Paulo Guedes
Míriam Leitão: Temores dos contribuintes
Reforma fatiada impede a visão do todo e se for aprovada em etapas provocará aumento de carga tributária para alguns setores
Ao dar os próximos passos da reforma tributária, que apresenta em partes, o governo quer encontrar o bolso da classe média. O Imposto de Renda Pessoa Física perderia suas deduções, e provavelmente terá mais uma alíquota. Está também em estudo a taxação de dividendos, no projeto de que a empresa pague menos, mas seu sócio pague mais. E o sonho da equipe é fazer um imposto tipo CPMF e com isso reduzir os tributos sobre folha salarial. O fatiamento impede a visão do todo e, portanto, cria mais resistência. Os cálculos das consultorias mostram aumento de carga.
Uma empresa de software pediu à consultoria Mazars para fazer a conta dos efeitos sobre o seu negócio. Segundo Luiz Carlos dos Santos, diretor responsável pela área tributária, a empresa pagará mais imposto.
— Para essa empresa de software que simulamos, na conta final, ela teria em torno de 3% a 5% de aumento de carga. Isso ela teria que tirar da margem, podendo até inviabilizar investimentos em novos produtos — disse Santos.
Há outro ponto que é difícil saber como vai funcionar, que é a exigência às plataformas digitais para que paguem caso o fornecedor não recolha a CBS, numa espécie de contribuinte substituto.
— Mercado Livre, iFood, Rappi, qualquer plataforma vai ser responsável pela nota, em caso de o vendedor não emitir. Você acessa o iFood e compra no bar da esquina alguma coisa, e ele não emite a nota fiscal. A responsabilidade passa a ser da plataforma. Hoje, a plataforma só paga o tributo pela comissão que ela ganha desse pequeno comércio. Ela poderia ter que pagar pela receita do pequeno comércio. A constitucionalidade disso é até discutível, por obrigar uma plataforma a emitir nota por um produto que outro vendeu. Uber, 99, esses aplicativos de transporte têm regimes especiais e ficam de fora. Se comprar pela Amazon, e o produto vem do exterior, a Amazon lá fora vai ter que ter um cadastro na Receita e recolher a CBS. Algumas plataformas podem deixar de achar interessante ficar no Brasil — disse Luiz Carlos dos Santos.
O que o governo diz é que, apesar de as pessoas físicas não pagarem CBS, em qualquer transação feita pela internet, o vendedor deverá emitir nota, transformando-se em empreendedor individual.
De todas as etapas que o governo ainda ficou de apresentar, só o IPI tem a ver com o que está sendo discutido no Congresso, que são os tributos sobre bens e serviços. O governo quer fazer do IPI um imposto seletivo, com alíquota alta para alguns produtos. Nas outras etapas viriam a reorganização dos impostos sobre renda, sobre patrimônio, a desejada desoneração da folha salarial, mas com o preço amargo do imposto que mais distorce que é uma espécie de CPMF.
Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta entender o alcance da unificação do PIS e da Cofins apresentada pelo governo, o Congresso formou a Comissão Mista para discutir propostas muito mais amplas, que unificam pelo menos cinco impostos. O IBS previsto na PEC 45 é um verdadeiro IVA porque une cinco impostos, inclusive o ICMS que é a grande dor de cabeça das empresas, e o maior deles com recolhimento de 7% do PIB. A do Senado, também. Uma das ideias com que se trabalha na PEC 45 — e que agora deve ser levado para a comissão mista já que o deputado Aguinaldo Ribeiro é o relator também — é de um imposto seletivo sobre alguns produtos, entre eles, combustíveis fósseis. Nessa ideia, a Cide seria extinta.
A situação em que o país está é que o governo demorou a entrar na conversa e chegou com uma proposta pequena, confusa e polêmica. Promete outras etapas, mas elas ficam no ar, gerando ainda mais incerteza. O que se sabe até agora é que depois do IPI o governo vai enviar uma proposta para reformar o Imposto de Renda Pessoa Física. Quer acabar, por exemplo, com a faixa de isenção maior para quem tem mais de 65 anos, e quer eliminar as deduções para saúde e educação. Todas provocarão controvérsia como a CBS.
— Se eu saio da alíquota de 3,65% e 9,25% por uma de 12% ,e eu não tenho crédito para contrabalançar, vou ter aumento de carga sim — disse Santos.
Essa reforma a conta-gotas provocará uma onda de reação a cada etapa e vai embaralhar a tramitação das PECs que estão no Congresso. Enquanto isso, todos os contribuintes ficam na expectativa do que ainda está por vir.
