Paulo Guedes

Adriana Fernandes: É o dinheiro das eleições!

O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas no uso de créditos extras

É a pressa do calendário político que move o acordo do presidente Jair Bolsonaro com lideranças partidárias do bloco do Centrão para enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que abre um crédito extraordinário de cerca de R$ 5 bilhões para custear investimentos em infraestrutura e ações indicadas por parlamentares.

Esse tipo de crédito é uma das poucas exceções possíveis para que despesas fiquem livres de qualquer limitação imposta pelo teto de gastos e pode ser feito por meio de MP. É com esses créditos que o governo tem liberado recursos para o enfrentamento da covid-19 no chamado orçamento de guerra.

Em ano eleitoral, os parlamentares querem mesmo é ver recursos na mão e bem rápido. Simples assim. A pandemia do coronavírus é só o pano de fundo. Não há uma política coordenada, bem desenhada e planejada de investimentos públicos para estimular a retomada econômica, como defendem muito economistas de dentro e fora do governo.

Como o Palácio do Planalto argumenta que a quantia de R$ 5 bilhões não é tanto dinheiro assim e que há espaço fiscal, Bolsonaro bem que podia tentar um remanejamento de recursos do Orçamento via crédito suplementar.

O problema técnico e político do crédito suplementar é que ele tem que ficar dentro do teto e só pode ser aberto se cancelar outra dotação orçamentária. Pelo valor proposto, o mais provável é que a liberação dos recursos exigisse, ao final, projeto de lei e não a edição de um decreto. Levaria, portanto, mais tempo, o que os políticos não têm.

Bolsonaro teria que mandar o projeto pelo Congresso e, dessa forma, enfrentar mais negociações por causa do controle da pauta de votação. Mas há urgência para gastar tudo até dezembro, e não deixar restos a pagar para 2021, que são aquelas despesas transferidas de um ano para o outro.

O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas jurídicos no uso de créditos extraordinários embasado nas regras do orçamento de guerra. Pelo contrário, divulgou nota apontando sua posição de que a medida está em consonância com a legislação.

Segundo o ministério, o orçamento de guerra permite a ampliação de gasto sem 2020 desde que respeitado o “princípio exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências econômicas e sociais”. Técnicos especialistas em Orçamento questionam, no entanto, o fato de a Constituição restringir o uso a “despesas imprevisíveis e urgentes”.

Aliás, é bom lembrar que o acordo da MP foi acertado no encontro “histórico” desta semana entre Bolsonaro, ministros, lideranças políticas e os presidentes do Senado e da Câmara. Na reunião, o ministro Paulo Guedes conseguiu o apoio que queria depois da “debandada” da equipe que fragilizou a sua agenda liberal. No encontro, todos reafirmaram o compromisso com o teto e a tal responsabilidade fiscal.

Mas só que não.

O que está em curso é uma negociação para gastar mais em 2021. Os lados estão fazendo os seus acertos e a forma de fazê-lo. Para muitos observadores da cena política em Brasília, está cada vez mais claro que essa mudança acontecerá mais cedo (2020) ou mais tarde (2021), com ou sem Paulo Guedes.

Será com ou sem dor. Sem dor: mudando o teto logo por meio de tampão. Com dor: como tenta o ministro da Economia, acionando gatilhos de medidas automáticas de corte de despesas, como proibição de criação de despesas obrigatórias, eliminação de renúncias e gastos com pessoal e programas com o abono salarial.

Os gatilhos são tão duros e demandará muita articulação política para aprová-los. Os líderes vão querer enfrentar esse desgaste ou farão corpo mole? Nada mais urgente do que construir essa saída e com planejamento até para não faltar dinheiro para saúde e programas sociais em 2021 – esse, sim, os problemas mais urgentes.

O tamanho do ajuste de rota veremos mais à frente. Vai depender da empolgação do presidente com o aumento da popularidade e dos compromissos que estão acertados com os parlamentares do Centrão.

Bolsonaro quer chegar vivo em 2022 e com gás para sair vencedor nas eleições. Depois é que são elas.


Eliane Cantanhêde: Mais Brasília, menos Brasil

Bolsonaro entre Guedes e gastança, liberalismo e grotões, ‘zona de impeachment’ e risco à reeleição

É falso o dilema sobre Jair Bolsonaro ser ou não ser liberal. Ele nunca foi, não é e nunca será liberal, aliás, em nenhum sentido. Ao contrário, é um típico populista, além de corporativista e estatizante como os filhos, a grande maioria dos ministros e os militares do governo. Quanto mais 2022 vai chegando, mais essa essência vai se evidenciando e menos o governo se preocupa em dissimular.

Na atribulada travessia entre 2018 e 2022, Bolsonaro joga ao mar Sérgio Moro e o combate à corrupção; o PSL, os aliados neófitos e o discurso contra a “velha política”; as manifestações golpistas contra Supremo e Congresso; as funções maçantes de presidente da República. Por que não jogar ao mar também Paulo Guedes, o teto de gastos e a promessa de enxugamento do Estado?

O candidato de 2018 foi um, o de 2022 é outro e vai saindo do armário em 2019, 2020, 2021, mas, às vezes, é preciso disfarçar. Foi o que ocorreu na quarta-feira, quando, reencarnando temporariamente a persona presidente, Bolsonaro reuniu presidentes da Câmara e do Senado, ministros, líderes e, tal qual Dom Pedro I, avisou: “Digam ao povo que fico, fico liberal”. Faltou acrescentar: “Por enquanto”.

Bolsonaro e Guedes são como água e azeite. Um nacionalista às antigas, outro globalista. Um pró-Estado gastador e empregador, outro desestatizante, pró-iniciativa privada azeitada; um na linha de frente de salários, vantagens e privilégios de militares, policiais e funcionários, outro guerreando por uma administração que gaste menos e produza mais. O casamento foi por interesse. Para Bolsonaro, o objetivo era vencer as eleições. Guedes tinha o sonho genuíno de mudar o País, à sua maneira. A massificação de que era preciso erradicar o PT da face da Terra selou o contrato.

Já no primeiro ano, Bolsonaro falhou com Moro ao atacar Coaf, Receita e Polícia Federal, lavar as mãos para o pacote anticrime e defender armas para todos, excludente de ilicitude, juiz de garantias. Mas o presidente se manteve firme com Guedes até… passar a priorizar a reeleição. O alerta piscou na segunda fase das reformas. Se não ajudou, Bolsonaro se esforçou para atrapalhar o mínimo possível a da Previdência. Mas, na hora da tributária, balançou. E, na administrativa, empacou. Ficou claro, para Guedes e equipe, que o liberalismo de Bolsonaro tinha limite: as próximas urnas. Mexeu nos votos dos servidores, mexeu comigo.

