

Guedes se referiu à ameaça do Zero Três como uma resposta a discursos do ex-presidente Lula. Foi um argumento falso, porque o deputado lançou acartado AI-5 dez dias antes de o petista voltar ao palanque.

Ele também apelou ao traçar um cenário de insurreição nas ruas brasileiras. Até aqui, o levante só existe nos discursos do governo, que parece buscar um pretexto para testar medidas arbitrárias.

Guedes já havia flertado com o autoritarismo quando defendeu uma “prensa” no Congresso para acelerar a reforma da Previdência. O texto foi aprovado, mas o ministro ainda parece ver a democracia como um entrave à sua agenda ultraliberal.

Ele não é o primeiro ocupante do cargo a raciocinar assim. Na reunião que selou a edição do AI-5 original, em 1968, Delfim Netto disse que a ditadura precisava de superpoderes para “realizar certas mudanças constitucionais” e desenvolver o país “com maior rapidez”.

Ao naturalizar as ameaças do clã Bolsonaro, Guedes sugere que não se incomodaria com a volta dos anos de chumbo. Não chega a ser uma surpresa. Ele se mudou para o Chile durante o regime de Pinochet, a convite de uma universidade sob intervenção militar.

No ano passado, a revista “Piauí” questionou o ministro sobre o período. Ele respondeu o seguinte: “Eu sabia que tinha uma ditadura, mas pra mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual”.


El País: Guedes admite freio em reformas ante temor de contágio de protestos na América Latina

Ministro enviou superpacote de "choque liberal" no Estado no começo do mês, mas agora diz ponderar reação da oposição. Governo enfrenta falta de base sólida no Congresso às vésperas de ano eleitoral

A onda de descontentamento e protestos de ruas que varre a América do Sul não chegou ao Brasil, mas o temor e o nervosismo diante de um possível contágio são evidentes. O ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, admitiu na noite de segunda-feira nos EUA que o medo de um incêndio nas ruas é o motivo pelo qual o Governo freou seu ambicioso programa de reformas para abrir a economia e encolher o Estado. Guedes chegou a evocar o AI-5, o decreto da ditadura que deu início aos anos de chumbo e fechou o Congresso, porque “é irresponsável chamar alguém à rua agora pra dizer que tem que tomar o poder”, disse ele, referindo-se ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E advertiu: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”. A indignação foi imediata.

Guedes explicou com franqueza a situação em uma longa entrevista coletiva em Washington, depois de se reunir com membros da Administração Donald Trump. Admitiu que a inédita onda latino-americana de protestos é o motivo pelo qual o Governo do presidente Jair Bolsonaro estacionou a reforma tributária e a administrativa, que iria apresentar ao Congresso neste mês. “É verdade que se desacelerou. Quando começa todo mundo a ir pra rua sem motivo aparente, você fala: ‘Não, pare tudo para gente não dar nenhum pretexto. Vamos ver o que está acontecendo primeiro. Vamos entender o que está acontecendo”, disse, segundo o Estado de São Paulo.

O ministro plenipotenciário em assuntos econômicos, um antigo banqueiro de investimentos com pouca experiência política, e sua agenda reformista são os motivos pelos quais o empresariado deu, desde o início, seu apoio ao Governo Bolsonaro. Este Governo conseguiu levar adiante a impopular reforma da previdência, mas não quer arriscar. Guedes salientou que a economia brasileira começa a se recuperar, disse que Bolsonaro mantém sua aposta na agenda reformista e minimizou o fato de o dólar estar batendo recordes em relação ao real. O dólar abriu a 4,25 reais nesta terça-feira, novo recorde nominal para a modea americana.

Depois da aprovação da reforma da Previdência, o pacote econômico de Guedes tem pelo menos cinco propostas legislativas que exigem alteração da Constituição. Oficialmente, agora o ministro admite que foram adiadas pelo temor de que a esquerda mobilize sua militância com grandes manifestações nas ruas são a tributária e a administrativa —a primeira, projetada para simplificar o sistema de impostos, e a segunda, para reduzir os salários e a estabilidade dos novos funcionários públicos.

Mas o quadro é mais complexo. Para começar, a resistência de uma mudança tão profunda no serviço público não afetaria apenas as tradicionais forças de esquerda, mas os poderosos lobbies de servidores em Brasília. O mesmo vale para os planos do Governo, ao menos no papel, de retirar subsídios de alguns setores produtivos, que também não avançariam sem resistências do empresariado.

