Paulo Guedes
Zeina Latif: O carnaval acabou
Passada a aprovação da Previdência, pouco se avançou na agenda econômica
O carnaval terminou antes do esperado para Paulo Guedes. Bolsonaro cobra do ministro o prometido crescimento econômico, não sem alguma razão. As promessas foram muitas e faltaram alertas sobre a fragilidade do País, o que vem desgastando o ministro.
Na campanha eleitoral, o candidato a formulador da política econômica exibia desenvoltura no “palanque”. Guedes exagerou nas promessas, rejeitando a ponderação usual de ministros da área econômica e descuidando do rigor técnico necessário para a boa prática da profissão de economista. Um exemplo foram as estimativas de receita com privatizações e venda de imóveis da União, totalizando cada uma R$ 1 trilhão. Pelo seu discurso, vender imóveis, privatizar, abrir a economia e eliminar os rombos fiscais eram tarefas fáceis; não foram feitas antes devido apenas à inépcia ou a visões equivocadas dos governos anteriores. Minimizou as dificuldades técnicas e políticas para avançar em temas espinhosos que demandam a construção de consensos e capacidade de enfrentamento de grupos organizados.
Não foi muito diferente no governo de transição, quando se esperava a “descida do palanque”. Pouco se avançou no detalhamento do programa da pasta. Vale citar que não se partia do zero, tendo em vista o importante legado do governo Temer. Alguns temas anunciados geraram ruídos, mas nada avançaram, como as medidas na área tributária e no Sistema S.
A grande notícia de 2019, a reforma da Previdência melhor que a esperada, contribuindo para os cortes da taxa de juros pelo Banco Central, foi inicialmente apresentada como propulsora de crescimento econômico robusto, algo entre 3% e 3,5% em 2019.
Subestimou-se a gravidade da crise fiscal e a fragilidade estrutural da economia. Foram criadas falsas expectativas.
Passada a aprovação da reformada Previdência na Câmara, pouco se avançou na agenda econômica, diferentemente do prometido. Foi um semestre praticamente perdido.
Bolsonaro não foi devidamente alertado sobre os desafios da gestão fiscal, mesmo no curto prazo, e a necessidade de mais medidas fiscais estruturantes. Em agosto último, diante das reclamações dos ministérios, o presidente compreendeu que o dinheiro acabou e não havia “comida para dar para o recruta”. Os alertas deveriam ter partido do ministro da Economia, e não de terceiros.
Apesar das promessas exageradas ou até impossíveis, é injusto colocar toda a responsabilidade pelo crescimento em Guedes. Não só porque seu trabalho tem méritos, como o de evitar mudanças na regra do teto de gastos, mas principalmente porque o chefe da pasta da Economia pode muito menos do que se imagina. As mais importantes medidas econômicas dependem de interlocução com o Congresso e de coordenação interna do governo, além do diálogo com o Judiciário.
Como avançar com as privatizações, por exemplo, se o presidente limita sobremaneira seu escopo, alguns ministros se posicionam contra e a relação com o Congresso está precocemente desgastada, dificultando até a privatização mais urgente, a da Eletrobras?
Temas ligados a educação, meio ambiente e arcabouço jurídico, que assustam os investidores e freiam o crescimento, não dependem do ministro. Falta agenda de governo e liderança do presidente.
Além disso, os ruídos causados por Bolsonaro e seu entorno cobram um preço elevado: limitam a melhora da confiança de empresários e investidores, prejudicam o avanço das reformas para a volta do crescimento e desviam as instituições do seu papel. A cada energia gasta para discutir as trapalhadas do governo e o acinte contra instituições, menos resta à discussão séria e urgente de políticas públicas.
Bolsonaro já entendeu que há algo errado na economia. Não compreende, porém, a importância de reformas estruturais e de sua liderança no processo de aprovação. Improvável o presidente mudar seu estilo. Caberá, pois, a Guedes, sem ilusionismos e com perseverança, reconquistar a confiança na equipe econômica e manter a agenda econômica nos trilhos.
* Consultora e doutora em economia pela USP
Monica De Bolle: Alegoria sem adornos
Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior
Há poucos dias do Carnaval e pensando em alegorias e desfiles mostrando o que há de melhor e pior no Brasil, retomo tema abordado nesse espaço há 4 meses. Trata-se da alegoria do túnel formulada por Albert O. Hirschman nos anos 70 para descrever as tensões sociais provenientes dos processos de desenvolvimento e mudanças na mobilidade social. Convido os leitores interessados a ler a coluna “Dentro do túnel”, publicada em 20 de novembro de 2019. Nele discuti como fileiras de engarrafamentos dentro de um túnel em que algumas se moviam mais rapidamente do que outras – a alegoria de Hirschman para a mobilidade social e sua tensões – davam uma boa dimensão do que acontece nas sociedades quando parte da população progride, enquanto parte permanece estagnada.