Vinicius Torres Freire: Bode na sala ou salame fatiado, reforma tributária de Guedes cria confusão
Reforma tributária fatiada do governo causa o tumulto previsto e pode emperrar mudança
Como era previsível, a primeira fatia do salame tributário oferecida pelo governo federal não caiu bem. Paulo Guedes propôs trocar o PIS/Cofins por uma Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Se fosse alteração isolada, causaria a confusão habitual de rediscussões de impostos, de quem paga mais ou menos, motivo que emperra a mudança desse imposto desde 2014.
O plano Guedes causa mais tumulto porque, se a ideia é fazer reforma “ampla”, não dá para discutir PIS/Cofins sem tratar do peso de outros impostos sobre as empresas.
Há quem diga que a CBS com alíquota alta é um bode na sala, a ser trocado por uma CPMF. O bode de Guedes, no entanto, já mastiga o sofá e faz sujeira sobre o tapete.
Antes de prosseguir, convém lembrar que:
- quem recolhe o imposto não é quem o paga. Quanto mais um bem ou serviço for de difícil substituição, mais fácil repassar o aumento de tributação para o consumidor (pense-se no caso de comida, água, luz). Se existe substituto ou a opção de não consumir, é possível que a empresa tenha de engolir parte do aumento do custo ou, caso o repasse, perca mais faturamento;
- não é possível calcular aumento de carga tributária com base apenas na alíquota do imposto. Mudanças em tributos mudam comportamentos. Podem tornar empresas inviáveis, permitir o surgimento de outros negócios e incentivam as firmas a criar um modo de se livrarem do tributo. Um projeto tributário não faz sentido sem simular essas transformações.
O PIS/Cofins é um imposto grande, cerca de 18% da receita federal bruta de 2019. Apenas Imposto de Renda, com 28,4%, e contribuições previdenciárias em geral, 27%, têm peso maior. O ruinoso ICMS, estadual, porém, arrecada quase o dobro do PIS/Cofins.
Parece razoável acreditar que a CBS vai aumentar os impostos de construção civil, escolas, saúde ou teles. Pode ser tolerável, a depender do que vai ser feito de outros impostos e do ganho geral da (suposta) simplificação e uniformização tributária. Como não temos ideia do quadro mais geral, fica difícil discutir alíquotas e a conveniência de redistribuição da carga. Esse é um resumo do problema que é a reforma Guedes-Bolsonaro, que além do mais suscita outras ideias de jerico.
Gente do centrão e da oposição de esquerda quer que os bancos paguem mais CBS. Pode ser que a alíquota deva ser calibrada, mas partir do princípio de que bancos têm de pagar mais é má ideia. As consequências mais prováveis desse aumento devem ser o encarecimento dos empréstimos e a diminuição do acesso ao crédito. Se a questão é a iniquidade, trata-se de tributar os rendimentos dos acionistas dos bancos e dos detentores de capital em geral, os mais ricos em particular.
Sim, um objetivo de uma reforma inteligente é uniformizar o quanto possível o peso dos impostos sobre empresas e finança, de modo a evitar distorções ineficientes. A decisão de investir aqui ou ali devem ser pautadas por rentabilidade, não por privilégios fiscais. Um imposto especialmente baixo pode manter vivos negócios de outro modo inviáveis, o que é um uso ineficiente de recursos. Tudo isso é muito elementar.
Mas não estamos discutindo nada disso: alíquotas efetivas e seus efeitos econômicos, justiça e eficiência tributárias, o quadro geral dos impostos. É grande risco de a reforma tributária entrar no pântano caótico que é o padrão de governo Jair Bolsonaro. Tudo porque Guedes tem a ideia fixa da CPMF e mexer com estados e cidades.
Fernando Exman: Um passaporte para a reeleição de Bolsonaro
Cenário para aprovação de nova CPMF é desafiador
Está se consolidando um cenário desafiador para o governo discutir com o Congresso a criação de um novo imposto sobre pagamentos. A equipe econômica e os articuladores políticos do Palácio do Planalto terão dificuldades para convencer os parlamentares de que a ideia de reforçar o caixa do governo com uma espécie de nova CPMF, somada a investidas contra o teto de gastos, não tem relação alguma com o projeto do presidente Jair Bolsonaro de se reeleger em 2022.
Hoje o diálogo entre os chefes dos Poderes é muito mais fluente do que se via poucas semanas atrás. Há exceções, claro, como a recente desavença entre as Forças Armadas e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em razão da declaração do magistrado sobre a gestão do Ministério da Saúde por militares durante a pandemia. A tentativa da Polícia Federal de entrar no Congresso para vasculhar o gabinete do senador José Serra (PSDB-SP), impedida pelo presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) com o apoio do STF, tampouco contribui para desanuviar ainda mais as relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas é evidente que o ambiente institucional serenou.
No Congresso, agora o Palácio do Planalto tem uma base de pelo menos 200 integrantes e pode ampliar esse número dependendo do projeto que estiver em discussão. A atual legislatura tem um perfil mais reformista. A falta de credibilidade, contudo, pode ser um obstáculo crescente para o governo conseguir emplacar sua agenda.