Como pano de fundo, está também desorganização da própria base de Bolsonaro no Congresso. O presidente abriu uma nova crise com sua bancada parlamentar ao abandonar seu partido para criar uma nova sigla, a Aliança pelo Brasil, enquanto a Câmara decidiu concentrar seus esforços no debate de uma proposta para reverter a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a libertação de Lula e de outros 5.000 presos.

Rodrigo Maia, o presidente da Câmara de fato tem coordenado a aprovação das pautas econômicas no Legislativo, não comprou o discurso de Guedes pelo preço de face: "Se a gente está preocupado com a insatisfação da sociedade, a gente não vai resolver o problema apenas criticando o discurso do ex-presidente Lula. Foi muito radical, propondo que alguém possa falar de AI-5", disse Maia. "A gente tem que dar soluções permanentes. Onde está o problema do Estado? Está na concentração de recursos de impostos e transferências na elite da sociedade brasileira. Do setor público e privado. Nós temos que ter coragem de enfrentar esse debate", defendeu.

Brasil de olho nos vizinhos

No Brasil, ninguém tira os olhos da agitada vizinhança. As manifestações que persistem no Chile −o modelo para as reformas de Guedes− e na Colômbia, os protestos já menos intensos na Bolívia, no Equador e no Peru, a vitória da esquerda peronista na Argentina e até mesmo a recontagem de votos no sempre estável Uruguai preocupam o Governo Bolsonaro e inspiram a oposição. O discurso duro de Lula após sair da prisão só acrescentou pressão a esse coquetel. A Venezuela e sua arraigada crise são um capítulo à parte.

Guedes investiu contra o duro discurso de Lula agora que recuperou a liberdade, embora o ex-presidente não possa disputar eleições. “É irresponsável chamar alguém à rua agora pra fazer quebradeira, pra dizer que tem que tomar o poder. Se você acredita na democracia, espera vencer e ser eleito”, disse o ministro, que se referiu em duas ocasiões ao decreto AI-5 (de dezembro de 1968, o quinto dos Atos Institucionais da ditadura), que, além de fechar todos os Legislativos, suspendeu os habeas corpus, entre outras medidas. Guedes tentou convencer depois a imprensa de que a entrevista era off-the-record, ou seja, não era para ser publicada, e enfatizou que “o Planalto jamais apoiaria um AI-5, isso é inconcebível”.

O Brasil teve sua grande revolução de descontentamento a partir de 2013. Começou como agora nos países vizinhos, de maneira inesperada. O aumento da passagem de ônibus foi a faísca que levou os brasileiros a tomar as ruas contra a corrupção e a classe política. A longo prazo, aquela explosão desaguaria numa polarização política sem precedentes. Veio na esteria a destituição da presidenta Dilma Rousseff e a própria Operação Lava Jato, com a prisão de boa parte dos líderes políticos e empresariais e, indiretamente, a eleição de um presidente como Bolsonaro.


Míriam Leitão: As ideias políticas de Paulo Guedes

Se houver outro AI-5, investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização

O que assusta é o quanto o ministro da Economia desconhece sobre a relação entre economia e política, entre democracia e fatores de risco atualmente avaliados pelos fundos de investimento. Se houver um outro AI-5, ou que nome tenha uma violenta repressão policial militar às liberdades democráticas, os investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização.

O governo Bolsonaro neste momento saiu das palavras autoritárias para as propostas autoritárias. O perigo mudou de patamar. A ideia de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para ação na área rural mais a proposta de que dentro das GLOs haja o “excludente de ilicitude” formam uma mistura perigosa. E intencional, na opinião do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ):

— Isso é um AI-5. Quando a GLO se generaliza e dentro dela está embutida o excludente de ilicitude temos um verdadeiro AI-5.

Em outro momento de sua desastrada e longa fala, Paulo Guedes disse que o presidente não está com medo do ex-presidente Lula. “Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam’bora.”

