Paulo Guedes
Bernardo Mello Franco: Guedes virou um ex-superministro
A debandada na equipe econômica transformou Paulo Guedes num ex-superministro. O fenômeno já havia ocorrido com Sergio Moro, que acreditou ter carta branca e foi esvaziado até deixar o governo. Agora se repete com o fiador do bolsonarismo junto ao mercado.
No mesmo dia, abandonaram o barco os secretários de Desestatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Paulo Uebel. Eles reclamaram que as privatizações e a reforma administrativa não saem do papel. O principal motivo é a falta de interesse do capitão.
Na campanha, Guedes garantiu que Bolsonaro havia se convertido ao ultraliberalismo. Logo ele, que pregou o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso por causa do leilão de estatais. O ministro anunciou um plano radical de redução do Estado. Em um ano e meio, não entregou quase nada do que prometeu.
Algumas de suas propostas, como zerar o deficit público em um ano e arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de imóveis públicos, sempre soaram como anúncios de terreno na Lua. Acreditou quem quis.
Além de vender ilusões, Guedes criou múltiplas frentes de atrito. Ele brigou com o presidente da Câmara, chamou servidores de “parasitas”, ofendeu pobres que deixaram de viajar após a disparada do dólar. É inesquecível a sua fala sobre os tempos do real valorizado. “Empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada… Pera aí!”, ironizou.
A pandemia desmontou de vez a fantasia do governo ultraliberal. Vendo sua reeleição em risco, Bolsonaro deixou de se aconselhar no Posto Ipiranga. Sem combustível, Guedes perdeu espaço para ministros que defendem o aumento do gasto público, como seu ex-assessor Rogério Marinho. Agora vê outros auxiliares fazendo as malas para fugir de Brasília.
Ao confirmar a debandada na equipe, o titular da Economia jogou pesado. Acusou colegas de induzirem o chefe a “pular a cerca” da responsabilidade fiscal. “Vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment”, dramatizou. Ontem o capitão ensaiou uma defesa protocolar da austeridade. Mas quem bancava essa agenda já perdeu a aura de superministro.
Ricardo Noblat: O dilema de Paulo Guedes e o que interessa a Bolsonaro
A debandada de Paulo Guedes do governo pode ser só uma questão de tempo. Bolsonaro não teve peito para demitir Sergio Moro do Ministério da Justiça, mas criou todas as condições para que ele saísse. Deverá proceder da mesma forma com o seu ex-todo-poderoso ministro da Economia.
Guedes entende de economia, mas de política é Bolsonaro que entende. Alguma coisa aprendeu em 30 anos como deputado. Após perder sete auxiliares, Guedes alertou Bolsonaro para o risco de impeachment se não bancar as reformas. Bolsonaro respondeu entregando ao Centrão o cargo de líder do governo na Câmara.
Agrava-se a situação do clã Bolsonaro a cada nova descoberta ou revelação feita pelo Ministério Público do Rio que o investiga por corrupção. O sonho de Bolsonaro de se reeleger depende, no primeiro momento, de afastar o risco de impeachment, e no momento seguinte, de conseguir o apoio de partidos.
Bem que ele tentou atrair partidos para seu lado nas eleições passadas, mas fracassou. Ninguém acreditou que ele pudesse vencer. Nem ele mesmo acreditava. Foi a eleição mais atípica da história do país. O líder das pesquisas estava preso e impedido de concorrer. A facada dispensou Bolsonaro de fazer campanha.
Ou Guedes abre o cofre para ajudar a reeleger Bolsonaro, e deixa as reformas para o segundo mandato dele, se segundo mandato houver, ou pede as contas e passa o cargo a quem se dispuser a jogar o jogo que o desagrada. No regime de governo do Brasil, não existe ministro insubstituível. Quem manda é o presidente.
Foi só para ganhar tempo que Bolsonaro, ontem à noite, encenou às portas do Palácio da Alvorada o ato de renovar seu compromisso com as reformas do Estado, a privatização de empresas e a responsabilidade fiscal – temas, por sinal, que jamais contaram com o seu voto para avançar no Congresso.
Bolsonaro, o liberal, é uma invenção de Guedes para justificar sua adesão à candidatura dele em 2018. Durante a campanha, Guedes chocou-se com a indiferença de Bolsonaro ao que ele tentava lhe ensinar sobre economia. Foi em frente mesmo assim. Achou que, uma vez eleito, Bolsonaro se tornaria dependente dele.
Palavras o vento leva. O vento levou a promessa de Bolsonaro de não se candidatar à reeleição. Levou a promessa de combater a corrupção sem vacilo. Levou a promessa de não trocar cargos no governo por votos no Congresso. E levou a promessa de comportar-se como o presidente de todos os brasileiros.
Os militares que o cercam disseram-lhe para não se livrar de Moro porque seu governo poderia acabar. Moro saiu, forçado que foi. Nem o governo acabou, nem Bolsonaro perdeu popularidade. Os militares dizem agora a ele que a receita de Guedes pode torná-lo impopular, e aí adeus à reeleição. Bolsonaro medita.
