Paulo Guedes
Everardo Maciel: Fora de foco
Apesar do chavão da pretensa simplificação, nenhum dos atuais projetos de ‘reforma tributária’ simplifica
A pandemia de covid-19 vem se revelando mais persistente e insidiosa do que previra a mais pessimista previsão. A rigor, estamos sob o domínio da total incerteza, não só em relação às possibilidades de superação da crise sanitária, mas também no que se refere à natureza e dimensão das repercussões econômicas e sociais.
A despeito desse quadro de incertezas, a ONU e o FMI projetam para o Brasil, em 2020, aumento de 45% no contingente de pessoas em condições de pobreza ou extrema pobreza, queda de 9% no PIB e dívida pública se aproximando de 100% do PIB.
Esses alarmantes indicadores são agravados pela severa redução na atividade comercial, iminência de extinção ou redução do auxílio emergencial, problemática liquidação do estoque de tributos cujo vencimento foi postergado e agravamento da crise fiscal, sobretudo nos Estados e municípios, pela combinação de queda na arrecadação com aumento de gastos.
Tudo isso num contexto de recessão mundial, em que se tornam escassas as perspectivas de auxílio financeiro externo. Ao contrário do que se faz no resto do mundo, seguimos executando uma política sanitária com baixa coordenação, promovendo debates sobre trivialidades e abdicando de construir um planejamento mínimo para enfrentar as consequências da crise. Esse alheamento da realidade e consequente abulia sugerem uma patologia.
No âmbito tributário, especificamente, é evidente que temos problemas, como, em maior ou menor proporção, todos os países do mundo. Mas, em vez de aprofundarmos o conhecimento desses problemas e identificarmos soluções, preferimos brandir projetos de reforma tributária fundados em surrados chavões, sem a divulgação de qualquer estudo sobre repercussões setoriais e impactos sobre preços e com agendas ocultas que escondem propósitos polêmicos.
Jared Diamond, pensador contemporâneo, em Reviravolta, ao explicar como indivíduos e nações bem-sucedidos se recuperaram de crises, ensina: “Isolar defeitos, preservar qualidades e superar problemas”. Não é o que temos feito. Entre os chavões preferidos está a pretensão de simplificar. Nenhum projeto, entretanto, simplifica.
Por exemplo, hoje, a apuração do PIS/Cofins (contribuições com a mesma legislação e pagas com um mesmo documento de arrecadação), para os contribuintes optantes do regime cumulativo, se dá mediante a singela multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo, o que demanda conhecimentos obtidos nas classes iniciais do ensino fundamental.
Na proposta de criação da Contribuição sobre Bens e Serviços, a apuração do tributo devido por esses contribuintes se daria mediante uma complexa apuração de créditos e débitos, visto que haveria receitas que permitiriam ou não o aproveitamento de créditos. Resolver essa intrincada questão demandaria um sistema de contabilidade de custos, que permita uma apropriação integrada e coordenada com a escrituração.
Seguramente, faz-se mau uso do vernáculo simplificação. Os problemas do PIS/Cofins (litígios e regimes especiais) são de fácil solução. Litígios se concentram no aproveitamento dos direitos creditórios de insumos no regime não cumulativo, e são praticamente inexistentes no regime cumulativo. Esse litígio decorre de um erro de interpretação produzido por uma instrução normativa.
Para resolvê-lo, cabe tão somente rever a interpretação, na esteira do que tem sido decidido pelos tribunais superiores. Regimes especiais não surgiram por geração espontânea. Para revogá-los, deve-se recorrer à mesma via legal que os instituiu, respeitados os que foram concedidos por prazo certo e determinadas condições, conforme estabelece o Código Tributário Nacional.
De resto, o que se constata é o propósito dissimulado de promover uma grande redistribuição de carga tributária. Reduz-se a tributação de alguns produtos industrializados e aumenta-se, em meio à pandemia, a da mensalidade escolar, da consulta médica, do agronegócio, dos produtos da cesta básica, etc. Que intrigante lógica é esta?
*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e Guedes querem tirar bilhões dos ricos da classe média
Reforma tributária do governo reduz FGTS, aumenta IR e custos de serviços para o 10% mais rico
A reforma tributária Bolsonaro-Guedes quer tirar R$ 32 bilhões por ano dos trabalhadores com carteira assinada, porque pretende diminuir a contribuição patronal para o FGTS. Quer acabar com as deduções com despesas médicas e educação no Imposto de Renda ou limitá-las —se acabasse com tudo, seriam outros R$ 20 bilhões anuais.
O imposto que substituiria o PIS/Cofins, a CBS, deve aumentar a carga tributária, em particular pesando mais sobre serviços consumidos pelos mais ricos, que se chamam de classe média (que pagam escolas e outros cursos, profissionais de saúde, terapeutas em geral, advogados, arquitetos etc.). Uma nova CPMF vai encarecer tudo para todo mundo e vai reduzir ainda mais o rendimento das aplicações financeiras. Lucros e dividendos seriam mais tributados, pegando de jeito profissionais liberais.
Em resumo, o 10% mais rico do país, que tanto votou em Jair Bolsonaro, não parece ciente de que está para levar uma tunga do seu eleito. Esse 10% mais rico se chama de “classe média”, pois mede seu padrão de consumo com a escala de países como Estados Unidos e aqueles da Europa ocidental. A maioria de fato não é “rica”, nesse critério, mas está no topo da pirâmide da pobreza brasileira.
