Paulo Guedes
Vinicius Torres Freire: Com PIB à beira do colapso, economistas do governo não fazem nada
Equipe econômica só sabe anunciar medidas vagas, insuficientes e sem efeito prático
Os números do colapso econômico ainda são muito raros e parciais, mas prenunciam calamidade. O consumo de energia caiu quase 9% em uma semana (para ser preciso: foi a queda da carga do dia 15 ao 22 de março, domingo), para começar.
Não é preciso muito discernimento para prever que comércios e fábricas paradas vão provocar uma baixa inédita no PIB pelo menos durante um trimestre, embora o resultado do ano possa ser também um desastre secular.
Por ora, vamos argumentar como se o país tivesse um governo. Não é preciso ter muita luz para perceber que um governo sabotado pelo próprio presidente da República intensificará de modo genocida o desastre.
Mas, por ora, suponhamos que as autoridades econômicas façam parte de um governo minimamente funcional. Pois bem, o governo da economia também não demonstrou que é minimamente funcional, organizado, imaginativo ou com capacidade de implementação.
Já faz mais de uma semana que vazou da Economia uma vaga e insuficiente ideia de compensar em duas centenas de reais a renda dos trabalhadores informais, entre outros anúncios mesquinhos e nebulosos de auxílio.
Depois disso, de concreto, houve apenas o ultraje incompetente e desumano da MP da Morte, que regulava corte de salários e não previa compensação alguma para os feridos econômicos da coronacrise.
Foi apenas nesta quinta-feira (26) que alguém, de fora do governo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, apresentou uma visão minimante geral e articulada do que é preciso fazer.
O governo reluta em oferecer paliativos, na esperança incompetente e cruel de que o fim de confinamentos, quarentenas e similares impeça um tombo maior da economia, com o que seria possível gastar menos. Esse parece ser o raciocínio de fundo da equipe econômica, que vaza pelos jornais como o vírus pelas ruas.
Além da desorganização e da destruição mortais causadas pelo indivíduo que ocupa a cadeira de presidente da República, há relutância fundamental dos economistas deste governo.
Sem ajuda a firmas menores (e muitas grandes), o morticínio de empresas no paradão da epidemia pode prolongar a recessão mesmo quando o contágio e a doença sejam de algum modo controlados.
Nada sai do papel por iniciativa do governo. A incapacidade de implementação, evidente desde 2019, se torna apavorante.
Será inevitável um plano para compensar a queda de faturamento das empresas, de modo a evitar falências e demissões em massa. O governo terá de pagar salários de trabalhadores do setor privado.
Terá de inventar um programa de renda mínima gigante para os mais pobres. Para os informais, quem resolveu a parada foi o Congresso.
Talvez seja preciso adiar dívidas individuais. Facilitar a renegociação de dívidas bancárias. Com falências e de demissões em massa, haverá calotes. Mais calotes, maior retração dos bancos, para dizer o menos.
O Banco Central tem resolvido problemas de liquidez e controlou um grande pânico no mercado de dívida privada. Não apenas por isso, precisa fazer mais.
Não apenas a taxa básica de juros de curto prazo (Selic) tem de cair mais, mas é preciso dar um jeito de "achatar a curva" inteira de juros (isto é, fazer com que taxas de juros mais longas caiam no mercado de dinheiro e de financiamento do governo).
ESTAMOS EM UMA EMERGÊNCIA. Apenas o Banco Central tem agido com competência e rapidez diante da crise. Não vai ganhar essa guerra, na qual vai atuar mais na retaguarda, embora fundamental.
Onde está o governo da economia? Onde está Paulo Guedes?
Pedro Fernando Nery: Defenda o Bolsa Família
Programa tem expertise e capilaridade para ser usado como instrumento contra a crise
Ele foi responsável por 10% da redução de desigualdade entre 2001 e 2015, e por tornar menos insuportável a pobreza de milhões – segundo estudo do Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. É um feito notável para um programa que custa menos de 0,5% do PIB. Principal mecanismo de proteção de renda de informais e desempregados, o Bolsa Família chega já em crise para atender à crise do coronavírus.
Ele custa um décimo do gasto com funcionários públicos, e cerca da metade da isenção de lucros e dividendos que beneficia a elite que não paga imposto de renda na pessoa física. Mas tem enfrentado cortes. As filas são antigas: Temer conseguiu zerar, mas já à custa de exclusões. Elas voltaram, em meio à recuperação econômica desigual.
No atual governo, o Bolsa Família recebeu um 13.º maldito. Um pagamento adicional, promessa de campanha, seria louvável – desde que houvesse orçamento adicional. Sem a complementação, o 13.º implicou exclusão: famílias comprovadamente pobres ficaram sem receber nada para que outras recebessem o pagamento adicional.
Para piorar a falta de complementação, os escassos novos pagamentos de 2020 se centralizaram nas regiões mais ricas, apesar de filas gigantes no Nordeste. É que o critério de concessão ignora completamente as filas, e usa estimativas de pobreza baseadas no Censo de 2010. De lá para cá, o País viveu a recessão de 2015-16, que afetou mais o Nordeste, quando a recuperação favoreceu mais o Centro-Sul.
Por isso, dos 100 mil novos benefícios concedidos em janeiro, Santa Catarina – com o menor desemprego do País – recebeu 6 mil, o dobro de toda a Região Nordeste. O Piauí recebeu 86. Se 12% da fila catarinense foi atendida, somente 0,1% da fila piauiense o foi. Três milhões e meio de brasileiros esperam para receber os benefícios: já estão habilitados, o que quer dizer que são reconhecidamente pobres.
Fisicamente, a fila do Bolsa poderia ocupar a distância entre Brasília e São Paulo. Ela vem depois da renda dos 5% mais pobres ter caído 40% entre 2014 e 2018 – segundo a FGV Social. É um risco político desnecessário à agenda de reformas.
Já passou da hora da fila ser zerada: é inclusive questionável que haja discricionariedade na concessão do benefício para quem já está habilitado. Nos termos da Constituição, é prioridade absoluta assegurar o direito à alimentação e à saúde das crianças – principais destinatárias do programa.
Mesmo zerar a fila é pouco agora, porque o Bolsa é o instrumento mais efetivo para repor a perda de renda da quarentena da epidemia. Primeiro, porque não exige carteira assinada, podendo ser recebido pelos informais. Até por essa focalização, é a despesa pública com maior multiplicador conhecido em curto prazo sobre o consumo e o PIB. Segundo, porque atende a crianças, um público que fica em insegurança alimentar quando as escolas fecham.