Dossiê dos antifascistas: ministro recua para evitar crise com STF
Mendonça ainda tem muito o que aprender
Meia volta, volver! Perdeu-se a conta do número de vezes que o ministro André Mendonça, da Justiça, avançou, recuou, tornou a avançar, recuou outra vez, para no fim confirmar a existência de um dossiê sobre quase 600 servidores federais que se declararam antifascistas, e que ele prefere chamar de relatório.
O comportamento do tipo ioiô de Mendonça chegou a prenunciar uma possível nova colisão entre os poderes Executivo e Judiciário quando ele se negou a atender a um pedido da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, para que lhe remetesse uma cópia do dossiê. Ou do relatório, como preferisse.
O dossiê foi produzido pela Secretaria de Operações Integradas do ministério, subordinada a Mendonça. Depois que parte dele veio a público, o ministro mandou abrir uma sindicância para apurar o caso. Mas mesmo antes de a sindicância ser aberta, ele demitiu o coronel que chefiava o setor de inteligência da secretaria.
Ora, por que a demissão se o conteúdo do tal dossiê, ou relatório, como dizia Mendonça, não configurava nenhum crime contra a livre manifestação de pensamento que a Constituição garante a todo mundo, inclusive a servidores federais fascistas ou antifascistas? O Congresso quis conhecer o dossiê, e já o recebeu.
No último dia 6, Mendonça havia dito que seria “catastrófico” compartilhar o dossiê com o Judiciário. Pediu “parcimônia e sensibilidade” ao Supremo para que deixasse a Comissão de Controle Externo da Atividade de Inteligência do Congresso fazer a análise sobre o tema. Por que só o Congresso?
Ao saber, porém, que o tribunal tomará posição a respeito em sessão marcada para a próxima semana, concluiu que o melhor seria se dispor a atender ao pedido da ministra Carmen Lúcia. Enfim, tanta trapalhada para nada, e logo de um ministro que aspira a uma vaga no Supremo. Ainda tem muito que aprender.
Merval Pereira: Da boca pra fora
Assim como continua dizendo que é a favor do combate à corrupção, depois de forçar a saída do ministro Sérgio Moro, também Bolsonaro jura que é a favor do teto de gastos, e garante que o equilíbrio fiscal é o objetivo de seu governo. Conversa mole. O objetivo de Bolsonaro sempre foi a reeleição, que esconjurou durante a campanha.
Foi contra a corrupção da boca para fora, porque lhe rendia votos, e hoje ajuda a desconstruir a Operação Lava-Jato e o ex-ministro Moro. As trapalhadas do Queiroz e os gastos em dinheiro vivo da família mostram que há anos o mesmo sistema de rachadinhas irriga as contas de seus membros. Era a pequena corrupção, a corrupção do baixo clero, como a do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, que achacava o dono do restaurante da Casa.
Nunca foi liberal, nem a favor de privatizações, mas percebeu na aproximação com Paulo Guedes que essa era uma escolha que lhe garantiria o apoio do empresariado e do setor financeiro, dava credibilidade à sua candidatura.
Passada mais da metade do segundo ano de governo, Bolsonaro vai mudando de casca, largando pelo caminho promessas, aliados, posições, para proteger os seus e alimentar o eleitorado que depende do governo para sobreviver. Projetos de resgate da pobreza? Só a ampliação do Bolsa-Família. Mudanças estruturais? Desde que não prejudiquem seus potenciais eleitores.
À medida que vai se arrastando seu mandato, mais perto da eleição, menor a vontade de mexer em velhas estruturas corporativas, como a dos servidores públicos. Lula foi mais prudente, embora também tenha perdido o ânimo para continuar a reforma da Previdência depois dos primeiros embates com sua base sindicalista.
Mas o PT levou quase um mandato inteiro para colocar as manguinhas de fora. Só no seu segundo mandato o PT achou-se em condições de aplicar sua própria política econômica, a nova matriz do ministro Guido Mantega, que desembocou na falta de controle de gastos e no impeachment da presidente Dilma, de quem Mantega continuou ministro da Fazenda no primeiro mandato.
Bolsonaro é mais afoito, um a um desestabiliza seus superministros antes do fim do segundo ano de governo, e Paulo Guedes é a bola da vez. Está lutando contra o Centrão, os militares desenvolvimentistas e o Bolsonaro raiz, liberal e contra a corrupção da boca para fora.
Se acreditasse que Bolsonaro quer mesmo desestatizar, Salim Mattar não teria deixado o governo. A aproximação com o Centrão é mais um obstáculo. Afinal, é preciso ter estatais para dar aos novos aliados. Se achasse que a reforma administrativa é para valer, Paulo Uebel não teria saído.
O ministro Paulo Guedes nunca esteve tão próximo de deixar o governo, mas acredito que vá brigar até o Orçamento da União ser proposto. Se for incluída, por uma pedalada qualquer, o aumento de gastos em obras de infra-estrutura, e para fazer o Renda Brasil, vai ser difícil que fique.