O governo quer reduzir a contribuição patronal para o FGTS de 8% para 6% —seria um corte de R$ 32 bilhões na arrecadação anual do fundo (segundo dados de 2019).
Em 2019, a Receita Federal estimou que os 12,9 milhões de declarantes do IR pelo modelo completo deixaram de pagar R$ 4,6 bilhões de imposto por causa da dedução com instrução e outros R$ 15,5 bilhões com a dedução de despesas de saúde. Nas contas dos economistas Fábio Goto e Manoel Pires, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (que o governo quer no lugar do PIS/Cofins) aumentaria a carga tributária (publicaram essa análise no Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia, Ibre, da FGV).
Essas contas são meras primeiras aproximações. Não é assim que se calcula efeito de imposto. A redução do custo do FGTS pode de fato ajudar a criar algum emprego, diminuindo a perda de receita total do fundo (mas não o pagamento para cada trabalhador). Acabar com as deduções de saúde e educação pode ser um tiro pela culatra (os contribuintes podem recuperar as perdas declarando pelo modelo simplificado), para dar outro exemplo. Mas vai ter tunga, caso o plano Bolsonaro-Guedes vá adiante.
Em alguns casos, não se trata de má ideia, a depender do destino desses dinheiros. O problema é que a reforma tributária do governo vai sendo chutada, vazada, rumorejada ou apresentada à matroca. Desde o ano passado, é um monte de balões de ensaios, de “vamos ver se cola”, de tentativas reiteradas de dar um jeitinho de passar uma CPMF. Etc.
Isso não presta.
Bolsonaro está para chegar à metade do seu mandato (está em 40%) e seu governo não tem um plano organizado de reforma tributária (sim, eu sei, é uma crítica retórica, não existe governo em quase parte alguma).
Não é possível entender uma reforma de impostos sem conhecer suas partes, como se deixa de arrecadar, como se passar a recolher imposto etc. O óbvio. Não é possível fazer contas ou saber quem paga a conta. Nada. É uma mixórdia, parece conversa de quem faz rolo (como Bolsonaro dizia de seu amigão Fabrício Queiroz), de quem gosta de conto do vigário, de negócio da China.
O Estado de S. Paulo: Projeto de reforma tributária aumenta impostos pagos por profissionais liberais
Na proposta do governo, os 3,65% pagos atualmente por escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, passariam para uma alíquota de 12%
Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - A nova etapa da reforma tributária em estudo pelo governo vai modificar o modelo de tributação de profissionais liberais que prestam serviços por meio de empresas e conseguem receber remunerações em forma de lucro livre do pagamento de impostos. Escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, que hoje pagam alíquota de 3,65% de PIS/Cofins e distribuem cerca de 85% do que faturam sem pagar impostos, estão se mobilizando contra a proposta de criação da nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e, principalmente, contra a volta da tributação sobre lucros e dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado).
O modelo atual levou à famosa “pejotização”: trabalhadores mais qualificados deixam de ser contratados como pessoa física por uma empresa e passam a prestar serviço como pessoa jurídica. O PJ, pessoa jurídica, paga cerca de um terço, ou até menos, de tributos em comparação a um empregado registrado, mesmo exercendo tarefas idênticas. Para o consultor Thales Nogueira, o fenômeno da “pejotização” contribui para aumentar a desigualdade de renda no Brasil nos últimos anos ao tributar menos quem ganha mais.
De acordo com os dados mais recentes do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), o porcentual médio de renda isenta dos profissionais liberais chega a 76% entre os advogados, 75% entre economistas, 71,6% entre agentes e representantes comerciais, e 68,6% entre produtores rurais (ver quadro).
Embora a proposta do governo federal só esteja tratando do PIS/Cofins, a alíquota prevista de 12% é muito maior do que os 3,65% pagos atualmente por esses profissionais. No caso do novo imposto que deve substituir o PIS/Cofins, especialistas ouvidos pelo Estadão lembram que essas empresas poderão usar o crédito que vão gerar ao longo da cadeia produtiva (à medida que forem comprando produtos) para abater no pagamento do imposto, mas quando o serviço for prestado a uma pessoa física (consumidor final), não haverá crédito a ser abatido e, portanto, a carga tributária será mesmo maior.
Arrecadação
Já a retomada da tributação dos lucros e dividendos, que existia até 1996, deve ser incluída na reforma tributária do ministro da Economia, Paulo Guedes, com o objetivo de aumentar a arrecadação para bancar o novo programa social estudado pelo governo, o Renda Brasil, que deve substituir o Bolsa Família, com um benefício maior e mais famílias contempladas. Essa tributação deve ser progressiva, ou seja, quem distribuir mais lucros, pagará uma alíquota maior – nos moldes do Imposto de Renda.
Hoje, esses profissionais pagam imposto sobre o lucro da empresa, mas os porcentuais são bastante baixos em função dos regimes simplificados de tributação. “É praticamente um caso de dupla não tributação dos lucros”, diz o economista Sérgio Gobetti, lembrando que o Brasil é um dos poucos países do mundo que isenta os dividendos distribuídos pelas empresas.
As propostas de reforma que estão sendo discutidas na comissão mista do Congresso não alteram a tributação de lucros e dividendos, mas o debate se acirrou na esteira das críticas de profissionais liberais de que haverá aumento da carga tributária com a alíquota mais alta da CBS de 12%.