O momento crítico da “debandada” da Economia foi justamente com a saída dos secretários de Privatização e de Desburocratização e Gestão, duas áreas emblemáticas, mas freadas no Planalto. O grito de guerra de Guedes foi ouvido longe: se Bolsonaro optar pelo populismo barato, implodir o teto de gastos e sair comprando votos à custa da estabilidade fiscal, vai entrar numa “zona sombria, numa zona do impeachment”.

Bolsonaro não entende que implodir as contas públicas atinge ainda mais a economia e ameaça a própria reeleição. Ele tem seu exército (com minúscula e com maiúscula) contra a política liberal, mas Guedes também tem o seu: o setor privado e a cúpula do Congresso. Pelo menos até fevereiro, quando mudam os presidentes.

A situação está no seguinte pé: Bolsonaro reafirmou seus votos liberais e a crença no Posto Ipiranga, mas o passado condena e seu senso de sobrevivência vai na direção oposta. O presidente se soma ao candidato para fazer os cálculos entre a “zona do impeachment” e os riscos à reeleição, entre manter o grande capital com Guedes ou atrair os grotões com o Centrão. É questão de tempo ele optar ao tudo pela reeleição. O que significa jogar Guedes ao mar, em companhia de Sérgio Moro. Será o fim do Jair Bolsonaro de 2018 e a consolidação do Jair Bolsonaro de 2022.


Vinicius Torres Freire: Chororô liberal e o desgoverno Bolsonaro

Fracassos do reformismo se devem à desordem política e administrativa do Planalto

O episódio da “debandada” provocou um chororô dos liberais, além de escancarar intrigas no Ministério da Economia.

Paulo Guedes forçou um recuo dos “fura-teto”, mas tem dificuldade de avançar porque ele mesmo não tem plano organizado, porque o governo não tem iniciativa, programa, competência e está dividido quanto ao que fazer da economia. Se não fosse por um general “fura-teto” e pelo Congresso, Jair Bolsonaro e seus “liberais” estariam com uma corda no pescoço.

Guedes depende de conveniências menores de Bolsonaro e do programa passivo do comando da Câmara. Do pouco que sai do Planalto, Rodrigo Maia e seu grupo vetam ou autorizam o que pode tramitar —não há plano organizado em acordo com uma coalizão no Congresso.

Tais decisões talvez mudem um pouco de figura, pois todos os líderes do governo e da maioria são agora deputados e senadores do MDB e do PP; todos menos um foram ministros de Dilma Rousseff e de Michel Temer, aliás.

Os liberais reclamam que são minoritários, preteridos e tratados como corpos estranhos no malévolo paquiderme estatal. Queixam-se do “deep state”, burocratas que andariam por porões brasilienses a sabotar privatizações etc. Talvez devessem mandar um telegrama de protesto para Guedes, pois em tese o ministro nomeou sua equipe e toma decisões.

Talvez se lembrem também de que os governos “social-democratas” privatizaram mais do que eles, os liberais. Os “comunistas” do primeiro governo FHC, como diz Bolsonaro, quebraram o monopólio estatal do petróleo, venderam a Vale, as teles, ferrovias e uma estatal elétrica, pelo menos. Os de Itamar Franco abriram a economia e venderam a CSN, a Açominas, a Cosipa e a Embraer.

Não quer dizer que reformas liberalizantes não vão passar. Esse é o programa de parte do establishment e do movimento que depôs Dilma Rousseff. Lembram-se de 2015, da “Ponte para o Futuro” do MDB, de Temer e companhia? Pois é.

Essas coisas ganham impulso e perduram por mistura de interesses e da feia necessidade, de pressões sociais e econômicas, de ideias da alta burocracia e dos acadêmicos. Mesmo um teto de gastos, diferente desse que está aí, foi plano de Nelson Barbosa, ministro da Fazenda na fase terminal de Dilma 2, que até queria fazer umas reformas, mas foi sabotada pelo PSDB e largada pelo PT.

O pessoal “Ponte para o Futuro”, também uma coalizão contra a Lava Jato, e o puro creme do milho da “velha política” passaram a liderar o governo no Congresso e seguram a cabeça de Bolsonaro. O próprio Temer agora é “brother”.

Se Bolsonaro tivesse um programa de administração, teria feito um governo Temer 2, mas não entende nem queria saber de nada disso, não reuniu quadros (nem conhecia algum), não organizou bancada e não tem articulação social (mafuá em rede social é outra coisa). Dedica-se a fazer guerra ideológica autoritária e a resolver os problemas da família com a polícia.

Em suma, um problema de Guedes e dos “liberais” é que não há propriamente governo. Reclamam dos generais, mas foi deles, de Braga Netto em particular, o plano de criar uma coalizão parlamentar mínima, em abril, e alguma articulação administrativa.

Reclamam do Congresso, que aprovou a reforma da Previdência e o auxílio emergencial, contra o plano pífio dos “liberais” para a epidemia, sem o que o país estaria em convulsão social e econômica, com saques, mais fome e quebradeira ainda maior.

Se algo andar, será por causa dessa geringonça que tenta dar forma a algo que pareça um governo.


RPD | Editorial: Calmaria e tempestade

Completa mais um mês o novo figurino adotado pelo presidente da República. Não mais confrontos com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; não mais ameaças, veladas ou não, ao funcionamento regular das instituições. Aparentemente, o bloco parlamentar apelidado de “centrão” teria logrado surpreendente e rápido sucesso, tanto na tarefa na de convencer o presidente a transitar pelos meandros da ordem democrática, como na de guiá-lo nesse percurso. 

Dois fatos recentes, contudo, evidenciam a fragilidade dessa avaliação otimista. Em primeiro lugar, os relatos da reunião de 22 de maio, na qual a possibilidade de destituição da totalidade dos membros do STF, mediante força militar, teria sido debatida, com seriedade, por ministros militares e civis. Em segundo lugar, a denúncia do funcionamento, na estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de um órgão encarregado da investigação de servidores públicos envolvidos em ativismo antifascista. Como sabemos todos, uma polícia política não tem lugar no ordenamento legal do país, e as ameaças concretas à ordem democrática não partem exatamente de militantes que trabalham na defesa dos direitos humanos. 