O efeito túnel prevê, entre outras coisas, que a população tende ao otimismo quando percebe o progresso de algum segmento da sociedade, ainda que as condições econômicas em geral não sejam favoráveis – ou percebidas como tal. Tal efeito é mensurável em pesquisas de opinião. Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, e em 2018 especialmente, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior. Contudo, quase 60% afirmam que sua situação econômica pessoal e familiar haverá de melhorar. Embora esses dados se refiram a 2018, em todos os anos é possível observar algo semelhante. Não se trata de um comportamento irracional, mas de um reflexo da previsão de Hirschman de que se alguma parcela da população está se beneficiando mais rapidamente do que outras, em algum momento todos haverão de colher os frutos dessa melhoria. Ou seja, os atores econômicos – trabalhadores, empresários, classe média, classe alta, ou os mais pobres – fazem julgamentos a respeito de sua situação pessoal de modo relativo, não absoluto. Essa simples observação é fonte de enormes tensões sociais esteja o País crescendo muito ou relativamente pouco.
Tomemos os anos Lula como exemplo. Sem querer desmerecer de forma alguma a corrupção espantosa com a qual seu partido, e outras agremiações partidárias se envolveram durante os seus governos, os mandatos consecutivos de Lula tentaram atender dois anseios em aparente contradição: agradar os empresários por meio do crédito farto e barato, além das práticas clientelistas de praxe e da corrupção em nome dos “amigos”, e dar aos trabalhadores e às pessoas de renda baixa acesso a diversos bens e serviços dos quais antes não podiam compartilhar. Ao tentar conciliar os desejos desses dois segmentos da sociedade em constante tensão, o Estado teve crescentemente de adaptar suas políticas desaguando na farra do crédito público e na gastança que marcaram os anos Dilma – Lula teve a sorte de mascarar políticas inconciliáveis em tese devido ao ambiente externo ineditamente favorável. A corrupção, que muitos ainda entendem como um projeto de poder – não que não o tenha sido – foi também a forma encontrada de agradar gregos e troianos mantendo a ilusão de que todos se moviam dentro do túnel brasileiro.
Velocidade
Contudo, os movimentos se davam em velocidades diferentes, sobretudo nos anos Dilma quando a bonança externa acabou. Ressentimentos se agravaram e tensões começaram a borbulhar, como vimos em 2013. O desfecho fica para a interpretação de cada um. No entanto, alguns fatos são inescapáveis: a política da gastança para agradar empresários e trabalhadores desaguou numa imensa crise fiscal e no desmonte de alguns pilares básicos da economia. Abalado também pela corrupção generalizada, o País não resistiu e caiu em profunda recessão entre 2015 e 2016. Anos e mais anos tentando manter todos em movimento dentro do túnel sem dar a devida atenção às suas saídas – a melhoria da educação, da infraestrutura do País, entre outras medidas – foram responsáveis pela perda de dinamismo da economia e pela situação atual, em que difícil é achar um argumento razoável para defender a tese de que o crescimento brasileiro vai pegar no tranco, é só esperar as reformas.
As tensões descritas e o profundo descontentamento também ajudam a entender esse Brasil do ódio que vem surgindo há algum tempo. Há ressentimentos velados e explícitos contra aqueles que conquistaram alguns ganhos sociais – sim, penso na fala de Paulo Guedes sobre as empregadas domésticas. Na mesma linha, não existe um senso de urgência suficiente, seja no governo ou no empresariado que o apoia de forma mais fervorosa – não falo de todos os empresários, evidentemente – de que o Brasil não crescerá sem que haja uma retomada da mobilidade social que testemunhamos recentemente. Essa é a alegoria sem adornos, as alas que se movimentam de modo quase catatônico pelo túnel escuro em que se transformou o Brasil.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Míriam Leitão: Câmbio em seu devido lugar
O ministro Paulo Guedes disse que a alta do dólar é boa para todo mundo. A frase foi soterrada por outra ainda pior que acabou ganhando destaque. Mas do ponto de vista técnico, sobre câmbio ele também estava errado. Não há qualquer evidência de que o real desvalorizado produza crescimento. Ele subiu por exemplo em 2015, de R$ 2,65 para R$ 3,90 e a economia mergulhou na recessão. É um preço que tem impacto sobre vários outros e o ideal é que ministros não estimulem especulações e que o Banco Central faça intervenções mínimas, apenas por razões técnicas e pontuais.
A declaração do ministro da Economia provocou reação imediata, por ter revelado preconceito social. “Empregada doméstica estava indo para a Disneylândia. Uma festa danada. Peraí”. O que aparece nessa fala infeliz é tão discriminatório que evidentemente provocou polêmica. Um ministro da Economia deveria querer a prosperidade do país como um todo, um liberal deveria se preocupar menos com as escolhas individuais, um economista deveria olhar os números que não confirmam sua tese.
O preço mais difícil de entender — e prever — é o câmbio. Baixo, não nos torna ricos, alto, não garante crescimento. Quando está sobrevalorizado cria distorções, se for excessivamente desvalorizado, também.
Os exportadores sempre querem uma cotação mais alta porque isso aumenta seus ganhos na exportação e ameniza os efeitos da falta de competitividade da indústria brasileira. Muitos que produzem apenas para o mercado interno também gostam do dólar alto que encarece o produto importado com o qual vão competir. O problema é que a moeda americana saiu de R$ 1,80 em 2012 para R$ 4,30 agora e não houve crescimento sustentado das exportações do setor industrial. O Brasil precisa resolver problemas estruturais que reduzem competitividade dos manufaturados, como inovação e logística.