O descontentamento foi maior entre os advogados. O presidente do Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, chegou a declarar que a entidade “iria à guerra” no Congresso contra a proposta.
“Os dados da Receita para 2018 mostram que nenhuma ocupação se beneficiou mais do privilégio do que os advogados”, disse Pedro Fernando Nery, consultor do Senado. Segundo ele, com a isenção vigente sobre lucros e dividendos, os brasileiros mais ricos se livram de pagar o imposto de renda sobre a pessoa física.
O procurador tributário da OAB, Luiz Bichara, rebate às críticas e argumenta que é preciso entender que o uso da sistemática não é uma prerrogativa dos advogados. “O que alguns burocratas entendem por ‘benefício’ nada mais é do que um regime válido para a esmagadora maioria dos empreendedores brasileiros”, diz.
Perguntas e respostas
1. Como é a tributação hoje?
As empresas são tributas em 34% sobre o lucro auferido. Sócios e proprietários de empresas que recebem dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado) não estão sujeitos à incidência de IR pessoa física (a alíquota poderia chegar a 27,5% se estivessem). A isenção na distribuição de lucros e dividendos resulta numa baixa tributação dos valores recebidos pelos sócios e acionistas. Em muitos casos, um profissional liberal que receba por meio de uma empresa de lucro presumido (nome dado a um tipo de modelo simplificado em que a empresa estima um lucro com base em porcentuais sobre a receita bruta)é tributado sobre apenas 32% da receita, podendo distribuir todo o lucro sem tributação na pessoa física.
2. Quantas pessoas recebem dividendos no País?
São 3,2 milhões de pessoas, segundo dados de 2018 (o mais atual).
3. Esses são os PJs?
Eles se confundem. Há empresários, executivos e alguns profissionais liberais que recebem a maior parte dos valores em lucros e dividendos. Mas também há o avanço da “pejotização”, quando um trabalhador se torna prestador de serviço, atuando como pessoa jurídica. Uma coisa é o profissional que é dono ou sócio de empresa, paga aluguel, tem folha de salário, opta por um regime especial e tem parte da renda isenta porque recebe um montante como dividendo. Outra coisa são as atividades de cunho personalístico e que não têm custo. Só o trabalhador travestido de empresa para não pagar imposto.NOTÍCIAS RELACIONADAS
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O Globo: Ala do governo quer ampliar gastos para projetar popularidade de Bolsonaro rumo a 2022
Equipe econômica, comandada por Paulo Guedes, recebe cobranças de ministros sobre liberação de recursos
Manoel Ventura e Naira Trindade, O Globo
BRASÍLIA - Os caminhos da retomada econômica pós-pandemia de coronavírus e a tentativa de projetar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, já mirando a campanha de 2022, vêm aumentando a pressão no governo pelo aumento dos gastos públicos. Um grupo liderado pelos ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) defende que a União gaste mais já a partir deste ano, receita combatida pelo titular da Economia, Paulo Guedes.
As viagens de Bolsonaro ao Piauí, Rio Grande do Sul e à Bahia nos últimos dias são parte da estratégia de aumentar a presença em eventos para celebrar intervenções realizadas pelo governo. Para manter uma agenda extensa e montar uma carteira de obras públicas robusta, no entanto, vai ser necessário gastar mais do que o espaço atualmente reservado no Orçamento para esse objetivo, sob risco de deteriorar a já complicada situação fiscal.
A disputa também passa pelo tamanho do Renda Brasil, programa que vai substituir o Bolsa Família e virou o trunfo de Bolsonaro para conseguir melhorar sua aprovação e se reeleger. As discussões têm se acentuado nas últimas semanas, porque o governo envia este mês ao Congresso a proposta orçamentária de 2021. O pagamento do auxílio emergencial para desempregados e trabalhadores informais prevê cinco parcelas de R$ 600 — quem começou a receber em abril, na primeira leva, receberá a última em agosto.
De acordo com as previsões iniciais da equipe econômica, os valores reservados para os investimentos continuarão em baixa, o que tem irritado integrantes da Esplanada dos Ministérios. O teto de gastos limita o crescimento das despesas federais à inflação do ano anterior. Uma vez que as despesas obrigatórias, como pagamento de salários e aposentadorias, crescem mais que a inflação, o espaço para investimentos tem ficado menor a cada ano.
O racha ficou explícito durante uma reunião em meados de julho, com discussões sobre a possibilidade de gastar cerca de R$ 35 bilhões com obras fora do teto de gastos e além do que já estaria previsto no Orçamento. Para efeito de comparação, a previsão orçamentária do Ministério da Infraestrutura para investimentos e manutenção da máquina em 2021 é de R$ 6,3 bilhões, segundo dados obtidos pelo GLOBO. Já a despesa do Ministério do Desenvolvimento Regional seria de R$ 5,2 bilhões, reservada para obras como de infraestrutura hídrica.
Na sexta-feira, em Bagé (RS), numa sinalização de que concorda com o ministro do Desenvolvimento Regional, Bolsonaro afirmou que, “pelo menos uma vez por semana”, sairá de Brasília para percorrer o país:
— O que eu sempre falei com meu ministro, o Marinho, é não deixar obra parada. Temos problemas de Orçamento? Temos. Estamos tentando arranjar recursos para que as obras sejam concluídas.