É impossível ir embora, tocar adiante com essa leveza que o ministro sugere, porque a expressão “excludente de ilicitude” parece um termo técnico e anódino, mas significa licença para matar. No país em que as forças de segurança matam muito e cada vez mais, em que os militares das Forças Armadas respondem apenas à Justiça Militar e em um governo que jamais escondeu sua profunda admiração pelas ditaduras, esse instrumento não é um detalhe burocrático. Pode ser a porta do horror.

O ministro repetiu uma ideia que é recorrente em seu discurso, a de que se há crítica ao governo é porque não se aceitou o resultado da eleição. “Sejam responsáveis, pratiquem a democracia, ou democracia é só quando um lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?” Vários equívocos numa mesma fala. Pela ordem: não existem só dois lados na política, a eleição não é cheque em branco para que o governante possa fazer tudo o que lhe der na telha, a crítica é natural numa democracia, e protestos não significam necessariamente “quebrar a rua”. E se por acaso em alguma futura manifestação houver excessos, como o caso dos black blocs, nos protestos de 2013 e 2015, não é preciso abandonar a democracia. Como ficou provado na época.

O ministro continuou sua fala, sendo mais explícito: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo”. Foi diferente. O AI-5 não foi feito porque o povo estava quebrando tudo. Foi o resultado de uma luta dentro do regime e venceu a ala que queria o endurecimento. “Às favas com os escrúpulos”, disse o então ministro Jarbas Passarinho. Delfim Netto achou que o ato era brando. A frase de Guedes “já não aconteceu uma vez?”, e a evidente ameaça que ela contém, mostra que 51 anos passaram em vão para Paulo Guedes. Ele não entendeu ainda o que havia de errado naquele ato liberticida.

Não viu também a mudança dos tempos. Se fossem repetidos hoje, os crimes do AI-5 afastariam totalmente os melhores investimentos do Brasil. Os novos administradores dos grandes fundos prestam contas aos stakeholders, ou seja, a todos os envolvidos direta e indiretamente em suas captações e escolhas de alocação de recursos.

No governo Bolsonaro já houve manifestações de rua contra e a favor. Normal numa democracia. O ministro gostou muito de uma que apoiava a reforma da Previdência. Houve até atos com presença de ministros do governo em que grupos pediram fechamento do Supremo. O problema nunca foi o que se pede nas ruas, mas o que o governo faz, como reage. Se estimula os ataques às instituições, se reprime com violência desmedida, se usa os atos como pretexto para decisões antidemocráticas.

Alguns tentam isolar a economia, dizendo que ela está melhorando, apesar dos péssimos sinais em outras áreas. Eu nunca acreditei que fosse possível essa separação. O ministro ajudou a esclarecer as coisas. Ao ecoar explicitamente a ameaça feita pelo filho do presidente, removeu o suposto isolamento e uniu a economia à parte sombria do governo que abraçou.


El País: Paulo Guedes repete ameaça de AI-5 e reforça investida radical do Governo Bolsonaro

Num momento em que presidente insiste em aumentar excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, ministro da Economia traz de volta fantasma de decreto da ditadura

No dia 13 de dezembro de 1968, quando o Governo do marechal Costa e Silva baixou o decreto do Ato Institucional de número 5 (AI-5), o ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto justificou seu voto favorável à medida da seguinte forma: "Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico". Nesta segunda-feira, quase 51 anos depois daquela data, em que se institucionalizou a perseguição política e o terror cometido pelo Estado durante a ditadura militar (1964-1968), o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, seguiu linha similar: "Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática", disse ele durante entrevista coletiva em Washington.

Guedes falava sobre os massivos protestos de rua que mergulharam alguns países da América em uma verdadeira convulsão social. Sobretudo o Chile, onde a população vem colocando em xeque o modelo liberal implantado pela ditadura Pinochet (1973-1990) e que é a principal referência do ministro do Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro. Sobre o risco de um possível contágio dessas manifestações em solo brasileiro, ele pedia que a oposição "fosse responsável" e praticasse democracia. "Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa?", questionou. Ao ser perguntado por jornalistas sobre a diminuição dos ritmos das reformas econômicas por medo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Guedes respondeu: "Aparentemente digo que não [Bolsonaro não está com medo do Lula]. Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam'bora".