Em terceiro lugar, porque dado o grau de incerteza da evolução da epidemia, a resposta econômica à covid-19 precisa ser desejável por si. Boas propostas de reforma do Bolsa Família já tramitavam desde o ano passado. Elas miram a constitucionalização antifilas e o combate à pobreza intermitente, flexibilizando as linhas duras para acesso ao programa (que também desincentivam portas de saída).
O debate da sustentação da renda dos informais durante a pandemia vai apresentar a muitos brasileiros a modéstia dessa rede de proteção. O Bolsa Família paga benefícios de R$ 89 por mês, para as famílias que vivem com menos de R$ 89 por pessoa (extrema pobreza). As famílias que estão “só” na pobreza (menos de R$ 178 por pessoa) apenas recebem se tiverem crianças ou grávidas. O valor é de R$ 41 por dependente, um milésimo do teto remuneratório no serviço público.
O programa conta com capilaridade e expertise para ser usado como instrumento importante contra a crise: só o seu estigma pode explicar os que pedem uma nova transferência de renda para a pandemia. Mas ele precisa de recursos. Hoje, de cada real do Orçamento, o Bolsa leva só dois centavos. Defenda.
*Doutor em economia
Bernardo Mello Franco: Na epidemia, cortes de Guedes vão cobrar uma conta amarga
O coronavírus chegou e Paulo Guedes insiste na conversa das reformas. Para a professora Monica de Bolle, o ministro está perdido e não entende a gravidade da crise
Em visita à Fiesp, o ministro da Economia foi questionado sobre o risco de o dólar ultrapassar a marca dos R$ 5. A resposta foi puro Paulo Guedes: “É um câmbio que flutua. Se fizer muita besteira, pode ir para esse nível”.
A profecia levou apenas uma semana para se realizar. Na quinta-feira, a moeda americana chegou a ser negociada a R$ 5,02. A semana terminou com a cotação em R$ 4,81, maior valor nominal desde o Plano Real.
Seria injusto culpar Guedes pelo derretimento do câmbio. A guerra do petróleo e a chegada do coronavírus produziram um estrago maior que a sua capacidade de autossabotagem.
No entanto, as besteiras do ministro não ajudam o país a sair da crise. Além de tumultuar o ambiente com falas desastradas, ele resiste a tomar medidas para amenizar o tombo anunciado.
Na quinta, Guedes tentou empurrar responsabilidades para os outros. Retomou a conversa das privatizações e cobrou a aprovação de reformas que ainda nem foram enviadas ao Congresso.
A atitude irritou parlamentares que o ajudaram a mexer na Previdência. O deputado Rodrigo Maia disse que o ministro pensa de forma “medíocre”. A reação indicou que o estoque de paciência com o “Posto Ipiranga” do bolsonarismo pode estar prestes a se esgotar.
A economista Monica de Bolle, da Universidade John Hopkins, tem despontado entre os insatisfeitos com Guedes. Ela defende a revisão do teto de gastos e a adoção de medidas contracíclicas, duas ideias que causam calafrios no ultraliberal de Chicago. Para a professora, o ministro está preso numa “camisa de força ideológica” e vê a regra do teto como “vaca sagrada”.
“Guedes está completamente perdido, não compreende a gravidade da crise. No meio de um incêndio, você não propõe uma reforma tributária”, critica. “Esta é uma crise inédita, que vai gerar uma paralisia nunca vista. O mundo todo está flexibilizando regras fiscais, e o Brasil está atrasado”.
Na quinta, o ministro reincidiu nas besteiras. Num dia em que a Bolsa acionou duas vezes o circuit breaker, ele disse que o país “estava em pleno voo, começando a decolar”. “Não existe pleno voo com PIB de 1%. A economia brasileira está frágil, com crescimento baixo, desemprego alto e redes de proteção esgarçadas”, rebate De Bolle.
A professora alerta que o pior ainda está por vir. Nas próximas semanas, o coronavírus tende a se espalhar entre os brasileiros mais pobres, que só contam com a rede pública de saúde. Quando isso ocorrer, os cortes no social devem cobrar uma conta amarga.
Elio Gaspari: Economia ensina que esperança não é estratégia
Guedes deve ter seus motivos para estar tranquilo, mesmo que seja um dos poucos com essa serenidade
A Bolsa de Nova York teve a maior queda desde a crise de 2008, a de São Paulo suspendeu o pregão, fechou com um tombo de 12% e o dólar bateu em R$ 4,73. Diante desse quadro, o doutor Paulo Guedes disse que "estamos absolutamente tranquilos", pois sua equipe "é serena, experiente". Nada contra, salvo os precedentes.
Em 2008, Lula disse que a grande recessão americana chegaria ao Brasil como uma "marola". Deu no que deu. Em 1979 e 1980, diante de uma alta do petróleo e dos juros americanos, o governo brasileiro (e o FMI) garantiam que a dívida externa seria administrável. O país quebrou, entrando na sua década perdida. Em 1973, quando o mundo sofreu o primeiro choque do petróleo, o Brasil era apresentado com uma "ilha de tranquilidade".
Paulo Guedes deve ter seus motivos para estar tranquilo, mesmo que seja um dos poucos ministros da Economia com essa serenidade. Seus antecessores acreditaram que crises podiam ser mitigadas com otimismo. Como ensinou Tim Geithner, o ex-diretor do Federal Reserve Bank de Nova York e ex-secretário do Tesouro americano, que toureou a crise de 2008, "esperança não é estratégia".
Ninguém explicou a origem do pânico financeiro das últimas semanas. Atribuí-lo ao coronavírus é pouco. Se for só isso, a economia mundial tomará um tombo em 2020. Em 1973, quando os países exportadores de petróleo começaram a aumentar o preço do barril, poucos se deram conta do tamanho da encrenca. Seis anos depois, quando o aiatolá Khomeini derrubou o Xá do Irã e provocou a segunda alta do petróleo, muita gente achava que ele era um velhinho bondoso de barbas brancas. Em 2008, quando o economista Nouriel Roubini previa a crise bancária, chamavam-no de "Doutor Fim do Mundo". Ele virou profeta e, na segunda-feira (9), diante da queda do preço do petróleo somada ao coronavírus, tuitou: "recessão e crise à vista".