Guedes resiste
A possibilidade levada por Marinho ao Palácio do Planalto consistia em empenhar todos os recursos necessários em 2020, porque as regras orçamentárias estão mais frouxas por conta da necessidade de gastar para conter os efeitos da pandemia. Os valores, no entanto, seriam pagos ao longo dos próximos anos. O empenho é a primeira etapa do processo orçamentário, pelo qual o governo garante que vai pagar pelo serviço.
Guedes é contra a ideia. Ele entende que o sinal passado com uma eventual burla ao teto de gastos seria péssimo, com repercussão sobre a situação econômica do país. O ministro argumenta que é mais importante construir regulamentos que permitam a ampliação do capital privado e que os R$ 35 bilhões não seriam suficientes para recuperar a atividade econômica. Na semana passada, a agência de classificação de risco Moody’s alertou que uma eventual elevação do teto prejudicaria a nota do Brasil e levantaria dúvidas sobre a trajetória da dívida.
Sem conseguir costurar um consenso no governo e no Congresso sobre o tema, o ministro do Desenvolvimento tentou convencer o titular da Casa Civil, Walter Braga Netto, a consultar o Tribunal de Contas da União (TCU) para que a Corte avalizasse o aumento de gastos. Braga Netto tem feito a ponte entre Guedes e a ala favorável a mais gastos.
O desejo pela liberação de mais recursos esbarra também no presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Diante desse cenário, ministros do TCU decidiram não se envolver na polêmica. Consultados informalmente, integrantes do tribunal avisaram o governo que qualquer decisão a respeito dependeria de um acordo prévio entre Executivo e Congresso, já que deputados e senadores teriam de aprovar um projeto de remanejamento de recursos.
Atritos constantes
O assunto colocou Guedes e Marinho novamente em lados opostos. Os dois já haviam discordado na criação do Pró-Brasil, programa também com propósito de reduzir os impactos econômicos ao fim da pandemia. À época, Guedes queixou-se com Bolsonaro de que Marinho havia costurado a criação do Pró-Brasil sem a participação da Economia e comparou a iniciativa ao Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC) dos governos petistas.
Segundo integrantes do Palácio do Planalto, Braga Netto tem trabalhado para diminuir atritos entre os ministros e conciliar assuntos que provoquem polêmicas. Por isso, a Casa Civil decidiu não fazer a consulta sobre o aumento de gastos ao TCU e agora busca uma nova saída para que o governo possa seguir o plano de Marinho para impulsionar as obras.
A aliados, Guedes também reclama que, por trás do desejo de aumento de gastos, pode estar a pretensão de Marinho de concorrer ao governo do Rio Grande do Norte em 2022. Próximo de Tarcísio de Freitas e também de Ramos, Marinho tem defendido que a reeleição de Bolsonaro depende dessa nova agenda de inaugurações de obras pelo país.
Míriam Leitão: A velha CPMF de roupa nova
O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.
Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:
— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.
Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.
— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.
Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.
Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.
Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:
— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.
As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:
— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.
Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.
— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.
A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.
Julianna Sofia: Guedes adere ao vale-tudo para recriar CPMF
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF
No vale-tudo de Paulo Guedes (Economia) para desinterditar o debate sobre a recriação da CPMF, o ministro usa técnicas de um diversionismo pouco sofisticado para sugestionar a opinião pública, majoritariamente contrária ao novo (antigo) tributo.
Nas investidas mais recentes, o economista de Jair Bolsonaro vincula a instituição do imposto, a um só tempo, à desoneração de 25% da folha de salários das empresas, à ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda e ao financiamento de parte do novo Bolsa Família (Renda Brasil).
Com as finanças públicas exauridas, Guedes não abre mão do dinheiro grosso que poderia amealhar com uma alíquota mínima de 0,2%: R$ 120 bilhões. Há planos por uma taxação de até 0,4%. Joga iscas ao empresariado, à classe média e à população de baixa renda para capturar o mundo político —atmosfera na qual nunca orbitou.
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF, pois o novo tributo incidiria sobre pagamentos, sobretudo compras no e-commerce. Das falas desencontradas e dos vazamentos seletivos de informações, conclui-se, porém, que a intenção vai além de criar um “imposto do Rappi”, restrito ao ambiente digital, de cunho moderno e elitizado.
Pagamentos de qualquer tipo, compras inclusive em dinheiro, estariam sujeitos à tributação devido ao registro digital —hoje válido até para o pãozinho na padaria. Impostos sobre transações vigoram atualmente apenas em uma dúzia de países, como Paquistão, Venezuela, Argentina e Sri Lanka.
A aversão do Congresso é liderada por Rodrigo Maia, para quem a contribuição trava a economia: "Minha crítica não é se é CPMF, se é microimposto digital, se é um nome inglês para o imposto para ficar bonito, para tentar enrolar a sociedade”. A despeito das reações, com o centrão a tiracolo e sem mover um músculo, Bolsonaro autoriza Guedes a se aventurar mais uma vez na busca por apoio.
Míriam Leitão: CPMF: ‘Me chame pelo meu nome’
A CPMF tem má fama. Por isso o governo tenta outros nomes. O ministro Paulo Guedes ora fala em “imposto digital” ora diz que será sobre “transações eletrônicas”. Na verdade, o governo está tentando desde o começo trazer de volta o tributo que provocou muitas distorções. Ele incidiria sobre todos os pagamentos da economia, pesaria sobre todas as compras e transações financeiras, e dos dois lados, o que na prática vai duplicar a alíquota. O governo adoça o nome e oferece os prêmios, como a dizer: tudo isso será seu se aceitares o meu novo imposto.