Dizem que ele está procurando dentro do governo verbas que estariam sobrando e poderiam ser dadas para aplacar a sede do Centrão, mas achar a esta altura que existem verbas sobrando é quase risível. Já está cortando da educação, e vai precisar de mais para o projeto de reeleição de Bolsonaro.
Talvez até aguente, porque, dizem, teme que a economia desande caso saia. Mas se ficar sem capacidade de ação, não adianta, pois logo o mercado saberá identificar sua fragilização. Talvez tente também aprovar a reforma tributária, mas com a CPMF digital não vai conseguir. A CPMF é a saída que ele encontrou para financiar as maluquices de Bolsonaro sem furar o teto de gastos.
O apoio do Rodrigo Maia ajuda, mas não muito, porque ele não aceita a CPMF e é difícil a Câmara aprovar a reforma administrativa que diminua o número e o salário de servidores. E não creio que Bolsonaro tenha ânimo para brigar com uma corporação tão forte.
Importante é a posição de Maia contra a tentativa de abuso do uso de dinheiro público. Nesta, ele vai brigar com o Centrão, que está ávido por mais verbas. Mas em final de mandato, com perspectiva de Bolsonaro apoiar o Centrão na sucessão da presidência da Câmara, pode ser que Maia não tenha força.
A única coisa que pode contê-lo é a advertência de Guedes de que ele está sendo levado para o impeachment.
Vera Magalhães: Só faltam as penas
Guinada do governo afeta projeto liberal do ministro Paulo Guedes
Minha mãe era a rainha dos adágios. Um dos que ela achava mais divertidos (e politicamente incorretíssimo) era, se referindo a qualquer pessoa de que não gostasse: “Fulano para idiota só faltam as penas”. Ao incauto que objetasse que idiota não tem penas, ela completava, triunfante: “Então não falta nada”. Para o governo Jair Bolsonaro descambar para o nacional-desenvolvimentismo, só faltam as penas.
Neste caso, as penas são a saída de Paulo Guedes. O ministro da Economia vem resistindo. Haja Karl Popper para justificar, talvez para si próprio, como continuar acreditando que um governo que colocou as reformas em banho-maria para comprar um plano do governo Médici recauchutado, ainda pode ser chamado de liberal.
Na verdade, há algum tempo já, os bolsonaristas raiz passaram a incluir os liberais no mesmo saco de pancadas em que colocam comunistas, isentões e outros inimigos imaginários. Os próprios filhos do presidente entoam a cantilena de que os liberais querem destruir Bolsonaro.
O pai, revigorado depois de dar umas trotadas no lombo de uma égua com chapéu de vaqueiro e tomar cloroquina, só quer saber de Rogério Marinho. O mais político dos ministros chegou a Guedes embalado em presente e como passaporte para as reformas. E assim foi: como já tinha entregado a trabalhista para Temer, Marinho trabalhou à exaustão para aprovar a Previdência.
A partir daí, no entanto, chefe e chefiado passaram a se estranhar, e o ex-deputado, agora ex-tucano, passou a pavimentar um caminho próprio dentro do governo, de olho nas eleições de 2022. Uma aliança com os militares e o “rei do asfalto” Tarcísio Gomes de Freitas surpreendeu Guedes com um PAC redivivo.
Qualquer um que olhe para as contas públicas brasileiras, ainda mais agora que tiveram de ser justificadamente acessadas para conter os efeitos nefastos da pandemia na vida dos mais desassistidos, de Estados e municípios, sabe que não aguentam uma reedição do slogan “Ninguém segura este país”.
A não ser no sentido literal: investir na gastança, com a tentação de pedaladas variadas que estão em gestação, é ir para o buraco sem que ninguém segure.
Guedes não acha que Bolsonaro represente perigo autoritário. Ou, talvez, sua noção de democracia, em que costuma conjugar a ordem dos militares e o progresso dos liberais, tenha sido moldada para tentar validar o ingresso nessa canoa furada.
Mas ele sabe que uma guinada na agenda econômica deixará pouco ou nada a que ele se agarrar. Agora, o ministro perde mais duas peças importantes em seu projeto, Salim Mattar (privatizações) e Paulo Uebel (reforma administrativa). Antes já haviam saído o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, e o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes. O “PG” não escondeu a frustração.
Seu mantra “mais Brasil e menos Brasília”, passaporte para reduzir o tamanho do Estado, privatizar o que fosse possível e fazer as reformas liberais, algumas das quais nem saíram ainda do papel, foi subvertido, e Brasília voltou a sonhar com um tempo de bonança que não existe mais.
Até o chamado Orçamento de Guerra, um engenho construído para permitir gastos urgentes, está sendo olhado com avidez pelos neodesenvolvimentistas como fonte futura de verba para obras eleitoreiras. O teto de gastos virou teto solar.
Bolsonaro perdeu as classes média e alta com seus desvarios negacionistas e seus arreganhos golpistas. Mas está ganhando força entre os pobres com auxílio emergencial na veia.