Tudo indica, portanto, que a calmaria que experimentamos se limite à superfície da política, ao passo que, nas profundezas, prosseguem os movimentos na direção do fortalecimento do presidente da República e da criação de condições para a decretação da “intervenção” almejada no momento propício. 

Nessa situação, seria erro grave das oposições democráticas sustar o processo de convergência, que avançava com celeridade quando a tensão política era crescente. Mais do que nunca, é preciso impulsionar esse processo, para dar conta de ao menos três objetivos. 

Em primeiro lugar, envolver na estratégia de defesa da democracia setores do próprio governo. Nada obsta, afinal, que parte, pelo menos, da base de apoio parlamentar do governo assuma, simultaneamente, as funções de linha de frente do governo no Congresso e de primeira linha de defesa da democracia, quando questões fundamentais estiverem em jogo. 

Em segundo lugar, atuar conjuntamente no sentido de esclarecer a opinião pública acerca das perdas colossais impostas aos brasileiros hoje e nos meses que virão pela incapacidade de o governo lidar de forma adequada com a crise sanitária corrente e a crise econômica que está se seguindo a ela. 

Finalmente, cooperar nos embates institucionais que se avizinham, das mudanças na composição do STF às eleições municipais, de modo a maximizar o fortalecimento da democracia. 

A calmaria é aparente. As movimentações autoritárias prosseguem: o momento da tempestade está sendo preparado por atores relevantes da política. 


RPD | Alberto Aggio: As modulações da guerra de Bolsonaro

O aumento do número de mortos provocado pela pandemia, a desastrosa atuação do governo no tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança e o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente estancaram a linha de ação da guerra de Bolsonaro

Não estamos em guerra, nem internacional, nem de libertação nacional, nem mesmo contra a pandemia que se abateu sobre nós. No entanto, a metáfora da guerra invadiu, com palavras e expressões do mesmo campo semântico, o espaço discursivo da política desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder. Até a cultura foi atingida em nome de uma insana “guerra cultural” contra tudo o que os partidários do presidente definem como “esquerda”. A militarização de parcela da gestão pública federal é parte dessa aparentemente insólita situação, com um general à cabeça do Ministério da Saúde asseverando que lá está “para cumprir ordens”.

O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclaração contundente, é o programa de “destruição” dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988. Em momentos nos quais a eloquência confrontacional do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo “paz, em nome do Brasil”.

A “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário.

Talvez por isso a sensação de crispação política nos remeta tanto à guerra como à revolução. Esta última, um devaneio rupturista que os ideólogos do bolsonarismo curam em “fogo morno” contra a democracia em seus valores, instituições e direitos. Ruptura travestida como eliminação de “comunistas” e “corruptos” do solo pátrio. Como o presidente não lidera um partido fascista ou um movimento orgânico (embora tenha mobilizado massas) que combine a rua com redes sociais e instituições da sociedade política, pode-se dizer que ele e o “núcleo duro” do bolsonarismo guardam alguma similitude com a subsistência de experiências do tipo “45 cavaleiros húngaros”, mencionada por Gramsci, nas quais uma minoria, em meio à paralisia ou desorientação das massas, consegue alcançar um sucesso inesperado.

"A 'guerra de Bolsonaro' não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução"

Garantir o êxito conquistado e levá-lo avante no mesmo padrão da campanha eleitoral foi o que se fez neste ano e meio, ao se acionar uma “guerra de movimento”, aberta e confrontacional, visando a uma vitória esmagadora e histórica que impusesse uma “nova hegemonia”. Esse movimento, permanente e multifacetado, que pediu “intervenção militar” e um “novo AI-5”, atingiu seu ápice no “bombardeio fake” ao STF com fogos de artifício, sugerindo que se passasse da encenação a um efetivo “golpe de mão”. Em maio, Bolsonaro cogitou efetivamente de “intervir” no STF e destituir seus ministros[1].

Mas havia mais de uma pedra no caminho. O crescente número de mortos provocado pela pandemia e o desastroso tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança (cujo desastroso ápice foi a saída de Sergio Moro), e, por fim, o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente, envolvendo a milícia carioca, estancaram aquela linha de ação.

Ato contínuo, sobreveio uma contraofensiva democrática capitaneada pelas instituições da República, notadamente o STF, que, ladeada pela postura crítica da mídia tradicional, ganharia as redes sociais e, mesmo em plena pandemia, as ruas. Em manifestações múltiplas, a sociedade civil passou a confrontar simbolicamente as hostes bolsonaristas conclamando à defesa da democracia. Infelizmente, em função de históricas divisões, o saldo político dessa contraofensiva foi pequeno, mostrando a debilidade das forças democráticas.

Entretanto, sentindo o mandato ameaçado, o presidente acusou o golpe e, depois disso, assumiu estratégia híbrida de congelamento do movimentismo e adoção de uma “guerra de posições”, a visando evitar o impeachment. A estratégia de “suspensão da política” esgotou-se. Cooptar os parlamentares do Centrão para o campo governista tornou-se elemento essencial.

A mudança forçou um “retorno à política”, mesmo sem as convicções que uma operação como essa exige. Há claro dissabor nessa operação para quem pretendia vitória fulminante. Mas o movimento de Bolsonaro não é apenas defensivo. Ele pretende, de um lado, impedir a aproximação e uma eventual aliança entre a oposição e as principais lideranças de centro ou centro-direita no Congresso; e, de outro, capturar bandeiras sociais como o auxílio emergencial, que se somaria a outras propostas de cunho assistencial. Impedir o impeachment, por meio de uma “guerra de posições” e manter o ativismo eleitoral, rumo a 2022, define o sentido dessa mudança de estratégia; somente a severidade da crise, ao que tudo indica, pode comprometer seu êxito.

Por ora, a ameaça de destruição integral da democracia parece estancada, embora o estrago tenha sido enorme. Desorientada, a oposição viu o impeachment fugir-lhe entre os dedos, o que inevitavelmente voltou a aprofundar suas divisões. Isso fez com que Bolsonaro se recuperasse e saísse das cordas. Uma coisa é certa: Bolsonaro vacilou e criou obstáculos para não “abrir o cofre” para salvar vidas (empresas e empregos), mas parece não ter dúvidas em fazê-lo para garantir sua reeleição, o que poderá agregar às crises que já temos um aprofundamento da nossa eterna crise fiscal, de consequências imprevisíveis.

[1] Gugliano, Monica. “Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo”, Piauí, edição 167, agosto de 2020.