As relações institucionais são feitas por pessoas e, como em toda interação humana, a desconfiança dificulta a convivência e a realização de um trabalho conjunto. Parte considerável do Congresso não acredita mais totalmente no que é dito por autoridades do Planalto nem por seus representantes no Legislativo. Acordos são descumpridos. Sinais são trocados entre o discurso e a prática.
A percepção é que o Executivo está cada vez mais dedicado a viabilizar a reeleição de Bolsonaro - uma obsessão do presidente desde os primeiros meses de seu mandato - do que a estabelecer uma agenda comum com o Parlamento. É compreensível, portanto, que os congressistas que não estejam alinhados ao Palácio do Planalto ajam com cada vez mais cautela, antes de encampar as propostas originadas no Executivo. Nessa nova conformação das relações, a intenção de se criar uma nova tributação sobre pagamentos ou transações digitais, uma reedição da antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), pode ser uma das principais vítimas.
Bolsonaro, historicamente contrário à CPMF, chegou a demitir um secretário da Receita Federal para evitar que o impopular assunto danificasse sua imagem. Agora tenta reposicionar-se no debate.
A argumentação da equipe econômica também está pronta e afiada: a contribuição se faz necessária para reforçar o novo programa de assistência social, o Renda Brasil, e bancar desonerações. Estaria no bojo de uma reforma mais ampla do sistema tributário nacional.
No Palácio do Planalto, o que se diz é que a carga tributária não aumentará e que, pelo menos de um ponto de vista, a CPMF seria um imposto relativamente justo: o valor não chegaria a ser um absurdo e paga mais quem faz um maior número de transações financeiras. Em outras palavras, se estão pedindo um sacrifício da população no pós-pandemia, a abnegação maior precisa vir daqueles que possuem mais dinheiro. O governo conta com o respaldo do Centrão e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a qual protagonizou no passado a campanha que ajudou a inviabilizar a prorrogação da CPMF pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas o governo sabe que no Congresso o embate não será fácil. A CPMF ficou estigmatizada.
A primeira experiência com esse tipo de contribuição foi feita em 1994. Dois anos depois, o governo da época retomou a discussão sobre a possibilidade de se direcionar essa arrecadação para a área da saúde. O provisório foi se tornando permanente, até que no fim de 2007 a Câmara dos Deputados aprovou a prorrogação do tributo até 2011, mas o Senado barrou a iniciativa.
O governo Lula ponderava que o fim da CPMF acarretaria numa perda de arrecadação de aproximadamente R$ 40 bilhões em 2008, mas o argumento não sensibilizou o Senado. Apesar de ter sido criada sob a alegação de que seria usada para financiar a saúde, seus recursos sempre foram destinados para outras áreas.
A derrota virou uma questão de honra para Lula. O ex-presidente fez de tudo para derrotar nas eleições seguintes os algozes da proposta de prorrogação da CPMF, os quais, por sua vez, passaram a dizer que a votação da manutenção do imposto seria um teste do governo para depois tentar emplacar uma PEC para permitir um terceiro mandato do petista.
Mesmo que essa correlação não tivesse base na realidade, é inegável que a aprovação da prorrogação da CPMF daria um grande fôlego para o governo imprimir sua marca no restante do mandato de Lula às vésperas das eleições seguintes. Beneficiaria tanto Lula quanto seus aliados.
Conjectura semelhante pode ser feita agora, com uma grande diferença: o governo atual teria que burlar ou alterar as regras que regem o teto de gastos, a grande âncora fiscal, para poder aumentar despesas ou investimentos. O problema de Bolsonaro é que sinais nesse sentido já estão sendo captados tanto por parlamentares quanto por economistas.
Os opositores de uma nova CPMF insistem que essa contribuição sobre pagamentos é regressiva e punirá os mais pobres. Inevitavelmente, a esquerda tentará retomar a discussão da tributação de grandes fortunas, sob o argumento de que esta sim seria a forma mais justa de reforçar os cofres públicos. No pano de fundo das discussões, no entanto, permanecerão as suspeitas sobre os reais objetivos do governo. A confiança é um produto em escassez na Praça dos Três Poderes.
Bruno Boghossian: Reforma tímida em impostos reflete desgaste político de Bolsonaro
Guedes conhece limitações de um governo que só está preocupado em blindar o chefe
O governo ainda se sentia poderoso, em meados do ano passado, quando Paulo Guedes decidiu trombar com o Congresso. Irritado com as mudanças feitas em sua proposta de reforma da Previdência, o ministro criticou os deputados e disse que eles não tinham “compromisso com as futuras gerações”.