É essa mutação que Marinho e o Centrão enxergaram ainda no início e querem alimentar, sem pensar no amanhã. A receita é velha. Foi seguida pelos militares, de quem o capitão é fã, e por Dilma, a quem ele critica, mas com quem está cada dia mais parecido.
Cristina Serra: Bolsonaro disse: "Vou intervir!". E agora?
Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes, e a oposição continua fazendo política com o fígado
Reportagem de Monica Gugliano, na revista Piauí, reconstitui em detalhes uma reunião no dia 22 de maio, no Palácio do Planalto, entre o capitão-presidente, seus generais de pijama e alguns ministros civis. A reunião era, na verdade, uma conspiração contra a democracia. “Vou intervir!”, esbravejou Bolsonaro.
O presidente queria destituir os 11 ministros do STF e substituí-los por dóceis lambe-botas para pôr a casa “em ordem”. Tudo isso porque o ministro Celso de Mello tomara medida de praxe em investigação relacionada ao presidente. Os conspiradores chegaram a discutir como dar uma fachada de legalidade ao autogolpe.
O desatino não encontrou ressonância entre militares da ativa, que tem o comando das tropas. Evitou-se o insano propósito com uma “nota à nação brasileira”, assinada pelo general do GSI, Augusto Heleno, que, no entanto, ameaçou o Supremo com “consequências imprevisíveis” se houvesse “afronta” à autoridade presidencial.
Que reunião de tal teor tenha ocorrido e que não se veja reação ou providências das instituições para punir os sabotadores da República mostra a profundidade do abismo em que estamos metidos. À época do conluio sinistro, o Brasil chorava mais de 20 mil mortos pela pandemia, e Bolsonaro reagia com indiferença. “E daí?”
Daí que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou, há uma semana, não ter “elementos” para abrir um processo de impeachment. Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes e a oposição continua fazendo política com o fígado. E assim todos vão se acomodando à “nova ordem”.
Bolsonaro sempre mostrou quem é. Em 2017, afirmou: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém”. A ditadura deixou 434 mortos e desaparecidos e milhares de torturados. Na democracia, os generais a serviço do colecionador de mortalhas tornaram-se sócios no massacre das 100 mil vidas imoladas, até aqui.
Míriam Leitão: Abandonar mitos e entender a história
De um ex-banqueiro, o que se espera é que entenda o mundo do capital, mas Paulo Guedes errou também nisso. Sua fala no Aspen Institute sobre a Amazônia e a questão indígena mostra que ele não se atualizou em assuntos decisivos para entender o mundo de hoje. Além disso, afugenta ainda mais os fundos de pensão e os fundos soberanos. Eles já avisaram que suas normas de compliance limitam investimentos, dos trilhões de dólares que administram, em países que desmatam e ameaçam povos originários.
Guedes tem com o presidente Bolsonaro total afinidade em assuntos como direitos humanos, liberdades democráticas e proteção da Amazônia. Não foi Guedes a convencer Bolsonaro das virtudes do liberalismo econômico, mas o presidente é que o conquistou para seu conjunto de crenças, aliás, incompatíveis com o liberalismo. Eis o paradoxo deste governo. Ele não pode ser liberal, pela simples inadequação desse ideário com o elogio do regime ditatorial, por natureza, inimigo de qualquer liberdade.
Ficou muito mal para o ministro sua sequência de erros conceituais. Como ele é uma autoridade pública, isso prejudica o Brasil. Guedes mostrou desconhecimento do estado atual das coberturas florestais em outros países, sustentou argumentos vencidos e confundiu estoque com fluxo, o que é constrangedor. No caso da floresta, nosso estoque é bom. O Brasil tem uma área considerável de mata preservada. Mas o fluxo é muito ruim. Estamos desmatando a um ritmo crescente nos últimos anos, chegando a 10 mil km2 no ano passado e abandonamos a política com a qual o país reduziu em 80% as taxas anuais de destruição entre 2004 e 2012. A partir daí, o fluxo é contra nós, e piorou muito no governo Bolsonaro. A objetividade e os argumentos sóbrios são mais eficientes para afastar os riscos de o país ser desprezado nas decisões de alocação de recursos. Estamos em um momento de disputa por capital de qualidade.
De um economista não se espera queixa contra as artimanhas da competição. O lógico é que entenda o jogo do capitalismo e não facilite a vida de eventuais competidores. Afirmar que países europeus “usam a desculpa ambiental” para nos barrar não ajuda em nada. O que funciona é não fornecer provas contra nós. E o ministro deu a eles farta munição com o seu destempero.
A frase “vocês mataram seus índios, não miscigenaram” é muito ruim. O ministro não deve desconhecer que aqui matamos também, infelizmente. Extinguimos inúmeras etnias, ameaçamos outras e, neste momento, estamos colocando povos em risco. O governo tem estimulado atividades que agora são mais perigosas do que nunca, e só por ordem do STF foi instalada uma sala de situação para as ações de proteção aos índios isolados.