A primeira coisa a fazer é apresentar a proposta e chamar tudo pelo nome certo. A palavra “digital” soa moderna e parece embutir uma porta de saída: se eu for analógico, poderei fugir do imposto? Se fosse isso, seria um incentivo ao retrocesso e uma punição a qualquer transação eletrônica. Ou seja, o governo estaria estimulando a que todos fossem fisicamente aos bancos, mesmo podendo fazer pagamentos online, e se dirigissem pessoalmente às lojas, mesmo preferindo compras online. Não é disso que se trata, mas se fosse já seria absurdo.
O ministro Paulo Guedes sempre quis introduzir na economia a proposta do ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, desse imposto sobre pagamentos nos moldes da CPMF. Quando Cintra foi claro sobre a natureza do seu projeto tributário, ele foi demitido por decisão do presidente Jair Bolsonaro. Na época, Guedes lamentou: “Morreu em combate nosso valente Marcos Cintra.” Depois, Cintra disse numa entrevista que o governo continuava querendo exatamente aquele imposto. Verdade. A ideia ainda é a primeira.
A má fama da CPMF vem da experiência de quem a pagou por dez anos apesar de o “P” ser de “provisório”. Um imposto que engana. Parece uma pequena alíquota. Alguém pode achar pouco pagar 0,2%. Mas é sobre todas as compras, contratações, serviços prestados, vendas, aplicações, resgates, a infinidade de transações que ocorre dentro da economia. Até chegar na sua mão quantas etapas de pagamentos um produto já cumpriu? O imposto é cumulativo. É regressivo. Rico e pobre pagam o mesmo. Vai no caminho oposto do que se quer modernamente que é saber quanto de tributo há em cada mercadoria ou serviço.
Há outros efeitos colaterais. A CPMF incide sobre impostos já pagos, ou seja, promove bitributação. Também leva à perda de competitividade na economia ao estimular a verticalização. Empresas passam a incorporar todas as etapas do processo produtivo internamente, para fugir do imposto pago pelo serviço de terceiros. A informalidade cresce, e o spread bancário pode ficar maior, provocando aumento das taxas de juros.
A vantagem para o cobrador de impostos é que ela arrecada muito. Fica tentador. Da outra vez, o provisório foi ficando permanentemente na economia até ser derrubado dez anos depois pelo Congresso, em 2007. Se a ideia é repetir a história, que a proposta — como disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia — seja apresentada integralmente. Assim, acabarão as suposições, as meias verdades, os nomes de fantasia, a impressão de que a taxa recairá sobre outro contribuinte. Não, recairá sobre todos.
O governo montou um pacote de bondades e frequentemente saca de lá algum bom bocado para seduzir o contribuinte. Fala em desonerar a folha para estimular o emprego, ou no mínimo a retirada parcial de encargos. Promete elevar a faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física. Fala em fazer um novo Bolsa Família, maior e mais amplo. Acena com um IPI menor. Paulo Guedes chegou a fazer até uma pilha. “Você pode até reduzir cinco, sete, oito ou dez impostos”.
Que as contas sejam mostradas, que os nomes próprios apareçam. Esse jogo de balão de ensaio cansou. Todo governo gosta de CPMF. Em janeiro de 2016, meses antes de deixar o cargo, a então presidente Dilma Rousseff disse que “diante da excepcionalidade do momento” a CPMF era “a melhor opção disponível”. Agora, Guilherme Afif, assessor de Guedes, diz: “A resposta a quem critica é: me dê uma alternativa melhor do que essa. Ainda não vi.” Afif ficou conhecido reclamando dos impostos excessivos e agora manda o contribuinte arranjar uma ideia melhor. Ora, deve dizer claramente qual é a conta que pretende enviar para o pagador de impostos.
Míriam Leitão: BB e a relação com o governo
Presidente do conselho do Banco do Brasil garante que desde que assumiu não houve interferência do governo em decisões do banco
O presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil, Hélio Magalhães, garante que desde que ele assumiu “não houve nenhum evento de influência do controlador do banco”. Muitas polêmicas têm cercado a administração do BB, principalmente na área de marketing, várias vezes criticada, inclusive aqui na coluna de ontem. A explicação que ele dá para a publicidade em sites de fake news, ou bolsonaristas, é que a escolha é feita aleatoriamente pela “ferrramenta” do Google. Hoje, está sob o controle de qualquer empresa escolher não anunciar em determinados sites.
A polêmica em torno da publicidade do Banco do Brasil surgiu por bons motivos. Teve o alerta de que os anúncios estavam em sites que divulgavam fake news e discurso de ódio. O primeiro movimento do banco foi de recuo, mas, depois de ser criticado por Carlos Bolsonaro, o BB manteve os anúncios:
— Infelizmente as notícias foram distorcidas. Não houve ingerência alguma, posso garantir como presidente do conselho. O que aconteceu foi que a notícia chegou, o analista da área de marketing tentou tirar do ar, mas aí se viu que nem tem como tirar do ar.
Na verdade, o TCU mandou, em 27 de maio, que o BB suspendesse a publicidade em determinados sites, blogs, portais e redes sociais. O plenário do tribunal referendou uma medida cautelar proposta pelo ministro Bruno Dantas a pedido do procurador de contas Lucas Furtado, que apontava suspeita de interferência do secretário de comunicação do Planalto, Fábio Wajngarten. O secretário chegou a postar — depois da reclamação do filho do presidente — que iria atuar para que o banco voltasse atrás. E o banco de fato recuou.