O czar da economia chegou a Brasília com a impressão de que ganharia suas batalhas no grito. Acreditava que a vitória de Jair Bolsonaro pavimentaria a implantação de uma agenda liberal, ignorando o fato de que nem o presidente havia comprado aquelas ideias com convicção.
O ministro finalmente conheceu as limitações do governo. Ao apresentar a primeira fatia de sua reforma tributária, ele reconheceu que as propostas do Executivo devem “ser trabalhadas” pelos parlamentares e acrescentou que “é a política que dita o ritmo” dessas mudanças.
A atitude de Guedes reflete o desgaste de um governo que sempre investiu no conflito para exercer o poder. A reforma oferecida pelo ministro indica que Bolsonaro não tem capital suficiente para atropelar o Congresso e impor propostas amargas.
Além de se esquivar de choques com os parlamentares, Guedes mandou para a geladeira os pontos mais impopulares do projeto. A criação de uma nova CPMF ficou para depois, e a ideia de tributar os produtos da cesta básica foi deixada de lado.
Na reforma da Previdência, o governo apostou mais alto. Tentou aprovar um modelo de capitalização para as aposentadorias e propôs a redução de benefícios para idosos muito pobres. Perdeu as duas brigas.
A mudança de comportamento não se deu por modéstia, mas porque os últimos 18 meses enfraqueceram Bolsonaro e obrigaram o presidente a estabelecer outras prioridades.
Atualmente, o governo opera para proteger um chefe investigado —e não para aprovar projetos de seu interesse. Nos últimos meses, o Planalto distribuiu cargos e emendas para blindar Bolsonaro e sua família. Discussões sobre a economia devem ser atendidas em outro guichê.
Celso Ming: O governo quer taxar o comércio eletrônico
Esse novo imposto digital será fonte de enormes encrencas
O ministro da Economia, Paulo Guedes, nunca escondeu, e agora menos ainda, que prepara a criação de um novo imposto, que não seria mais a volta da CPMF, motivo de repulsa instantânea do Congresso e da sociedade, mas o que chama de taxação do “comércio eletrônico”.
Para dar a essa nova garfada uma embalagem aceitável e não mais a de um imposto em cascata, que é proibido pela Constituição, avisa que não haverá aumento da carga tributária, mas apenas a substituição dos encargos sociais sobre a folha de pagamentos (desoneração) por um tributo de base mais ampla, com o objetivo de criar os empregos que estão desaparecendo pelos altos custos trabalhistas.
E, como a enfermeira que tenta encorajar uma criança apavorada pela injeção iminente, o ministro adianta que é uma picadinha de nada: “É só uma alíquota pequenininha, de apenas 0,2%”. A gente já conhece essa história de alíquota pequenininha que, lá pelas tantas, vira grandona, como com a CPMF. Independentemente do tamanho da picadinha, o ministro reconhece que seu potencial arrecadador é enorme: mais de R$ 100 bilhões por ano. (Só para comparar, a CPMF arrecadava pouco mais de R$ 40 bilhões.)
Até agora, ninguém fora da equipe econômica sabe o que seria esse novo imposto. Não foi divulgado nenhum anteprojeto. As declarações fragmentadas de Paulo Guedes sobre o assunto escondem até mesmo o principal.
O comércio eletrônico, que cresce ano a ano, como mostra o gráfico, e deve crescer ainda mais neste ano, já é submetido à taxação. Quem compra por via digital uma TV na Magalu ou uma impressora na Kalunga paga o mesmo ICMS que pagaria se a compra for feita diretamente nas lojas. Então, se for para sobretaxar o comércio eletrônico, esse novo imposto estaria encarecendo o produto comprado pela internet e, assim, desestimulando o comércio eletrônico, que é o sistema mais moderno e de menor custo do varejo. E, como vem advertindo o tributarista Bernard Appy, estaria empurrando o consumidor de volta para as lojas, num momento em que ele deve se defender da pandemia, tanto do surto atual como dos que ainda podem eventualmente acontecer.
Se a ideia é taxar tanto o comércio internacional promovido por grandes potências eletrônicas tipo Amazon e Alibaba como serviços digitais, como filmes fornecidos pela Netflix, músicas pelo Spotify ou programas de computador da Microsoft, então o governo estaria ignorando os debates e os projetos em estudo no âmbito da OCDE e do Grupo dos 20, que pretendem taxar não o comércio digital, mas a parcela do lucro das Big Techs, que hoje escapa de qualquer tributação.
Também fica difícil saber como o governo cobrará impostos sobre operações pagas pelo cartão de crédito ou por meio dos novos aplicativos acionados pelo celular que nem passarão pelos bancos, como o PagSeguro ou o PIX, em preparação pelo Banco Central. Como isentar nessas operações o que é fornecimento de um serviço, de uma compra online de supermercado ou de um delivery de restaurante, já normalmente taxados?