Guedes depois ponderou que um novo AI-5 "é inconcebível", mesmo "que a esquerda pegue as armas". Mas a menção ao decreto da ditadura em tom de ameaça vem num momento em que a extrema direita brasileira se arma de instrumentos jurídicos para justificar ações radicais contra eventuais manifestações no Brasil. Há menos de um mês, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho zero três do presidente Jair Bolsonaro, afirmou em uma entrevista que, caso os protestos no Chile se repetissem no país, um novo AI-5 poderá ser editado. "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada". Mesmo desmentido na ocasião por seu pai, a radicalização segue no horizonte do Governo. Na última quinta-feira, Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que busca isentar de punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional (formada por policiais de vários Estados) que cometam excessos ou matem durante operações sob o decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nesta segunda deixou claro que sua intenção era também a de reprimir protestos. "Vai tocar fogo em ônibus, pode morrer inocente, vai incendiar bancos, vai invadir ministério, isso aí não é protesto. E se tiver GLO já sabe. Se o Congresso nos der o que a gente está pedindo, esse protesto vai ser simplesmente impedido de ser feito", disse o mandatário quando entrava no Palácio da Alvorada, segundo reportou a Folha.

O projeto enviado ao Congresso também assinado pelos ministros da Defesa, o general Fernando Azevedo Silva, e da Justiça, Sergio Moro. “Não adianta alguém estar muito bem de vida se está preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de celular tem que ir para o pau”, justificou Bolsonaro na quinta-feira. A ampliação do excludente de ilicitude durante operações no âmbito da GLO complementa o Pacote Anticrime enviado por Moro ao Congresso. Seu texto original previa que os agentes que aleguem "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" após matar podem ficar sem nenhuma punição. Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública da Câmara logo após a morte da menina Ágatha Félix, mas Moro fez um apelo na última quinta-feira para que o trecho volte a ser incluído no plenário.

Um Governo com licença para matar

Se o Congresso Nacional aprova a última medida proposta por Bolsonaro, os agentes que estiverem agindo sob ordem direita do Governo Federal ficarão livres para matar. Algo que por si só já vem sendo ventilado como possível retorno de ferramentas autoritárias que estavam disponíveis após o decreto do AI-5. Para o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e especialista em ditadura militar brasileira, o clã Bolsonaro reedita a estratégia do passado de invocar uma suposta ameaça da esquerda. "O campo progressista está derrotado, sem iniciativa, parece que ainda surpreso com a vitória de Bolsonaro. Não vejo nenhuma ameaça de radicalização [por parte da esquerda]", opinou durante entrevista ao EL PAÍS no início do mês.

Em 1968, quando o AI-5 foi editado, tampouco havia uma ameaça real das forças progressistas. "Houve ações armadas, mas poucas. O AI-5 é do final de 68, um ano de manifestações pacíficas, sobretudo do movimento estudantil. Então, também naquela época, essas manifestações foram usadas como pretexto. E agora nem há nada, não está acontecendo coisa nenhuma", reforça o historiador. Contudo, Fico argumenta que, ao contrário dos militares linha-dura do regime, Bolsonaro não apresenta embasamento ideológico. Também não acredita que as Forças Armadas brasileiras estejam interessadas em um novo projeto autoritário de poder. "Hoje, o presidente Bolsonaro não tem nenhuma densidade ideológica, doutrinária, nada disso. Acho que ele chegou à presidência um pouco por acaso, em grande medida porque foi poupado de uma exposição pública mais intensiva graças ao episódio terrível da facada. Por conta disso, conseguiu não ir a nenhum debate", argumentou. "Ele vai sendo movido por essa intuição política, que certamente ele tem, muito pautada pelo autoritarismo, violência e despreparo", completou.

Por ora, as declarações de Guedes geraram uma enxurrada de críticas, inclusive daqueles que se identificam com o liberalismo econômico idealizado pelo ministro. "Não tem 'mas', nem 'porém', nem 'todavia', nem qualquer outra conjunção adversativa. Quando, e se, houver protestos a democracia está plenamente equipada para lidar com eles. Nada justifica autoritarismo; simples assim", afirmou o economista Alexandre Schwartsman no Twitter. "E a máscara do liberalismo caiu. Ninguém vai para governo Bolsonaro por acaso. As ruas estão tranquilas. A cabeça dele não", afirmou a também economista Elena Landau.