Outra frase infeliz: “As grandes histórias de como matamos nossos índios são falsas.” Antes fossem mentirosas as histórias que pesam sobre a nossa História. Aimoré, Caeté, Tupiniquim, Tupinambá, Carijó, são tantos os que não podem confirmar a impressão do ministro por não estarem mais aqui. Seus nomes repousam na lista de povos extintos feita pelo IBGE. Ela é longa.
Uma indicação importante de leitura é o livro “As flechas e os fuzis” de Rubens Valente. Ele conta como os militares agiram na época da ditadura contra os índios. São eventos dolorosos como os que vitimaram os Waimiri-Atroari. É difícil saber quantos índios dessa etnia morreram para dar passagem à BR-174. Havia um cálculo de que eles eram 3.000 antes de 1970, quando as obras começaram. Em 1978, havia 350. Valente usou um levantamento feito de avião por indigenistas da Funai e registra que morreram pelo menos 240. Logo na abertura do livro ela fala da morte de um grupo de Kararaô, de gripe, de sarampo, logo nos primeiros contatos nos anos 1960.
Há casos reconhecidos oficialmente. Na Cabanagem, foram massacrados os Tapuia. Na luta contra as Missões, tombaram os Guarani. Uma carta régia decretou a “guerra justa”, no Vale do Rio Doce, contra os Krenak, chamados botocudos. Em 1901, o Exército fez três expedições contra os Guajajara da etnia Tenetehara. O massacre ocorreu em Alto Alegre do Pindaré, no Maranhão.
Abandonar mitos e conhecer a história, mesmo em suas páginas infelizes, não reduz o amor à pátria, apenas nos permite ter uma visão realista e, quem sabe, um compromisso com um futuro diferente e melhor.
Míriam Leitão: De longe, Cintra vê uma CPMF
Longe do governo há quase um ano, o ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra reconhece a sua proposta de reforma tributária nas declarações do ministro Paulo Guedes, quando ele fala sobre a criação de um imposto digital. Cintra diz que pela arrecadação esperada, a base de tributação não pode ser apenas as grandes empresas de tecnologia, mas todas as transações financeiras. Ou seja, algo semelhante a uma CPMF. Ele acha que o governo tem errado ao não expor o projeto na íntegra, porque isso tem gerado ruído e aumento de resistência à reforma. E afirma que o presidente Jair Bolsonaro foi o primeiro a interditar o debate sobre o novo tributo.
Em uma longa conversa com a coluna, o economista Marcos Cintra falou sobre o que ele define como imposto de pagamentos e as vantagens que vê nesse tipo de tributo. Ele acredita que esse é o único caminho para destravar a reforma tributária e diz que é exatamente isso que o governo pretende apresentar na quarta fase do projeto, pelo que tem entendido das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes.
— Com muita sinceridade, tudo indica que é o mesmo projeto que estava pronto há um ano atrás. Foi apenas recalibrado. O próprio ministro falou isso na Comissão. A alíquota de 0,2% de cada lado, para gerar R$ 60 bilhões, tem que ter a base mais ampla possível. Então seria o que estava se discutindo lá atrás e que gerou a interdição do debate, primeiramente pelo presidente da República, o que levou à minha exoneração, e depois pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que disse que não o colocaria em pauta — explicou.
Ontem, em artigo no GLOBO, o economista Rogério Werneck, da PUC-Rio, mostrou que a arrecadação da CPMF, em 2007, foi de R$ 36,5 bilhões. Pela alíquota cobrada na época, de 0,38%, a base de incidência do imposto teria que ser R$ 9,6 trilhões, mais de três vezes o PIB daquele ano. Isso comprovaria o forte efeito cumulativo do tributo. “A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF que dava lugar a uma base fiscal fictícia”, escreveu Werneck. Marcos Cintra entende que essa incidência em cascata é um problema menor diante da alíquota elevada que uma contribuição como o IVA teria sobre o setor de serviços.
— Eu prefiro um imposto cumulativo de alíquota de 1% do que um imposto de valor agregado com alíquota de 12%. O fatiamento do projeto foi um grande erro do governo, porque impediu as pessoas de verem o conjunto e os benefícios de um imposto de transações — defendeu.
O ex-secretário concorda com quem afirma que a proposta do governo é diferente do que tem sido discutido na Europa. Por lá, apenas a Hungria tem um imposto nos moldes da CPMF, segundo Cintra. O que se discute na França e na Inglaterra é uma forma de taxar as grandes empresas de tecnologia — em um imposto muito parecido com a nossa Cofins — mas ele avalia que isso teria um potencial de arrecadação baixo no Brasil. Por esse caminho, não seria possível desonerar a folha de pagamentos e compensar o setor de serviços pelo aumento de carga de um Imposto de Valor Agregado (IVA).
— Sem compensar os setores de serviços e agropecuário não haverá reforma tributária, porque eles terão um aumento grande de carga e vão inviabilizar a tramitação. E um imposto apenas sobre as grandes empresas de tecnologia não arrecada o suficiente para desonerar a folha.