E as despesas no exterior que se quitam eletronicamente, como diárias de hotel ou de hospedagem pelo Airbnb, passagens aéreas ou ferroviárias, visitas a museus, aluguéis de veículos? O governo pretende taxar aqui dentro o que já é taxado lá fora?
Ao pretender criar um imposto sobre o varejo eletrônico, o governo federal mostra que pretende invadir o domínio tributário de Estados e municípios, que arrecadam o ICMS e o Imposto sobre Serviços calculado sobre o mesmo fato gerador. Assim, pode mexer com o pacto federativo.
O potencial de confusão é tão grande que até mesmo o governo não parece saber o que realmente quer e sobre que bases operacionais construir para a arrecadação desse imposto.
Para a tributarista Elisabeth Libertucci, sob os disfarces já conhecidos e sob novo rótulo, o ministro Guedes quer mesmo é um imposto fácil de arrecadar que, na prática, acabará por aumentar a carga tributária.
Por outro lado, facilidade é o que o governo menos terá. Mesmo não se conhecendo os termos da proposta, já se sabe o suficiente sobre ela. Se for aprovado, esse imposto será uma enorme fonte de encrencas.
Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil
Reforma tributária seria simples se o governo colocasse a sua proposta na mesa e parasse de dizer que debate está sendo interditado
O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.
O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.
Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.
Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.
Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.
O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.
O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.
Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.
O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.
Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.
Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.
Bruno Boghossian: Nova CPMF é símbolo do vazio de ideias da equipe econômica
Guedes e auxiliares já levantaram nove vezes o plano de um imposto sobre transações
A equipe econômica adotou o tumulto como método de trabalho. No vazio de ideias para impulsionar a atividade no país, o time de Paulo Guedes se habituou a lançar planos exóticos, que não saem do papel, ou ideias tão impopulares que só podem ter sido elaboradas por quem quer atrapalhar o governo.
O fantasma de um tributo nos moldes da antiga CPMF é um exemplo dessa autossabotagem. Nesta semana, Guedes voltou a citar a proposta de cobrança sobre transações. O ministro reconheceu que o imposto “é feio”, mas tentou emplacar a ideia para aliviar a carga cobrada de empresários sobre folhas de pagamento.
O roteiro se repete desde 2018. Em setembro, o economista disse num encontro privado que planejava cobrar um tributo sobre pagamentos. A agitação tomou a campanha de Jair Bolsonaro. O candidato quis bater na imprensa, mas deu uma paulada indireta na proposta do assessor.
“Ignorem essas notícias mal-intencionadas dizendo que pretendermos recriar a CPMF. Não procede. Querem criar pânico, pois estão em pânico com nossa chance de vitória”, escreveu Bolsonaro.
Desde então, Guedes e seus auxiliares levantaram a ideia do tributo outras oito vezes. O plano derrubou um secretário da Receita no primeiro ano do governo e foi se metamorfoseando. O ministro tentou mudar o nome do imposto, reduziu a alíquota e falou até em usar o dinheiro arrecadado para bancar a versão repaginada do Bolsa Família.
Guedes ainda precisa convencer o chefe. Em campanha, Bolsonaro afirmava que o plano de uma nova CPMF era “mentiroso e irresponsável”. Depois, disse estar disposto a conversar sobre o assunto. Para contornar as resistências, o governo quer que seus novos aliados do centrão abracem essa ideia.
O imposto sobre transações é o ramo podre de uma reforma tributária prometida e nunca apresentada pela equipe econômica. Em setembro, o ministro anunciou que entregaria o texto “na semana que vem”. Já se passaram quase 300 dias.
Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil
O ajuste fiscal será feito por um governo que saiba dialogar e construir consenso. A vida é diferente das metáforas de Paulo Guedes
O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.
O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.
Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.
Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.
Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.
O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.
O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.
Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.
O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.
Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.
Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.
Vinicius Torres Freire: Guedes passeia no Congresso com CPMF fantasiada e tenta virar o jogo tributário
Guedes insiste no imposto; jogo no Congresso mudou e pode haver novidades tributárias
Uma CPMF não passa no Congresso, estamos cansados de ouvir. Mas deputados dizem que querem conhecer esse imposto sobre pagamentos digitais ou comércio eletrônico de Paulo Guedes. Dizem também que está mais complicado passar uma reforma tributária ampla, como quer Rodrigo Maia, sem negociações maiores com o governo, porque o “jogo político mudou um pouco”.
Jair Bolsonaro conta agora com um bloco de uns 180 deputados, gente do centrão e agregados. É um juntado sem grandes convicções de qualquer espécie, mas que deve cumprir em parte o acordo no qual levou cargos no governo.