Já as declarações de Eduardo Bolsonaro fizeram com que a oposição apresentasse uma queixa-crime no Supremo e instaurasse um processo na Comissão de Ética da Câmara. "Não se pode punir ninguém por achar ou pensar alguma coisa, mas pelo o que ela faz. Outra coisa muita diferente é fazer propaganda de atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Foi o que o deputado fez", explicou Fico. Para ele, Eduardo deve ser punido com a cassação de seu mandato e os ministros do Supremo podem considerar que ele cometeu um crime. "Não se trata de uma simples opinião, mas um crime, que inclusive é previsto na lei de Segurança Nacional que ainda vigora no Brasil desde a época da ditadura. Ela diz claramente que é proibido fazer propaganda de meios capazes de atentar contra o Estado de Direito, as instituições...", explicou.

Fico ainda opina que, como agravante, as declarações de Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado do país, expressam também o pensamento e as vontades do presidente. E que uma punição seria uma oportunidade de as instituições brasileiras de fato se mostrarem como contrapeso às vontades presidenciais. "Se continuarem assim, vai se tornar uma atitude de leniência em relação a essas declarações todas, que agora se desbordaram do simples ponto de vista, da simples opinião, para uma situação claramente criminosa", argumenta. "É um teste importante, porque seria uma forma de afirmação. Mesmo que venha em forma de uma punição branda, uma simples advertência, já seria saudável para o momento atual da política brasileira", completa.

Aliança pelo Brasil, o novo partido da ultradireita

A radicalização promovida por Bolsonaro e membros mais próximos de seu Governo vem na esteira da criação de seu novo partido, o Aliança pelo Brasil, anunciado oficialmente na última quinta-feira. O presidente vem buscando agregar os aliados mais radicais do bolsonarismo e imprimir sua ideologia extremista numa sigla inteiramente controlada por ele — que presidirá a nova legenda — e seu filho, o senador Flávio Bolsonaro — que será o vice. Assinada sua desfiliação do PSL, legenda à qual se uniu para disputar as eleições de 2018 e que está sendo investigada por promover candidaturas laranjas, o presidente busca seguir os passos de outros líderes da extrema direita no mundo, como a francesa Marine Le Pen e o premier húngaro Víktor Orbán. Em comum, as lideranças ultraconservadoras controlam com mão de ferro partidos feitos sob medida para eles. Não pode haver fissuras em um projeto autoritário.

A ideologia de extrema direita do Aliança pelo Brasil começa por sua logomarca e seu número. Na semana passada, Bolsonaro ganhou do artesão Rodrigo Camacho uma placa em que projéteis de vários calibres, entre eles de fuzis, compunham o nome da legenda. Momentos depois do ato de lançamento, que aconteceu em Brasília, o presidente anunciou por meio de uma live no Facebook que o número da sigla na urna será o 38. Enquanto seus partidários celebram a coincidência com o revólver de calibre 38, Bolsonaro garantiu que se devia ao fato de que ele é o 38º presidente da República. Ainda assim, a defesa do armamentismo é uma de suas prioridades: "O partido se compromete a lutar incansavelmente até que todos os brasileiros possam ter plenamente garantido o seu direito inalienável de possuir e portar armas para a sua defesa e dos seus", disse a advogada Karina Kufa, ao ler o programa do novo partido durante o ato de lançamento, na última quinta. Ainda é precisa colher quase 500.000 assinaturas em ao menos nove unidades federativas para ter sua criação chancelada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

As pessoas mais próximas ao presidente, e que devem migrar do PSL para o Aliança pelo Brasil, vêm demonstrando, semana após semana, fidelidade ao seu estilo. Na semana em que foi comemorado, no dia 20, o Dia da Consciência Negra, os deputados federais Daniel Silveira — o mesmo rasgou a placa de Marielle Franco durante ato de campanha no ano passado — e coronel Tadeu se voltaram contra uma exposição na Câmara dos Deputados sobre o data. Após uma placa contra o genocídio da população negra ter sido quebrada por Tadeu, Silveira, em uma fala claramente racista, afirmou que negros morrem mais porque são maioria portando armas e cometendo crimes. "Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio de Janeiro as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado", afirmou.

Em claro contraponto, o presidente da Casa, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), condenou a atitude dos parlamentares bolsonaristas e ordenou que a exposição fosse restabelecida. Nessa mesma linha atuou prontamente o deputado estadual de São Paulo Cauê Macris (PSDB), que proibiu que também na última semana que ocorresse na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo uma homenagem ao ditador Augusto Pinochet, promovida pelo deputado Frederico D'Ávila (PSL).