O salto do dólar aumenta alguns preços como medicamentos, combustíveis, certos alimentos como pão, bens importados como celulares. Alguns produtos e matérias-primas, mesmo sendo exportados pelo Brasil, acabam subindo porque há uma correlação entre preços internos e externos. O aço, por exemplo. Os investimentos também ficam mais caros. Dos US$ 16 bilhões importados pelo país em janeiro, 32% foram “insumos industriais elaborados”, o maior item da pauta. Logo depois, vêm os bens de capital, com 22%. Peças e acessórios, equipamentos de transporte são mais 16%. Esses dados mostram como o câmbio pode ter impacto sobre os custos das indústrias e dos investimentos no país. Os bens de consumo, como eletrônicos, são 13%. Quando ele está alto, empresas que têm dívidas externas passam a ter um custo maior. A Petrobras é uma delas.
O gráfico mostra o PIB acumulado em 12 meses, trimestre por trimestre, e compara com o dólar no final de cada trimestre. O maior período de crescimento do PIB é o que tem a cotação mais baixa. Quando há o pior período do PIB, o real já havia se desvalorizado em quase 100%.
O dólar não deve ser manipulado nem para estimular o consumo nem para contê-lo. Não deve ser elevado para empurrar as exportações e proteger a indústria local, nem deve ser artificialmente baixo para segurar a inflação. Isso é o que o Brasil aprendeu com erros de sua história recente. Funciona melhor quando o câmbio é flutuante, e o Banco Central não quer defender uma cotação, alta ou baixa. E também é melhor quando o ministro da economia não explicita uma preferência, como fez o ministro Paulo Guedes, ao dizer que o dólar alto é “bom pra todo mundo”. O BC teve que entrar no mercado para conter o movimento especulativo que se formou por causa da declaração.
Há erro técnico no que ele falou sobre dólar. Mas isso é o de menos. Não é o primeiro, não será o último ministro a errar nesse assunto. O pior é a visão revelada de que um grupo de trabalhadores, pela natureza do seu trabalho, não deveria usufruir de certos prazeres. “Peraí” ministro. Como já disse aqui, neste espaço, dias atrás, Paulo Guedes deveria pensar antes de falar.
Adriana Fernandes: Meta fiscal vai mudar
Governadores e prefeitos pressionam para elevar limite de empréstimos em 2020
O Ministério da Economia vai propor ao Congresso Nacional uma mudança na meta fiscal dos Estados e municípios deste ano. A alteração será necessária para permitir que governadores e prefeitos tenham o mesmo limite do ano passado para contrair empréstimos nos bancos e garantir dinheiro novo no caixa.
A meta fiscal para Estados e municípios de 2020 foi fixada em um superávit de R$ 9 bilhões. Esse esforço fiscal deve cair para próximo de zero para acomodar os empréstimos que serão feitos esse ano. É que, com dinheiro em caixa, os governadores e prefeitos tendem a gastar mais diminuindo o esforço fiscal.
Com a mudança, a meta de déficit de R$ 118,8 bilhões para todo o setor público (União, Estados e municípios) vai piorar. Mas a equipe econômica quer garantir que o limite para a contratação de novos empréstimos com e sem aval da União seja o mesmo do ano passado, entre R$ 20 bilhões e R$ 22,5 bilhões. Nem mais nem menos.
A coluna apurou que a meta de superávit de R$ 9 bilhões dos governos regionais não comporta esse limite. Ela teria que cair para menos de 50% em 2020 para repetir o espaço de empréstimos do ano passado. O argumento da área econômica apresentado aos presidentes da Câmara e Senado para propor a mudança é que, quando a meta foi fixada, no ano passado, havia uma perspectiva de um volume menor de empréstimos.
A expectativa até então era que o chamado Plano Mansueto de socorro financeiro aos Estados e municípios tivesse sido aprovado, permitindo um volume maior de empréstimos no ano passado. O que se esperava era que a demanda deste ano ficasse menor. Como o projeto não foi aprovado, a demanda continua represada e o diagnóstico é que não dá para ter uma queda abrupta já que os planos foram traçados.
Em ano de eleições, a equipe econômica quer evitar que o limite seja expandido para um valor acima do que vem sendo praticado nos últimos anos, justamente no período eleitoral.
Todos os anos o governo estipula um limite para Estados e municípios contraírem empréstimos no setor financeiro. Esse limite é dado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Como esse é um ano eleitoral, governadores e prefeitos só têm até três meses da eleição (início de julho) para contrair os empréstimos e fazer os investimentos. Para 2020, o valor não foi fixado ainda. E é isso que está em jogo.
O governo está fechando os cálculos para calibrar a nova meta e enviar projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que contém as metas fiscais. A negociação em torno do espaço fiscal para os empréstimos dos governos regionais está atrelada ao andamento do acordo do governo com o Congresso para devolver ao Executivo o controle sobre R$ 11 bilhões em despesas discricionárias (que incluem investimentos e custeio da máquina) antes carimbadas pelos parlamentares. Não se sabe como os parlamentares vão reagir. Muitos não querem que adversários políticos sejam beneficiados com o dinheiro.