A serenidade de Guedes inquieta quando ele diz que "a democracia brasileira vai reagir, transformando essa crise em avanço das reformas". Uma coisa tem muito pouco a ver com a outra. Viu-se isso com o pibinho que se seguiu à reforma da Previdência. Essa e todas as propostas de Guedes podem melhorar a situação da economia, mas são mudanças de médio prazo. Democracia não reage, apenas existe ou deixa de existir. Misturando-se banana com laranja consegue-se apenas travestir um mau cenário econômico, fantasiando-o como questão política.
A crise de 2008 deveu muito a um clima de festa da banca, mas quando um sujeito é responsável pela administração de uma economia deve conhecer seus limites. Em março daquele ano, quando a banca não falava em crise, o presidente George Bush submeteu ao seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, um discurso no qual diria que o governo não salvaria empresas. Paulson surpreendeu-o pedindo-lhe que cortasse a afirmação. Em setembro o mundo caiu. Ele conhecia o mercado e evitou que o presidente dissesse algo que poderia obrigá-lo a desmentir-se.
O Fed de Nova York tem hoje uma caçadora de encrencas potenciais no comportamento e nas certezas dos banqueiros. Ela se chama Margaret McConnell e ensina: "Nós gastamos tempo procurando pelo risco sistêmico, mas é ele quem tende a nos achar."
Paulo Fábio Dantas Neto: Prudência e urgência (razões de tática e estratégia políticas)
Pouco mais de um ano de governo Bolsonaro e tornou-se um bordão, aceito em amplos ambientes, a ideia de que os democratas brasileiros precisam se articular e se entender para derrotar a estratégia de enfraquecimento da democracia representativa, levada a cabo pelo Presidente da República. Situação limite essa, pois caberia, a quem ocupa esse posto, ser justamente o mais poderoso e eficaz defensor do regime e da Constituição, graças aos quais chegou aonde está. Os fatos, porém, já não deixam dúvida de que temos um presidente subversivo da lei e da ordem. Esse ponto é tacitamente reconhecido, seja por quem aplaude, seja por quem abomina a sua conduta golpista. Quem aplaude admite lhe dar ainda mais poderes para, supostamente, mandar os políticos embora. Quem abomina, busca a melhor maneira de atalhar esse seu caminho.
No campo bolsonarista, eventuais dúvidas táticas sobre como levar ao sucesso a sua estratégia golpista resolvem-se com ordens do dia de um capitão que se tornou especialista em constranger generais. A ordem em vigor, no momento, convoca abertamente, para o próximo domingo, 15/03, uma manifestação de rua, fisicamente próxima à Praça do Três Poderes, para aclamar o presidente e contestar as autoridades ocupantes dos dois outros poderes da República. A essa altura, a sociedade, apreensiva, já se pergunta, com razão, o que farão a Polícia Militar e as Forças Armadas se algum dos dois poderes postos na berlinda solicitar, legitimamente, sua proteção, em caso dessa manifestação sair dos limites razoáveis e degenerar em agressão direta como, aqui e ali, há muito tempo se ensaia. Augusto Heleno esteve só, em sua provocação golpista? Poderia ser devidamente “enquadrado”, por seus interlocutores na ativa, depois daquelas declarações? Autoridades militares responsáveis e comprometidas com a democracia terão força para não deixar que o ovo da serpente alimente os apetites e contamine a corrente sanguínea de seus pares e comandados?
Essas perguntas não calam porque nenhuma pessoa sensata, que observe com atenção a cena política atual, ignora que as cúpulas dessas corporações já podem estar sofrendo uma dupla pressão nas bases que, por hierarquia profissional, comandam. Refiro-me à disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das forças armadas, de uma nostálgica ideologia golpista e salvacionista que a derrota do regime autoritário na transição democrática dos anos de 1980, seguida de três décadas de democracia, puseram em desuso naquele ambiente. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas. Mas o processo preocupa, assim como deve preocupar também a pressão corporativa que pode emanar, em grau crescente, ainda mais embaixo, diante de uma eventual indisposição, por dever constitucional, de comandantes militares com um presidente subversivo. Sim, pois esse presidente e seus filhos propagam um discurso demagógico que acena às tropas com vantagens materiais e, no caso de policiais transgressores da lei, também com uma odiosa impunidade.
Já nas instituições civis e no campo político heterogêneo que se opõe a essa aventura, parece ainda estar longe o momento em que uma estratégia comum será pactuada. Ela convém, entre outras razões, para tornar consequente a tática de evitar o confronto, que tem sido intuitivamente adotada por todos, por cálculo político racional, e/ou por receio de retrocesso institucional. Paciência e moderação têm sido as contraordens que até aqui interditaram o caminho, democraticamente justificável, de um processo de impeachment, para o qual o presidente já forneceu vários motivos, cometendo sucessivos crimes de responsabilidade.
O bom senso já nos sugere supor que esses crimes estão sendo cometidos deliberadamente, como um risco calculado, para antecipar um confronto político, num momento em que se sabe ainda não existir, no Congresso, maioria qualificada para impedir o presidente. E ela não existe justamente porque ainda não há, no eleitorado, clara rejeição ao presidente (como já existe na sociedade civil), nem há, no empresariado, convicção sobre o malogro da atual política econômica. Com eleitores divididos e empresários indecisos, o Congresso fica neutralizado para um confronto, embora possa operar – e tem operado - como importante força política de contenção do golpismo presidencial.
Assim, ao usarem o cálculo político, lideranças do Congresso e das demais instituições civis têm conseguido evitar que Bolsonaro converta a eventual rejeição de uma denúncia contra si em capital político, isto é, em trunfo para avançar mais em sua estratégia golpista. Ao falarem com prudência sobre o tema, as forças políticas mais responsáveis do País têm evitado dar, ao bolsonarismo, o pretexto que busca para colocar a sociedade (e as forças armadas) diante de um dilema crucial entre um quadro de desordem e uma solução autoritária. Cenário plausível, pois não temos mais direito a duvidar de que a lógica miliciana que guia o Presidente não hesitará em fomentar (inclusive apelando à violência e ao terror) tal quadro problemático para obter tal solução.
Tudo correto, portanto, com a tática dos democratas. Mas alguma tática, por mais racional e prudente que seja, pode ter sucesso, em política, se não estiver ligada, de modo politicamente convincente, a uma estratégia? É possível defender a democracia com eficácia política pensando só em prevenir, isto é, tratando-a - para reiterar jargão conhecido - como plantinha tenra que se deve regar todo dia, tal qual bem alertava Octávio Mangabeira, como sugestão de conduta virtuosa para tempos normais? Se não estamos em estado de exceção, mas estamos num tempo de gravidade excepcional, é preciso ver que a democracia é mais que uma planta tenra. Sequer é só uma árvore.