Magalhães tem uma longa carreira no mercado bancário, tendo se aposentado no Citibank. Ele disse que, quando foi chamado pelo ministro Paulo Guedes para presidir o conselho de administração, recebeu três tarefas:
— A melhor governança possível, preparar o banco para “desinvestimentos”, e maior eficiência para aumentar o valor dos ativos do banco.
Ele acha que o que aconteceu, a entrada do TCU, as notícias, as idas e vindas do banco não tiveram a conotação que todo mundo entendeu:
— Hoje, com o mundo digital, o banco tem que estar presente nas redes. Como funciona? Escolhe o público alvo e a sua agência, faz um contrato com o Google. A ferramenta do Google é que analisa as páginas e os sites — disse Hélio Magalhães.
Toda a atuação de páginas como Sleeping Giants, por exemplo, tem sido a de indicar às empresas onde os anúncios delas estão. E inúmeras empresas brasileiras já atuaram para decidir onde não anunciar, exatamente para proteger sua imagem. Portanto, essa escolha não é aleatória e fora de controle da empresa. Ninguém quer hoje estar vinculado a páginas que têm discursos de ódio. Essa virou uma campanha mundial. O Stop Hate for Profit.
Ontem surgiu outro problema. O subprocurador-geral de contas, Lucas Furtado, fez uma representação para o TCU apurar a venda de uma carteira de crédito do Banco do Brasil para o BTG. O valor nominal era de R$ 2,9 bilhões, e o BB a vendeu por R$ 371 milhões, ou seja, 13% do valor. Furtado apontou falta de transparência sobre os critérios.
Magalhães explicou que, como toda instituição financeira, o Banco do Brasil tem que lançar a prejuízo dívidas não pagas depois de um certo tempo. Essa carteira era, segundo ele, de dívidas de mais de cinco anos:
— Essa cobrança é mais dura. Há empresas especializadas nisso. E foi mandado para três delas. A proposta é que ela paga na frente um valor e depois divide com o banco o sucesso da cobrança. Quando se consegue vender por 5% já é bom. Foi um excelente negócio para o banco, talvez tenha faltado explicar direito.
As empresas que participaram da disputa foram a Enforce, do BTG, que venceu, a Jive, a Canvas e a Ativos. Essa última uma subsidiária integral do BB. No mercado, os analistas não acharam o valor pequeno, levando-se em conta que já era dívida antiga, mas faltou de fato transparência.
Magalhães repetiu várias vezes que o modelo de governança não permite interferência do acionista controlador. O ideal seria então que houvesse menos sinais explícitos de ingerência por parte do presidente da República, seu filho e seu secretário de imprensa na publicidade do Banco do Brasil.
Míriam Leitão: Do liberalismo ao antiliberalismo
Não há méritos na gestão Rubem Novaes no Banco do Brasil, mas sua saída revela que há planos no governo de aumentar a influência estatal sobre a instituição
O problema da equipe econômica do governo Bolsonaro não é se está ou não havendo debandada ou que a pauta liberal está sendo arquivada. É pior. Agora segue-se uma pauta antiliberal. A Caixa Econômica virou um braço do bolsonarismo e parte da propaganda oficial. O Banco do Brasil já fez concessões que deveriam corar qualquer liberal, porque a instituição de economia mista passou a ter ingerência direta do governo até nas decisões de marketing. E tem ainda os ensaios de pedaladas. O governo consultou o Tribunal de Contas da União (TCU) se pode fazer investimento em infraestrutura contornando o teto de gastos, e na semana passada o Congresso evitou que o teto fosse burlado.
A saída de Rubem Novaes tem que ser vista de duas formas. Ele permitiu a interferência do governo na instituição, mas quando ele sai revela-se que há mais tentativa de intervenção. Não há mérito em sua gestão, mas a saída mostra que há planos de entrar mais fundo nesse modelo que impõe ao banco a presença governamental.
A Caixa foi beneficiada com o monopólio da distribuição do auxílio emergencial, fez um trabalho cheio de falhas e aproveita cada espaço para afirmações de exaltação bolsonarista como “nunca na história da humanidade”. É a figurinha mais repetida do álbum das lives presidenciais. Uma coisa é o presidente Bolsonaro fazer o seu marketing, outra é usar os bancos públicos como parte dessa estratégia ou como tentáculos do governo. É uma estratégia claramente antiliberal.
O TCU, que Novaes definiu como “usina de terror”, na verdade fez seu trabalho de órgão de controle que é. O relatório do ministro Bruno Dantas, referendado pelo Tribunal no dia 27 de maio, vai diretamente ao ponto. A gestão de Novaes na área da comunicação do banco foi considerada gravíssima pelo tribunal, que disse estar havendo por parte do acionista controlador, no caso o governo, ingerência sobre uma instituição financeira com ações em bolsa. O BB vinha anunciando em sites que divulgavam fake news. Suspendeu, depois do alerta, mas voltou atrás por pressão do vereador Carlos Bolsonaro. O TCU ressaltou a fragilidade da governança do banco e lembrou as orientações da OCDE, “no sentido de que as empresas estatais tenham liberdade para atuar e não se submetam a ingerências indevidas do governo ou mesmo de familiares do chefe do poder executivo, à mingua de orientação técnica que justifique essa interferência”. Esse episódio, ressaltado pelo tribunal, se soma ao veto do presidente a uma propaganda onde havia jovens negros e descolados e que já estava no ar. Novaes não apenas a tirou do ar, como defendeu a posição de Bolsonaro.