RPD | Rubens Barbosa: As eleições nos EUA e o Brasil

Diante de uma provável vitória de Joe Biden, Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado

As pesquisas de opinião oscilam, mas passou a haver chance real de Joe Biden vencer as eleições presidenciais de novembro, com mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa nos EUA. A incerteza deriva do sistema eleitoral dos EUA, no qual o presidente é eleito não por voto majoritário, mas por um colégio eleitoral, formado por delegados dos 51 estados, alguns dos quais divididos, como Pensilvânia, Michigan, Flórida, com resultados imprevisíveis, pela mudança de sua maioria em cada eleição.

O Partido Democrata, no governo, implementará uma política econômica com forte viés nacionalista, para recuperar o dinamismo da economia e reduzir o desemprego, com grande ênfase em políticas ambientais (Green New Deal). Os EUA deverão assinar o Acordo de Paris e voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o consequente retorno à Organização Mundial de Saúde, ao fortalecimento da OMC e da ONU. Temas como salvar o acordo nuclear com o Irã, o reingresso no acordo comércio com a Ásia (TPP), a relação com a Europa (OTAN) e a saída do Reino Unido da União Europeia estarão altos na agenda.

As crescentes tensões geopolíticas entre os EUA e a China deverão continuar e mesmo ampliar-se nas áreas comerciais, tecnológicas e militares, pois Beijing é tratada hoje como um adversário pelo establishment norte-americano. A presença da China na América do Sul poderá trazer o conflito geopolítico para a região. A decisão do governo de Washington, de apresentar candidato para a presidência do BID, contra um candidato brasileiro, pode ser o indicio de um renovado interesse político dos EUA para conter Beijing na América do Sul.

Qual o impacto sobre as relações Brasil-EUA?

Em uma de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro comentou o cenário da eleição presidencial americana. Confirmou que torce por Donald Trump, mas que vai tentar aproximação, caso Joe Biden seja o vencedor. "Se não quiserem, paciência", simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata, ao contrário do tratamento que está sendo dado ao presidente Fernández, da Argentina.

"Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação especial com Trump por influência ideológica. Em termos institucionais, o relacionamento bilateral, de baixa prioridade, deve continuar nas mesmas bases em que ocorre hoje"

Nesse contexto, é importante ter em mente a distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana. Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação especial com Trump por influência ideológica. Em termos institucionais, o relacionamento bilateral, de baixa prioridade, deve continuar nas mesmas bases em que ocorre hoje. Mesmo no governo Trump, o Comitê de Orçamento da Câmara, um relatório do Departamento de Estado e carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, que haja sanções contra Brasília por conta das políticas ambiental e de direitos humanos, e que seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da OTAN.

Um futuro governo democrata tenderá a ampliar essas críticas e afastar-se das posições brasileiras nos foros internacionais. O alinhamento com os EUA, nem sempre explicitado nas relações bilaterais, torna-se automático quando se trata de votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais (ONU, OMS, OMC). Em muitos casos, o Brasil fica isolado com EUA e Israel e, na questão de costumes, apenas com países conservadores (Arábia Saudita, Líbia, Congo, Afeganistão). O tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais.

O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Biden vença a eleição. O Brasil vai ter de decidir se fará uma opção (evitada pela maioria dos países europeus e asiáticos) por um dos lados ou se preferirá permanecer equidistante nessa disputa. Eventual oposição à tecnologia chinesa no 5G e apoio à proposta dos EUA na OMC sobre a participação apenas de países de economia de mercado – o que excluiria a China – indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado. Os EUA convencerão o Brasil a ficar contra a China? Levando em conta que a disputa entre as duas potências está apenas começando e durará por muitas décadas, manter-se equidistante parece ser a melhor atitude na defesa do interesse nacional.


RPD | Paulo Baía: Jair Bolsonaro e o fingimento como práxis política

Brasil vive etapa do fingimento na política nacional. Governo Jair Bolsonaro tenta evitar confrontos com os presidentes das casas legislativas e com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto amplia acordo com os partidos do Centrão

Jair Bolsonaro e seu Estado Maior vão tocando o dia a dia da política nacional, como diz no linguajar popular, através da prática de ir cozinhando o galo. A relação estabelecida com o Congresso Nacional é a do não confronto com os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. E trataram de ampliar o diálogo com os partidos políticos – PSDB e MDB –, principalmente com o deputado emedebista Baleia Rossi.

Aparentemente, Jair Bolsonaro não participa da campanha para a Presidência da Câmara dos Deputados, fazendo com que os partidos fisiológicos, autodenominados de Centrão, sem se caracterizarem realmente como um centro político, finjam desconforto com o governo, mas aceitem com alegria as nomeações nos terceiro e quarto escalões da República. Além de estarem focados nas facilidades que o Governo Federal está oferecendo às campanhas municipais a serem realizadas nos dias 15 e 29 de novembro de 2020.

Apesar do descontentamento pela derrota sofrida com a aprovação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) por uma maioria qualificada, tornando-se permanente, o governo manteve-se com uma postura de aceitação. O Fundeb deixou de ser um programa e passou a ser uma política de Estado constante e de interligação entre os entes federados – municípios e estados –, e não mais como uma relação federativa formal. Inclusive, até 2023 o Governo Federal terá que efetuar uma crescente participação para a manutenção do fundo.

Como efeito da aprovação do Fundeb temos a discreta e não surpreendente nomeação para secretária da Educação Básica do MEC, da professora Izabel Lima Pessoa, experiente servidora pública com presença marcante em todos os governos, desde FHC até Michel Temer. E com ótimo trânsito na quase totalidade das secretarias municipais e estaduais de educação.

"No início do mês de julho, Jair Bolsonaro e seu governo praticavam um silêncio pragmático para enfrentar as decisões do STF, como no caso do inquérito contra as fake news, tendo surgido um forte rumor de reuniões do presidente com forças militares para dissolver o STF, relatado pela revista Piauí"

A pandemia do coronavírus permanece ativa e potente, e atingiu a triste marca de mais de 100 mil brasileiros mortos. No entanto, prefeituras e estados vêm flexibilizando o retorno de todas as atividades econômicas como parte da estratégia do Governo Federal, pensando no reaquecimento da economia, grande preocupação do presidente Bolsonaro, visando às eleições presidenciais de 2022.

Na parte educacional, as universidades públicas retomam o ensino de graduação de maneira remota, com apoio, apesar de discreto, aos estudantes carentes a partir da doação de chips e de uma bolsa para compra de computadores. O governo estenderá o auxílio emergencial até dezembro, pensando nos efeitos produzidos na aprovação do presidente nos segmentos mais pobres e sacrificados da população brasileira. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também finge que governa e estabelece diálogo sobre a reforma tributária com empresários, parlamentares, governadores e prefeitos, os quais fingem escutar e até concordar com a dita reforma.