É complexa floresta de instituições, direitos e interesses, que pode ser agredida, inclusive, pelo manejo demagógico dessa malha. A democracia representativa precisa não apenas ter, mas demonstrar, sempre, a força necessária para dissuadir aventureiros, quando eles a testam.
A missão não é fácil pois o terreno do trabalho atual é pantanoso. A estratégia dos golpistas é ajudada pela imagem má que políticos e partidos têm perante a sociedade e o eleitorado. Aqui não tenho como me deter sobre razões e não razões desse fenômeno, mas chamo a atenção para o fato de que a imagem negativa se refere a apenas um lado da realidade da democracia representativa.
O outro lado, muito positivo, é o suculento inventário de conquistas democráticas que encontram no Congresso uma usina de processamento. A agenda de políticas públicas socialmente positivas avançou muito no Brasil desde que superamos a ditadura militar e isso se deve, fortemente, a processos de elaboração e negociação legislativa. No fundo, o povo sabe disso e não se pode precipitadamente achar que sua insatisfação com outros aspectos da atividade de representação política leve a que ele queira abrir mão dela, seja para entregar seu futuro a ditadores, seja para cair na ilusão de que pode, como povo, governar diretamente o País. Pode ter faltado ao povo brasileiro, no passado, ocasiões de participação maior, para exercer uma cidadania mais qualificada e pode estar lhe faltando hoje um cardápio de representantes de melhor qualidade. Mas algum senso de medidas não lhe falta, mesmo quando suas necessidades e medos abrem espaço a demagogias populistas. Por isso, entre nós, jamais tiveram durabilidade aventuras caudilhescas irresponsáveis, ou discursos meramente utópicos. Nossas elites políticas, mesmo quando não democráticas, precisaram sempre negociar sua legitimação no terreno das realizações concretas.
Mas preocupa, e muito, a ausência ou, ao menos, a invisibilidade, na atual conjuntura, de uma estratégia política comum das forças democráticas, que se preocupe com movimentos táticos, mas também as prepare, desde já, para desdobramentos que não se pode prever de antemão. Deixo claro que não se trata de propor que persigam objetivos político-eleitorais que supostamente possam unir democratas de direita, de centro e de esquerda. Isso é quimera. Trata-se de cuidar, em conjunto, da preservação de condições para que disputas democráticas continuem acontecendo. Isso passa por não deixar dúvidas na opinião pública sobre a capacidade das instituições se fazerem respeitar, inclusive pelos poderosos. Do mesmo modo, não se trata de fazer análises adivinhadoras de cenários futuros, como se ações políticas devessem se orientar por essas especulações. Sabemos que nenhuma linha de ação tem futuro se não se ancorar no que há, no aqui e no agora. Trata-se é de não deixar que um poderoso inimigo da democracia representativa jogue solto e decrete o futuro como resultado de ações ousadas no presente. Ponho-me entre aspas para recorrer a uma metáfora que usei em artigo publicado há três meses: “um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor” (Política positiva e política negativa, Estadão, 01.12.2019).
Na ausência de estratégia defensiva comum, cada zagueiro age à sua maneira. Declarações do ex-presidente Lula, em recente homenagem que recebeu da esquerda francesa, se ajustam como uma luva à metáfora acima. Aposta suas fichas num novo embate eleitoral polarizado, em 2022. Nessa posição há dupla racionalidade política: objetivamente, ele lidera, de fato, o partido que ainda é a maior força eleitoral da oposição e que, por isso, pode pensar em desafiar eleitoralmente o bolsonarismo, nem que seja para conservar essa condição de polo de oposição, que conquistou em 2018. E, subjetivamente, Lula raciocina ser esse o melhor modo de seguir politizando seu embate com a Justiça brasileira. Porém, ao dizer que esperar 2022 é dever democrático, ele não apenas descarta, por ora e por realismo político, a defesa de um processo de impeachment. Vai mais longe e admite que Bolsonaro ainda não cometeu crime de responsabilidade que o justifique. Relaxando assim na marcação do atacante agressivo, esse “bom mocismo” fará, da ala do lado esquerdo da defesa democrática, uma avenida. Quantos gols serão marcados por ali até um zagueiro democrata poder se arriscar a um contra-ataque nesse sonhado 2022? Em quanto já estará o placar em favor do time cuja estratégia é asfixiar a democracia? Que chance haverá de haver uma eleição livre?
Zagueiros democráticos mais ao centro (os do fugidio centro político e os que ocupam posições institucionais centrais) costumam usar retórica crítica mais contida que a do PT, porém têm sido mais diligentes na marcação do atacante. Ainda assim não escapam da carapuça da metáfora. Marcam por zona, evitando o enfrentamento individual, justamente porque operam instituições e – é preciso reconhecer - elas objetivamente têm impedido, até aqui, demolições explícitas. Mas os recuos que conseguem impor revelam-se efêmeros porque dirigem ao atacante seguidas advertências, mas não sanções por violação das regras. Assim, no momento seguinte, novos ataques voltam a deixar a defesa em permanente estado de tensão e perigo. Contudo, prevalece sempre a tática da paciência de jardineiros de plantas tenras, sancionada por recentes declarações do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um experimentado político orgânico que a realidade quer converter em outsider. Aos atores com seu perfil político e aos que detém poder real também cabe fazer a mesma pergunta que pode ser feita à esquerda petista: até que ponto arranhões parciais restantes após cada escaramuça poderão esgarçar - ou já esgarçaram, de algum modo - o tecido da democracia, a ponto de comprometer a chance de chegar-se a 2022 ao menos no compasso da situação atual? O enfrentamento, que táticas prudenciais querem evitar agora, poderá ser evitado se, em dado momento, a infiltração antidemocrática tiver corroído o Estado a ponto de setores decisivos seus comportarem-se como milícias? Haverá eleições “normais” se o bolsonarismo pressentir uma derrota eleitoral? E havendo eleições que, porventura, confirmem sua derrota, haverá paz para que haja governo? Que poder de retaliação terão, então, caminhoneiros em pé de guerra e policiais amotinados, se os laços que os une hoje ao bolsonarismo prosperarem por um continuado e desabrido uso não republicano do poder? E que reação se pode esperar das instâncias judiciais diante dessas retaliações, após as mudanças que podem ser feitas no STF até lá?