O projeto de lei terá um dispositivo que vai permitir a mudança nas regras do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para que Minas e Rio Grande do Sul possam entrar com um prazo maior de 10 anos. Hoje, o regime tem prazo de três anos, prorrogáveis por mais três. O Rio de Janeiro, o primeiro a aderir ao RRF, também será beneficiado com o alongamento. Essa alteração tem de ser feita porque a LDO exige que o governo compense receitas, mesmo financeiras, que deixarão de entrar no caixa do governo com o alongamento do prazo de pagamento da dívida.
A ideia do relator do projeto, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), é criar um mecanismo para agilizar a captação dos empréstimos por Estados em melhores condições financeiras, uma espécie de fast track com menos burocracia.
Como mostrou o Estado, há uma pressão dos governadores para aumentar o limite dos empréstimos em 2020 neste ano de eleições. Todo cuidado é pouco com esse limite e com a proposta de mudança da meta para que as finanças dos Estados não piorem. No passado, a liberação desenfreada dos empréstimos com aval da União promoveu gastos com aumentos salariais e outras benesses dos governadores. Foi isso que contribuiu para o desarranjo financeiro que o setor público brasileiro vive hoje. Atenção máxima agora é mais do que necessária.
* É jornalista
Julianna Sofia: Chama o síndico
Com Guedes fora da casinha, reformas e medidas econômicas correm risco.
As falas destrambelhadas do ministro Paulo Guedes (Economia) parecem traços de uma irritação enrustida pelas dificuldades de levar a cabo seus planos. No grito, na prensa, na declaração estapafúrdia, uma forma de fazer o Palácio do Planalto, o Congresso, a sociedade compreenderem a necessidade premente de efetivar suas propostas.
A reforma administrativa da equipe econômica, depois de arestas aparadas e vários reparos a pedido de Jair Bolsonaro, jaz pronta na mesa do presidente. Nem por isso de lá saiu —graças a pressões das alas política e militar do Planalto e à má vontade presidencial com a mudança considerada impopular. Já estava travada quando o "Posto Ipiranga" decidiu chamar servidores públicos de parasitas. Com a manifestação, quase degringolou, e agora Bolsonaro afirma que, se não houver "marola", será encaminhada na próxima semana.
A impaciência de Guedes para lidar com contrariedades e seus espasmos sincericidas provocam danos. Com o PIB rodando abaixo das expectativas, ninguém precisa de um ministro da Economia fora da casinha a fazer companhia ao núcleo ideológico radical do governo, distribuindo munição gratuita a opositores da agenda reformista.
Enquanto Guedes falava a uma plateia esvaziada barbaridades sobre o câmbio e a "festa danada" de empregadas domésticas na Disney com o real valorizado, o governo não conseguia cumprir um acordo para impedir que o Legislativo abocanhe um naco de R$ 30 bilhões do Orçamento. Sem um gerentão, o Executivo não conseguiu elaborar a tempo um projeto de lei para honrar o acerto.
O resultado de muita parolagem e pouca articulação também põe em risco uma das PECs do trio de propostas do ajuste fiscal, em tramitação no Senado. A equipe de Guedes comeu mosca, e uma manobra de aliados pode fazer com que a medida para extinção de 200 fundos públicos permita um furo de R$ 32 bilhões no teto de gastos.
Com o ministro a cometer asneiras, alguém chama o síndico?
Eliane Cantanhêde: De Guedes para Lula
Ministro devolveu a Lula e ao PT a marca social e o slogan do rico contra o pobre
Durante anos, o PT e o próprio ex-presidente Lula insistiram no que parecia uma fantasia, ou peça de marketing: a de que “as elites” rejeitavam Lula porque era um nordestino retirante e nunca suportaram que pobres viajassem lado a lado com eles nos aviões. Isso sempre soou bobo, ridículo, populista. Desde a quinta-feira, contudo, passou a fazer sentido, a ser levado a sério.
Em geral correto no conteúdo e desastrado na forma, o ministro Paulo Guedes acaba de dar de bandeja uma superbandeira política e eleitoral para o PT e Lula. “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada. Peraí!”, disse o ministro, que acaba de passar férias em... Miami!
Assim como há no Brasil o reino da piada pronta, Guedes introduz agora o slogan pronto de campanha. Só que da oposição, do adversário. Já dá para ouvir Lula e candidatos petistas entoando País afora: “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada Peraí!”. Nenhum marqueteiro maquiavélico faria melhor.
Para piorar as coisas para o bolsonarismo e melhorar para o petismo, a declaração foi exatamente na véspera de Lula se encontrar com o papa Francisco no Vaticano, por uma hora e em lugar reservado, para, segundo Lula, discutirem um “mundo mais justo e mais fraterno” e “a experiência brasileira no combate à miséria”.