O historiador Carlos Fico acredita que o grau de virulência e radicalismo promovidos pelo clã Bolsonaro podem ser uma estratégia em decorrência de algum receio ou medo. "Provavelmente dessas investigações que os associam a milicianos ou a corrupção de verbas obtidas como parlamentares. Flávio Bolsonaro está envolvido com acusações de corrupção, e agora houve essa coisa nebulosa do Caso Marielle Franco. Então, é um momento crítico para a família Bolsonaro e para o presidente", explica Fico, que também cita alguns fracassos, como a estratégia falida de elevar Eduardo Bolsonaro ao posto de embaixador brasileiro nos Estados Unidos. "É tudo muito confuso, de modo que o pior quadro que a gente pode ter é de políticos autoritários acuados e com medo. Eles reagem dessa maneira autoritária e violenta. Mas não é surpreendente, vai muito de acordo com o próprio pensamento de muitos anos".


Ribamar Oliveira: Receita atípica bate recorde neste ano

Os leilões de petróleo salvaram o governo mais uma vez

A União vai registrar, neste ano, um novo recorde. A receita atípica ou não recorrente (aquela que não se repete nos anos seguintes) será a maior da história e ficará próxima de R$ 100 bilhões. A arrecadação obtida com os leilões de petróleo, principalmente, salvou o governo mais uma vez, compensando com sobras a queda da receita com tributos em relação ao que estava previsto no Orçamento.

Mesmo com toda a arrecadação extra, o governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) deverá fechar um ano com déficit primário pouco abaixo de R$ 80 bilhões, de acordo com previsão do ministro da Economia, Paulo Guedes. Isso corresponde a mais de 1% do Produto Interno Bruto (PIB), o que é um “buraco” considerável, mostrando que um superávit primário, mesmo que pequeno, ainda está longe de ser obtido.

A receita atípica recorde ajudou o governo não só a melhorar o resultado primário deste ano, como também permitiu descontingenciamento das dotações orçamentárias, que estava sufocando os ministérios. Neste ano, o corte de verbas foi provocado pela frustração das receitas tributárias, e não pelo teto de gastos. Assim, as receitas não recorrentes ajudaram o governo a sair do aperto.

Somente a receita que será obtida pela União com as concessões atingirá R$ 92,6 bilhões neste ano, de acordo com o relatório extemporâneo de avaliação de receitas e despesas de novembro, divulgado na semana passada. Deste total, R$ 83,9 bilhões foram obtidos com os leilões do excedente de petróleo dos campos da cessão onerosa, com a 16ª rodada de concessões e com a 6ª rodada de partilha de produção. Mesmo com a frustração que houve com o leilão da cessão onerosa.

É importante observar que este será o maior valor anual obtido com a concessão de serviço público já registrado pelo Tesouro Nacional. Em 2014, por exemplo, a receita com este item foi de apenas R$ 7,9 bilhões. No ano passado, ela ficou em R$ 21,9 bilhões. Se o valor de R$ 92,6 bilhões previsto para este ano se confirmar, será um pouco mais de quatro vezes a cifra obtida em 2018.

O resultado primário só não será melhor porque o governo federal vai usar parte do que arrecadou com o leilão do excedente de petróleo da cessão onerosa para compensar a Petrobras, no âmbito do acordo que fez com a empresa em 2010. Além disso, decidiu destinar 33% do valor líquido obtido (depois de descontado o pagamento à Petrobras) para Estados e municípios. A União ficará com R$ 23,7 bilhões.

Houve receita atípica expressiva também nos tributos federais. De janeiro a setembro (o dado de outubro será divulgado nos próximos dias), a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) registrou pagamentos atípicos de Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de R$ 13 bilhões.

Em fevereiro, os recolhimentos extraordinários por diversas empresas totalizaram R$ 4,6 bilhões, de acordo com dados da SRFB. Em julho, o valor foi de R$ 3,2 bilhões e de R$ 5,2 bilhões em agosto. A SRF não revelou as razões desses pagamentos atípicos.