Entramos para a etapa do fingimento na política nacional e no governo Jair Bolsonaro. Entretanto, como contraponto de realidade política, temos uma economia política da vida emergindo para milhões de brasileiros num experimentalismo comunitário vigoroso. Podemos falar do caso da auto-organização de comitês de favelas e periferias num processo de defesa potente da vida e dos meios de sobrevivência; estão se reinventando.

No início do mês de julho, Jair Bolsonaro e seu governo praticavam um silêncio pragmático para enfrentar as decisões do STF, como no caso do inquérito contra as fake news, tendo surgido um forte rumor de reuniões do presidente com forças militares para dissolver o STF, relatado pela revista Piauí. Já em agosto, inicia-se uma postura de fingimento de que não existe uma crise política profunda e ampla, potencializada pelos impactos paralisantes da Covid-19 em parceria com o ineficaz e desastroso liberalismo da morte do ministro Paulo Guedes e sua equipe.

Por sua vez, a oposição finge que faz oposição num universo paralelo e ficcional justamente por sua não atuação nas práticas políticas reais e eficazes para criar e manter um debate sobre a situação sanitária, política e econômica do país. Podemos afirmar que o signo do mês de agosto de 2020 se dá através da relação entre o fingidor e o fingimento numa tentativa de colocar a sociedade brasileira diante de um enigma. Sendo que Édipo será incapaz de decifrá-lo por se tratar de uma esfinge com signos claros de uma republiqueta do submundo periférico.

*Paulo Baía é sociólogo e cientista político.


RPD | José Luiz Oreiro: Pós-Covid 19: Estagnação Perpétua?

As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias em comparação com as principais economias mundiais. O país deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019, avalia José Luis Oreiro

A eclosão da pandemia do coronavírus no primeiro trimestre de 2020 está produzindo a maior contração coordenada do nível de atividade econômica em nível global, desde a grande depressão de 1929. A média das previsões do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e da Comissão Europeia aponta para uma queda de 6,5% da economia mundial, em 2020, com as economias avançadas apresentando recuo mais forte, de 7,5%. Ao passo que as economias em desenvolvimento devem apresentar retração mais suave, de “apenas” 3,0%. Claro está, contudo, que boa parte da queda mais suave das economias em desenvolvimento relativamente às economias avançadas se deve à projeção média de queda de 0,6%, em 2020, para a economia da China.

Quanto à economia brasileira, a média das previsões aponta para retração de 8,7%, configurando, assim, a mais rápida e intensa queda do nível de atividade econômica já registrada no país desde 1929.

Para o ano de 2021, a média das previsões das instituições internacionais listadas acima aponta para recuperação relativamente rápida da economia mundial, que deverá apresentar crescimento de 5,4%, em 2021. Mas a recuperação será extremamente desigual entre os países analisados. Enquanto a China deverá apresentar crescimento de 4,9%, em 2021, devolvendo toda a perda de produto ocorrida durante a crise do coronavírus, as economias avançadas deverão apresentar crescimento de 4,4% no próximo ano, insuficiente para recuperar a perda de produção e de renda ocorrida ao longo do ano de 2020. As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias: a economia brasileira deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019.

"Para a economia brasileira, a média das previsões aponta para retração de 8,7%, configurando, assim, a mais rápida e intensa queda do nível de atividade econômica já registrada no Brasil, desde 1929"

A teoria macroeconômica convencional apresenta os ciclos econômicos como oscilações de amplitude e periodicidade irregular em torno de uma tendência de longo prazo relativamente constante, determinada por fatores do lado da oferta da economia e independente das flutuações do nível de atividade. Dessa forma, períodos de forte contração do nível de atividade econômica deveriam ser seguidos por períodos de crescimento acelerado, caso a tendência de crescimento de longo prazo não seja alterada ao longo do processo. As previsões acima, contudo, parecem apontar para efeitos persistentes da crise do coronavírus sobre o nível de atividade econômica, pois as projeções de crescimento para 2021, para a maior parte dos países, indicam que suas economias chegarão ao final desse ano com um nível de atividade muito abaixo do nível prevalecente antes da pandemia.

O caso brasileiro é particularmente grave nesse quesito. Não só a economia brasileira ao final de 2021 estará operando muito abaixo do nível verificado no final de 2019, como ainda estará 9,4% abaixo do indicador verificado em 2014! Isso porque, no início de 2020, a economia brasileira sequer havia se recuperado dos efeitos da crise de 2015-2016, quando o nível de atividade apresentou contração de 6,81%. A perda de produto não recuperada ao longo do período 2017-2019 será somada à contração esperada de 9,10% (pelo FMI), no ano de 2020, totalizando queda de produto de 11,96% no período 2015-2020.

O cenário para 2021 é assustador. Os programas do Governo Federal, de manutenção de renda e de emprego, devem ser terminados no final do terceiro trimestre de 2020. Se nada for posto em seu lugar, teremos queda de renda significativa no último trimestre do ano, o que deverá produzir uma segunda contração do nível de atividade econômica e novo mergulho recessivo. Além disso, se o teto de gastos não for flexibilizado em 2020, com a exclusão dos investimentos públicos do teto a partir de 2021, então o Governo Federal será obrigado a recomeçar o ajuste fiscal, mas com uma economia que deverá registrar índices cavalares de ociosidade da capacidade produtiva.

Nesse contexto, parece pouco provável que a economia brasileira possa ter desempenho de crescimento superior ao que obteve no período 2017-2019, ou seja, um crescimento médio em torno de 1% a.a. Com esse ritmo, a economia brasileira só retornaria ao nível de PIB de 2014 em 2033! Se esse cenário se concretizar, a economia brasileira passará por período de estagnação de quase 20 anos. Não acredito que uma estagnação tão longa seja política e socialmente sustentável. Ou a sociedade brasileira se livra das amarras de um pensamento econômico obsoleto ou ela poderá trilhar o caminho da autodestruição.

José Luís Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. E-mail joreiro@unb.br


Ribamar Oliveira: Ala liberal perde substância no governo

Privatizar estatais e fazer reformas sempre foi difícil no Brasil

O que há de mais significativo na saída de duas importantes autoridades do Ministério da Economia, nesta semana, é que elas fazem parte da mesma ala liberal que procura, desde o início, montar uma agenda modernizadora e liberalizante para o atual governo. A saída deles cria interrogações sobre o futuro, pois indica um esvaziamento e perda de substância desse pensamento ideológico dentro do governo.