O TCU lembrou também que no primeiro ano de Novaes no Banco do Brasil, apesar da prometida austeridade, ele gastou R$ 119 milhões com publicidade na internet e com uma escolha muito controversa de sites, como se viu. Houve outras polêmicas na sua gestão. Ele nunca defendeu os ideais liberais, na prática aceitou a intervenção, mas dizia que seu sonho era privatizar o banco. Poderia ter começado evitando que a instituição fosse usada pelo governo de plantão.
Bolsonaro jamais defendeu uma única proposta liberal, mas Paulo Guedes e todos os outros economistas que trabalharam no comitê de campanha, como Rubem Novaes, transplantaram para dentro do programa vazio do então candidato do PSL um rio de promessas. Não as entregou. Isso não surpreende quem não cedeu ao autoengano. Mas agora o risco é fazer o exato oposto do prometido e seguir uma agenda antiliberal com o objetivo eleitoreiro. Naquela famosa reunião ministerial, o ministro Paulo Guedes falou claro: “vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.”
Está sendo formatado o novo programa — que eles chamam de Renda Brasil — para preencher o vazio de política social na gestão de Bolsonaro. Pelo visto, é o passo final da politização da economia. A pandemia empobreceu os pobres, será necessário ampliar o Bolsa Família e fortalecer as políticas sociais, mas tem que ser com um debate contábil transparente, com limites fiscais definidos e sem o uso dos recursos públicos para um projeto político que, além de tudo, nunca escondeu sua convicção autoritária.
Bernardo Mello Franco: Saída à francesa
Rubem Novaes abriu a torneira do Banco do Brasil para financiar blogs bolsonaristas. A três semanas de deixar o cargo, vendeu uma carteira bilionária ao BTG
Rubem Novaes falou muito durante o ano e meio em que ocupou a presidência do Banco do Brasil. Na sexta-feira, escreveu apenas dez linhas para anunciar sua renúncia ao cargo.
Em nota, o BB informou que ele vai sair por entender que “a companhia precisa de renovação para enfrentar os momentos futuros de muitas inovações no sistema bancário”. Para dizer isso, era melhor não dizer nada. O banco economizaria duas linhas e deixaria de ofender a inteligência alheia.
Novaes é amigo de Paulo Guedes, com quem estudou em Chicago. A exemplo do ministro, tem a cabeça ultraliberal e a língua maior do que a boca. Na famosa reunião de 22 de abril, os dois fizeram um dueto de grosserias para defender a privatização do banco.
“Tem que vender essa porra logo”, pontificou Guedes. Em seguida, Novaes definiu os controles do Tribunal de Contas da União como uma “usina de terror”. “Se a gente faz alguma coisa, tá arriscado a ir pra cadeia”, disse. Faltou detalhar as coisas que ele pretendia fazer.
O economista também deu um palpite infeliz sobre a pandemia. “Minha sensação é de que esse pico já passou”, opinou. Naquele dia, o país contava 2.906 mortes pelo coronavírus. Ontem a conta fechou em 87.737.
Bolsonarista de carteirinha, Novaes permitiu que o banco usasse dinheiro dos correntistas para financiar sites acusados de difundir fake news. Em junho, o TCU mandou fechar a torneira. Ele recorreu da decisão, alegando prejuízos financeiros. Prejuízos ao banco, não aos blogueiros governistas.
Há três semanas, o BB vendeu, sem leilão, uma carteira de crédito de R$ 2,9 bilhões pela bagatela de R$ 371 milhões. O comprador foi o BTG, que teve Guedes entre os fundadores. O ex-ministro Ciro Gomes definiu a transação como “um negócio escandaloso”. A oposição quer obrigar Novaes a explicar o que fez.
No sábado, o economista disse à CNN Brasil que não se adaptou à “cultura de privilégios, compadrio e corrupção de Brasília”. A declaração é típica de quem tem histórias a contar. Mais um motivo para que ele seja convocado pelo Congresso antes de sair à francesa.
Hélio Schwartsman: Guedes se acha muito esperto
Se o ministro acha que envolverá os parlamentares recorrendo à versão do truque do bode na sala, está enganado
Paulo Guedes se acha mais esperto do que todo mundo. Não é. Especialmente no Congresso, há muita gente que dá um baile no ministro quando o assunto é cálculo político e raciocínio estratégico. Para usar uma imagem meio surrada, mas ilustrativa, os caras tiram a meia sem descalçar o sapato.
Nosso sistema tributário está entre os piores do planeta. Ele é excessivamente regressivo e traz tantas complexidades e excepcionalidades que os consumidores, que são os pagadores finais, acabam gastando não apenas com os tributos mas também para sustentar um exército de contadores e advogados.
Pior, o Brasil tem uma carga tributária muito alta para o nível de desenvolvimento em que se encontra, boa parte da qual é alocada, não em serviços destinados a todos, mas em bem-sucedidos esquemas de “rent seeking” (apropriação de renda).
E essa era a situação antes da pandemia. Agora, dado que haverá um importante aumento da dívida pública, nós dificilmente escaparemos de uma elevação ainda maior dos impostos, sem mencionar o fato de que a crise revelou a necessidade de adotarmos algum tipo de renda básica, o que também custa dinheiro.