O fato é que, sem a receita atípica do IRPJ/CSLL, provavelmente não haveria crescimento real da arrecadação dos tributos administrados pela Receita Federal neste ano ou ele seria muito pequeno. Considerando a receita dos programas de regularização tributária e os parcelamentos de dívida, a receita não recorrente neste ano foi R$ 4 bilhões superior à registrada em 2018 até agora.

No montante das receitas não recorrentes, não foi considerada a arrecadação com dividendos das empresas estatais federais repassados ao Tesouro. Neste ano, o governo mudou a política de dividendos dos bancos estatais (Caixa e BNDES), aumentando o percentual do lucro a ser distribuído e a periodicidade. Com isso, a previsão da receita com dividendos passou de R$ 7,5 bilhões na lei orçamentária para R$ 16 bilhões no relatório de avaliação de receita e despesas do quarto bimestre. Em 2018, a receita foi de R$ 7,7 bilhões.

O governo conseguiu, até agora, segurar o crescimento das despesas da União. De janeiro a setembro (último dado disponível), a despesa primária total (não considera o pagamento dos juros das dívidas) caiu 1,1%, em termos reais, na comparação com o mesmo período de 2018, mesmo com o aumento real dos gastos com benefícios previdenciários, com benefícios de prestação continuada e com pessoal. Infelizmente, os investimentos continuaram sendo cortados.

Por causa do elevado montante da receita atípica, o resultado primário deste ano não é um bom indicador para avaliar a situação fiscal da União.

Orçamento 2020
A discussão no Congresso Nacional em torno do Orçamento de 2020 está paralisada à espera do envio, pelo governo, de uma mensagem modificativa da proposta inicial. O Ministério da Economia chegou a informar que ela seria divulgada na segunda-feira, mas o anúncio foi cancelado sem maiores explicações. “Sem a mensagem, não consigo fazer o meu parecer”, disse ao Valor o relator da proposta, deputado Domingos Neto (PSD-CE). Não há prazo para o envio e o Congresso deverá encerrar os seus trabalhos até o dia 20 de dezembro.


Míriam Leitão: O esforço de fato e a promessa irreal

Na área fiscal, há boas notícias. Governo evitou relaxar a meta de déficit primário e terá o melhor resultado em cinco anos nas contas públicas

O melhor resultado primário em cinco anos é para se comemorar. E há mais notícia boa: o BNDES vai pagar R$ 40 bilhões da dívida que tem junto ao governo e isso será usado para abater dívida pública. “Será 0,4% do PIB de redução de dívida”, diz um integrante da equipe econômica. O resultado, contudo, mostra também alguns dos defeitos da maneira do Brasil de gastar.

Não apenas do governo federal. Imagine, por exemplo, o Funpen, um fundo de segurança pública que dá dinheiro a fundo perdido aos estados que queiram construir presídios. Todo ano sobra dinheiro, e o Brasil tem presídios dantescos.

Os governadores não querem construir, mesmo de graça, porque isso elevará os gastos correntes dos anos e décadas seguintes na manutenção do presídio.

Há dinheiro que não é usado porque o serviço não aconteceu por falha de gestão ou é investimento que o governante não quis executar. O descontingenciamento no fim do ano acaba na verdade virando corte porque o que não foi feito não tem mais tempo hábil.

Na educação, uma bolsa científica não aprovada não poderá ser dada no fim do ano quando se descontingenciou. Aliás, a maior parte dos gastos na educação que foram congelados não pode ser realizado quando o ano letivo está no fim.

Há o risco ainda da escolha ideológica para impedir uma ação do Estado, usando como pretexto a penúria fiscal. Isso aconteceu, por exemplo, na área ambiental. O governo prometeu conter a fiscalização. O ministro paralisou até o Fundo Amazônia que não representa sequer despesa do governo.

Na área fiscal, há notícia boa. É preciso separar os avanços dos defeitos da gestão pública que podem estar misturados neste resultado. O primeiro avanço é que o ministro Paulo Guedes, pressionado no começo do ano para aumentar a meta, ou seja, abrir mais o buraco das contas públicos, decidiu manter a mesma meta, apesar da frustração do crescimento e, por consequência, da receita.

É verdade que Guedes acabou ajudando esse clima que subestima o resultado porque prometeu zerar o déficit em um ano. Assim, parece pouco tê-lo reduzido em mais de R$ 50 bilhões. Não apenas manteve a meta, como correu atrás para diminuir o déficit. E conseguiu.