Na Comissão Mista do Congresso, na última quarta-feira, Paulo Guedes falou que comparar o imposto digital a uma CPMF é maldade ou ignorância. Cintra diz que é preciso que o governo venha a público e apresente a proposta:
— Fica-se apenas com as críticas e o preconceito que se tem contra esse imposto. O governo deixa alimentar esse tipo de inquietude, sem esclarecer como funciona o tributo, qual é a base, quais são as regras.
O economista diz que deixou o governo sem mágoas, porque não via sentido em participar de uma reforma sem que fosse para tentar um imposto de pagamentos — que é seu objeto de estudo de toda a vida. Agora, de longe, vê a mesma proposta ser retomada, mas sem que o governo tenha coragem de a assumir publicamente.
Os argumentos dos que são contra a CPMF me convenceram. Mas aqui estão os de Cintra, que a defende. Enquanto o ministro não apresenta seu projeto, o país perde tempo discutindo sobre hipóteses.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ainda não tem dinheiro para bancar seu Bolsa Família
Governo não tem dinheiro para o programa, crucial na política e para a pobreza
O programa de renda básica de Jair Bolsonaro deve chegar a algo em torno de 19 milhões de famílias —atualmente, 14,3 milhões estão no Bolsa Família. É o que está na prancheta; é o que Paulo Guedes deu a entender nesta quinta-feira (5), em uma entrevista, ao mencionar o aumento estimado do número de beneficiários.
O programa por ora não está com uma cara muito diferente dos rascunhos do Renda Brasil, do final de 2019. A diferença é que, depois da epidemia, as expectativas em relação ao valor do benefício aumentaram. Antes da calamidade, o Bolsa Família pagava em média R$ 190 por família; o auxílio emergencial rende no mínimo R$ 600.
No final de 2019, o plano era pagar uns R$ 232 por família, em média, o que daria quase R$ 53 bilhões por ano (sem “13º”). O Bolsa Família pagou R$ 33,7 bilhões em 2019 (em termos reais, valor corrigido pela inflação). Faltariam uns R$ 20 bilhões, portanto. De onde viriam?
O abono salarial custou R$ 18 bilhões em 2019 (é um benefício anual de até um salário mínimo pago a trabalhadores formalizados que recebem menos que dois mínimos, em média). O seguro-defeso pagou R$ 2,85 bilhões (é um seguro desemprego para pescadores que não podem trabalhar em época de proibição sazonal de pesca, mas recebido por um monte de gente mais. É um rolo). Juntando, dá mais ou menos os R$ 20 bilhões. Guedes e equipe dizem faz tempo que querem pegar esses dinheiros e leva-los para um programa social que consideram mais eficiente.
Problemas:
- o fim do abono depende de emenda à Constituição (é direito definido no artigo 239);
- ainda que passe a emenda, levaria pelo menos um ano para que o benefício deixasse de ser pago (haveria direitos adquiridos) e, portanto, para que o dinheiro para o Renda Básica aparecesse;
- gente no Congresso não gosta da ideia de dar cabo do abono;
- muita gente no Congresso quer apenas reformar o seguro-defeso, reservando o benefício, dizem, a pescadores de fato.
Logo, não vai ser fácil arrumar esses R$ 20 bilhões. Além do mais, esse dinheiro extra bastaria para bancar um benefício de apenas R$ 232 por família, recorde-se. Mais de 65 milhões de pessoas recebem auxílio emergencial; no Renda Brasil, o dinheiro cairia na conta de umas 26 milhões de pessoas. A clientela seria diminuída e o valor do benefício também, o que é razoável, pois não há dinheiro, mas politicamente é um problema.
Aumentar imposto não adianta, pois a despesa está limitada pelo teto de gasto. Dentro do teto, seria possível arrumar alguns dinheiros com o fim de algumas reduções de impostos e de gambiarras do Orçamento federal.
Tirar dinheiro de outro lugar, no curto prazo, é difícil. Sairia de onde? Dos parcos recursos para investimento “em obras” (para as quais há uns R$ 40 bilhões reservados neste ano)? Cortar despesa significativa com salário de servidor, além de uma guerra, depende provavelmente de emenda constitucional.
Neste 2020, é possível estourar ainda mais as contas e pagar um benefício entre R$ 200 e R$ 300 até o final do ano, uma extensão do auxílio emergencial. O déficit ficaria no “orçamento de guerra” deste ano de calamidade. No ano que vem, não dá, a não ser que o período de calamidade ou coisa que o valha seja estendido. Mas Guedes jura para sua audiência que 2021 é ano de cumprimento do teto.
Fazer com que o Renda Brasil caiba no teto de gastos é um problema sério para algo que parecia uma solução para Bolsonaro: o benefício político da ampliação do Bolsa Família.
Rogério F. Werneck: Guedes e o terceiro cenário da CPMF e o Congresso
Aprovação da contribuição seria derrota da ala parlamentar mais lúcida
Com sua obsessiva fixação pela recriação da CPMF, o ministro da Economia não só vem tumultuando o esforço de reforma tributária do Congresso, como arrisca dar força decisiva à coalizão contrária à preservação do teto de gastos. É fácil entender por quê.