O momento da saída foi muito ruim, pois o ministro Paulo Guedes enfrenta uma disputa interna com as alas militar e política do governo, que querem um programa de investimento em obras de infraestrutura como estratégia para sair da crise econômica provocada pela pandemia.

Guedes está praticamente sozinho dentro do governo na defesa do teto de gastos da União, quando até o filho mais velho do presidente da República diz que ele precisa arrumar “um dinheirinho” para aumentar os investimentos públicos. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) se esquece que “um dinheirinho” o ministro da Economia até pode arrumar, o que ele não conseguirá é abrir um espaço no teto de gastos para fazer os investimentos que o primogênito de Jair Bolsonaro deseja.

Duas coisas espantam nesse episódio. A primeira foram as razões alegadas pelos assessores de Guedes para os pedidos de demissão. O secretário especial de Desestatização, Salim Mattar, disse ao ministro que “é muito difícil privatizar, que o ‘establishment’ não deixa fazer privatização, que tudo é muito emperrado, que tem que ter um apoio mais definido e decisivo”. O secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, queixou-se, segundo relato de Guedes, que “a reforma administrativa está parada”.

As razões apresentadas parecem ingênuas. Uma rápida olhada na história recente do Brasil vai mostrar que privatizar estatais nunca foi tarefa fácil, desde que o ex-presidente João Figueiredo criou o primeiro programa brasileiro de desestatização, no início da década de 1980. De lá para cá, houve muitos avanços importantes nessa área, como a privatização do grupo Telebrás. Mas outras iniciativas foram paralisadas por interesses conhecidos, como é o caso do grupo Eletrobras, que está para ser privatizado desde o governo do ex-presidente Michel Temer e não se consegue.

Ao contrário do que pensam alguns, não são apenas os partidos de esquerda e os sindicatos que se mobilizam contra as privatizações. Os integrantes dos partidos que fazem parte do chamado Centrão também gostam de ocupar cargos bem remunerados nas estatais. As estatais foram, até passado recente, usadas para fazer negócios escusos, que beneficiaram grupos políticos. Muitos ainda as veem como fonte para obtenção de vantagens ilícitas.

O caso das reformas estruturais, como a administrativa, não é diferente. Se Uebel fosse político saberia das dificuldades para aprovar no Congresso Nacional mudanças que tiram privilégios ou afetam pretensos direitos ou interesses constituídos. Vale lembrar, por exemplo, que a reforma tributária é discutida no Congresso há pelo menos 30 anos, sem avançar.

No livro “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil?”, lançado neste ano, o economista Marcos Mendes enumera uma série de questões que dificultam as mudanças. Uma delas é o sistema político-eleitoral, que complica a formação de maiorias parlamentares. No caso do governo Bolsonaro, em que o presidente nem sequer tem partido, o problema é ainda maior. Outros obstáculos citados por Mendes são os conflitos entre os Poderes, uma Constituição muito detalhista, uma baixa coesão social e um país muito grande, com expressivas desigualdades regionais.

Mattar e Uebel achavam que desta vez seria fácil fazer as privatizações e as reformas, apenas porque consideram que elas são o melhor caminho para o avanço do país? Seria ingenuidade acreditar que sem base política ampla no Congresso é possível aprovar medidas que exigem três quintos dos votos de deputados e senadores.

Para fazer as reformas e as privatizações, é necessário também vontade política do presidente da República. A saída de Mattar e Uebel indica que eles concluíram que Bolsonaro já não tem vontade de fazer um forte programa de privatização, a toque de caixa, nem de encarar os desafios de uma reforma administrativa.

Outra coisa que causou espanto foram as palavras de Guedes sobre o teto de gastos. “Os conselheiros do presidente que o estão aconselhando a pular a cerca e a furar o teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal”, disse o ministro. Com a frase, Guedes não apenas tornou pública a disputa dentro do governo em torno desta questão, como lembrou ao presidente que crise fiscal pode levar à sua destituição, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff.


O ministro Paulo Guedes rejeitou a proposta de “seguro-receita” para os Estados durante a pandemia, feita no PLP 149, de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ, que chegou a ser aprovada pela Câmara. Por pressão de Guedes, o Senado fez outro projeto, que resultou na lei complementar 173, fixando um teto de R$ 60,15 bilhões a serem repassados aos governos estaduais e prefeituras para cobrir perdas de arrecadação.

O resultado foi que o tiro saiu pela culatra. Os dois primeiros repasses aos Estados feitos pelo Tesouro superaram as perdas que eles tiveram com o ICMS. “Eu avisei que isso ia acontecer”, disse Pedro Paulo, em conversa com o Valor. “O PLP era muito mais lógico tecnicamente e seria mais barato, eficiente e justo do que a LC 173”, afirmou. “Com os dados reais de queda de arrecadação do ICMS e ISS, vemos que o Tesouro gastará R$ 20 bilhões a mais do que seria necessário e de forma absolutamente desigual”, disse.

Pedro Paulo informou que encaminhou ontem uma Proposta de Fiscalização Financeira e Controle (PFC) ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitando a fiscalização desses recursos para evitar que sejam aplicados em ações não relacionadas à pandemia, cobrando responsabilidade e devolução à União.


Maria Cristina Fernandes: Um técnico prestigiado

Guedes age para elevar o preço de sua demissão

Às 8h45 desta quarta-feira o presidente Jair Bolsonaro fez um textão no Facebook. Reiterou compromisso com privatizações, justificou as dificuldades em viabilizá-las, reafirmou o “norte” da responsabilidade fiscal e do teto de gastos e disse ver com naturalidade a saída de colaboradores.

Agiu como o presidente do clube que sai a público, 15 minutos antes do início do jogo, para dizer que o técnico está prestigiado. A torcida captou. Dólar e juro abriram em queda, mas sem debandada. Estava claro, porém, que se protelara uma situação insustentável. O desfecho tarda porque, além de o técnico resistir a sair, não há substituto à mão.

Na véspera, Paulo Guedes, depois de se reunir com Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, Casa que abriga 52 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, espicaçou. Disse que os “conselheiros” do presidente, ao lhe sugerirem “pular a cerca e furar o teto”, facilitariam a abreviação de seu mandato.

O ministro da Economia, que acabara de receber os pedidos de demissão dos secretários Salim Mattar (Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital), parecia estar fazendo uma ameaça velada ao presidente. Se o objetivo da gastança é a reeleição, o mandato pode acabar antes da chance de ser renovado. Foi o que disse.