“Justiça”, “fraternidade”, “combate à miséria” remetem às origens e aos propósitos anunciados na criação do PT, há 40 anos – ou seriam séculos? E, mais do que isso, marcam um contraponto poderoso ao presidente Jair Bolsonaro e ao bolsonarismo, que investem em “família”, “empresários”, “armas” e “combate à corrupção”.
O maior troféu de Lula, porém, foi a foto com o papa. O presidente mais popular da história recente brasileira e o papa mais humanista, inclusivo e generoso em décadas. Às favas os fatos, ora, os fatos: a prisão, a condenação em primeira e segunda instâncias, os processos, o envolvimento de filhos, as relações promíscuas entre público e privado, o favorecimento pessoal. E os erros do PT, sem autocrítica.
Com o foco obviamente no governo, como sempre é, essas coisas vão perdendo interesse e espaço para manifestações surpreendentes do presidente Bolsonaro, dos ministros da Economia, da Educação, das Relações Exteriores, dos Direitos Humanos. E não são só manifestações, mas, às vezes, também ações que chocam e vão escancarando a real alma do governo.
Nesta semana, Paulo Guedes tinha acabado de pedir desculpas publicamente por chamar os funcionários públicos de “parasitas”, como também de apagar um incêndio criado pelo próprio Bolsonaro. Num rompante populista, o presidente tinha desafiado os governadores: se eles zerassem os impostos sobre combustíveis, a União faria o mesmo. Era uma bravata, praticamente impossível. E lá se foi Guedes acalmar os governadores. Segundo ele, foi só um “mal-entendido”.
Tudo parecia estar se acalmando, mas a guerra continua. Ato contínuo, o governo atacou de novo os governadores, desta vez os nove da Amazônia. Depois de excluir a sociedade civil do Conselho Nacional do Meio Ambiente, limou os governos estaduais do Conselho da Amazônia. Se há uma coisa que Bolsonaro não gosta é de conselhos, contraditório, visões diferentes, debates...
Logo, as empregadas domésticas não estão sozinhas. Fazem parte de uma lista longa, e crescente, de alvos de Bolsonaro e de seu governo: jornalistas, ambientalistas, pesquisadores, professores, estudantes, diplomatas, policiais federais, auditores fiscais, políticos e governadores.
Lula e o PT estão fazendo festa. Eles não acertam uma, mas lucram com os erros absurdos do presidente e seu governo. Basta jogar parado.
Bernardo Mello Franco: Falabella disse tudo sobre Paulo Guedes
A TV brasileira consagrou personagens conhecidos pela aversão aos pobres. As declarações do ministro Paulo Guedes caberiam na boca de um deles
Odete Roitman tinha alergia a pobre. A magnata de “Vale Tudo” detestava o Brasil em geral e os brasileiros pobres em particular. “Essa terra não tem jeito. As pessoas aqui não trabalham, é um povo preguiçoso”, dizia. Para ela, o país podia ser resumido como “uma mistura de raças que não deu certo”.
Bia Falcão dizia que “pobreza pega”. Pega como sarna, como um vírus. Entra pela pele, pela respiração”, garantia. Numa cena de “Belíssima”, a empresária explicou sua receita para circular em áreas populares. “Prendo o ar. Não toco em nada para não me contagiar”. “Não sei como eu não morri”, emendou, depois de narrar uma incursão pelo subúrbio.
Caco Antibes gostava de rir da pobreza. “Pobre é uma coisa triste”, ironizava o trambiqueiro de “Sai de Baixo”. Dizendo-se um “príncipe dinamarquês”, ele fazia piada com tudo o que viesse do povo. “Casamento de pobre é a visão do inferno”, debochava, como se só os ricos tivessem direito a subir ao altar.
Justo Veríssimo era um político sincero. “Odeio pobre. Quanto mais pobre, mais eu odeio”, repetia. Filiado ao Partido Sinceramente Hipócrita, o deputado só se dirigia ao povo na hora de pedir votos. “Eu quero é que pobre se exploda”, bradava, sem medo de chocar o eleitor.
As madames das novelas entraram para a história da TV. Retrataram o pior de certa elite brasileira: o preconceito, o ódio de classe, a aversão à mobilidade social. Foram vilãs perfeitas, interpretadas com maestria por Beatriz Segall e Fernanda Montenegro. Nos humorísticos, Miguel Falabella e Chico Anysio exploraram o lado cômico da demofobia. Suas caricaturas lembravam personagens bem reais, que ainda insistem em povoar o noticiário de Brasília.
Ontem o jornal “Extra” chamou Paulo Guedes de “ministro Caco Antibes”. Ele mereceu a honraria ao comentar que o dólar barato estava levando empregadas domésticas à Disney. “Uma festa danada”, ironizou. Ouvido pela repórter Luiza Barros, Falabella definiu Caco como “um personagem psicótico da ficção”. Em uma frase, o ator disse tudo: “Ser comparado a ele deveria ser uma vergonha para o ministro”.
Bruno Boghossian: No plano de Guedes, pobres só aparecem como detalhes inconvenientes
Insulto a empregadas domésticas reflete visão impiedosa da população de baixa renda
Quando solta alguma declaração absurda, o ministro Paulo Guedes costuma dizer que a frase só parece ruim porque foi retirada de contexto. Colocadas lado a lado, no entanto, essas barbaridades desenham um quadro bem coerente.