Zagueiros com um terceiro tipo de perfil político são imprescindíveis numa hora dessas. Refiro-me a uma direita conservadora que ainda não entrou para valer em campo e precisa entrar. Um cochilo da ala direita, na marcação de um atacante que se apresenta como conservador, embora seja o seu oposto, pode ter efeito bem mais devastador para a democracia representativa do que cálculos políticos e eleitorais de uma esquerda fora do poder. Um conservadorismo político que mereça esse nome não pode, depois de tantas lições do passado, compactuar com uma estratégia desestabilizadora da ordem e das instituições moderadoras, que tenta emparedar o Congresso, intimidar o Judiciário e sabotar, ao modo do chavismo (ver Demétrio Magnoli, “O povo e Exército” – FSP, 29.02.2020) a hierarquia das forças armadas. Principalmente não pode chancelar uma propaganda ideológica que quer desacreditar a conciliação como método, no intuito (quimérico, mas nem por isso menos perigoso) de eliminar a chamada “dialética da ambiguidade”, uma marca de origem da nossa tradição política. Conservadores que se prezam não podem coonestar com a conspiração de um governo passageiro para sufocar e assassinar uma tradição nacional.
Democratas ao centro e à esquerda não podem perder de vista que convencer conservadores a tirar o oxigênio da aventura golpista é o objetivo que pode firmar uma estratégia política comum, que falta aos democratas de todos os matizes para darem consequência política realista – portanto, eficácia - à conduta tática prudencial que têm adotado. Essa conduta precisa deixar de ser só intuitiva e reativa, para ser também racional e propositiva. O momento exige equilibrar sensos de prudência e de urgência para dar à sociedade a confiança em que a democracia é a melhor opção e em que golpistas serão enfrentados não só no terreno das ideias, mas também no da política real.
Se a consequência dessa atitude realista será a abertura de um processo de impeachment não é possível antecipar. Mas não se pode tirar a hipótese da agenda, ainda que ela não esteja na ordem do dia. Criar um abismo lógico entre essa eventualidade e a conduta prudencial é um suicídio político prévio. Equivale a subestimar o poder do adversário de provocar destruição e desordem. A conduta prudencial ajuda-nos não apenas a evitar esses males. Também nos afasta da conduta imprudente de, num ambiente polarizado, fazer política sem um objetivo estratégico no horizonte.
*Cientista político e professor da UFBa
Julianna Sofia: Pibinho dará impulso a reformas de Guedes?
Com divulgação do pibinho, Guedes se escora na pauta reformista
No manual de usos e costumes do ministério de Paulo Guedes (Economia), a métrica de prazos agora se dá em semanas. Qualquer iniciativa para a qual não se consiga atribuir datas, adota-se a previsão de "duas semanas". Também em semanas, o ministro quantifica o tempo que falta ao Brasil para ser salvo: apenas 15, período que resta para aprovar o "core" da agenda econômica no Congresso antes do recesso parlamentar em ano eleitoral.
A valer os novos padrões e os últimos rumores, ficou para a próxima semana (pela enésima vez?) o anúncio do envio da reforma administrativa ao Legislativo —três semanas depois de o presidente Jair Bolsonaro dizer que a proposta estava madura para ser encaminhada à Câmara.
As mudanças, que prometem revolucionar a gestão pública, alterando a estrutura do funcionalismo para novos servidores, enfrentam o boicote do próprio Palácio do Planalto.
Por essas e outras que a medida provisória que amplia a possibilidade de contratação temporária de servidores sem concurso, recém-editada, é vista como uma minirreforma administrativa camuflada, enquanto a de fato não vem. Embora o governo conteste a tese, a MP entrou na mira do corporativismo estatal.
Com a divulgação do pibinho de 2019, Guedes e companhia consolam-se em ganhar discurso pela pauta reformista, argumentando que somente o avanço dela poderá estimular a atividade econômica, com a atração de investimentos privados.
"As reformas que faltam, como a administrativa e a tributária, ainda não foram implementadas. Quando forem feitas, os investidores virão mais rápido", afirma o ministro.
À retórica guedista, críticos contrapõem a necessidade de o governo pôr em prática medidas de indução ao crescimento, com ampliação do gasto público. Mesmo aliados do mercado e do empresariado, como Rodrigo Maia (Câmara), manifestam incômodo com o mantra da austeridade fiscal per se.
Melodia aos ouvidos de um presidente outrora intervencionista.
Bernardo Mello Franco: Os limites da tesoura
Após o terceiro pibinho seguido, Rodrigo Maia defendeu a retomada do investimento público. O deputado disse o óbvio, mas o tema andava banido do debate econômico
“A gente não consegue organizar um país apenas fazendo as reformas e cortando, cortando, cortando”. A frase caberia na boca de economistas ligados à esquerda. Mas foi dita por Rodrigo Maia, um político afinado com o mercado financeiro.
Na quarta-feira, o presidente da Câmara apontou os limites da tesoura. Depois de o IBGE confirmar o mau desempenho da economia no ano passado, Maia disse que “o setor privado sozinho não vai resolver os problemas”.
“A grande mensagem do PIB é que a participação do Estado também será sempre importante para que o Brasil possa crescer”, afirmou. O deputado disse uma obviedade, mas defender o investimento público parece ter virado uma heresia desde a posse de Michel Temer.
Em 2016, os economistas ultraliberais prometiam uma nova era de prosperidade. A recessão ficou para trás, mas a fada da confiança não apareceu. O terceiro pibinho consecutivo mostra que a receita da austeridade fracassou em tirar o país do atoleiro.
Nos últimos três anos, o Congresso retalhou direitos trabalhistas, aprovou o teto de gastos e cortou as aposentadorias de quem não usa farda. Os resultados na economia real foram pífios, mas os fundamentalistas de mercado se recusam a fazer uma autocrítica.
O ministro Paulo Guedes gosta de atribuir os problemas à classe política ou aos servidores públicos, que já chamou de “parasitas”. Em outra fala memorável, ele reclamou que os pobres brasileiros “consomem tudo”, em vez de deixar o dinheiro no banco.
Ontem o doutor buscou novos bodes expiatórios. Em visita à Fiesp, ele disse que a tragédia de Brumadinho e a crise argentina prejudicaram o PIB de 2019. Há sete meses, o mesmo Guedes perguntou: “Desde quando o Brasil precisou da Argentina para crescer?”. Em breve, a desculpa será o coronavírus.
À medida que a epidemia avança, os países buscam formas de amenizar seus impactos na economia. A Itália acaba de anunciar um pacote de € 7,5 bilhões em estímulos. Por aqui, a doença continua a ser vista como um problema restrito ao Ministério da Saúde.
Eliane Cantanhêde: Que surpresa?