Nunca é demais relembrar o que há de profundamente errado com a CPMF. Em 2007, último ano em que foi cobrada, com alíquota de 0,38%, a extinta contribuição permitiu que o governo arrecadasse nada menos do que R$ 36,5 bilhões. A divisão do valor da arrecadação pela alíquota de 0,0038 revela o assombroso valor da base fiscal sobre a qual incidia a CPMF: R$ 9,6 trilhões. Cifra mais de três vezes e meia o PIB de 2007!
A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF, que dava lugar a uma base fiscal fictícia, sem contrapartida econômica real, em contraste com o que ocorre com formas mais civilizadas de tributação, que incidem sobre renda, consumo, valor adicionado, folha de pagamento e riqueza. Uma alíquota “diminuta” sobre uma base gigantesca e artificial. O sonho da tributação populista.
Mas Paulo Guedes continua obcecado. Quer porque quer que o Brasil se junte ao grupo exclusivo de países nada exemplares que impõem esse tipo de tributo: Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Honduras, República Dominicana, Venezuela, Hungria, México, Paquistão e Sri Lanka.
No afã de quebrar resistências à recriação da CPMF, o ministro deixou de lado sua proposta mais simples de compensar, com a receita do novo tributo, a perda de arrecadação que adviria da redução de encargos sobre a folha. A CPMF passou a ser vendida agora como um tributo de 1.001 utilidades que, além da desoneração da folha, permitiria bancar novos dispêndios, como o programa Renda Brasil e até mesmo, assegurou Guedes, “reduzir, cinco, seis, sete, oito, dez impostos”.
O ministro não percebeu que está brincando com fogo. Sua tentativa de quebrar as resistências do Congresso à criação da CPMF pode acabar tendo três desfechos distintos. No primeiro cenário, tais resistências se mostrariam insuperáveis. No segundo, o ministro teria pleno sucesso. Convenceria o Congresso não só a recriar a CPMF, como a dar à receita do novo tributo as exatas destinações que Guedes tem em mente.
Mas há ainda um terceiro cenário, altamente provável, que parece ter escapado a ele. É bem possível que o Congresso, afinal, se encante com as múltiplas possibilidades desse tributo de tão “fácil arrecadação” que é a CPMF. E tão encantado fique, que prefira tomar para si a tarefa de alocar como bem entender a “folga fiscal” que deverá advir da receita do novo tributo. Quando se trata de distribuir benesses, o Congresso tende a dispensar tutela. Prefere suas próprias ideias.
A aprovação da CPMF representaria séria derrota da ala parlamentar mais lúcida, que vem tentando vertebrar a agenda de reforma fiscal. E deixaria a Câmara e o Senado muito mais propensos a compactuar com uma condução irresponsável da política fiscal, num quadro em que, é bom lembrar, o governo não tem nenhum poder de bloqueio no Congresso.
A preservação do teto tem sido ajudada pela percepção de que não há disponibilidade de recursos fiscais para bancar uma expansão de gastos. Com a CPMF, tudo pareceria mais fácil. Bastaria uma “pequena” elevação de alíquota para abrir amplo espaço para gastos adicionais.
Dentro do próprio governo, ganham corpo as pressões contra o teto de gastos. Ministros influentes se batem pela expansão de investimentos públicos. Generais querem que projetos militares sejam excluídos do teto. E o próprio presidente, já em campanha aberta, parece fascinado com a possibilidade de turbinar o Bolsa Família e se transformar em novo Lula, no Nordeste.
A menos que o plano de jogo tenha passado a ser reeleger Bolsonaro a qualquer custo, com apoio da pior parte do centrão, o ministro deveria se preocupar com quão desastroso poderá lhe ser o terceiro cenário, caso ainda pretenda retomar a agenda fiscal anterior à pandemia.
Bernardo Mello Franco: A antidiplomacia ambiental de Guedes e Bolsonaro
Paulo Guedes, quem diria, também tem seu lado nacionalista. Em videoconferência com um centro de estudos americano, o ministro se irritou ao ser questionado sobre o desmatamento na Amazônia. “Vocês querem nos poupar de destruir nossas florestas como vocês destruíram as suas”, retrucou.
Entusiasta da abertura econômica, Guedes apelou à soberania nacional para se esquivar de perguntas incômodas. “É como os militares dizem: agradecemos sua preocupação, mas a Amazônia é nossa”, afirmou.
A rispidez surpreendeu os entrevistadores do Aspen Institute. Mais cedo, Guedes já havia engrossado em evento da Fundación Internacional para la Libertad. Ele se queixou das críticas de países europeus à ausência de uma política de proteção à floresta.
“É como acusarmos a França de queimar catedrais góticas. Foi um acidente”, afirmou, numa tentativa de comparar o incêndio da Notre-Dame à devastação criminosa da Amazônia.
O falatório do ministro ecoa o discurso de Jair Bolsonaro, acostumado a ofender estrangeiros que se preocupam com a mata brasileira. O presidente já se referiu à Noruega, que doou R$ 3,2 bilhões ao Fundo Amazônia, como “aquela que mata baleia no Polo Norte”. Em outra ocasião, acusou o ator Leonardo DiCaprio de distribuir dólares para “tacar fogo” na floresta.