Uma reforma tributária é necessária e urgente. E também é preciso reconhecer que, embora haja razoável consenso técnico sobre o que deve ser feito, as negociações para alcançar um entendimento são muito difíceis, pois interesses serão contrariados e muitos grupos têm poder de veto.
O ponto de partida para um debate produtivo é que os principais atores negociem de boa-fé, apresentando sem reservas nem armadilhas a visão que têm do problema e a integralidade de suas propostas. É só assim que se pode chegar a concessões que possibilitem um acordo.
Se Guedes acha que envolverá os parlamentares recorrendo à versão mais tosca do truque do bode na sala, está enganado. Será engolido por eles, como acaba de ser nas negociações do Fundeb e em tantas outras.
Míriam Leitão: Regime fiscal de um estado só
Quando setembro vier, o Rio deve ir ao Supremo Tribunal Federal. No Ministério da Economia a aposta que se faz é que o estado vai judicializar a sua recuperação fiscal. O Rio chegará ao fim do período ainda mais endividado e sem ter vendido sua principal estatal, a Cedae. O secretário de Fazenda garante que o estado cumpriu todas as exigências, em Brasília o entendimento é que não cumpriu e que portanto não poderá haver uma renovação do contrato.
Para ser renovado, o estado teria que apresentar um novo plano de equilíbrio, e ele precisaria ser aprovado em tempo recorde pela equipe técnica do ministério da Economia, com aval do ministro Paulo Guedes e do presidente Jair Bolsonaro. Dificilmente acontecerá.
Três anos após a sua criação, o Regime de Recuperação Fiscal contou com a adesão de um único estado, o Rio de Janeiro, mas mesmo antes da pandemia ele não tinha reequilibrado as suas contas. O Rio deixou de pagar mais de R$ 50 bilhões em dívidas à União — ou com aval do Tesouro — e ainda assim o seu endividamento aumentou em relação à sua receita corrente líquida. O Rio Grande do Sul estava tentando entrar no Regime de Recuperação quando veio a crise. Minas Gerais sequer tentou e foi à Justiça, que suspendeu o pagamento dos juros. Depois, outros conseguiram o mesmo direito. Por fim, todos as parcelas foram suspensas até o fim do ano. Se não fosse isso, o Rio teria que voltar a pagar a sua dívida em 5 de setembro.
Em entrevista à coluna, o secretário de Fazenda do estado, Guilherme Mercês, defende que o Rio cumpriu todos os requisitos na última avaliação feita pelo Conselho de Supervisão do regime fiscal, em junho. Mas no governo federal o entendimento é de que o balanço desses três anos é desfavorável ao estado, e o Rio já deveria ter apresentado um novo plano de reestruturação.
— A lei não é clara. A Procuradoria-Geral de Fazenda Nacional (PGFN) tem o entendimento de que o estado precisa apresentar um novo plano. Já o governo do Rio acredita que a renovação deveria ser automática. E com isso caminha-se para o pior dos mundos, que é a judicialização do tema, como aconteceu com Minas Gerais — afirmou um técnico do governo.
Guilherme Mercês avalia que o estado já cumpre todas as condições para ter a renovação e diz que a lei foi pensada para um período de seis anos, com uma avaliação no meio do caminho, o que aconteceria em setembro.
— Em termos econômico-financeiros, o Rio de Janeiro está mais do que quite. O conselho exigiu R$ 600 milhões de compensações e aprovamos R$ 635 milhões. Estamos com R$ 35 milhões de sobra. Agora, a discussão é jurídica. O nosso entendimento é que o Rio continua tendo as mesmas necessidades para continuar no Regime — explicou.
Para complicar o quadro, com a pandemia, o Congresso autorizou a suspensão do pagamento da dívida de todos os estados à União até o final deste ano. O governo do Rio, dessa forma, foi o único obrigado a cumprir medidas de ajuste fiscal em plena recessão. Mercês diz que o governo Witzel bloqueou o preenchimento de 10.500 cargos públicos dos três poderes no estado e negociou a suspensão no pagamento de royalties que tinha securitizado, o que evitou a antecipação de uma despesa de quase R$ 6 bilhões em dívidas nos anos de 2020 e 2021.
— Todo os estados têm o mesmo benefício, mas só o Rio é cobrado. Esse é um ponto de discussão interessante — afirmou Guilherme Mercês.
Depois de três anos, a venda da Cedae foi empurrada para dezembro deste ano, mesmo mês em que o Rio terá que pagar uma dívida de R$ 4,5 bilhões ao banco francês BPN Paribas. Guilherme Mercês diz que a expectativa é que agora o leilão ocorra, após a aprovação do novo marco do saneamento pelo Congresso. A empresa continuaria estatal, como produtora de água, mas privatizaria a distribuição de água e a coleta e o tratamento de esgoto.
Se tivesse as contas reprovadas pelo Conselho de Monitoramento, o Rio teria que quitar de uma só vez os mais de R$ 50 bilhões que deixou de pagar ao Tesouro. A medida é tão dura que torna a punição praticamente inexequível, no entendimento do próprio governo federal. Caso o programa expire em setembro, as parcelas voltariam gradativamente, mas a partir de janeiro do ano que vem, quando acaba o estado de calamidade pública. A crise fiscal dos estados está longe de terminar.