É normal crescer 1%? Não. Não é normal, mas não é surpresa e faz todo o sentido
O ministro Paulo Guedes manifestou “surpresa com a surpresa” diante do pibinho de 1,1% de 2019, que conseguiu a proeza de ser menor que o 1,3% de 2017 e 2018, apesar de pesos e condições políticas bem diferentes: o presidente Michel Temer assumiu após um impeachment, Jair Bolsonaro chegou com a força do voto.
Na verdade, porém, não houve “surpresa” com o pibinho, mas, sim, desânimo, decepção e preocupação com o futuro. Se no primeiro ano de um governo cheio de gás foi assim, como será o segundo? Em 2019, houve Brumadinho, os embates EUA-China, se quiserem dá para incluir a crise suína na China. Em 2020, há coronavírus, Bolsas derretendo, dólar disparando e previsão de desaquecimento global, que já antecedia tudo isso. E não é só. Há muito mais para atrapalhar.
Na barafunda, uma constatação incomoda: a agenda do governo parece ter se esgotado em 2019, com a reforma da Previdência e o programa de privatizações e concessões deixado praticamente de bandeja por Temer. Logo, não dá para pular de otimismo para este ano. Nem para os próximos.
Como o que está ruim sempre pode piorar, há um mesmo fator político em 2019 e 2020 segurando investimentos, confiança e a própria recuperação do Brasil: o presidente Jair Bolsonaro, que insiste em viver em guerra e ultrapassa limites mínimos de civilidade e de respeito ao cargo.
Como investir num país onde o presidente, para fugir de falar do PIB, traz em carro oficial um comediante para jogar bananas em repórteres? Eles estão ali para ouvi-lo (ao presidente, não ao comediante) e informar a população. E, não satisfeito com cenas grotescas, o presidente também age colocando em risco o aquecimento da economia, logo, a retomada dos tão desesperadamente necessários empregos.
Além da “surpresa com a surpresa”, Guedes declarou que a economia está “claramente acelerando” e acenou com crescimento de 2% neste ano... “se as reformas forem aprovadas”. É aí que mora o perigo, porque não adianta botar a culpa nos deputados e senadores, no coronavírus, em Marte ou na “herança maldita”, como fazia Lula em relação a Fernando Henrique. A responsabilidade maior pelas reformas é do Executivo e não dá para fugir disso. Ele tem de apresentar suas propostas e tem de negociá-las com o Congresso, como em toda democracia.
Há dois consensos, dentro e fora do governo. Um é que a reforma da Previdência foi um ótimo passo, mas só um primeiro passo. Outro é que o Congresso tem uma disposição muito positiva para aprovar as reformas seguintes, mas há uma questão de timing: o ano é eleitoral e, portanto, deputados e senadores têm interesses diretos nas campanhas, aliás, legitimamente.
Se Guedes condiciona crescimento a reformas e o Congresso está disposto a aprová-las, o que está atravancando o processo? A área econômica, o Planalto, ou o próprio presidente? A reforma tributária do governo, ninguém sabe, ninguém viu. A reforma administrativa foi fechada pela equipe de Guedes há meses e o Planalto diz que Bolsonaro já assinou, mas é um fantasma. Foi adiada uma, duas, três, sei lá quantas vezes, atravessou o carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, a semana seguinte e... ainda não se materializou!
Para piorar, as reformas só saem com acordo entre Executivo e Legislativo (ou “entendimento”, para não contrariar o presidente e os bolsonaristas), mas Bolsonaro, os filhos e seu entorno não param de atacar os “chantagistas” do Congresso e torcem pelos protestos que terão Rodrigo Maia na mira das pedradas.
Para o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, “não é normal um país como o Brasil crescer 1% ao ano”. De fato. Nada é surpresa, nada é normal, mas tudo faz sentido.
Vinicius Torres Freire: Carnaval no governo, cinzas na economia
Autoridades econômicas colaboram para aumentar o paniquito no mercado
Era um daqueles dias de pânico nos mercados financeiros, quando muita gente não sabe bem o que está fazendo nem para onde o vento sopra. O ministro da Economia deu mais uns tiros nesse desconcerto.
Para quê? O tempo está fechando. Já há paniquito entre os negociantes de dinheiro grosso, "o mercado", mas também questões reais na praça, além dos lobbies de costume.
Nesta quinta-feira (5), o pessoal da finança pediu ao Banco Central que atenue a corrida do dólar. Foi também dia de pregar que o BC não reduza a taxa básica de juros daqui a duas semanas.
O mercado já jogou a "sua" taxa básica de curto prazo no chão, mas argumenta que nova queda da Selic vai colaborar para alta adicional do dólar e alimentar riscos de inflação, com o que os juros de prazo mais longo já sobem. Na terça-feira (3), o Banco Central sugeriu que tal coisa não tende a acontecer.
Caso fosse duradoura e relevante, essa alta das taxas de juros de prazos mais longos encareceria o financiamento dos negócios, de fato. Mas a alta dos juros mais longos nem durou nada, nem foi relevante e nem alguém tem ideia segura do destino do dólar e de seus efeitos na inflação. Até mesmo o impacto da crise que veio da China no PIB brasileiro é incerto.
O tiroteio de frases de Paulo Guedes pode dar em nada, assim como a desordem desta quinta-feira na praça financeira --por vezes isso simplesmente passa. No entanto, como o governo de Jair Bolsonaro é dado ao disparate atroz contínuo, o ambiente anda estressado e a desconfiança aumenta.
Por exemplo, há cada vez mais fofoca sobre a permanência de Guedes no governo, o que não está em questão, mas é um exemplo dos efeitos nocivos do rumorejo constante, desde janeiro em nível de gritaria graças às crises de Bolsonaro.
No dia depois do pibinho, Guedes:
1) disse que, se "fizer muita besteira", "se o presidente pedir para sair, se todo o mundo pedir para sair", o dólar pode ir a R$ 5;
2) observou que as notícias da relação conturbada de Bolsonaro com o Congresso e o risco de atraso nas reformas contribuem para alta do dólar (não deu para entender se o ministro atribuiu a responsabilidade ao tumulto ou ao fato de o tumulto ser noticiado);
3) fez observações azedas sobre uma declaração de seu secretário do Tesouro ("se o Mansueto [Almeida] estava esperando que fosse crescer 3%, ele deve estar frustrado");
4) disse que sua previsão de crescimento da economia é diferente da estimativa da Secretaria de Política Econômica.
"Se todo o mundo pedir para sair"? Do que se trata?