Guedes tem cantado deputados do centrão, mais exatamente do PP e do PL, com promessas de trocar a aprovação do seu imposto digital por redução de tributos sobre folha de pagamento ou por um programa mais gordo de renda básica.
Essa promessa de engordar a renda básica com receita e despesa novas não faz sentido a não ser que: 1) se estoure o teto de gastos; 2) se reduza a despesa com servidores; 3) se reduza o investimento em obras a quase zero.
O governo pretende acabar com benefícios como o abono salarial, por exemplo, a fim de destinar mais dinheiro para o que chama de Renda Brasil. Para tanto, não precisa de mais imposto. Derrubar o teto de gastos está fora de cogitação.
Foi para a gaveta a emenda constitucional de redução “emergencial” de despesa com servidores e benefícios atrelados ao salário mínimo. A reforma administrativa foi adiada sine die e não deve bulir com funcionários já contratados, ordenou Bolsonaro.
Reduzir o investimento a quase zero é possível e compatível com o projeto de destruição do país, mas um terço dessa despesa é determinada por emendas parlamentares e outro tanto também atende a interesses políticos locais. Logo, desse mato não deve sair nem um cachorro magro.
Bolsonaro vetou a lei que prorrogava até o final de 2021 a redução de impostos sobre a folha de alguns setores, o que irritou a Câmara. Guedes pede a parlamentares que não derrubem o veto porque “vem aí” uma desoneração maior da folha, que seria compensada pelo imposto digital, caso Bolsonaro não vete a ideia assim que sair de seu catre.
Este jornalista ouviu 14 parlamentares dados a assuntos econômicos. Ninguém soube dizer o que seria o tal imposto digital. Aceitam ouvir a nova proposta de Guedes desde que não seja CPMF disfarçada.
Maia quer tocar a ampla reforma de unificação de tributos desde já. Mas tem problemas novos: 1) o Senado quer tratar do assunto apenas a partir de agosto e pode não engolir uma reforma da Câmara; 2) setembro é mês de convenções partidárias e início da campanha eleitoral; 3) há muito mais deputados no time do Planalto. Ainda não estreou, mas pode jogar na retranca de interesses de Bolsonaro.
Ou seja, o tempo para a reforma é curto e a resistência política pode ser maior.
A disputa entre empresas a respeito de quem paga a conta da mudança tributária pode ser mais renhida. O setor de serviços tenderia a pagar mais impostos na reforma “ampla”; arrebentou-se muito na crise do vírus. No Congresso, há conversas sobre impostos novos, sobre ricos, lucros, empresas “Big Tech”. Há mais ruído e grande interesse em criar uma renda básica mais ampla que o Bolsa Família.
A pelada está mais cadenciada, embora possa haver um revertério caso voltem as botinadas golpistas ou apareçam cartões vermelhos nas investigações judiciais. Mas o jogo mudou, nestes 33 minutos do primeiro tempo do governo Bolsonaro.
Elena Landau: Rios de tinta
Separei as melhores piores frases de Guedes ditas desde o início da pandemia
Meu querido mestre Sergio Bermudes conseguiu vencer o covid-19 depois de meses de muita luta. Grande notícia. Resolvi estudar Direito depois dos 40. Teria cinco anos de curso pela frente e estava impaciente para aprender. Pedi uma lista de leitura a um jovem professor. Com ar blasé ele respondeu: “melhor esperar”. Tudo tem seu tempo. Quase desisti do curso ali.
Um amigo me sugeriu conversar com Bermudes. Eu só o conhecia de nome por conta de uma vitória emblemática durante a ditadura. Muito jovem, foi o autor da petição inicial do caso Vladimir Herzog. Propôs uma ação civil pedindo que o Judiciário reconhecesse a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista. Pela primeira vez, o Estado reconhecia que o Estado usava a tortura como instrumento.
Tomei coragem e pedi uma reunião, sem muitas esperanças. Me recebeu em sua casa para um delicioso almoço, em todos os sentidos.
Após quatro horas, saí de lá não só com uma lista de livros, mas com o convite para usar sua famosa biblioteca no escritório.
No antigo prédio da Marechal Câmara não havia espaço para me acomodar, nem mesmo uma mesa disponível. Sergio cedeu o sofá de sua sala e, na sua ausência, sua própria mesa. Isso foi em abril de 2002. Nesses 18 anos, fui estagiária, consultora para assuntos econômicos, sócia, e, acima de tudo, ele foi meu confidente, amigo e parceiro de dança.
Ouvindo suas teses nas discussões de casos com meus colegas aprendi muito mais que nos cinco anos de faculdade. Nos almoços, na disputada mesa da copa, as histórias, as piadas e a poesia são a sua marca, nada de trabalho. Me lembro dele declamando A Carolina, de Machado de Assis, em uma de nossas reuniões. Foi o primeiro de vários poemas e sonetos por ele recitados. Tem uma memória melhor do que elefante.