O insulto às empregadas domésticas que brotou na explicação de Guedes sobre o valor do dólar foi tão gratuito que só pode ser interpretado como uma manifestação autêntica. Ele traduz a face amarga de um pacote que trata a população pobre como um detalhe inconveniente no meio de planilhas econômicas.
Na defesa de seu grande salto liberal, o ministro acenou com propostas que cruzam a fronteira da crueldade. Primeiro, veio a ideia de mutilar o benefício pago a idosos miseráveis. Depois, chegou a proposta de taxar o seguro-desemprego.
Os projetos refletem uma visão impiedosa das políticas de proteção social. Ao defender a capitalização, Guedes insinuou que o povo de baixa renda não poupa para a aposentadoria porque gasta tudo o que ganha: "Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo".
O ministro chegou ao poder com a missão de implantar sua agenda de redução do peso da máquina estatal. O problema é enxergar os prejuízos enfrentados por parte da população como meros efeitos colaterais.
Guedes argumenta que a economia liberal criará condições para melhorar a vida dos mais pobres. "Não olhe para nós procurando o fim da desigualdade social. Nos dê um tempinho", afirmou, em dezembro.
Os pobres terão que esperar esse tempinho na fila do Bolsa Família, porque o governo não tem dinheiro para cadastrar novos requerentes, e sem aposentadoria, já que o INSS não consegue atender quem precisa.
Guedes, porém, está longe de produzir as vilanias de seu chefe. Quando era deputado, Jair Bolsonaro reclamou que os governos criavam uma "nefasta política de bolsas" e propôs a esterilização da população pobre. Não era só inexperiência. Depois que virou presidente, ele disse que "não se passa fome no Brasil".
Hélio Schwartsman: Guedes é bom?
Num governo funcional, ele talvez já estivesse no olho da rua
Tudo é relativo, de modo que, nos padrões da administração Bolsonaro, o Ministério da Economia desponta como uma ilha de racionalidade. Mas, se elevarmos um pouco a régua e utilizarmos critérios absolutos em vez de relativos, a avaliação de Paulo Guedes e sua equipe se torna bem menos efusiva.
É verdade que, ao longo do último ano, a paisagem econômica mudou para melhor, mas, sem prejuízo de algumas medidas acertadas, muito do desanuviamento se deu sem a participação direta do Executivo.
Parte da recuperação se deve à própria dinâmica dos ciclos econômicos. Embora Venezuelas sejam possíveis, o normal é que, depois de uma crise, venham mesmo dias melhores.
Um fator decisivo para o clima mais favorável foi a aprovação da reforma da Previdência. O Ministério da Economia decerto se esforçou para que ela ocorresse, mas quem preferir descrevê-la como uma obra tocada principalmente pelo Legislativo não estará errado. Houve até ocasiões em que o destempero verbal de Guedes atrapalhou. E ele continua sabotando a si mesmo quando impreca contra servidores públicos e domésticas.
Se voltarmos o olhar para as iniciativas do ministério propriamente ditas, o quadro que emerge é de hesitação e falta de prioridade. Num dia a reforma administrativa é fundamental, no outro já não é. O detalhamento de propostas prometidas para ontem nunca aparece. Agendas possíveis e necessárias como a abertura foram esquecidas. As privatizações, que na fala de campanha gerariam R$ 1 trilhão, andam infinitamente mais modestas.
Num governo funcional, Guedes talvez já estivesse no olho da rua.
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Sobre a campanha difamatória contra a jornalista Patrícia Campos Mello capitaneada por Eduardo Bolsonaro, só posso lamentar que o esgoto tenha chegado ao poder. O consolo é que os Bolsonaros passarão, e o jornalismo profissional bem-feito, do qual Patrícia é uma expoente, provavelmente permanecerá.
Fernando Luiz Abrucio: O desmonte do serviço público
Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania
A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.
Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.
Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.
A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.
Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.
O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.
Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.
Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.
Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.
Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.
A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.
Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.
O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.
A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.
Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.
A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.
Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.
Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Míriam Leitão: As polêmicas de Paulo Guedes
Falas desastradas de Guedes em várias situações, mesmo com o contexto, têm criado resistências às reformas
O ministro da Economia tem uma comunicação desastrada e vai criando polêmicas, pedindo desculpas quando uma frase causa mais estrago e, claro, sempre culpando a imprensa, por “tirar do contexto”. Parasita é nome do filme vencedor do Oscar e da última confusão em que Paulo Guedes se envolveu. Não há contexto que salve o que ele disse, ao se referir aos servidores públicos. Ele falava das reformas, em especial da PEC emergencial, para o ajuste em todos os níveis da federação:
— A notícia que eu quero dar. A primeira grande notícia é a seguinte: o Congresso abraçou as reformas, mesmo. O Pedro Paulo está lá com a PEC emergencial dele na Câmara, ela no início estava focada na União, eu tentei botar prefeitos, governadores, todo mundo no jogo, está aí a cláusula de emergência fiscal, o sujeito aperta o botão, é descentralizado.