Guedes disse ainda que, como o Brasil é uma economia fechada, a crise mundial não terá efeitos tão grandes ("quando ventou a favor [no mundo], não pegou, quando ventar contra, também não pega tanto"). Hum.
Não tem sido esse o caso do último quarto de século, por exemplo, quando a economia brasileira passou a sentir especialmente as variações da economia chinesa e seus impactos nos termos de troca (a relação entre os preços das exportações e das importações brasileiras). Uma queda relativa do preço dos bens que exportamos, dominados por commodities, tende a reduzir o crescimento brasileiro. Não é destino, mas é provável.
Em si mesmas, em um ambiente e país mais normais, uma afirmação dessas de Guedes não faz lá diferença. Soltar todas elas em apenas um dia, dia de paniquito, em país ainda mais conturbado pela sensação crescente de desgoverno, confirma essa impressão de que a coisa está desgovernada.
José Luis Oreiro: PIB de Bolsonaro é pior que o de Temer
O IBGE acaba de divulgar os dados de crescimento do PIB de 2019: a economia brasileira apresentou um crescimento de 1,1%, alcançando um patamar de R$ 7,3 bilhões de valor da produção de bens e serviços finais. Esse é valor inferior a média dos valores observados em 2017 e 2018, anos nos quais a economia brasileira cresceu a taxas de 1,32% e 1,31% respectivamente. Dessa forma o desempenho da economia brasileira no primeiro ano do mandato do Presidente Bolsonaro conseguiu a proeza de ser pior do que a observada durante os dois anos de mandato do Presidente Temer, a qual já foi bastante medíocre, ficando muito abaixo da média de 2,81% de crescimento do PIB no período 1980-2014.
Do lado da demanda, o crescimento do PIB foi puxado pelo crescimento do consumo das famílias que cresceu 1,8% ao longo do ano passado. Como o consumo das famílias cresceu num ritmo superior ao PIB, o resultado foi uma redução da (baixíssima) taxa de poupança da economia brasileira, a qual recuou de 12,4% do PIB em 2018 para 12,2% do PIB em 2019. A redução da poupança doméstica levou a um aumento da poupança externa (déficit em conta corrente do balanço de pagamentos), o qual passou de 2,8% do PIB em 2018 para 3,2% do PIB em 2019.
Do lado da oferta, o crescimento foi puxado pelo setor de serviços, o qual cresceu 1,3%, ao passo que a indústria de transformação permaneceu estagnada com um crescimento de apenas 0,1% ao longo do ano de 2019.
Em suma, a economia brasileira em 2019 desacelerou o seu ritmo de crescimento com respeito ao observado durante o governo Temer, amplificando o seu desequilíbrio externo e o peso do setor de serviços na economia, com reflexos negativos para as perspectivas de crescimento da produtividade do trabalho.
A evidência empírica está mostrando de forma bastante contundente de que a agenda de reformas iniciada com o governo de Michel Temer e aprofundada no governo de Bolsonaro simplesmente não está funcionando. Não adianta dizer que a economia ainda está sentindo os efeitos das administrações petistas. A crise de 2014-2016 foi muito profunda mas, ao contrário do que ocorreu em crises anteriores, a economia brasileira está apresentando um padrão de recuperação cíclica extremamente lento. Quantos resultados pífios de crescimento serão necessários até que a sociedade brasileira se convença que a agenda liberal de reformas simplesmente não funciona? Está claro que o Brasil precisa de várias reformas, mas ESSA agenda aplicada desde meados de 2016 (Teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da previdência, etc) simplesmente não está funcionando. Chegou o momento da sociedade brasileira dizer NÃO ao programa liberal. Este país só terá um futuro quando discutir seriamente uma Agenda Nacional de Desenvolvimento.
Fernando Exman: A nova realidade do Orçamento e o lobby
Adesão à OCDE pode demandar regulação da atividade
O desfecho do impasse entre o Congresso e o governo em relação à manutenção do veto presidencial que trata da extensão do Orçamento Impositivo às emendas de relator não muda a realidade: o Legislativo passou a ter um poder enorme na definição do destino dos recursos públicos. Autoridades do Palácio do Planalto podem até ter demorado a notar que o Executivo estava deixando de ser o centro de gravidade da gestão orçamentária, dando cada vez mais espaço para o Parlamento ocupar essa posição. Os lobistas, contudo, há meses se adaptaram e transformaram o Congresso em habitat prioritário. É nesse contexto que cresce a importância da aprovação de um marco regulatório do lobby.
O Brasil chega tarde. Apesar de ter apoio de deputados e senadores de diversos partidos - tanto à esquerda, como ao centro e à direita -, as discussões sobre o tema ocorrem muito lentamente no Congresso. Não é de se surpreender que ele tenha se tornado um tabu, depois de o Brasil enfrentar sucessivos escândalos de corrupção. Nos autos da Operação Lava-Jato, por exemplo, não faltam histórias escabrosas sobre o relacionamento indevido entre empresas e homens públicos. Mas elas não deveriam servir de justificativa para travar ainda mais a tramitação dessa agenda no Congresso.
Não é a ausência de regulação que faz com que a prática do lobby deixe de acontecer. Pelo contrário: ele acabará ocorrendo de qualquer forma, com ou sem regras.
Nos últimos meses, o assunto novamente entrou em evidência e a expectativa é que um projeto de lei já em estágio avançado de tramitação ganhe novo impulso. Apresentado em 2007 pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP), a relatoria foi da ex-deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) e pode passar por algumas mudanças de redação feitas pelas mãos do líder da maioria na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
O deputado também é relator da reforma tributária e deve ser recebido na semana que vem pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig).
Assunto para a prosa não faltará. Diante da morosidade do Congresso em regulamentar a atuação dos profissionais do segmento, a Abrig decidiu discutir alternativas. Uma delas é uma proposta de autorregulação que está sendo preparada em conjunto com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
O texto não está pronto e tampouco terá a força de uma lei. No entanto, pelo menos poderá ajudar a diferenciar quem quer trabalhar com o lobby de modo transparente dos que preferem atuar nas sombras.
Em 2018, o extinto Ministério do Trabalho reconheceu o lobby como uma ocupação. Mesmo assim, nada de se ter definição de regras sobre a identificação dos profissionais, como eles devem se movimentar pelos corredores e gabinetes de autoridades ou até mesmo apresentar suas propostas legislativas. Os registros das agendas de autoridades de todos os Poderes também deveriam conter os nomes dos participantes, o tempo de duração de audiências e os tópicos discutidos.