O déficit não seria mesmo zerado. Era promessa vã. Parte do resultado é derivado de receitas extraordinárias, que acontecem uma vez só. O programa do governo de privatização ficou parado, mas as estatais venderam ativos. A venda da TAG pela Petrobras, por exemplo, gerou resultados concretos. Não haverá outra TAG para vender. Por isso é chamada de receita extraordinária. É uma estratégia usada por vários governos, mas não resolve o problema estrutural. O governo também pediu antecipação de dividendos, exatamente como foi feito no governo Dilma. É receita, mas ela entraria no ano que vem e entra logo este ano.

O maior problema é o empoçamento. Ele melhora o número do déficit, porém é resultado da incompetência governamental. Como explica um alto servidor público:

—É dinheiro liberado para os ministérios mas que por diversos motivos eles não conseguem gastar. Isso acontece até na despesa obrigatória da saúde. Mesmo sendo obrigatório, o gasto só pode ser pago se o serviço for efetivamente entregue. Nem todo serviço consegue ser executado no ano. O dinheiro fica empenhado, mas a despesa não é paga porque o serviço não ocorreu.

A queda do déficit prevista fará o país respirar melhor neste fim de ano. É notícia boa. Mas permanece, em quem acompanha a luta pela reorganização das contas públicas — de dentro e de fora do governo —, a dúvida sobre se será possível reduzir despesas de forma estrutural para cumprir o teto de gastos.

Depois de três anos de teto, a despesa primária do governo caiu de 19,9% para 19,7%. O projeto era cortar de 3% a 4% do PIB da despesa para voltar a ter superávit primário. Na hora de reduzir despesas, contudo, é preciso ter mais sabedoria e noção de prioridade, para não escolher cortes que tenham mais efeitos colaterais negativos do que benefícios.

Em 2018, o déficit ficou também abaixo do teto permitido. É preciso mais do que compressão de despesa e entrada de receitas extraordinárias para enfrentar o grave problema do déficit público. Em 2020, o Brasil estará no sétimo ano de contas primárias no vermelho.


Ranier Bragon: A revolução liberal no lombo dos trabalhadores

Taxar desempregados é a última dos que só querem botar mais pão na sua mesa

“Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo.” A lapidar frase do ministro Paulo Guedes, dada em entrevista à Folha, certamente merece estampar a fachada do memorial que ainda há de ser erguido em homenagem a esses bravos homens que paulatinamente desentulham a legislação trabalhista brasileira com o único intuito de colocar mais pão na mesa do trabalhador.

Há três anos e meio, desde que o centro-esquerdista —segundo Guedes— Michel Temer (MDB) assumiu, empresários têm obtido seguidas vitórias, todas embaladas pelo discurso de que, livres das amarras da caquética CLT, ampliarão investimentos e contratarão a torto e a direito.

A reforma trabalhista de Temer foi anunciada como o bilhete de entrada no éden. Curiosamente —fenômeno semelhante se deu com a atual reforma da Previdência—, algum tempo depois os bravos lembraram-se de dizer que a coisa, por si só, não faria milagre. Se nada ocorreu como o anunciado é que não se fez tudo aquilo que deveria ter sido feito.

Agora o louvado time de Guedes propõe taxar desempregados. Tudo, claro, em defesa dos próprios desempregados, que só não são mais de 12,5 milhões de pessoas porque a informalidade bate recorde.
Gente como Julio Cezar Reis, ouvido pelo jornal Agora, em julho, cuja rotina, incluindo fins de semana, consistia em carregar a bicicleta de 15 kg por 80 degraus, pedalar por 12 km até a avenida Paulista para entregar comida pelo Uber Eats, Rappi e iFood. A tarefa, sem direitos trabalhistas, lhe renderia algo próximo ao salário mínimo ao mês. Tivesse ele a sorte de ter Guedes em sua infância, talvez já fosse, como os ricos, um sábio gestor de seus bastos recursos.

Carteira Verde e Amarela, política de extermínio de sindicatos, de achatamento do salário mínimo, a revolução liberal no lombo dos trabalhadores segue encantando aqueles para quem nosso progresso depende apenas da evolução do Ibovespa.