Em vez de o governo dar ordem e controlar, não é o governo, nós somos uma federação. Se o prefeito quiser ir para o saco, deixa ele ir para o saco, ele foi eleito. Votaram nele, deixa ele depois fugir da polícia, correr lá da população. O problema é dele, se ele não quiser . Agora, se ele quiser, aperta o botão vermelho: Estado de Emergência Fiscal. Na mesma hora abre a porta do céu pra ele. Entra no programa de privatização, vem dinheiro do BNDES, ganha o direito de não dar aumentos automáticos de salários. O governo está quebrado, gasta 90% da receita toda com salário e é obrigado a dar aumento de salário. O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação. Tem estabilidade de emprego, tem aposentadoria generosa. Tem tudo. O hospedeiro está morrendo e o cara virou um parasita. O dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático. Não dá mais, a população não quer isso: 88% da população brasileira são a favor inclusive de demissão do funcionalismo.
Esse é o contexto. Há a necessidade de reforma administrativa, em todos os níveis de governo. Agora, a fala provocou tanta confusão que o governo pensa em desistir de ter uma proposta própria. O que ele precisa é se comunicar melhor. Naquele dia, ele fez outros estragos. Ainda sobre como funcionaria a PEC emergencial, Guedes deu o seguinte exemplo:
— Prefeito de Quixadá: Não consigo pagar nada à população, os 18 habitantes cercaram a minha casa, estão jogando pedra. Aperta o botão. Pararam os aumentos de salários por um ano e meio a dois. O país cresce 2,5%. Inflação, 4%. Receitas públicas, 7%. Em dois anos, acabou a crise fiscal. Ou seja, se você não fizer nada... Conversando com amigos políticos eu falo assim: se vocês forem para a casa dormir, está tudo certo, consertou tudo. Agora, para produzir uma crise fiscal, vocês têm que voltar e fazer merda sistematicamente. Tem que vir e aprovar. Se trabalhar, periga atrapalhar.
Vários erros numa única fala. Segundo o IBGE, Quixadá, no Ceará, tem 87 mil habitantes, e não 18. Se parar os aumentos de salários, a crise fiscal não acaba. O pior erro que se pode cometer é subestimar a complexidade da crise fiscal no Brasil. E por fim, o ministro ofende os políticos em geral, o que reitera logo depois ao falar de deputados no cargo de ministro:
— Fica meia dúzia de caras querendo se consagrar como ministro, cada um desenha o seu superplano. Eu estava pensando em fazer uma ponte para a lua. O outro queria fazer a transposição do Rio Amazonas para quem sabe desembocar no Pacífico e a gente pode então fazer uma comunicação direta com a China. Cada um pensa o seu negócio que vai torná-lo importante e ele vai virar governador no próximo mandato se a obra for importante. E se parar tudo depois? Problema de quem vier depois.
Em outro momento, ele falou do STF:
— No pacto federativo, desenhamos como um livro. Vamos criar um ritual fiscal. Ter a cumplicidade do TCE, do TCU, criando referências. O STF, que de vez em quando dá um parecer que custa R$ 100 bi. Importante que ele entenda.
Foi por falar assim que Guedes produziu outros atritos: ofendeu a mulher de Macron para confirmar o que Bolsonaro dissera, “ela é feia mesmo”. Em conversa com jornalistas em Washington, disse “não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse ecoando Eduardo Bolsonaro. Em Davos, afirmou que “as pessoas destroem o meio ambiente para comer”. Ele se explica, às vezes pede desculpas, sempre culpa a imprensa. O problema é que os atritos que cria acabam se refletindo na economia.
Luiz Carlos Azedo: Ataque a servidores tira Guedes da negociação da reforma administrativa
Depois de comparar servidores públicos a parasitas, ministro da Economia terá dificuldades para conduzir mudança nas regras do funcionalismo. Futuro da proposta vai depender da iniciativa e da capacidade de coordenação das lideranças no Congresso
Dificilmente a reforma administrativa será aprovada neste ano, se o ministro da Economia, Paulo Guedes, não sair de cena e deixar as negociações a cargo dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Já anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro, a reforma subiu no telhado por causa de uma declaração de Guedes comparando os servidores a parasitas, na Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio, que gerou muitos constrangimentos para os líderes governistas e pôs a oposição na ofensiva, com amplo apoio dos servidores públicos, que se sentiram agredidos. A alternativa será o Congresso formatar a proposta, sem Guedes à frente das negociações.
O ministro queimou a largada por causa da declaração bombástica, além de uma avaliação baluartista: “Acho que é a mais simples de aprovar porque não atinge os direitos atuais. Mas, se começar a turbinar um pouco mais, pode ser diferente”, disse. O eixo da proposta do governo é criar possibilidades de contratação de servidores além do Regime Jurídico Único (RJU), cuja marca é a estabilidade para todo o funcionalismo. Hoje, o funcionário que passa em concurso é contratado e ganha o direito à estabilidade tão logo acaba o estágio probatório, automaticamente.