Nestes três meses que esteve lutando pela vida, Sergio não presenciou o criminoso tratamento deste governo com os infectados pelo vírus. Não ouviu o presidente debochar da gravidade da epidemia. Perdeu a demissão de dois ministros da Saúde e a entrega do cargo, de forma interina, a mais um dos militares, entre os 3 mil, que compõem este governo. Quando voltar a ler seu jornal diário vai ver que o número de mortos consegue lotar um Maracanã. Vai ficar surpreso com o fato que ainda não temos um ministro da Saúde e que as estatísticas confiáveis agora são aquelas divulgadas pelo pool de veículos da imprensa. Já imagino ele me perguntando: “o piloto sumiu?” Sumiu, está alimentando emas no palácio.
Sergio adora comentar as notícias do dia. Nos almoços, sempre vem com as inevitáveis perguntas sobre futebol, especialmente quando o Botafogo perde, e a economia do país: “e o dólar?” “Essa privatização da Eletrobrás sai mesmo?” E, em uma piada interna, vai perguntar o que estou achando do Pacheco, o personagem do Eça de Queiroz que é usado entre nós para identificar uns economistas que se acham.
Fui resgatar as frases de Guedes ditas desde o início da pandemia para contar a ele as peripécias de um Pacheco. Comecei com a “com 3,4 ou 5 bilhões a gente aniquila o vírus e os “40 milhões de testes semanais que o amigo inglês garantiu que vão chegar na semana que vem”, junto com a reforma tributária.
Nessa pesquisa das melhores piores frases de Guedes, encontrei uma dita ainda no início da campanha:
“Bolsonaro reconheceu que não entendia nada de economia (…) Queria um cara que estivesse ‘na lua’ e eu, por acaso, estava na lua”. Profética.
Sergio é o avesso da superficialidade. Mesmo sendo o grande processualista que é, e sabendo os Códigos de cor, continua, a cada caso, a buscar na lei a confirmação da estratégia escolhida para atender ao cliente. Filólogo, tem o Houaiss ao alcance da mão. Participar dos seus ditados para uma petição é um privilégio. Das teses jurídicas ao correto significado de cada palavra, tudo se aprende.
As peças do escritório tem sua marca pessoal. Usa títulos que levam o leitor direto à tese usada para explicar o mérito do pedido.
Nada de receita de livro-texto, como “Das Preliminares” ou “Do Pedido”. Os estagiários do escritório sofrem nas mãos de professores caretas. Eu quase fui reprovada por usar na prova seu estilo.
Sergio não gosta de petições longas e uma de suas expressões que mais me diverte é “Dispensem-se rios de tinta para demonstrar a nitidez da situação”. Descrever de forma concisa uma questão complexa é difícil, mas torna temas áridos em leitura acessível. Não vê necessidade de mostrar sua erudição mesmo tendo lido centenas de livros, no original.
Para escrever tudo que Sergio contribuiu para o Direito no país, e, especialmente, para minha vida, teria que gastar um rio Amazonas.
*Economista e advogada
Míriam Leitão: Guedes indica tendência no 5G
O ministro Paulo Guedes deu uma indicação de que o Brasil pode vir a desfavorecer a empresa chinesa na guerra do 5G. Na visão de autoridades políticas, o país cometerá um grande erro se entrar por razões ideológicas no conflito entre Estados Unidos e China por essa nova tecnologia. Em entrevista no fim de semana, Guedes disse que desde a pandemia surgiu uma “suspeição geopolítica” em relação à China por causa do Covid-19. E fez um paralelo. “Se os serviços de segurança, se o serviço de comunicação todo fosse interrompido, porque teve uma crise na China e eles desligarem lá uns botões?”
Segundo o ministro da Economia, “se não houvesse esse problema geopolítico, essa suspeição com regimes… criou-se uma suspeição na Europa inteira, nos Estados Unidos, que é a seguinte: será que eles demoraram a comunicar que essa crise era pandêmica, que era um problema sério? Fecharam uma província aqui, mas continuaram viajando para o exterior?” Caso não houvesse isso, segundo Guedes, o Brasil poderia “deixar o americano brigar com o chinês, com os nórdicos, e ver quem nos serve melhor”.
Esse delicado assunto tem sido acompanhado com lupa, até pelo motivo que o próprio ministro disse, nessa mesma entrevista concedida à CNN Brasil: o “5G é a nova fronteira da revolução digital e nós precisamos estar atuais”. Paulo Guedes fez um longo caminho entre a pergunta e a resposta. Passaram-se exatos 17 minutos nos quais ele circunavegou a história mundial, passou pela revolução francesa, entre outros eventos fundantes da civilização ocidental. Ele disse que o Brasil pertence ao grupo das democracias, lembrou o momento em que disse aos líderes russo e chinês que eles deveriam respeitar o nosso sistema democrático, sem tentar interferir. Teria sido na reunião do G-20 e logo após as manifestações chilenas. Acabou chegando na resposta. Apesar dessa diferença de regime, Guedes disse que o país, em condições normais, diria: “politicamente nós estamos do lado de cá, mas sempre que me perguntarem sobre economia eu diria que a gente dança com todo mundo.”