Agiu como se acreditasse que o presidente só tivesse o mercado, do qual fala como fiador, a sustentá-lo. Parte do pressuposto de que Bolsonaro já perdeu a classe média e está a caminho de também ficar desprovido do apoio dos mais pobres com o fim do auxílio emergencial de R$ 600. O ministro valeu-se da saída de Mattar e Uebel para tentar enquadrar o presidente. Mostrou-se um “trader” que além de ganhar a parada tem que se exibir como vitorioso.

E, de fato, a oposição do presidente da Câmara à prorrogação da calamidade pública e o alerta do TCU em relação às pedaladas dos créditos extraordinários levaram o governo a recuar da intenção de alocar R$ 35 bilhões nas mãos dos ministros “obreiros”, Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).

Sem a calamidade, voltarão a valer a responsabilidade fiscal e a regra de ouro, normas que seriam descumpridas pela alocação que acabou reduzida para R$ 4 bilhões. O desfecho foi vitória de Guedes que, insatisfeito, quis também espicaçar com a ameaça de impeachment.

O comportamento do ministro da Economia o isolou no governo. No início da semana o presidente foi testemunha de uma pesada troca de acusações entre Guedes e Marinho. Sem a calamidade pública, o governo terá que encontrar espaço para criar o Renda Brasil e permitir que as estatais voltem a investir dentro do orçamento. Missão que embaralha até o mais agressivo dos “traders”.

Ao negar apoio à extensão da calamidade, Maia parece atuar pelo reequilíbrio de forças no governo pró-Guedes. Só que não. Sem o "orçamento de guerra", Bolsonaro terá dificuldade de manter seus novos aliados do Centrão. A cena do final do dia, quando voltou a reiterar compromisso fiscal ao lado de ministros e parlamentares, vai ficar como um retrato na parede.

A pretexto de cumprir sua cartilha liberal, Maia embaralhou a articulação política de Bolsonaro e dificultou seu jogo na eleição para a mesa da Câmara. Fez de Guedes o ministro vitorioso de um governo em chamas.

Num uniforme de bombeiro que não lhe cai bem, Guedes foi incapaz de evitar que o fogo cruzado ultrapassasse as fronteiras do Palácio. Nas entrevistas que deu ao longo do dia, Mattar não apenas disse que as estatais eram foco de corrupção, como expôs a ferida da Casa da Moeda.

Poucos fracassos no programa de privatizações são tão representativos. A venda da Casa da Moeda foi incluída numa medida que o Congresso deixou caducar para a grande satisfação do presidente do PTB, Roberto Jefferson, hoje um dos mais ferrenhos aliados de Bolsonaro e rei da Casa da Moeda desde o Mensalão, que o condenou na justiça, até hoje.

Além de perder sucessivos colaboradores - desde o início do governo, além de Mattar e Uebel, saíram Marcos Cintra (Receita Federal) Mansueto de Almeida (Secretaria do Tesouro), Caio Megale (Diretoria de Programas da Secretaria Especial da Fazenda), Marcos Troyjo (Secretaria de Assuntos Internacionais) e Rubem Novaes (Banco do Brasil) - Guedes não ampliou as alianças na Esplanada.

O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, por exemplo, mais preocupado em fomentar a guerra entre Bolsonaro e a imprensa, não tem tido participação nas conversas para fazer caber o Renda Brasil no Orçamento de 2021.

Guedes tampouco conta com os ministros militares do Palácio, hoje aliançados com Marinho e Freitas, em torno de propostas onde se enxergam não apenas uma via para a reeleição como também a manutenção das estatais e dos projetos do Ministério da Defesa.

Neste bloco não se encontra o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, cujas diferenças com seus colegas ficaram claras na reportagem de Mônica Gugliano na “Piauí”. Entusiasta de primeira hora da campanha bolsonarista, o general se fiava na dupla Sergio Moro/Paulo Guedes para fazer crer que se tratava de um governo liberal de combate à corrupção.

Hoje o ministro vê seus colegas generais aliançados com os personagens que inspiraram sua composição “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão” e não se anima a cerrar fileiras na guerra contra Guedes. Trata-se, porém, menos de entusiasmo com o Pró-Brasil do que de uma adesão de peso à causa do ministro da Economia.

Numa tentativa de romper esse isolamento, Guedes buscou ontem, junto ao Tribunal de Contas da União, soluções para conseguir abrigar tanto o Renda Brasil quanto os investimentos das estatais sob o teto de gastos.

Tenta recompor a unidade do governo. A esta altura, porém, ecoa Filipão ao final do primeiro tempo do jogo contra a Alemanha na Copa de 2014. Para o segundo tempo, o Congresso se mobiliza pelas reformas tributária e administrativa. Ambas, a pretexto de convergir com o ministro Paulo Guedes, aumentam a cizânia no setor privado e entre servidores e militares. Trazem, no entanto, a oportunidade de o Congresso posar como reformista frente a um governo que não se entende. Foi-se o tempo, porém, que o 7x1 era a lembrança mais amarga. A derrota, com muito mais dígitos, hoje se conta em vidas.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro assopra Guedes, mas luta política pelo gasto continua

Governo e Congresso fazem cerimônia de culto ao teto de gastos, mas problema continua

Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre juntaram-se para um breve culto do teto de gastos e para dar uns tapinhas nas costas do ministro da Economia, Paulo Guedes, estressado por debandadas várias. Sabe-se lá o que vai sair de prático das reuniões e do pronunciamento da noite de quarta-feira. No que vale prestar atenção:

1) Se a conversa fosse para valer, não haveria dinheiro para um Renda Brasil, o Bolsa Família gordo que Bolsonaro quer chamar de seu na eleição de 2022;

2) Maia disse que na reunião do Alvorada houve um compromisso de regulamentar os gatilhos do teto. Parece um tédio infinito, mas é coisa grande –mais sobre isso adiante;

3) Alcolumbre disse que a retomada (pós-pandemia) tem de ter “responsabilidade fiscal e social”.

Além de Bolsonaro, Maia (presidente da Câmara), Alcolumbre (presidente do Senado) e Guedes, na reunião estavam também os ministros “fura teto” (no dizer de Guedes), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), além de líderes do governo no Congresso e do centrão.

“Regulamentar os gatilhos do teto” significa colocar na Constituição e em leis que a despesa federal vai ser cortada dessa e daquela maneira, obrigatoriamente, quando o gasto chegar ao limite constitucional. No final do ano passado, o governo enviou ao Congresso uma PEC para regulamentar esse talho, que vigoraria imediatamente, dada a situação das contas públicas.