A reforma foi anunciada pelo presidente Bolsonaro na semana passada, no Palácio do Planalto, de forma improvisada, num encontro com Guedes que não estava programado, mas foi transmitido ao vivo para as redes sociais. O ministro prometeu que o Brasil crescerá, em 2020, o dobro de 2019. O Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos) do ano passado somente será divulgado em março.
Penduricalhos
“O modelo antigo levou à corrupção na política e à estagnação na economia”, disse Guedes. O ministro prometeu diminuir impostos no Brasil, mas somente se as reformas estruturais prosseguirem. “Quando implementamos reformas, o que acontece é isso: com o tempo, os juros vão descendo, e impostos vão começar a cair também”, acrescentou. O ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, e o superintendente da Zona Franca de Manaus, Alfredo Menezes, também participaram da live, a convite do presidente.
O governo pretende acabar com “penduricalhos” e reajustes de salários retroativos. Guedes classifica como “penduricalhos” as promoções e progressões exclusivamente por tempo de serviço. A reforma também permite a contenção de gastos por dois anos em caso de crise financeira, com a proibição de realização de concursos e redução de 25% da jornada e do salário dos servidores. O ministro estima reduzir despesas obrigatórias em R$ 12 bilhões anualmente somente com a reforma administrativa.
Nas contas do Ministério da Economia, 11 Estados já gastam com pessoal mais que o limite de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL) permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O governo pretende também punir os servidores que cometem infrações disciplinares, ao vedar a concessão de “aposentadoria compulsória” com vencimentos proporcionais, após desligamento do serviço público. Com a reforma, o servidor punido será desligado sem remuneração. A medida é considerada moralizante. Também se pretende uniformizar as férias de 30 dias para todos os servidores públicos brasileiros. Outra mudança será nos concursos. Quem passar vai ter que trabalhar mais tempo para ser efetivado. Nesse período, será submetido a avaliação de desempenho que pode resultar no seu desligamento.
Guedes, porém, turbinou a resistência dos servidores, cujas associações já estão pressionando os líderes do Congresso. Ao ofender o funcionalismo e criticar com veemência reajustes anuais de salários, privilégios e aposentadorias generosas, criou péssimo ambiente, justamente no momento em que o Palácio do Planalto prepara uma campanha publicitária para defender a reforma administrativa. A ideia é mostrar que o servidor onera a sociedade na entrada e na saída, porque se aposenta e continua bancado pelo contribuinte por mais 20 ou 30 anos. Essa despesa obrigatória existe somente porque a lei permite. É legal, porém, segundo Guedes, é imoral. No país, há 12 milhões de servidores públicos.
Tensão nas estradas
A queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores por causa da cobrança do ICMS sobre os combustíveis é um jogo de empurra por causa da tabela de fretes dos transportes de carga e os aumentos de combustíveis causados pela alta do dólar. Para atender sua base política e evitar uma greve, Bolsonaro negociou com os caminhoneiros a manutenção do tabelamento do frete, a chamada Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas. O assunto, porém, está nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, que marcou o julgamento em plenário da questão para o próximo dia 19 de fevereiro. A maioria dos ministros deve votar pela inconstitucionalidade da tabela.
Na semana passada, Bolsonaro tentou responsabilizar os governadores pelos aumentos do diesel e da gasolina com o argumento de que Petrobras baixava os preços, mas a redução não chegava aos postos de combustíveis por causa do ICMS cobrado nos estados. Os governadores de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB), e de São Paulo, João Doria (PSDB), reagiram duramente, com o argumento de que não poderiam abrir mão de receitas correntes e de que Bolsonaro estava sendo populista. O presidente da República retrucou e anunciou que reduziria a cobrança de tributos federais se os governadores adotassem o mesmo procedimento. A polêmica foi interpretada no Congresso como uma manobra de Bolsonaro para evitar desgastes caso o Supremo julgue inconstitucional a tabela de frete.
Safra de grãos
Relator do caso no Supremo, em agosto passado, Fux atendeu a um pedido da Advocacia-Geral da União e requereu a retirada de pauta do tema. O adiamento foi pedido com o argumento de que Bolsonaro negociava uma solução alternativa ao tabelamento com os caminhoneiros. A tabela com os preços mínimos para os fretes rodoviários foi estabelecida por uma medida provisória editada pelo então presidente Michel Temer, durante a greve dos caminhoneiros. A MP foi aprovada pelo Congresso Nacional, transformando-se na Lei nº 13.703. À época, candidato a presidente da Republica, Bolsonaro teve intensa participação nos bastidores da greve dos caminhoneiros.
A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) nunca engoliu o tabelamento, pois as empresas de transporte de carga e de logística são contra a medida. Vander Costa, presidente da entidade, em nota,, cobrou do STF uma definição sobre o assunto. As transportadoras reclamaram que o preço do frete no Brasil “caiu demais”, reduzindo a remuneração dos serviços. Às vésperas do carnaval, em plena safra de grãos, com as chuvas criando dificuldades nas estradas, principalmente na região Sudeste, uma greve de caminhoneiros pode ter um impacto muito negativo na retomada do crescimento. Os caminhoneiros são muito organizados e cobram apoio de Bolsonaro à manutenção da tabela.