Tudo isso ocorreu em má hora, segundo Paulo Guedes. “Seria interessante deixar a competição funcionar, deixar a Ericsson, de um lado, a Huawei, de outro. Nessa hora que devíamos dar um mergulho vem essa primeira nuvem de suspeita e cria um problema geopolítico no que era algo estritamente econômico.”
Isso não é um assunto simples, de fato. Mas, primeiro, as acusações feitas à China na pandemia são parte da campanha americana. O presidente Donald Trump, da forma irresponsável de sempre, tem feito acusações aos chineses nesta pandemia sem comprovação, e o Brasil nada ganha se abraçar essa versão dos fatos. Os desmiolados do bolsonarismo dizem isso, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro, mas o ministro da Economia não deveria abraçar essa versão conspiratória. Segundo, hoje, as empresas que estão no Brasil e oferecem serviços de 4G usam tecnologia chinesa.
A sueca Ericsson e a finlandesa Nokia têm ganhado mais contratos desde que começou a guerra americana contra a Huawei. A Nokia comprou empresas americanas remanescentes da AT&T. A briga é antiga, mas está se acirrando, e o que o governo americano quer é o banimento da chinesa dos países aliados. Se o Brasil, sem avaliar vantagens e perdas, aderir aos Estados Unidos pode se dar muito mal. Paulo Guedes é mais uma autoridade brasileira jogando palavras estranhas contra o nosso maior parceiro comercial.
O problema é a maneira descuidada como se trata a relação com a China no governo Bolsonaro. O presidente, na campanha e logo após a posse, fez declarações infelizes. Já teve o então ministro da Educação fazendo tuítes racistas, o deputado Eduardo Bolsonaro fazendo acusações sem comprovação. Quando o embaixador chinês protestou, foi novamente criticado, desta vez pelo ministro das Relações Exteriores, que, em qualquer país do mundo, é aquele funcionário que apaga incêndios diplomáticos em vez de ateá-los. Na visão de Paulo Guedes, o Brasil não foi tão atingido pelo choque externo porque não é aberto ao mundo. Na verdade, foi porque a China aumentou suas compras de soja e de proteína animal. A declaração de Paulo Guedes põe mais lenha na fogueira.
Bruno Boghossian: Atalho de Guedes para retomada do emprego pode oficializar trabalho precário
Plano para estimular contratações aumenta risco de desigualdade e de desmanche de redes de proteção
Assim que o governo anunciou a prorrogação do auxílio emergencial do coronavírus, Paulo Guedes voltou a fazer propaganda do programa Verde e Amarelo. O ministro aproveita a pressão econômica da pandemia para driblar leis trabalhistas e permitir a contratação de empregados com menos proteções.
“O Verde e Amarelo são esses 30 milhões de brasileiros que estão por aí e que só querem o direito de trabalhar sem ser impedidos pelo governo”, disse o economista, na terça (30).
No dia seguinte, entregadores de aplicativos tomaram a avenida Paulista na contramão do ministro. Na paralisação, que já estava programada, eles cobraram das empresas melhores condições de trabalho, taxas mais justas e itens de proteção.
O governo Jair Bolsonaro não entendeu o recado. A equipe econômica continua em busca de um choque liberal nas relações entre empregadores e empregados. No caso dos trabalhadores informais, as medidas sugeridas podem fazer com que eles continuem desprotegidos.
A ideia é reduzir encargos sobre os empregadores. O programa Verde e Amarelo deve isentar empresários de cobranças do FGTS e do INSS. O projeto prevê ainda o pagamento por hora trabalhada.
Ao Valor Econômico um auxiliar de Guedes tentou pintar a precarização com tintas coloridas: “A pessoa trabalha duas horas num lugar, marca-se o valor. Depois, três horas em outro lugar, apresenta a carteira e marca. Ele pode ser empregado de oito pessoas ao mesmo tempo”.
Embora o custo de contratação no país seja considerado alto, o atalho apenas oficializa a informalidade, aumenta os riscos de desigualdade e desmancha uma rede de proteção que existe justamente para amortecer os efeitos de crises econômicas.
Ao defender o plano, Guedes disse que as leis trabalhistas são “o céu para alguns, mas com muito desemprego”, e descreveu a informalidade como “esse inferno do anonimato”. Após a crise, muitos trabalhadores não terão alternativa. O governo só se compromete a rezar a missa.