A antidiplomacia ajuda a afugentar investidores e queimar o filme do Brasil no exterior. Não basta aproveitar a pandemia para passar a boiada. É preciso deixar claro que quem manda na queimada somos nós.
- + +
Em 2002, houve escândalo quando se soube que o ex-torneiro mecânico Luiz Inácio Lula da Silva ganhou uma garrafa de Romanée-Conti do marqueteiro Duda Mendonça. Ele disputava a Presidência com José Serra, mais acostumado a degustar vinhos da Borgonha.
Ontem a CNN Brasil revelou que a Odebrecht presenteou o tucano com 66 garrafas que não frequentam qualquer adega. De Romanée-Conti, foram seis, cada uma avaliada em R$ 21,5 mil.
Zeina Latif: Já assistimos a esse filme
Guedes enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos
O presidente Bolsonaro sentiu o gosto do impacto do auxílio emergencial sobre sua popularidade. Não será mais o mesmo, o que implica maior risco fiscal daqui para frente.
A sensação é de déjà vu. Uma grave crise justificando políticas de estímulo econômico, em meio a demandas legítimas ou não. Na corrida em que ninguém quer ficar para trás, a classe política se regozija com as frentes de negociação abertas e as benesses a vários grupos organizados. A maioria aplaude; os críticos ora são ignorados, ora taxados de pessimistas, ora acusados de insensíveis. Cedo ou tarde, a conta chega.
A crise de 2008 foi gatilho para uma miríade de medidas de estímulo. Não tardou para excessos serem cometidos, quando já se recomendava a suspensão das políticas. A disciplina fiscal, pilar dos primeiros anos do governo Lula, foi para as calendas. O crescimento de 7,5% do PIB em 2010 foi, em boa medida, artificial. Eleição vencida.
Dilma dobrou a aposta com estímulos e artificialismos para todo lado. Cruzou o limite da responsabilidade. Vale o dito: remédio demais é veneno. A reeleição foi garantida em 2014 e se adiou uma recessão contratada.
O início daquele filme guarda semelhanças com o momento atual.
Bolsonaro não é afeito a reformas – declarou que fazia a da Previdência a contragosto – e repetidamente freia o Ministério da Economia – como ao evitar reformas que afetam o funcionalismo – e os técnicos do governo – como ao ameaçar demitir quem questionasse o fim do subsídio à energia solar. Seu comportamento influencia o Congresso. Afinal, por que ser mais realista que o rei?
A concorrência na política, um pilar da democracia, se distorce quando o assunto é aumentar gastos. A descrença da sociedade no Congresso exacerba a dificuldade de defender a disciplina fiscal.
Já nos EUA, há o saudável debate no Congresso sobre a extensão do benefício aos desempregados. E os republicanos, disputando a reeleição de Trump, defendem a interrupção em setembro! Aqui, nem sombra disso.
Como se não bastasse, o presidente está em mutação. Populista e pragmático, ele se molda aos novos tempos. Especialistas, como Maurício Moura, apontam mudanças na sua base de apoio: saem os decepcionados das classes mais favorecidas e entram os estratos mais populares beneficiados pelo generoso auxílio emergencial. Essa nova dinâmica poderá implicar inflexão da agenda econômica.
Faltam fiadores da disciplina fiscal no governo. Paulo Guedes, isolado, enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos. Não falta criatividade para evitar as amarras fiscais previstas em lei. Chegou-se a imaginar uma conta de restos a pagar às avessas: libera-se o recurso para investimento em infraestrutura e habitação este ano, por meio de crédito extraordinário para emergências e executam-se as obras depois. Dupla criatividade: nem seriam gastos elegíveis a crédito extraordinário, nem faria sentido liberar o recurso antes da execução.
A lista de pedidos é extensa, incluindo a capitalização de estatais ligadas ao Ministério da Defesa; vinculação de 2% do Orçamento para as Forças Armadas; prorrogação da desoneração da folha; e criação da renda básica (meritória, desde que bem desenhada). Fora o que já foi aprovado, como a expansão do BPC e o novo Fundeb.
Especula-se estender o período de calamidade pública (implica suspensão das regras) para cobrir as medidas de caráter temporário. E as de caráter permanente? Há cheiro de flexibilização da regra do teto e de aumento de carga tributária (para atender à Lei de Responsabilidade Fiscal) no ar. Não há propostas de contenção de gastos obrigatórios.
Não estamos diante de riscos extremos, com a revogação da regra teto e desrespeito explícito à LRF, a julgar pela reação dos investidores e das instituições de controle (TCU). Seria algo intermediário, tentando preservar as aparências, mas preocupante diante da grave situação fiscal.
É preciso mudar o enredo desse filme.
Míriam Leitão: Os ricos e os pobres na visão de Guedes
O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada.
Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres.
— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro.
Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro.
Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval:
— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze.
O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto:
— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina.
O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas:
— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão.
Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil.
O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres:
— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos.
O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões.
O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.