O que aconteceria? Salários e jornada de servidores federais seriam cortados em até 25%; seriam proibidos reajustes, promoções, concursos etc. Seria proibido criar despesa obrigatória, o que inclui reajuste de salário mínimo e aposentadorias acima da inflação. Um programa de Renda Básica teria de ser inventado antes disso, portanto.

Quanto ao programa de Renda Básica, ora não há dinheiro, dados os limites do teto. Suponha-se que o Bolsa Família passe a atender 19 milhões de famílias (hoje são 14,3 milhões) com um benefício médio de R$ 232 (atualmente de R$ 190), como previa o governo também no final de 2019. A fim de bancar apenas essa despesa, seria necessário dar fim ao abono salarial de um salário mínimo por ano para quem ganha até dois mínimos e do seguro-defeso (seguro desemprego sazonal para pescadores). Já seria um problema enorme. Alguns dinheiros poderiam vir do fim de alguns subsídios tributários, poucos, ou do talho final da despesa em obras, inviável.

Mas lá no Alvorada estava Alcolumbre a falar de “responsabilidade social”. Estava o centrão, do qual depende o pescoço de Bolsonaro. O que vai sair disso, politicamente?

Depende da eleição do comando de Câmara e Senado; da popularidade de Bolsonaro; do que vai ser a economia depois de setembro, por aí.

Por ora, o culto do teto deve dar uma acalmada “no mercado”. Mas há empresários “fura teto” na construção civil e entre seus fornecedores, que querem obras, em especial de casas populares, para o que não há dinheiro, dado o teto de gastos. Além do mais, no Congresso alguém vai pelo menos pensar em uma gambiarra para acomodar todos esses interesses: de Bolsonaro, da finança, dos “fura teto”, da renda básica etc.

Em resumo, o jogo continua. Houve uma parada para o massagista passar uma aguinha em Paulo Guedes, que deu um grito de Neymar caído no gramado, e para o juiz olhar no VAR se houve impedimento no ataque ao teto. A primeira grande jogada acontece até o fim do mês, quando o governo manda ao Congresso o projeto de Orçamento de 2021.


Míriam Leitão: A encenação no espelho d’água

A discussão em torno do teto de gastos não nasceu esta semana e não é um dilema criado pela pandemia. A ideia de que estava tudo indo bem e que a crise na saúde fez desandar a economia é falsa. Em setembro do ano passado, o presidente disse que o teto de gastos precisaria ser flexibilizado, do contrário, em dois ou três anos ele teria que apagar a luz de todos os quartéis. “É uma questão matemática”, concluiu. Ontem, ele apareceu com ministros, os presidentes das duas Casas do Congresso e garantiu que vai respeitar o teto. Até o espelho d’água do Alvorada entendeu que a cena foi montada para acalmar o ministro da Economia, Paulo Guedes, mas o presidente continua prisioneiro de sua indecisão.

Na época, em setembro de 2019, o ministro Paulo Guedes reclamou da declaração do presidente contra o teto, e ele recuou, mudando sua matemática. Disse que respeitaria o teto. Sua convicção, no entanto, não mudou. Tanto que nos meses seguintes engavetou a reforma administrativa, defendeu interesses corporativos, ignorou as propostas de emendas que mandou para o Congresso, não se mobilizou por projeto fiscal algum. Teve olhos apenas para as medidas que aumentavam o acesso às armas. Esta semana, mesmo em meio à pandemia, ele voltou às armas e justificou dizendo que é uma promessa de campanha.

A agenda da economia também foi promessa. Mas era artificial. Foi implantada em seu programa ocupando o vazio de ideias. Nesta crise, todos criam versões distantes da realidade. O ex-secretário Salim Mattar disse que está saindo porque não se acostumou com a burocracia de Brasília, e que os sindicatos, os corporativistas, a esquerda impedem a privatização. Tinha tudo isso no governo Fernando Henrique e ele privatizou. A verdade é que Mattar, apesar dos autoelogios sobre a sua capacidade administrativa, não foi um bom gestor. E, além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou a venda de algumas estatais e não se interessou por outras. No meio tempo, criou uma estatal.

No mercado, ontem, os ativos mostravam instabilidade. O Banco Central vendeu logo cedo US$ 500 milhões no mercado futuro para conter a elevação do dólar. O real já abriu sendo a moeda emergente que mais se desvalorizava. Os juros futuros — contratos negociados por investidores que tentam estimar a taxa básica de juros — bateram em 5,75% com vencimento em janeiro de 2025. Nos últimos três dias, houve aumento de 0,6 ponto percentual nessa taxa, o que significa que eles estão apostando em aumento na Selic no médio prazo. O Bradesco enviou relatório para alertar que mesmo com o cumprimento do teto de gastos a dívida pública permanecerá em 98% do PIB até 2025. Se ele for furado, e isso afetar o crescimento do país, a dívida poderia chegar a 110% no mesmo período. Houve um momento em que Nathan Blanche, da Tendências, disse à coluna que teria que haver uma reunião entre Bolsonaro com os dois presidentes do Congresso para fazer um pacto pela reforma. A reunião acabou acontecendo no fim da tarde. Quanto durará essa declaração conjunta? Menos que o tempo de um pregão.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, querem que alguma agenda ande no Congresso, mas no mesmo dia de ontem a mobilização no parlamento era em torno dos vetos do presidente. Maia falou no Alvorada na aprovação dos “gatilhos” que dariam possibilidade de gerir o orçamento. Ele se referia aos projetos de corte de certos gastos, como a suspensão de aumento de salário de funcionalismo, previstos na PEC emergencial. Havia uma proposta de iniciativa do Legislativo. O ministro da Economia preferiu ignorá-la e mandar sua própria proposta. Que está parada.

Os ministros gastadores dizem para o presidente que essa é a única forma de salvar o governo dele e melhorar sua popularidade. Paulo Guedes avisa que isso levará ao caos, às pedaladas, e que ele terá o mesmo destino da presidente Dilma. Bolsonaro tem medo de perder Paulo Guedes, mas não acredita na agenda dele. Gosta do que ouve dos ministros fura-teto, mas não quer ficar sem sua placa do Posto Ipiranga. Os erros de Guedes o enfraqueceram, a pandemia fortaleceu o argumento do aumento de gastos. Indeciso, Bolsonaro tem apenas um alvo: a reeleição em 2022.