Seria positivo, por exemplo, saber quem circula em Brasília representando esta ou aquela empresa, associação setorial ou entidade de classe. Isso sem falar na autoria de emendas ou minutas de projetos de lei. Se no Congresso Nacional existe dificuldade para o credenciamento desses profissionais, deve-se refletir o quão obscuro pode ser esse procedimento em assembleias legislativas e câmaras de vereadores.
Mesmo assim, a cúpula da Abrig acredita na construção de um ambiente favorável à aprovação do projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados. Além de um novo impulso das principais lideranças políticas, a iniciativa pode receber um incentivo externo. Isso porque a regulamentação do lobby é alvo de tentativa de padronização na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Sonho de consumo do governo Jair Bolsonaro, a entrada do Brasil na organização pode acabar passando pela discussão dessa agenda. Em seus documentos e relatórios, a OCDE explicita o objetivo de garantir que a atividade de lobby seja exercida com transparência e retidão.
Uma das preocupações da organização é que os países assegurem acesso igualitário para a atuação dos diversos atores interessados na construção de propostas legislativas ou políticas públicas. Outro aspecto levantado é a necessidade de se oferecer um grau adequado de transparência, para que autoridades, cidadãos e empresas possam obter informações suficientes sobre as atividades de lobby em andamento. A implementação de tais regras precisam contar com a adesão dos lobistas, os quais devem cumprir padrões de profissionalismo e transparência. Para a OCDE, os países devem revisar periodicamente o arranjo legal que regula o setor.
Essa última recomendação demonstra como o Brasil está numa etapa anterior desse processo. Esse cenário, contudo, pode mudar.
O projeto de lei que regulamenta o lobby está pronto para ser votado. É um dos temas que pode ser incluído em pauta a qualquer momento pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Na mensagem que enviou ao Congresso em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro também elenca a regulamentação do lobby como uma das prioridades do Executivo. “Algumas proposições legislativas poderão conduzir para o estabelecimento de um cenário mais positivo na atuação da Controladoria-Geral da União (CGU), considerando a evolução nas discussões relativas às normas gerais de licitação e o disciplinamento da atividade de ‘lobby’, por exemplo”, destaca o texto presidencial.
Esse é um aprimoramento essencial para dar mais robustez à democracia brasileira. Por outro lado, há que se evitar a construção de um arcabouço que acabe afastando desse processo grupos menos influentes e poderosos.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Paulo Guedes, um novo desenvolvimentista?
Não bastam juros baixos e câmbio mais competitivo
A economista Laura Carvalho, naturalmente em tom de galhofa, perguntou no seu Twitter: “É impressão minha ou de uma hora pra outra apareceram centenas de novos desenvolvimentistas à la Bresser dando aula sobre as maravilhas do câmbio competitivo pra tentar salvar a fala do Paulo Guedes?”
A galhofa não foi comigo, mas com os novos convertidos... Pois é, Laura, o ministro está feliz porque a taxa de juros caiu e a taxa de câmbio está competitiva. Mas isso não o faz um desenvolvimentista; mostra apenas que é inteligente. Para ser um “neodesenvolvimentista” não é simples assim. É preciso reconhecer que o mercado é insubstituível nos setores competitivos da economia, mas saber que o Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência das boas sociedades.
Eu realmente venho há 20 anos afirmando que uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo, causada por uma taxa de juros alta e uma doença holandesa não neutralizada, é um dos dois fatos históricos novos que explicam os baixos investimentos privados e a quase-estagnação da economia brasileira desde 1990. O outro é a baixa da poupança pública e o resultante baixo investimento público.
De repente, parece que um dos problemas foi resolvido. Não foi. A taxa de juros baixou, mas ainda é relativamente alta, e não há nenhuma garantia de que permaneça no atual nível dado o déficit em conta-corrente e a fuga de capitais. Por outro lado, a doença holandesa continua a não ser neutralizada —ela apenas perdeu força porque o preço das commodities está baixo.
O Banco Central certamente baixou os juros. Mas será que deixou de ser uma instituição a serviço de rentistas e financistas por isso? Ou baixou os juros porque a enorme recessão e a queda radical da taxa de inflação o obrigaram?
A segunda alternativa é provavelmente mais correta. É verdade que seu presidente é neto de Roberto Campos. Seu avô adotou o neoliberalismo quando este se tornou dominante no mundo, mas era um homem genial, “fora da caixa”; ele não estava simplesmente a serviço de rentistas e financistas.
Para a economia brasileira retomar o desenvolvimento é preciso que a taxa de câmbio permaneça flutuando em torno do nível real atual. Isso criaria oportunidades de investimento para as empresas e resolveria o problema do investimento privado. E é preciso que o Estado separe radicalmente o gasto corrente do investimento e passe a aumentar este último, enquanto reduz a relação gasto corrente-PIB. Dessa forma, ele resolveria o problema do investimento público tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta (da poupança pública).
Estamos muito longe disso. Não apenas porque os economistas liberais, mas também os desenvolvimentistas, têm uma imensa dificuldade em pensar assim.
Para o Brasil voltar a crescer e a realizar o “catching up” é necessário: a - um pequeno superávit em conta-corrente, que evite a entrada líquida de capitais que apreciam o câmbio; b - o equilíbrio fiscal corrente; c - déficit fiscal corrente apenas como política fiscal contracíclica; d - a expansão do investimento público; e e - manter “certos” os cinco preços macroeconômicos. Ou seja: 1 - manter baixo o nível da taxa de juros em torno do qual o Banco Central realiza sua política monetária; 2 - manter competitiva a taxa de câmbio, garantindo às empresas que têm competitividade técnica também competitividade monetária; 3 - manter os salários crescendo com a produtividade combinado com gradual desenvolvimento do estado de bem-estar social; 4 - manter baixa a inflação; e 5 - manter a taxa de lucro em um nível satisfatório, que motive as empresas a investir.
Para realizar uma política econômica nos termos acima definidos é preciso combater duramente a captura do patrimônio público: (1) por rentistas e financistas, que dele se apropriam sob a forma de juros e de privatizações de monopólios públicos; (2) por servidores públicos, que fazem o mesmo sob a forma de salários e aposentadorias que não correspondem ao trabalho realizado; e (3) por empresas e outras entidades associativas sob a forma de subsídios injustificáveis.
As reformas e as políticas que acabo de brevemente listar requerem um Estado capaz e desenvolvimentista. E eleitores, políticos, cientistas, técnicos e líderes associativos competentes e dotados de espírito público que ponham em segundo plano as suas ideologias.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira,p emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)